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AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
FALTA DE CAUSA DE PEDIR
Sumário
I - Sendo dois os pedidos que integram e caracterizam a ação (comum) de reivindicação (sujeita ao regime previsto nos artigos 1311º e segs, do Código Civil), correspondentes a duas finalidades que se complementam, sendo o primeiro mero pressuposto, implícito, do segundo: i) o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), ii) a restituição da coisa (condemnatio), tem tal ação uma causa de pedir complexa, integrada: i) pelo ato ou facto jurídico concreto que gerou o direito de propriedade (ou outro direito real – cfr art. 1315º) na esfera jurídica do peticionante ii) e pelos factos demonstrativos da violação desse direito. II - Cabe ao reivindicante o ónus de alegação de que é proprietário da coisa e de que esta se encontra em poder do réu (art. 5º, nº1, do CPC, e art. 342º, nº1, do CC); III - E cabendo ao Autor o ónus de alegação dos factos constitutivos do direito que invoca, formulando o mesmo, na petição inicial, pedido omitindo a alegação dos factos essenciais nucleares a servir de suporte do mesmo, é a petição deficiente por não permitir identificar o tipo legal, sendo inepta por falta de causa de pedir. IV - Na falta de causa de pedir e na, consequente, verificação da exceção dilatória, insuprível, da nulidade de todo o processo, de conhecimento oficioso, tem de ser decretada a absolvição da Ré da instância (cfr. arts 186º, nº1 e 2, al. a), 196º e 278º, nº1, al. b), 577º, al. b) e 576º, nº1 e 2, 1ª parte, todos do CPC).
Texto Integral
Processo nº 5106/24.8T8MTS.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 2
Relatora: Des. Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Des. Ana Paula Amorim
2º Adjunto: Des. Teresa Maria Sena Fonseca
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
Sumário(cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO
Recorrente: AA
Recorrida: BB
AA instaurou ação declarativa, com processo comum, contra BB pedido: i) - seja a Ré condenada a reconhecer serem as frações autónomas identificadas na petição inicial propriedade exclusiva do autor; ii) - seja obrigada a restituir-lhas e a transmitir-lhas, sem custo, no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da sentença, sob pena de ser o Tribunal a substituir-se na transmissão.
Alegou, para tanto, o seguinte[1]:
“1º O autor é solteiro, maior, funcionário da Câmara Municipal ..., e a ré é divorciada, com a profissão no serviço doméstico.
2º Ambos se conheceram há muitos anos, tendo iniciado uma união de facto, durante, pelo menos, 14 anos, em condições análogas às dos cônjuges.
3º Viveram em união de facto, até ao dia 20.07.2024, quando a ré, por sua livre vontade, tomou a iniciativa de abandonar o autor e o lar onde habitavam, não mais regressando.
4º Ambos têm filhos, de relações anteriores, mas nenhum em comum.
5º Nos primeiros 6 anos de vida em comum, o autor e a ré viveram na ..., Matosinhos, numa casa que, só em parte, era propriedade do autor, e, com eles, também as duas filhas do anterior matrimónio da ré, a CC e a DD.
6º A partir de 20.04.2016, há mais de 8 anos, todos passaram a habitar numa outra casa, um T4 duplex, sita na rua ..., ...-1º direito, habitação ..., ... ..., Matosinhos, com garagem.
7º Aqueles dois imóveis, a habitação e a garagem, foram adquiridos por título de compra e venda e mútuo com hipoteca, celebrado em 20.04.2016, na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, conforme o documento que se junta e se dá por reproduzido. (doc. 1)
8º Tratou-se das fracções autónomas em prédio constituído em regime de propriedade horizontal, designadas pelas letras AH e BM, descritas sob o número ... na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, e inscritas na matriz da União das Freguesias ... e ..., do concelho de Matosinhos, sob o artigo 8023. (cfr. doc. 1)
9º Com os valores patrimoniais actuais, respectivamente, de € 41.483,05 da fracção AH e de € 5.511,45, da fracção BM, conforme as cadernetas prediais que se juntam e se dão por reproduzidas. (docs. 2 e 3).
10º Imóveis com os registos actuais na competente Conservatória do Registo Predial, conforme as certidões permanentes que se juntam e se dão por
11º As duas fracções autónomas que se vem de identificar, foram adquiridas pelo preço global de € 84.500,00, pago através de dois empréstimos bancários, contraídos no então Banco 1..., S.A., actual Banco 2..., S.A. (cfr. doc. 1)
12º Os referidos empréstimos, um de € 79.000,00 e o outro de € 5.500,00, foram concedidos pelo prazo de 468 meses, a pagar em 468 prestações não fixas mensais cada, o primeiro de € 263,90 e o segundo de € 18,37. (cfr. doc. 1, páginas 9,10, 11, 24, 25 e 26)
13º Empréstimos que sempre foram e continuam a ser pagos através da conta aberta, para o efeito, no Banco mutuante, na agência de Matosinhos, com o número ....
14º Conta bancária que, embora conjunta, todavia, sempre foi o autor que a provisionou, para fazer face a todas as despesas mensais, domésticas e não domésticas, sendo por lá, inclusivamente, que o autor recebe os seus rendimentos.
15º Provisionada pela ré nunca foi, porque os seus parcos rendimentos do incerto trabalho que vai prestando não o permitia. O pouco que ganha, por mês, apenas lhe dá para pequena ajuda nas despesas domésticas, as mais elementares, como a alimentação, a higiene e vestuário, e para as suas filhas.
16º A aquisição e registo dos dois imóveis apenas em nome da ré, deveu-se á circunstância de ela ser muito mais nova do que o autor, uma diferença de 14 anos, facto determinante por ele aproveitado para a obtenção de mais tempo para amortizar os empréstimos e melhores taxas de juro. (docs. 1, 4 e 5)
17º Porque a ré não tinha rendimentos que lhe permitissem a obtenção de tais empréstimos bancários, o Banco mutuante, para alem das hipotecas, reforçou a garantia com fiadores, logo o autor em primeiro lugar.
18º O autor confiou na ré, a pensar numa união mais duradoura, deixando, para depois, a questão da propriedade, cientes, ele e ela, de que a propriedade não podia manter-se assim como está, pela injustiça bem evidente.
19º Isto para dizer, clara e convictamente, que sempre foi o autor quem tem pago, e continua a pagar, a totalidade das prestações dos empréstimos ao Banco mutuante, todos os meses, sem falhar, assumindo como sua obrigação.
20º E tem sido o autor, também, quem tem pago o seguro de vida em nome da ré, relacionado com a garantia dos empréstimos, no valor mensal de € 44,00, bem como os consumos de água, de electricidade, o condomínio, o alarme, etc, tudo, em média mensal, no valor de € 250,00.
21º E quem tem mandado fazer e pagar a manutenção dos referidos imóveis, que foram adquiridos já usados, com pequenas reparações e pinturas, no que, em vários anos, terá gasto, pelo menos, a quantia de € 3.000,00.
22º Na verdade, a ré sempre reconheceu que é o autor, só ele, a pagar ao Banco os empréstimos concedidos e que, inevitavelmente, terá de continuar a ser ele até ao fim, até á conclusão do pagamento.
23º Foi aquilo o que a ré declarou, expressamente, no documento que subscreveu, em 04 de março de 2020, sob o título “Declaração de Compromisso/Obrigação, que se junta e se dá por reproduzido. (doc. 6).
24º Para o autor, o que está dito por ele, naquele documento, obedeceu a uma lógica de vida que deixou de existir: pressupunha uma vivência com a ré que ela acabou, ao preferir seguir a sua vida noutro lugar.
25º Do exposto, para se concluir, inevitavelmente, que as identificadas fracções autónomas têm uma proprietária formal e um proprietário material: este é o autor, o verdadeiro comprador, o único que paga o seu preço, o único que cumpre todas as responsabilidades correspondentes, o único com animus.
26º No nosso direito, o registo predial não tem função constitutiva, mas meramente declarativa. Ao dizer que “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”, o artigo 7º do Código do Registo Predial, está a estabelecer uma presunção, que a doutrina e a jurisprudência chamam de presunção júris tantum, ilidível como se sabe.
27º Não existe motivo algum para que as duas fracções autónomas compradas a crédito, que o autor vai ter de pagar em 39 anos (468:12), de que ele, até á data, só pagou pouco mais de 8 anos, a propriedade continue em nome da ré.
28º Circunstância que leva o autor a apelar ao direito civil, para o direito das obrigações, nas fontes das obrigações, neste caso, o instituto do enriquecimento sem causa, previsto e regulado nos artigos 473º e seguintes do Código Civil.
29º “1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer á custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”. (artigo 473º nºs 1 e 2 do Código Civil).
30º É injusto que a ré se queira locupletar á custa do autor, que enriqueça á sua custa, por indevidamente recebido e por uma causa que deixou de existir, devendo, por isso, transferir, para o autor, a plena propriedade das duas fracções autónomas supra identificadas, de forma totalmente gratuita.
31º A única maneira de o autor fazer valer e ver reconhecidos os seus direitos, é através do instituto do enriquecimento sem causa, nas supra citadas normas específicas do Código Civil, com a preciosa ajuda, nesta matéria, do Ilustre Professor António Menezes Cordeiro, e doutrina e jurisprudência por ele referidas. (cfr. Tratado de Direito Civil Português, II Direito das Obrigações, Tomo III, Almedina, 2010, páginas 137 e seguintes, especialmente a partir de páginas 223 – requisitos gerais).
32º Como requisitos ou condições para a aplicação daquele instituto, temos:
a) O enriquecimento da ré;
b) O empobrecimento do autor;
c) O nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento;
d) A ausência de causa;
e) A ausência de acção apropriada.
33º Sem dúvida que, como se demonstrou, a ré enriqueceu á custa do autor, sem causa justificativa, cujos pressupostos estão presentes, assim gerando a obrigação, por sua parte, do dever de restituir o enriquecimento. (artigo 479º nº 1 do Código Civil)
34º O enriquecimento da ré está bem patente, por ser dona de bens imóveis para os quais nada pagou nem vai pagar, a que corresponde, na justa medida, o empobrecimento do autor.
35º A causa justificativa do enriquecimento não existe: conseguiram-se os empréstimos bancários para a aquisição dos dois imóveis, para a habitação do autor e da ré, tendo esta, como se disse, optado por abandonar o autor e a habitação, mantendo-se alheada, como sempre, de toda e qualquer responsabilidade.
36º Os imóveis cuja propriedade o autor pretende, repete-se, não estão pagos, longe disso: vai ele continuar a pagá-los, pelos anos fora, como sempre fez até á data.
37º Do que se disse, impõe-se a restituição natural, a única solução para o autor legalmente prevista: ingressar na propriedade plena das duas fracções autónomas, ainda em nome da ré no registo predial. (cfr. obra citada, páginas 273 e seguintes, e jurisprudência lá referida).
38º Neste caso, no fim da união de facto entre o autor e a ré, não se pode falar em efeitos patrimoniais, até porque, entre eles, não existem bens comuns ou em compropriedade, sendo inaplicável o regime previsto na lei nº 7/2001, de 11.05, no artigo 8º nºs 1 al. b) e 3”.
No despacho saneador foi julgada verificada a exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, da nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, a obstar à apreciação do mérito da causa e a determinar a absolvição da Ré instância, nos termos dos artigos 278º, 576º nº 2, 577º alínea b), 578º, do Código de Processo Civil, considerando-se a petição inicial inepta por falta de causa de pedir para o pedido formulado e, ainda, estar o pedido em contradição, decidindo: “Pelo exposto: 1) Absolvo da instância a ré BB; 2) Julgo prejudicada a apreciação da reconvenção deduzida pela reconvinte BB; 3) Condeno o autor AA e a reconvinte BB, no pagamento das custas da acção, respectivamente, na proporção de 90% para o primeiro e 10% para a segunda, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à ré/reconvinte, fixando à acção o valor de € 51.994,50”.
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De tal decisão apresentou o Autor recurso de apelação, pugnando por que decisão recorrida seja anulada e substituída por outra a ordenar o prosseguimento dos autos até ao seu julgamento e condene a apelada a restituir ao apelante o que, sem causa, indevidamente recebeu, sob a figura da restituição natural, conforme pedido na ação, formulando, para tanto, as seguintes
CONCLUSÕES:
(…)
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.
Assim, as questões a decidir são as seguintes: 1. Da nulidade da decisão, por padecer do vício previsto na al. d), do nº1, do art. 615º, do CPC. 2. Se a petição inicial é apta ou se, ao invés é inepta,por omissão dos factos essenciais nucleares a servir de suporte ao pedido formulado (de reconhecimento do direito de propriedade e de restituição).
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos provados com relevância para a decisão constam já do relatório que antecede, resultando a sua prova dos autos, e não se reproduzindo por tal se revelar desnecessário.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 1. Da nulidade da decisão, por padecer do vício previsto na al. d), do nº1, do art. 615º, do CPC.
O nº1, do art.º 615º, do Código de Processo Civil, abreviadamente CPC, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência, que consagra as “Causas de nulidade da sentença”, estabelece que é nula a sentença quando: d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Aponta, o apelante à decisão um vício respeitante a limites. E quanto ao vício consagrado na alínea d), referente a “omissão ouexcesso de pronúncia”, cumpre referir, quanto à omissão de pronúncia, que “devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado”[2].
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronuncia) há de, resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do Código de Processo Civil do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
O vício determinativo da nulidade da sentença por excesso de pronuncia, a que alude a referida al. d), do nº1, do art. 615º, ocorre quando o tribunal conheça de “questão” que lhe não foi colocada pelas partes, isto é, de pedido, causa de pedir ou de exceção por elas não invocados. “Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art. 608-2), é nula a sentença em que o faça”[3]. Com efeito, configura nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, o conhecimento de questões não suscitadas na ação ou na defesa e de que não era lícito ao tribunal conhecer oficiosamente, por o tribunal, a assim proceder, ir além dos poderes de cognição, delimitados pelas partes e pela lei, em violação dos princípios do dispositivo e do contraditório.
Não existe nulidade da sentença por excesso de pronúncia quanto a questões de que o tribunal possa conhecer oficiosamente, dado que, nesses casos, é a própria lei que impõe ao juiz o conhecimento dessa questão, ainda que não suscitada pelas partes.
E, apenas se verificando o vício da nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, no caso de apreciação de questões que extravasem os pedidos formulados, exceções deduzidas (isto é, que não integram o objeto do litígio) e em que se não imponha o conhecimento oficioso, não existe nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, quando nela o tribunal se limita a conhecer de questão de conhecimento oficioso, e daí extrair as necessárias consequências.
Contrariamente ao pretendido pelo apelante, ao anular todo o processo, o tribunal a quo não incorreu em excesso de pronúncia, não foi longe de mais, antes apreciou questão no exercício dos poderes de cognição que lhe são conferidos por lei e ao abrigo do princípio da oficiosidade consagrado no nº3, do artigo 5º, aplicando a lei ao caso concreto, na realização da Justiça.
Conhecendo o Tribunal de “questão” de conhecimento oficioso improcede o arguido vício da decisão.
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2. Da falta de causa de pedir.
Comecemos por referir que pedido é a providência jurisdicional formulada pelo autor. É a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar[4]. O pedido consiste no efeito jurídico pretendido pelo autor (ou pelo réu através da reconvenção).
O pedido pressupõe uma causa de pedir que concretamente o fundamente.
Causa de pedir é o ato ou facto jurídico de que procede a pretensão deduzida pelo Autor, que serve de fundamento à ação. É o facto concreto invocado pelo Autor, o acontecimento natural ou a ação humana de que promanam, por disposição legal, efeitos jurídicos. É o princípio gerador do direito, o acervo dos factos que integram o núcleo essencial da previsão da norma ou normas do sistema que estatuem o efeito de direito material pretendido[5], que se distingue da qualificação jurídica dada aos factos. A causa de pedir não se confunde com a “norma de lei” invocada pela parte, pois a ação identifica-se e individualiza-se, não por essa norma, mas pelos elementos de facto que convertem em concreta a vontade legal.
A causa de pedir – i.e. os elementos de facto que convertem em concreta a vontade legal – não se confunde com a norma invocada, correspondendo, nas ações derivadas de direitos de obrigação, ao facto jurídico de onde nasce o direito de crédito[6], na ação de reivindicação ao ato jurídico concreto que gerou o direito de propriedade (ou outro direito real – cfr art. 1315º) na esfera jurídica do peticionante e, ainda, os factos demonstrativos da violação desse direito (tendo o reivindicante tem de alegar e provar que é proprietário da coisa, e que esta se encontra em poder do réu, a si cabendo, pois, o ónus de alegação e o da prova), na ação de restituição fundada em enriquecimento sem causa à deslocação patrimonial e à ausência de causa justificativa da mesma para com recurso ao instituto do enriquecimento sem causa, repor, na justa medida, o equilíbrio.
A causa de pedir não consiste na categoria legal invocada ou no facto jurídico abstrato configurado pela lei, mas, antes, nos concretos factos da vida a que se virá a reconhecer, ou não, a força jurídica bastante e adequada para desencadear os efeitos pretendidos pelo autor.
O pedido que se mostra formulado pelo Autor é o pedido próprio da ação de reivindicação, fundado em direito de propriedade, e, na verdade, como bem entendeu o Tribunal a quo, não se encontram alegados factos a sustentar tal pedido, nada sendo alegado de factos essenciais constitutivos de tal direito. Ao invés, os factos invocados são inócuos e, mesmo, contraditórios com o que vem peticionado, sendo a petição inicial deficiente.
A ação de reivindicação constitui uma ação declarativa de condenação sujeita a um regime especial previsto nos artigos 1311º e seguintes, do Código Civil, diploma de onde serão todos os preceitos a citar sem a indicação de origem. É uma ação petitória, a que, adjetivamente, não corresponde qualquer forma de processo especial, caindo, assim, na forma comum.
Consagra o nº1, do referido artigo, que “O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”. São, assim, dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio), por outro. Só através destas duas finalidades, previstas no nº 1, se preenche o esquema da acção de reivindicação (quanto à primeira finalidade, tem-se entendido que, se o reivindicante se limita a pedir a restituição da coisa, não formulando expressamente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade, deve este pedido considerar-se implícito naquele.
Deste modo, a ação de reivindicação, que tem como finalidade afirmar o direito de propriedade e fazer cessar as situações ou atos que o violem, tem um objetivo inicial - a declaração de existência do direito e, subsequentemente, visa realizar o direito declarado, com a condenação na restituição da coisa.
“Na sua estrutura identificam-se dois elementos: o pedido de reconhecimento do direito e o pedido de restituição da coisa objeto desse direito. Processualmente, entendemos que não terá, necessariamente, de existir uma cumulação de pedidos, antes a demonstração da titularidade será havida como integrante da causa de pedir na ação, fundamentando o pedido de condenação na restituição”[7].
A ação de reivindicação tem como causa de pedir o ato ou facto jurídico concreto que gerou o direito de propriedade (ou outro direito real – cfr art. 1315º) na esfera jurídica do peticionante e, ainda, os factos demonstrativos da violação desse direito. O reivindicante tem de alegar e provar que é proprietário da coisa, e que esta se encontra em poder do réu, a si cabendo, pois, o ónus de alegação.
Por sua vez, ao réu/autor reconvindo, detentor da coisa, caso pretenda evitar a restituição, cabe, em sua defesa, o ónus de alegar e provar o facto jurídico em que assenta a sua detenção legítima (cfr. art. 342º, do Código Civil, que estabelece as regras do ónus da prova, sendo que àquele que invoca um direito cabe fazer a prova do direito alegado e àquele contra quem a invocação é feita cabe a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito). Assim, apesar de o Autor da reivindicação demonstrar o seu direito, pode não lograr obter a restituição da coisa se o Réu/autor reconvinte invocar, na contestação (em defesa por exceção ou mediante reconvenção), e demonstrar que dispõe de título que legitime a sua detenção, conforme dispõe o nº2, do art. 1311º.
Podendo, nos termos do nº1, do referido artigo, o proprietário exigir de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence, “só tem legitimidade activa para recorrer à reivindicação quem seja titular de um direito real que atribua a posse da coisa, mas não tenha a posse. Por sua vez, tem legitimidade passiva para a acção de reivindicação quem seja possuidor ou detentor da coisa, mas não seja titular do correspondente direito real”[8].
Assim, para fazer valer o seu direito sobre a coisa, o autor/réu reconvinte tem duas possibilidades:
- ou alega e demonstra a aquisição originária, por si ou por algum dos seus antepossuidores, do direito de propriedade sobre a coisa;
- ou invoca aquisição derivada e terá de provar as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária, sendo que na aquisição derivada, o adquirente, apenas e tão somente, adquire o direito de que o transmitente seja titular.
No caso, não resulta alegada a aquisição do direito de propriedade pelo Autor.
E, como se considerou no Acórdão deste Tribunal de 6/5/2024, proc. 2937/22.7T8AVR.P1, “A mera coabitação em união de facto em imóvel adquirido por um dos conviventes é, em princípio insuficiente para gerar a posse hábil a espoletar reconhecimento da aquisição originária pelo outro, do direito de propriedade em regime de compropriedade”, “Todavia, isso não invalida que o convivente alegue e prove que tal bem imóvel também lhe pertence, em virtude de uma das vias de aquisição do direito de propriedade, aquisição essa que está submetida ao princípio da tipicidade e só pode ocorrer por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos expressamente previstos na lei, nos termos do art.º 1316ºdo Código Civil”[9].
Não o faz, contudo o Autor, que nada alega, com relevo para a pretensão que formula.
Ora, há ineptidão da petição inicial quando falte a indicação dos factos essenciais nucleares, do fundamento fáctico da pretensão de tutela jurisdicional formulada, sendo necessário que a alegação, ónus da parte, permita compreender qual a concreta situação de que emerge a pretensão que é deduzida em face do quadro jurídico aplicável[10]. No caso, não se mostra alegada causa de pedir para a pretensão de reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre as frações e da, consequente, restituição, não vindo alegado o suporte da própria ação. Com efeito, não se mostra formulado um pedido de restituição baseado no instituto do enriquecimento sem causa nem é formulada qualquer pretensão de liquidação da relação havida entre Autor e Ré, mas um pedido de restituição fundado em direito de propriedade do Autor.
Falta, na verdade, causa de pedir para o concreto pedido deduzido, como bem decidiu o Tribunal a quo. Sendo os fatos alegados inócuos para apreciação do pedido, e, até, com ele contraditórios, bem foi entendido não se mostrar densificada a causa de pedir e, na falta, sendo a petição inicial de tal modo deficiente, por não permitir identificar o tipo legal, dada a omissão de alegação de factos essenciais nucleares a servir de suporte ao pedido (nº1, do art. 5º), ocorre ineptidão da petição inicial[11], verificando-se nulidade de todo o processo.
A causa de pedir, além de existir e de ser inteligível, deve estar em conformidade com o pedido, formando com a qualificação jurídica as premissas que constituem o corolário da pretensão formulada[12].
Bem entendeu o Tribunal a quo que o Autor não alega qualquer causa de adquisição do direito de propriedade, seja originária seja derivada, afirmando o registo da aquisição a favor da Ré, não sendo o pagamento de prestações ao banco, referentes a empréstimos bancários, nem o instituto do enriquecimento sem causa meios de aquisição do direito de propriedade, sequer tendo a Ré recebido as frações do Autor para que se pudesse ser configurada uma obrigação de restituição ao mesmo, faltando, pois, a causa de pedir da ação, as permissas da pretensão formulada.
E na falta de causa de pedir e na, consequente, verificação da exceção dilatória, insuprível, da nulidade de todo o processo, de conhecimento oficioso, tem de ser decretada a absolvição da Ré da instância (cfr. arts 186º, nº1 e 2, al. a), 196º e 278º, nº1, al. b), 577º, al. b) e 576º, nº1 e 2, 1ª parte).
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pelo apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pelo apelante, pois que ficou vencido – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.
Porto, 27 de outubro de 2025
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Ana Paula Amorim
Teresa Fonseca
_______________ [1] Reproduz-se o teor do articulado para a devida perceção dos contornos fácticos alegados a sustentar a referida pretensão. [2]José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Idem, pág 737 [3]Ibidem, pág 737 [4] Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, página 111 [5] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2, 2017, Almedina pág 597 [6] Acórdão do STJ de 3/11/2016, processo 315/15.3T8VRL.G1.S1, in dgsi.net [7] Ana Prata (Coord.) e outos, Código Civil Anotado, vol II, 2017, Almedina, pág 108 [8] Luís Manuel Teles de Meneses Leitão, Direitos Reais, 6ª Edição, 2017, Almedina, pág 228. [9] Acórdão do TRP de 6/5/2024, proc. 2937/22.7T8AVR.P1 (Relator: Manuel Fernandes), em que as ora relatora e 1ª adjunta foram adjuntas. [10] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol.I, 4ª Edição, págs. 34, 264 e 747 [11]Ibidem, pág. 747 [12]Ibidem, pág. 264