I – Não constitui articulado superveniente admissível (artigo 588º, do Código de Processo Civil) o requerimento no qual a parte se limita a invocar a relevância de determinados documentos para a descoberta da verdade material, sem articular factos concretos, individualizados e circunstanciados, dotados das características exigidas por aquela norma.
II – A rejeição de articulado superveniente que não preenche os requisitos legais não viola o princípio da descoberta da verdade material nem o princípio do contraditório.
III – O princípio da descoberta da verdade material não pode ser invocado para contornar as regras processuais que disciplinam a alegação de factos e a junção de documentos.
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Central Cível de Aveiro – Juiz 1
Relatora: Des. Teresa Pinto da Silva
1º Adjunto: Des. Carlos Gil
2ª Adjunta: Des. Teresa Fonseca
Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da Quinta Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
A..., sociedade anónima, AA e mulher BB, intentaram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e marido DD, pedindo:
I) Que se declare que os Réus, com a sua conduta por ação e omissão descrita na petição inicial:
i. Violaram as responsabilidades assumidas e declarações de garantia estabelecidas nos contrato-promessa junto sob o documento n.º7 e identificadas no artigo 38.º da PI e, em consequência,
ii. Colocaram a sociedade B..., SA em situação de insolvência, e inviabilizaram culposamente o acordo e contratos celebrados que evitariam essa insolvência.
iii. Devendo ser declarados como únicos culpados pela não celebração do contrato prometido identificado no documento n.º7 da PI.
II) E, em consequência, a condenação solidária dos Réus no pagamento de indemnização por todos os prejuízos causados aos Autores, sendo:
i. Aos Autores AA e BB, a quantia de €12.862,84 a título de danos patrimoniais (artigo 177.º da PI), e a quantia de €25.000,00 a título de danos não patrimoniais (artigo 210.º da PI);
ii. À Autora A..., a quantia de €408.515,62, a título de danos patrimoniais (artigos 140.º, 147.º, 150.º, 151.º, 152.º, 153.º, 154.º, 155.º, 157.º, 167.º e 172.º da PI), e a quantia de €10.000,00 a título de danos não patrimoniais (artigo 211.º da PI).
III) A condenação dos Réus a absterem-se de praticar qualquer ato que prejudique os autores, em especial, registar e/ou comercializar, por si ou por interposta pessoa e/ou entidade, marcas nacionais e/ou internacionais, com o mesmo sinal das marcas comercializadas pela sociedade insolvente B... SA, ou com sinais similares que possam constituir imitação dessas marcas.
Devidamente citados, os Réus, em 29 de novembro de 2022, vieram deduzir contestação com reconvenção, à qual os Autores responderam, por articulado de 12 de janeiro de 2023.
Em 21 de maio de 2024, realizou-se a audiência prévia, na qual o Tribunal a quo admitiu o pedido reconvencional deduzido pelos Réus, bem como a redução do pedido feito em II) do petitório, efetuada pelos Autores nos artigos 19º e 20 da resposta, do valor de € 408.515,62 para o montante de 405.942,30, proferiu despacho saneador, fixou o objeto do litígio e os factos assentes, enunciou os temas da prova, pronunciou-se quanto aos requerimentos probatórios, tendo ainda designado data para audiência de discussão e julgamento, que veio a iniciar-se em 17 de fevereiro de 2025, tendo a 2ª sessão ocorrido em 18 de fevereiro de 2025, no final da qual foi designado o dia 8 de maio para a realização da 3ª sessão de julgamento.
Entretanto, em 22 de abril de 2025, os Réus juntaram aos autos o seguinte requerimento:
“CC e DD, vem nos termos e para os efeitos do exposto no art.º 588.º do C.P.C., apresentar em articulado superveniente, para o qual requerem a junção dos documentos que ora se indicam e anexam, os quais apenas agora lhes foi possível obter e dos quais não dispunham à data da apresentação da petição inicial e, como se constata pela data inserta nestes.
Os referidos documentos, que se juntam, revestem-se de relevância para a boa decisão da causa, porquanto contrariam diretamente os factos alegados pela parte contrária nos presentes autos e contribuem para a descoberta da verdade material, conforme preceituado no princípio da cooperação (artigo 7.º do CPC) e da verdade material (artigo 5.º, n.º 1 do CPC).
Mais se requer que V. Ex.ª se digne admitir o presente articulado superveniente e a respetiva junção dos documentos anexos, com a consequente notificação das partes para, querendo, se pronunciarem nos termos legais.
Juntam: 2 documentos.”
Em 29 de abril de 2025, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Os RR. vieram, por requerimento de 22/04/2025, “nos termos e para os efeitos do art. 588.º do CPC, para o qual requerem a junção dos documentos que ora indicam e anexam, os quais apenas agora lhes foi possível obter e dos quais não dispunham à data da apresentação da petição inicial como se constata pela data inserta nestes”.
Vejamos.
O nº 1 do art. 588.º do CPC estabelece que os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.
Sucede que os RR. neste novo articulado não alegam quaisquer factos de natureza modificativa, extintiva ou impeditiva do direito dos AA.[1] Limitam-se a invocar que os documentos que juntam com o articulado superveniente revestem-se de relevância para a boa decisão da causa e contribuem para a descoberta da verdade material.
Pelo exposto, rejeito liminarmente o articulado superveniente.
Notifique.»
1) O Douto Despacho a quo, na sua fundamentação, enferma de erro e de ilegalidade;
2) Os documentos juntos são supervenientes, nos termos do artigo 423.º do CPC,
3) O articulado superveniente, os factos deles constantes e a documentação junta, não contem, novos fundamentos da pretensão dos Recorridos, são isso sim, ao contraditório ao alegado, refutando a versão apresentada pelos Recorridos e sendo relevantes para a descoberta da verdade material, como impõe o princípio da livre investigação da verdade (art. 411.º do CPC).
4) Não viola o disposto no artigo 423.º do CPC, contém respeito a factos essenciais que não poderiam ser alegados anteriormente por desconhecimento ou inacessibilidade.
5) São fundamentais para contrariar diretamente e entre outras alegações dos Recorridos;
6) Os documentos ora juntos são, assim, relevantes para a defesa dos Recorridos, impõem-se por força do princípio do contraditório, são relevantes e pertinentes;
7) E, como tal, deveriam ser admitidos nos termos dos artigos 423º e 3º, nº 3 e 5.º, n.º 2, al. b), do CPC;
8) O despacho em crise viola do princípio da verdade material, consagrado no artigo 411.º do CPC o dever de colaboração processual (art. 7.º do C.P.C), pois impede o tribunal de conhecer elementos de prova essenciais à justa composição do litígio.
9) A recusa da admissão da prova requerida, não contém factos novos, nem contém em si, o alargamento dos fundamentos da causa e, impede o esclarecimento e refutação de factos alegados na petição inicial;
10) O despacho em crise viola, aliás, de forma flagrante, o princípio da verdade material - 411.º do CPC e também refletido no dever de colaboração processual (art. 7.º do C.P.C), já que impede o tribunal de conhecer elementos de prova essenciais à justa composição do litígio.
11) Os documentos juntos só recentemente foram obtidos (21 de abril de 2025), e dizem respeito a factos essenciais que não poderiam ser alegados anteriormente por desconhecimento ou inacessibilidade a estes pelos Recorridos;
12) Os documentos juntos pelos Recorridos têm na verdade, como se demonstra supra, pertinência acrescida na tarefa da prossecução da verdade e no cumprimento do dever de colaboração com o tribunal Douta decisão ora recorrida, demonstra-se ilegal e, inconstitucional;
13) O articulado para junção de prova, é superveniente, é feito de acordo com o previsto no artigo 423º do CPC, pretende apenas, trazer aos autos os factos essenciais (a que alude o art. 5.º, nº 1, do CPC), factos instrumentais, complementares ou concretizadores dos que as partes hajam alegado, e resultem da instrução da causa, podem ser considerados pelo juiz, pelo que não se justifica um articulado superveniente em relação aos mesmos (art. 5.º, nº 2 do CPC).
14) No caso em apreço, a superveniência é feita nos termos do disposto no artº. 588.º do CPC, diz respeito a factos, que legitimam o seu oferecimento, não podia ter sido alegado nos articulados, e referem-se a factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito, ocorreram antes do oferecimento dos articulados, mas a sua ocorrência só mais tarde veio ao conhecimento da parte a quem aproveitam.
15) A superveniência, obedece ao princípio geral constante do art. 410.º, do CPC. Ou seja, mostram-se pertinentes ao apuramento da factualidade alegada incluída nos temas de prova.
16) O despacho de 30 de abril de 2025, ao indeferir a junção de articulado superveniente pelos recorrentes, ao contrário do referido no douto despacho recorrido, contém a alegação factual dos denominados efeitos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito, que nos termos do que dispõe o artigo 588.º, n.º 1, do CPC, possibilitaria a sua apresentação e admissão.
17) A superveniência, de facto, diz respeito a factos, que legitimam o oferecimento do articulado de junção dos documentos oferecidos pelos Recorrentes, não podiam ter sido alegados nesses articulados;
18) A superveniência deriva de factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito, ocorreram antes do oferecimento dos articulados, mas a sua ocorrência só mais tarde veio ao conhecimento da parte a quem aproveitam que não se justifica um articulado superveniente em relação aos mesmos (art. 5.º, nº 2 do CPC).
19) Determina o art. 423.º, nº 1 do CPC, que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
20) O que foi, integralmente, cumprido;
21) O articulado que mereceu a Douta decisão indeferimento, ora recorrida, integram as exceções legalmente previstas e, devem, a bem da verdade, do contraditório, de um processo justo e equitativo, e do Princípio da Legalidade, serem admitidos;
22) Por isso, a Douta decisão ora recorrida, de ilegalidade – artigo 423º do CPC;
23) A superveniência foi formulada porque não foi possível e, tornou-se necessária em virtude de ocorrência posterior.
24) O Despacho ora posto em crise, viola o contraditório previsto no 3.º, n.º 3, e 4.º do CPC;
25) Não deve ser recusado pelo Juiz, um meio de prova que os sujeitos processuais ofereçam e reputem indispensável para a descoberta da verdade, como é no caso aqui em apreço,
26) A requerida junção é legal, porque, não ofende as normas processuais, está comprovada a sua necessidade, a sua pertinência e, a sua relevância e nestes termos, é notório, que o douto despacho recorrido, cércea de forma grave, a apreciação do mérito da pretensão deduzida com base na verdade material – artigo 3º do Código de Processo Civil;
27) Efetivamente, o princípio do inquisitório adquire plena eficácia na fase da instrução do processo, em cujo domínio opera, como flui do art. 411º, segundo o qual “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, toda as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”
28) Estamos perante um poder-dever que se impõe ao juiz com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio.
29) A produção de novos meios de prova é justificada pela prossecução da verdade material, pela necessidade de produzir uma decisão esclarecida e justa, o objetivo final do tribunal no exercício das suas funções jurisdicionais, pelo que a recusa, apoiada em meras suposições e interpretações restritivas e dúbias da lei processual, impossibilita o pleno exerço do tribunal de fazer a justa composição do litigio;
30) O Douto Despacho a quo, disposto os artigos 202º, nos. 1 e 2, 20º, nos. 1, 4 e 5, 32º, nº 1, 18º, nº 1, 2º, 3º, 11º, 12º, e 9º, alínea b) da CRP.
Conclui pela procedência do recurso, com a consequente revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que declare a ilegalidade do despacho recorrido e admita o articulado superveniente de junção de prova, nos termos do disposto no artigo 423º do CPC e que declare a “inconstitucionalidade do douto despacho a quo, por violação do consagrado nos artigos 202º, nºs. 1 e 2, 20º, nos. 1, 4 e 5, 18º, nº 1, 32º, nº 1, 178º, nº 1, 2º, 3º, 11º, 12º e 9º, alínea b) da CRP.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Da análise das conclusões vertidas pelos Recorrentes nas suas alegações, que versam sobre a decisão recorrida e que delimitam o objeto do recurso, estando o Tribunal impedido de conhecer de matérias não incluídas nessas conclusões, com exceção das que sejam de conhecimento oficioso, nos termos do previsto nos artigos 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à seguinte questão:
1) Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao rejeitar liminarmente o requerimento apresentado pelos Recorrentes em 22 de abril de 2025, por eles qualificado de “articulado superveniente”.
Os Recorrentes invocam, ainda, que a rejeição do articulado superveniente viola o princípio da descoberta da verdade material que sobressai do disposto no artigo 411.º do Código de Processo Civil e o princípio do contraditório (artigos 3.º, n.º 3, e 4.º do Código de Processo Civil).
O artigo 411.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Princípio do inquisitório”, impõe ao juiz o dever de realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Trata-se, efetivamente, de um princípio estruturante do processo civil contemporâneo, que visa assegurar que a decisão judicial se fundamente numa “reconstituição” tão rigorosa quanto possível dos factos relevantes para a decisão da causa.
Porém, esse princípio da descoberta da verdade material não constitui um princípio absoluto, devendo ser harmonizado com outros valores fundamentais do processo civil, designadamente a segurança jurídica, a celeridade processual e o princípio do dispositivo.
No caso sub judice, a rejeição do articulado superveniente não viola o princípio da descoberta da verdade material, porquanto essa rejeição fundou-se na circunstância de os Recorrentes não terem cumprido os requisitos legais para a apresentação desse articulado superveniente, designadamente a alegação de factos supervenientes de natureza modificativa ou extintiva do direito dos Autores.
Como afirmam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, pág. 524, o princípio do inquisitório coexiste com outros igualmente consagrados no nosso Código de Processo Civil, como sejam “os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, de modo que não poderá ser invocado, para de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova.”
O princípio da descoberta da verdade material não pode, por conseguinte, ser invocado para contornar as regras processuais que disciplinam a alegação de factos e a junção de documentos.
O respeito pelas formas processuais constitui, também ele, uma garantia fundamental do processo equitativo, não podendo ser sacrificado em nome de uma conceção absoluta e unilateral do princípio da verdade material.
Quanto ao princípio do contraditório, igualmente invocado pelos Recorrentes, cumpre observar que este princípio, embora fundamental no processo civil, não foi, de modo algum, violado pela decisão recorrida.
O princípio do contraditório traduz-se no direito de cada parte ser ouvida e de se pronunciar sobre todas as questões de facto e de direito que possam influenciar a decisão da causa.
No caso vertente, os Recorrentes tiveram plena oportunidade de deduzir a sua defesa em contestação, de oferecer os meios de prova que reputassem convenientes e de se pronunciarem sobre toda a matéria alegada pelos Autores, não constituindo a rejeição de um articulado superveniente que não preenche os requisitos legais, manifestamente, uma violação do contraditório.
Por último, os Recorrentes sustentam que o despacho recorrido é inconstitucional, por violação dos artigos 2.º, 3.º, 9.º, alínea b), 11.º, 12.º, 18.º, n.º 1, 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, 32.º, n.º 1, e 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, argumentação que não merece acolhimento.
Desde logo, importa sublinhar que a invocação de inconstitucionalidade deve ser fundamentada de forma rigorosa e concreta, não bastando a mera enumeração de preceitos constitucionais alegadamente violados.
No caso vertente, os Recorrentes limitam-se a invocar, de forma absolutamente genérica e conclusiva, a violação de múltiplos preceitos constitucionais, sem que, todavia, demonstrem, de forma articulada e concreta, em que medida a interpretação e aplicação do artigo 588.º do Código de Processo Civil efetuada pelo Tribunal a quo consubstancia uma violação desses preceitos.
Não se vislumbra em que medida a aplicação do citado preceito pelo Tribunal a quo viola, de modo algum, o direito de acesso ao direito e aos tribunais, o direito a um processo equitativo ou o direito de defesa dos Réus.
Os Recorrentes tiveram plena oportunidade de deduzir a sua defesa, de alegar todos os factos que reputassem relevantes e de oferecer os meios de prova que entendessem adequados.
A rejeição de um articulado que não preenche os requisitos legais não constitui uma restrição inconstitucional do direito de defesa, mas antes a aplicação normal e conforme à Constituição das regras processuais vigentes.
Por conseguinte, a alegação de inconstitucionalidade não procede, concluindo-se pela improcedência do recurso interposto e pela manutenção da decisão recorrida.
O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso concreto, as custas são pelos Recorrentes, que ficaram vencidos.