A confissão judicial simples posterior feita pelo devedor de que não pagou o preço devido tem força probatória plena e anula a confissão extrajudicial contrária anterior constante da escritura notarial de que a credora recebeu o preço.
(5.ª Secção Judicial, 3.ª Secção Cível)
Comarca de Porto
Juízo Local Cível de Valongo – Juiz 2
Relator: Filipe César Osório
1.º Adjunto: Carla Fraga Torres
2.º Adjunto: Teresa Fonseca
Sumário
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Ação Declarativa, Processo Comum
1. As partes:
Autora/Recorrente – AA
Ré/Recorrida – A..., LDA.
Para o efeito, a Autora alegou essencialmente que no dia e hora da escritura de compra e venda foi exibido pelo representante da Ré, perante a Notaria e perante a Autora e seu o filho CC, o cheque com o número ..., do Banco 1..., S.A. para pagamento do preço de cinquenta mil euros da venda do referido prédio rustico, sucede que, atendendo à avançada idade da Autora e às dificuldades de locomoção após a celebração da escritura a mesma foi auxiliada pelo seu filho para se levantar e dirigir até ao veículo automóvel, no preciso momento em que estava a ser auxiliada para se levantar pelo seu filho e em ato continuo o representante da Ré pegou no cheque e acompanhou-os até ao exterior do veículo automóvel, após já se encontrar dentro do automóvel e, convencida de que o representante da Ré tinha entregue o cheque ao seu filho, constatou, quando chegou a sua residência, que afinal o cheque tinha ficado na posse do representante da Ré; certo é que pese embora tenha sido encetado várias interpelações para a Ré proceder à entrega do cheque e/ou liquidação do preço acordado pela venda do prédio rustico até à presente data nunca foi entregue nem liquidado; para espanto da Autora a Ré comunicou ao seu filho CC que os € 50.000,00 devidos pela venda do prédio rustico supra identificado lhe seriam pagos após a liquidação por parte do neto da Autora de um empréstimo que recebera da Ré, caso contrário os € 50.000,00 devidos pela venda do prédio rustico á Autora serviriam para fazer compensação de parte do valor em débito do empréstimo do neto; a Autora nunca celebrou qualquer outro contrato com a Ré para além do mencionado nos presentes autos, não contraiu qualquer empréstimo com a Ré e igualmente nunca prestou qualquer género de fiança, aliás, a Autora desconhecia por completo a existência de qualquer dívida do seu neto e não tinha obrigação de conhecer; no negócio de compra e venda do seu terreno rustico nunca acordou ou deu o seu consentimento para que o preço da venda servisse de compensação de qualquer crédito quer seja do seu neto quer seja de outra de qualquer outra pessoa.
Em contraponto a Ré, na Contestação, pede a improcedência do pedido alegando para o efeito essencialmente que, apesar de admitir que não entregou à Autora a quantia de €50.000,00, tal se deveu ao facto de ter emprestado (a pedido do filho da Autora CC) ao neto da Autora (DD) a quantia de €112.352,28, por isso a quantia de €50.000,00 pela venda do prédio rustico identificado em causa, pertença da Autora, serviu para fazer a compensação no valor em débito, devolvendo-se o cheque (de €50.000,00) emitido e entregue na data da escritura de compra e venda em causa; ficando assim o neto da autora com o remanescente em débito, que foi até objeto do processo executivo 3954/22.2 T8LOU, Juízo de Execução de Lousada; que na data da escritura o legal representante da Ré entregou o cheque para pagamento no valor de €50.000,00 (como consta da escritura) que o filho da Autora devolveu posteriormente à Ré e que o filho da Autora lhe disse: “ficas com o cheque, assim abates na conta e não existe necessidade de passar outro cheque”, o que a Ré aceitou e esta entendeu que contabilisticamente se realizou a compensação no empréstimo conforme tinha combinado com o filho da Autora e seu neto DD; contudo, ocorreu desentendimento entre os visados quando a Ré deu início à cobrança do remanescente em débito contra o neto da Autora DD e, caso não fosse o acordo, a Ré nada mais tinha de fazer, a não ser exigir o valor dos cinquenta mil euros ao neto da Autora.
Em sede de Resposta a Autora impugnou a versão apresentada pela Ré na Contestação.
Inconformado com esta sentença, a Autora interpôs recurso de apelação com as seguintes conclusões [transcrição]:
(…)
A Ré apresentou contra-alegações onde entende essencialmente que não deve ser dado provimento ao recurso.
7. É o seguinte o teor da decisão de facto constante da sentença recorrida [transcrição]:
«A – Factos Provados
Com relevo para a decisão da presente causa, e tendo por base as regras distributivas do ónus da prova, apurou-se a seguinte factualidade:
1) Por escritura pública intitulada de compra e venda, celebrada a 10 de fevereiro de 2020, no Cartório Notarial a cargo da notária BB e que aí se acha exarada de fls. 134 a 135, do respetivo livro n.º..., e perante aquela Notária, AA declarou, na qualidade de primeira outorgante, « […] que por esta escritura, vende à sociedade representada do segundo outorgante, livre de ónus e encargos, pelo preço já recebido de cinquenta mil euros, o seguinte imóvel: Prédio rústico denominado “...” composto de eucaliptal, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Paredes, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o numero ... – ..., onde se encontra registada a aquisição a seu favor pela inscrição “Ap. ... de 2009/11/18”, inscrito na matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial de €4,10.» tendo EE, que interveio como sócio gerente e em representação da sociedade comercial por quotas A..., LDA., na qualidade de segundo outorgante na qualidade em que outorga, declarado «que, para a sociedade sua representada, aceita esta venda nos termos exarados, destinando-se o imóvel ora adquirido para revenda».
2) Na escritura referida em 1. declararam ainda a primeira e segundo outorgante que «o pagamento do atrás referido preço de cinquenta mil euros, foi feito nesta data através do cheque número ..., do Banco 1..., S.A.».
3) O preço de €50.000,00 (cinquenta mil euros) referido em 1. e 2. foi pago à autora.».
8.1. A Recorrente impugna a decisão de facto que julgou provados os pontos 2 e 3 porque entende devem ser considerados não provados por considerar que foram violadas regras de direito probatório, essencialmente, apesar do que consta da escritura, a Ré confessou judicialmente que não pagou à Autora o preço de €50.000,00.
Nos termos do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do C.P.C., cuja epígrafe é “Modificabilidade da decisão de facto”, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Neste particular, com pertinência, refere Abrantes Geraldes e outros, que «A decisão da matéria de facto pode ser impugnada pelo recorrente quando os elementos fornecidos pelo processo possam determinar uma decisão diversa insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, como sucede quando não tenha sido respeitado documento, confissão ou acordo das partes com força probatória plena (cf. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., anot. ao art. 662.º, e STJ, 17-12-15, 940/10). Outrossim quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimento testemunhal, nos termos dos arts. 351.º e 393.º do CC), situação em que a modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra de direito probatório material (art. 364.º, n.º 1, do CC). Em qualquer destas situações, a Relação, no âmbito da reapreciação da decisão recorrida e naturalmente nos limites objetivo e subjetivo do recurso, deve agir oficiosamente mediante a aplicação das regras vinculativas extraídas do direito probatório material, modificando a decisão da matéria de facto advinda da 1.ª instância (arts. 607.º, n.º 4, e 663.º, n.º 2). A oficiosidade desta atuação é decorrência da regra geral sobre a aplicação do direito (in casu, das normas de direito probatório material), na medida em que possam interferir no resultado do recurso que foi interposto e, é claro, respeitando o seu objeto global, que, no essencial, é delimitado pelo recorrente, nos termos do art. 635.º, e respeitando também o eventual caso julgado parcelar que porventura se tenha formado sobre alguma questão ou segmento decisório»[1].
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no Código Civil), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspetos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar) ou violadas (mal aplicadas) pelo Tribunal a quo deverá o Tribunal da Relação em sede de recurso sanar esse vício, mesmo de forma oficiosa.
Tal poderá suceder, entre outras possibilidades, quando para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico com força probatória plena (artigos 371.º/1e 376.º/1, Código Civil), ou quando exista acordo das partes (art. 574.º/2, CPC), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (artigos 358.º, Código Civil e 566.º e 567.º, CPC), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos artigos 351.º e 393.º, Código Civil).
Nos termos do art.º 362.º, do Código Civil entende-se por prova documental toda aquela que resulta de documento, e diz-se documento qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto.
Os documentos escritos podem ser autênticos ou particulares, sendo que os autênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública (cfr. art. 363.º/1 e 2, do Código Civil.
A força probatória do documento autêntico pode sintetizar-se da seguinte forma:
I – Um documento autêntico faz prova plena dos factos referidos como praticados pelo documentador: tudo o que o documento referir como tendo sido praticado pela entidade documentadora, tudo o que, segundo o documento, seja obra do seu autor, tem de ser aceite como exacto (art. 371º, nº 1, 1ª parte, do C.Civ.).
II - Uma escritura pública de compra e venda pertence indiscutivelmente à categoria dos documentos autênticos (art. 369º, nºs 1 e 2 do CCiv) e faz, por isso, prova plena dos factos que sejam atestados pela entidade documentadora (art. 371º, nº 1 do CCiv.).
III - Um documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções (art. 371º, nº 1, 2ª parte, do CCiv.)
IV - Isto é, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. Dito doutro modo: o documento autêntico não fia, por exemplo, a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram.
V - Pode, assim, demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele.
VI - Se na realidade não faz a mesma prova plena do pagamento do preço à vendedora/recorrente, fá-lo, no entanto, da sua declaração de já haver recebido o preço, pois que a realidade da afirmação cabe nas percepções do notário, o que implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, beneficia a autora, e que o artigo 352º do CCiv. qualifica como confissão.
VII - Trata-se de uma confissão extrajudicial em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º, nºs 1 e 4, e 358º, nº 2 do CCiv.
VIII - Lembre-se que o nº 2 do artº 358º do CCiv. dispõe que “A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”.
IX - Em resultado dessa força probatória plena, o facto confessado ter-se-ia, em princípio, de considerar como provado, sem poderem ser admitidas outras provas para isso contrariar (designadamente, a prova testemunhal - artº 393º, nº 2 - e, consequentemente, o funcionamento das presunções judiciais - artº 351º, nº 1, do CCiv), sem prejuízo, porém, de se poder demonstrar a falsidade do aludido documento autêntico ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração “confessória” (artºs 372º, nº 1 e 359º do CCiv.).
X - A jurisprudência dos tribunais superiores, com base no defendido pelo Prof. Vaz Serra, tem entendido, maioritariamente, que, fora dos casos acima referidos, quando houver determinado circunstancialismo, por exemplo um princípio de prova por escrito, que tornem verosímil o facto a provar, contrário à declaração confessória, ficará aberta a possibilidade de complementar esse circunstancialismo, mediante testemunhas, de modo a fazer a prova do facto contrário ao constante dessa declaração, ou seja, no caso, a prova de onde resulte não corresponder à realidade o afirmado recebimento do preço.
XI - Na verdade, se o facto a provar está já tornado verosímil por um começo de prova por escrito, a prova testemunhal é de admitir, pois não oferece os perigos que teria se desacompanhada de tal começo de prova: em tal caso, a convicção do tribunal acha-se já formada parcialmente com base num documento, não sendo a prova testemunhal o único meio de prova do facto.
XII - Tal como nos documentos autênticos, fixada a força probatória formal dos documentos particulares, segue-se a determinação da sua força probatória material, que se encontra fixada no art. 376.°, n.° 1, do CCiv, ao estabelecer que, reconhecido que o documento procede da pessoa a quem é atribuído, que é genuíno, fica determinado que as declarações dele constantes se consideram provadas na medida em que forem contrárias aos interesses do declarante, sendo indivisível a declaração, nos termos que regulam a prova por confissão – tudo cfr. Ac. TRC de 09/01/2018[2].
Ora, não existem dúvidas (ambas as partes aceitam) de que na referida escritura pública (melhor descrita no ponto 1 dos factos provados), os seus outorgantes (Autora e legal representante da Ré) declararam perante a Notária, para além do mais, que «o pagamento do atrás referido preço de cinquenta mil euros, foi feito nesta data através do cheque número ..., do Banco 1..., S.A.», coisa diferente é saber se tal declaração corresponde à realidade.
Como já referido, aquela Notária, na qualidade de documentadora garante, pela fé pública de que está revestida, que os factos que documenta se passaram, mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade, isto é, o documento autêntico não fia, por exemplo, a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador, só garante que eles as fizeram.
Importa destacar que na aludida escritura a vendedora, ora Autora, não fez uma declaração genérica de que já recebeu o preço, mas ambos os outorgantes (Autora e legal representante da Ré) fizeram uma declaração específica: «o pagamento do atrás referido preço de cinquenta mil euros, foi feito nesta data através do cheque número ..., do Banco 1..., S.A.», ou seja, fornece detalhes mais específicos sobre a forma de pagamento[3].
Aquela declaração plasmada na escritura reveste, como já vimos, força probatória plena relativamente ao facto confessado, isentando a compradora (a Ré) da prova do pagamento do preço, passando a ser a vendedora (a Autora) a quem incumbe o ónus da prova da inveracidade desta declaração confessória, mas tal prova está, no entanto, limitada em termos probatórios, não podendo ser feita exclusivamente com base em prova testemunhal[4].
Então, para além da aludida prova testemunhal – admissível apenas se existir princípio de prova por escrito – é admissível a prova de que os factos constantes da escritura não correspondem à verdade através da designada “rainha das provas”, a confissão judicial (que pode configurar confissão ficta ou confissão escrita expressa nos articulados).
A confissão judicial ficta é um efeito da revelia absoluta do réu (cfr. art. 566.º, do CPC), considerando-se confessados os factos articulados pelo autor – cfr. art. 567.º, n.º 1, do CPC.
A confissão judicial escrita é um efeito da admissão expressa feita pelo réu na sua contestação de um facto que lhe é desfavorável – cfr. art. 358.º, n.º 1, do CC.
No caso concreto, a Ré admitiu expressamente no seu articulado de Contestação que não entregou efectivamente à Autora o preço de €50.000,00 mencionado na escritura porque ficou com o cheque em causa em seu poder – o que configura confissão judicial expressa a admissão de um facto desfavorável ao confitente (a Ré) e favorável à parte contrária (a Autora).
Contudo, para além da admissão dos factos desfavoráveis, a Ré alegou a sua versão dos acontecimentos que no seu entender justificam não se mostrar obrigada a pagar o preço à Autora.
Resta saber nesse contexto quais são os efeitos desta confissão judicial, o que vai depender da sua qualificação: Confissão simples, qualificada ou complexa?
A confissão simples (admissão de um facto desfavorável ao confitente e favorável à parte contrária) tem força probatória plena. A confissão qualificada ou complexa (reconhecimento de factos desfavoráveis ao confitente, à qual são aditados factos ou circunstâncias desfavoráveis à parte contrária) só faz prova após a parte contrária se pronunciar. Nessa pronúncia, a parte pode prescindir da confissão (deixando a confissão de ter força probatória plena, ficando sujeita à livre apreciação), aceitar a confissão, bem os factos e circunstâncias que lhe são desfavoráveis (abrangendo a força probatória plena da confissão todos os factos) ou declarar que pretende aproveitar a confissão e provar a inexatidão dos factos e circunstâncias que lhe são desfavoráveis (ocorrendo, nesse caso, uma inversão do ónus de prova em relação aos factos desfavoráveis que passam a estar a seu cargo) – Ac. TRE de 07/03/2024[5].
Então, é necessário apurar se os factos invocados pela Ré lhe são, ou não, favoráveis.
E para serem favoráveis têm forçosamente de configurar uma justificação legal para não se considerar obrigado ao pagamento à Autora do preço de €50.000,00.
Com efeito, a Ré alegou um conjunto de factos que, na sua perspectiva, justificam esse não pagamento à Autora, contudo, depois de percorridos todos os factos alegados pela Ré na sua Contestação, concluímos que os mesmos não são favoráveis à Ré, antes pelo contrário, são-lhe desfavoráveis, ou pelo menos neutros, não a eximem da obrigação de pagamento do preço devido à Autora, como veremos melhor de seguida.
Como já vimos, a Ré, alegou para o efeito essencialmente que, apesar de admitir que não entregou à Autora a quantia de €50.000,00, tal se deveu ao facto de ter emprestado (a pedido do filho da Autora CC) ao neto da Autora (DD) a quantia de €112.352,28, por isso a quantia de €50.000,00 pela venda do prédio rustico identificado em causa, pertença da Autora, serviu para fazer a compensação no valor em débito, devolvendo-se o cheque (de €50.000,00) emitido e entregue na data da escritura de compra e venda em causa; ficando assim o neto da autora com o remanescente em débito, que foi até objeto do processo executivo 3954/22.2 T8LOU, Juízo de Execução de Lousada; que na data da escritura o legal representante da Ré entregou o cheque para pagamento no valor de €50.000,00 (como consta da escritura) que o filho da Autora devolveu posteriormente à Ré e que o filho da Autora lhe disse: “ficas com o cheque, assim abates na conta e não existe necessidade de passar outro cheque”, o que a Ré aceitou e esta entendeu que contabilisticamente se realizou a compensação no empréstimo conforme tinha combinado com o filho da Autora e seu neto DD; contudo, ocorreu desentendimento entre os visados quando a Ré deu início à cobrança do remanescente em débito contra o neto da Autora DD e, caso não fosse o acordo, a Ré nada mais tinha de fazer, a não ser exigir o valor dos cinquenta mil euros ao neto da Autora.
Ora, no caso concreto, é irrelevante a posição da Autora perante os factos assim alegados pela Ré na Contestação, porque os factos alegados por esta para justificar, em seu entender, a confessada falta de pagamento, não são susceptíveis de integrar qualquer justificação jurídica para tal desiderato, à luz de qualquer norma legal aplicável. Senão vejamos mais em pormenor:
A Ré entende que a sua obrigação de pagamento está extinta alegadamente porque, por acordo com o filho e/ou com o neto da Autora, ocorreu a figura jurídica da “compensação”, já que o neto da Autora estava em débito para consigo, contudo, tais factos não configuram a compensação prevista no art. 847.º, do Código Civil, porque esta não opera perante terceiros, só pode ocorrer entre duas pessoas que sejam reciprocamente credor e devedor e já vimos que a Ré não alegou que esta e a Autora fossem reciprocamente credor e devedor, portanto, não há reciprocidade creditícia entre a Ré e a Autora, ou seja, pelo contrário, a Ré alegou que é credora de terceiros (filho e/ou neto da Autora) e não da Autora – por isso nunca poderia verificar-se a compensação que invoca em relação a esta.
A este propósito pode ser consultado o Ac. STJ de 11/01/2011[6], onde, para além do mais, se sumariou que:
«1) Tal como prevê o artigo 847.º do Código Civil, a compensação é uma forma de extinção das obrigações quando os obrigados são simultaneamente credor e devedor, operando-se o que, em linguagem coloquial, se apoda de “encontro de contas”.
2) Então, o compensante, se demandado (ou interpelado) para cumprir exonera-se do seu débito através da realização do seu crédito, na mesma lide.
3) A compensação legal ali prevista não é automática mas sempre potestativa, por depender de uma declaração de vontade, ou pedido, do titular do crédito secundário.
4) Esse pedido surge pela via da reconvenção se o crédito do demandado for superior ao do demandante mas sê-lo-á por excepção peremptória se o contra - crédito for de montante inferior ao pedido.
5) São pressupostos da compensação legal a validade do crédito principal e uma reciprocidade creditícia.
6) São requisitos do instituto a exigibilidade, em sentido forte (não mera expectativa, nem resultante de obrigação natural), do contra - crédito, a sua titularidade pelo compensante e a homogeneidade dos créditos, sendo irrelevante a sua iliquidez. (…)».
Por outro lado, dispõe o art. 769.º, do Código Civil, que “A prestação deve ser feita ao credor ou ao seu representante”, isto é, o pagamento do preço deve ser feito apenas à Autora, já que a Ré não alegou que o filho daquela ou o neto fossem de algum modo seus representantes.
Com efeito, é incontroverso que foi a Autora a intervir na escritura em causa, não foi o seu filho ou neto, além de que não foi alegado nem resulta dos autos que a Autora tivesse emitido poderes representativos, o que só poderia fazer, de resto, através de procuração formal, nos termos do disposto no art. 262.º, do Código Civil.
Por sua vez, a factualidade alegada pela Ré nem sequer integra o mecanismo da “prestação feita a terceiro” a que se refere o disposto no art. 770.º, do Código Civil, desde logo porque esta não extingue a obrigação e, no caso concreto, ainda porque os factos alegados pela Ré não são susceptíveis de integrar as excepções aí constantes:
“a) Se assim foi estipulado ou consentido pelo credor;
b) Se o credor a ratificar;
c) Se quem a recebeu houver adquirido posteriormente o crédito;
d) Se o credor vier a aproveitar-se do cumprimento e não tiver interesse fundado em não a considerar como feita a si próprio;
e) Se o credor for herdeiro de quem a recebeu e responder pelas obrigações do autor da sucessão;
f) Nos demais casos em que a lei o determinar”.
Portanto, a Ré não alegou em momento algum que a Autora (credora da Ré) tivesse alguma dívida para com a Ré, que tivesse com a mesma realizado algum acordo ou que a mesma tivesse tido conhecimento dos acordos alegadamente realizados com o seu filho e/ou o seu neto ou que se aproveitou dos mesmos para si própria, surgindo na própria versão da Ré como alheia a toda a factualidade alegada.
Por todos os referidos motivos, mesmo que a Ré lograsse provar serem verdadeiros os factos por si alegados na Contestação, tais factos não são susceptíveis de consubstanciar o cumprimento da sua obrigação nem tão pouco qualquer causa de extinção da obrigação, seja por compensação ou outra, por isso, não eximem a Ré da obrigação de pagamento à Autora do preço de €50.000,00 como efeito do contrato de compra e venda (art. 879.º - al. c), Código Civil).
Nesta sequência, os factos alegados pela Ré não lhe são favoráveis por isso não se pode qualificar a sua confissão como qualificada ou complexa, mas meramente uma confissão judicial simples.
Então, esta confissão judicial simples posterior feita pelo devedor (pela Ré) de que não pagou o preço devido tem força probatória plena e anula a confissão extrajudicial contrária anterior constante da escritura notarial de que a credora (a Autora) recebeu o preço.
Neste mesmo sentido decidiu-se no Ac. STJ de 17/03/2016[7]: “pode considerar-se provado por confissão judicial que o preço estipulado na escritura de compra e venda não foi pago, considerando-se, por tal motivo, anulada a declaração confessória anterior contrária que consta da escritura”.
No mesmo sentido decidiu-se no Ac. TRP de 06/06/2024[8], onde, para além do mais, se sumariou:
“I - Um documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, e não se o pagamento declarado foi efectivamente recebido.
II - Quando se declara que ocorreu o pagamento de tornas, tal facto constituiu uma forma extra-judicial de confissão, cuja falsidade pode ser demonstrada.
III - Essa demonstração é valida e eficaz se, por força do desentranhamento da contestação, todos os factos alegados foram declarados provados por confissão ficta.
IV - Esta, assume, neste caso, a natureza de uma confissão judicial relevante e eficaz que logra demonstrar que a declaração de quitação não era verdadeira.”.
E ainda no mesmo sentido no Ac. STJ de 03/04/2025[9] onde se considerou que:
I.Estando a divergência do recorrente sobre a decisão da matéria de facto fundada na alegada violação da força probatória plena da declaração contra o confidente (autora) constante de documento autêntico, em interacção com a confissão ficta pelo Réu do facto em sentido contrário, configura erro na aplicação do direito, e pode o Supremo Tribunal de Justiça sindicar a decisão da Relação, conforme o disposto no artigo 674º, nº3 do CPC.
II.A designada prova por admissão, também denominada confissão ficta, significa que fica definitivamente adquirida para o processo a realidade do facto, não sendo permitido ao Réu vir negar, em momento posterior, os factos sobre os quais se manteve silencioso, o que é também corolário do princípio da concentração de toda a defesa na contestação e do efeito preclusivo que lhe está associado.
III.O efeito cominatório semi - pleno, como prescreve o artigo 567º, nº1, do CPC, está circunscrito à matéria de facto e, exclui, por si só, qualquer necessidade de instrução probatória.
IV.A prova plena do documento autêntico reporta ao que foi declarado no documento em causa, ou seja, apenas abrange a prova de que as partes fizeram aquelas declarações, mas não se estende à coincidência dessas declarações com a realidade, podendo a parte fazer prova quanto à falta de coincidência da referida declaração com a realidade.
se a realidade ou verdade da declaração da Autora, inserta no acto de partilha, de que recebeu do Réu o valor acordado de tornas, não pode ser assegurada pelo Conservador, já a afirmação da declarante, atestada pela percepção do documentador, implica o reconhecimento de facto desfavorável, e beneficia o Réu.
V.O reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, correspondendo à confissão extrajudicial em documento autêntico, tem força probatória plena contra o confitente, como se retira da conjugação do disposto nos artigos 355º, nºs 1 e nº4, e 358º, nº 2, do Código Civil.
VI.A Inveracidade daquela declaração pode alcançar-se por impugnação directa da eficácia probatória da confissão extrajudicial em documento autêntico, comvista a provar não ser verdadeiro o facto que dela foi objecto, e ilidir, em consequência, a inerente força probatória legal.
VII.Autorizado a Autora confidente a contrariar aquela declaração, pode demonstrar não ser verdadeiro que o Réu não pagou a quantia devida em tornas – artigo 347º, 1ª parte, do Código Civil, tendo como única limitação o uso de prova testemunhal e presunções judiciais, nos termos dos artigos 347º, 2ª parte, 393º, nº 2, e 351º do Código Civil.
VIII.Sendo a prova do facto - não pagamento das tornas à Autora- concretizada por via da confissão ficta de tal facto, pelo Réu significa que reconhece, perante o credor, facto que lhe é desfavorável no âmbito de declaração confessória judicial, qua tale, faz prova plena dessa falta de pagamento/dívida.
Deste modo, em consequência de todo o exposto, os factos constantes do ponto 2 dos factos provados devem manter-se desse modo porque correspondem objectivamente ao texto ou teor da escritura pública correspondente.
Já quanto aos factos constantes do ponto 3 dos factos provados, como acima já analisado, em consequência precisamente da aludida confissão judicial da Ré no seu articulado de Contestação e porque a justificação alegada para tal circunstância não consubstanciar o cumprimento da obrigação ou qualquer causa de extinção da obrigação, trata-se de uma confissão judicial que faz prova plena, por isso, deve passar a constar que “3) A Ré veio a ficar na posse do cheque mencionado, não entregou à Autora a quantia de €50.000,00 a título de preço”.
Em resultado da procedência da impugnação da decisão de facto, importa saber se é possível decidir imediatamente do mérito da causa ou se é necessário o prosseguimento dos autos para produção de prova.
O despacho saneador destina-se a: a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória – art. 594.º, n.º 1, do CPC.
Com efeito, «O juiz deve ainda conhecer do pedido ou dos pedidos formulados, sempre que não exista matéria controvertida suscetível de justificar a elaboração de temas da prova e a realização da audiência final. A antecipação do conhecimento de mérito pressupõe que, independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas, e independentemente de a mesma favorecer uma ou outra das partes (RL 8-10-20, 2246/18). Assim acontecerá quando: a) Toda a matéria de facto relevante esteja provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documento: nestas circunstâncias, é inviável a elaboração de temas da prova e, por isso mesmo, mostra-se dispensável a audiência final, nada obstando a que o juiz proceda à imediata subsunção jurídica;(…)[10]».
Aqui chegados, considerando o acima exposto, seria um acto inútil prosseguir o processo para produção de prova inconsequente em sede de julgamento, porque é possível conhecer imediatamente do mérito da causa, já que o estado do processo o permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação total do pedido deduzido pela Autora (artigos 6.º/1, 130.º e 595.º/1-b), CPC), como de igual modo se decidiu em primeira instância.
Posto isto, no que toca à reapreciação jurídica da causa, o contrato de compra e venda tem como efeitos essenciais os seguintes (879.º, Código Civil):
a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito;
b) A obrigação de entregar a coisa;
c) A obrigação de pagar o preço.
Com a presente acção a Autora pretende obter a condenação da Ré ao pagamento do preço acordado no negócio jurídico de compra e venda do imóvel em causa.
Como regra geral em termos de direito probatório material, ao autor compete a prova dos factos constitutivos do seu direito e ao réu a dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do Autor (art.º 342.º/1 e 2, Código Civil).
Em princípio, incumbe sobre o Réu a prova do pagamento do preço, enquanto facto extintivo do direito do Autor, contudo, tratando-se da falta de pagamento do preço duma compra e venda de imóvel, outorgada em escritura pública, que constitui um documento autêntico, e se dela ficou a constar que a vendedora declarou perante o notário ter já recebido o preço, tal significa uma confissão extrajudicial do credor.
Mas caso ocorra posterior confissão judicial do devedor esta anula aquela anterior confissão extrajudicial.
No caso concreto em apreciação foi isso que sucedeu: a devedora (a Ré) beneficiava da confissão extrajudicial constante da escritura [ponto 2 dos factos provados], contudo, em Contestação esta devedora (a Ré) confessou judicialmente que não pagou à credora (a Autora) [ponto 3 dos factos provados].
Deste modo, a Ré, na qualidade de devedora, está obrigada a pagar à Autora, na qualidade de credora, a quantia de €50.000,00, a título de preço devido em consequência da celebração contrato de compra e venda.
Em suma, impõe-se julgar totalmente procedente a apelação e revogar a sentença, condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de €50.000,00, acrescido de juros de mora, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.
As custas são da responsabilidade da Recorrida-Ré.
Nos termos e fundamentos expostos,
- Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente procedente a apelação e revogar a sentença, condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de €50.000,00, acrescido de juros de mora, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.
- Custas a cargo da Recorrida-Ré.