PODERES-DEVERES DO JUIZ
MEIOS DE PROVA
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
Sumário

I - Os poderes-deveres do juiz estabelecidos no art.º 411º CPC que se fundam no princípio do inquisitório, não se limitam à prova de iniciativa oficiosa, cumprindo ao juiz ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de prova propostos pelas partes.
II - O exercício de tais poderes coexiste com o princípio do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes.
III - O juiz apenas deve ordenar as diligências na medida em que necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.
IV - O juízo de necessidade resulta do confronto entre a prova produzida e os factos controvertidos a apreciar, alegados pelas partes e relacionados com os temas da prova (art.º 5º e 410º CPC e art.º 341º e seg. do CC).
V - O princípio da cooperação, previsto no art.º 7º CPC, impõe ao juiz o dever de providenciar pela remoção do obstáculo quando a parte alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento que condicione o eficaz cumprimento de um ónus.

Texto Integral

Prova-9634/23.4T8VNG.P1


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SUMÁRIO[1] (art.º 663º/7 CPC):

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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório

Na presente ação de divisão de coisa comum em que figuram como:

- REQUERENTE: AA, NIF ..., residente na rua ..., 2ºdireito, ... ..., Vila Nova de Gaia; e

- REQUERIDA: BB, NIF ..., residente na rua ..., ... Vila Nova de Gaia,

veio o requerente peticionar que se proceda à divisão dos prédios melhor descritos no artigo 1º da petição inicial, colocando termo à atual situação de indivisão.

Alegou para o efeito que Autor e a Ré são donos e legítimos comproprietários, em comum e sem determinação de parte ou direito, dos seguintes bens imóveis:

i) prédio urbano, destinado a habitação, composto por um só pavimento com 5 divisões, sito na rua ..., ..., da freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, o qual se encontra inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ..., daquela freguesia e concelho, com o valor patrimonial tributário de 11.936,40€ (cf. doc.1);

ii) prédio urbano, destinado a habitação, composto por prédio de r/chão com 1 divisão e 1º andar também com uma divisão, sito na rua ..., ..., da freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ..., daquela freguesia e concelho, com o valor patrimonial tributário de 33.048,40€ (cf. doc. 2);

iii) prédio rústico, composto por pinhal e mato, sito em ..., da União de Freguesias ..., ... e ..., concelho de Castelo de Paiva, o qual se encontra inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo ..., daquela freguesia e concelho, com o valor patrimonial tributário de 9,78€ (cf. doc. 3).

Mais alegou que adquiriram o direito de propriedade dos bens imóveis, em comum e sem determinação de parte ou direito, por via de escritura pública de partilha da herança aberta por óbito de CC, outorgada em 28 de julho de 1976, no então Sétimo Cartório Notarial da Cidade do Porto (cf. doc. 4).

Os prédios encontram-se omissos na Conservatória do Registo Predial.

O direito de propriedade encontra-se averbado, em nome da Autora e do Réu, na respetiva caderna predial junto da Autoridade Tributária (cf. docs. 1 a 4.)

O Autor/requerente não mais pretende manter a indivisão dos imóveis em apreço, pretendendo colocar termo à atual contitularidade do direito de propriedade. Os bens em causa não são passíveis de divisão, em substância, devendo vir a ser adjudicados a um dos comproprietários ou vendidos a terceiro.


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A convite do tribunal veio o requerente juntar certidão de omissão no registo predial dos referidos prédios.

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Procedeu-se à citação da requerida, que não veio deduzir oposição.

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A filha adotiva da requerida juntou aos autos diversas comunicações eletrónicas, sem esclarecer o motivo para o fazer, apesar de notificada para esse efeito.

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O requerente veio requerer o prosseguimento dos autos.

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Proferiu-se despacho com o seguinte teor:

“De acordo com a escritura pública junta, às partes receberam em herança a nua propriedade dos prédios urbanos referidos em 1), i) e ii), não tendo herdade a propriedade plena, nem tampouco o terceiro prédio mencionado em 1) iii).

Em face disso, não parece que a presente ação deva proceder.

No entanto, dá-se a possibilidade às partes para se pronunciarem.

Notifique”.


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O requerente veio formular o seguinte requerimento:

“a) Dizer que o usufruto constituído através da escritura pública de partilha datada de 28/07/1976 a favor de DD extinguiu-se com a morte desta, conforme certidão de óbito que se protesta juntar aos autos no prazo de 10 (dez) dias;

b) Dizer que as partes são, de facto, as titulares do direito de propriedade pleno dos imóveis identificados em i) e ii);

c) Dizer que o terceiro prédio, constante do ponto iii), não foi objeto da referida partilha e deverá ser excluído dos autos;

d) Requer, caso se entenda por conveniente, o aperfeiçoamento da petição inicial, seguida da marcação de conferência de interessados;

Protesta juntar: certidão de óbito;”


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Proferiu-se despacho que determinou que se aguardasse a junção do documento em falta.

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O requerente veio formular o seguinte requerimento:

“a) Dizer que se verificam dificuldades, atenta a antiguidade e a não informatização, em localizar a certidão de óbito da antiga usufrutuária, apesar das várias démarches feitas pelo autor junto de várias repartições do registo civil, incluindo de Vila Nova de Gaia;

b) Em face de tal realidade e por forma a alcançar a certidão de óbito com a celeridade necessária, requer a V. Excia a notificação dos Serviços Centrais do Registo Civil por forma a juntar aos autos, com a máxima celeridade, a certidão de óbito de “DD”, casada sob o regime de separação absoluta de bens com EE, nascida na freguesia ..., do concelho de Vila Nova de Gaia, com antigo bilhete de identidade conhecido com o número ..., emitido pelos SIC do Porto;

c) Atenta a séria possibilidade de entendimento entre as partes quanto à divisão dos imóveis em causa por comum acordo, conforme já delineado pela própria ré (através da sua filha adotiva) através de uma solução que é da aceitação do autor, requer a V. Excia se digne a ordenar a marcação de tentativa de conciliação, de acordo com a agenda disponível do Tribunal;”


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Proferiu-se o despacho que se transcreve:

“Solicite aos Serviços Centrais do Registo Civil a certidão de óbito de DD, casada sob o regime de separação absoluta de bens com EE, nascida na freguesia ..., do concelho de Vila Nova de Gaia, com antigo bilhete de identidade conhecido com o número ..., emitido pelos SIC do Porto.

No que se refere à marcação de uma tentativa de conciliação, vai indeferida por não se justificar, podendo, naturalmente, a qualquer altura as partes chegar a acordo”.


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Solicitada a informação, veio a Conservatória dos Registos Centrais informar que “efetuadas pesquisas nesta Conservatória não foi localizado nenhum processo ou registo de óbito referente a DD”.

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Em 16 de dezembro de 2024, o requerente veio formular novo requerimento, com o teor que se transcreve:

“a) Dizer que a resposta dos Serviços Centrais do Registo Civil decorre do facto de a certidão de óbito de “DD” não estar informatizada, atenta a sua antiguidade, cuja Conservatória local competente é a Conservatória do Registo Civil de Vila Nova de Gaia, onde tal informação se encontrará arquivada;

b) Requerer que se oficie à Conservatória do Registo Civil de Vila Nova de Gaia por forma a oferecer aos autos certidão de óbito de “DD”, casada sob o regime de separação absoluta de bens com EE, nascida na freguesia ..., do concelho de Vila Nova de Gaia, com antigo bilhete de identidade conhecido com o número ..., emitido pelos SIC do Porto;

c) Dizer que, atentas as particularidades subjacentes às partes intervenientes, designadamente à ré) como as anteriores comunicações oferecidas aos autos diretamente pela filha adotiva da ré o revelaram de modo muito peculiar), o acordo entre as partes – que colocará termo aos autos – só poderá ser formalizado em sede de diligência judicial, nomeadamente mediante tentativa de conciliação, em virtude de a ré não se encontrar patrocinada por advogado e por ser entendido pela própria (e pela sua filha adotiva) que um acordo apenas será válido e eficaz se realizado de modo presencial, em sede de diligência realizada no Tribunal e mediante a intervenção do Meritíssimo Senhor Juiz de Direito, enquanto garante da legalidade, sendo pois vontade comum e recíproca das partes que o acordo seja assim alcançado em diligência judicial, cuja realização de modo extrajudicial não se revelou para a ré admissível, sob pena de tal entendimento ficar irremediavelmente condenado ao insucesso;

d) Requerer, atenta a explicação oferecida a V. Excia, que certamente melhor acolherá, e à luz dos princípios da adequação, simplicidade e agilidade processual, conjugados com a desejada conciliação entre os intervenientes, evitando a prática de atos inúteis e o protelamento dos autos, a realização de diligência judicial destinada a alcançar o termo dos autos”.


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Em 06 de janeiro de 2025 proferiu-se despacho, seguido de sentença com as decisões que se transcrevem:

“[…]

Cabe às partes o ónus de instruir o processo com os documentos que se destinam a fazer a prova dos factos que alegam, não podendo transmitir esse ónus para o tribunal e ficar à espera que seja o tribunal a diligenciar que sejam juntos aos autos os documentos essenciais que o autor deveria logo ter junto com a petição inicial.

No caso concreto, o tribunal concedeu prazo para que o autor juntasse o assento de óbito da usufrutuária (que não é sequer mencionada na petição inicial) e ainda, a pedido do autor, solicitou esse documento aos Serviços Centrais do Registo Civil, conforme o próprio autor requeria.

Não tendo essa diligência surtido efeito, admitindo sempre melhores opiniões, não parece que se justifica que continue a ser o tribunal a desenvolver a atividade que cabia ao autor diligenciar inicialmente.

Acresce que o próprio autor já veio dizer no requerimento de 29/11/2024 que já procurou localizar o documento nessa conservatória e que não foi bem sucedido, o que desde logo parece afastar a possibilidade do documento poder ser junto ainda que o tribunal pela segunda vez interviesse.

Em face do exposto, indefere-se ao requerido.

[…]

2) No que tange ao pedido de marcação de uma tentativa de conciliação, cabe dizer que por despacho de 04/12/2024 já foi indeferido, por não se justificar.

Acresce que a marcação dessa tentativa de conciliação que o autor tanto pretende não poderia surtir os efeitos desejados quanto à divisão da propriedade dos bens em causa, uma vez que se sabe que as partes não herdaram a propriedade plena, mas apenas a nua propriedade (e apenas sobre dois imóveis), uma vez que foi constituído um usufruto sobre esses bens imóveis.

Por tudo, indefere-se ao requerido.

Notifique.

[…]

Assim, de acordo com o que resulta do documento que o autor junta, este e a ré não são proprietários dos prédios acima referidos em i) e ii), mas apenas da sua nua propriedade, não podendo assim o direito de propriedade plena ser dividido.

Em face disso, logo se verifica que a ação está destinada a improceder, propósito que o tribunal já manifestou e deu a conhecer às partes no despacho de 25/10/2024, não o tendo de repetir.

Em consequência do exposto, julgo a ação manifestamente improcedente.

As custas correm pela autora por ter ficado vencido (artigo 527.º, 1, do CPC)”.


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O requerente /autor veio interpor recurso dos despachos e da sentença.

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Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:

A. O presente recurso versa sobre a douta sentença proferida que indeferiu o pedido de obtenção da certidão de óbito da usufrutuária e indeferiu o pedido de marcação de tentativa de conciliação, julgando a ação movida pelo recorrente manifestamente improcedente.

B. Através de requerimento efetuado em 16/12/2024 (sob ref. Citius 41034223), constante de fls. dos autos, o recorrente solicitou que o assento de óbito da usufrutuária fosse novamente requerido dado que a resposta dos Serviços Centrais do Registo Civil de “inexistência” da certidão de óbito decorre do facto de a certidão de óbito não estar informatizada, atenta a sua antiguidade, cuja Conservatória local competente é a Conservatória do Registo Civil de Vila Nova de Gaia, onde tal informação se encontraria arquivada e cujas diligências do autor não conseguiram que alcançasse tal informação.

C. Nesse mesmo requerimento, o recorrente peticionou a marcação de tentativa de conciliação atenta o acordo alcançado entre as partes – na sequência da vontade manifestada pela ré, de doação dos imóveis ao seu sobrinho neto e neto do recorrente, cf. email, constante de fls. dos autos, datado de 10/07/2024 - e a necessidade da sua formalização em sede de diligência judicial, atento o não patrocínio da contraparte e a garantia de legalidade da sua realização por essa via.

D. Ao indeferir o pedido de obtenção da certidão de óbito e ao indeferir o pedido de marcação da tentativa de conciliação, foram violados os princípios do inquisitório, da adequação formal, da cooperação e o dever de gestão processual.

E. Primeiramente, ao não diligenciar para a obtenção do referido assento de óbito, sabendo que, tal só não foi possível obter, pelos Serviços Centrais do Registo Civil, dada a sua antiguidade, sendo essencial para atingir o objetivo pretendido dos autos.

F. Em segundo lugar, ao não promover a realização de uma tentativa de conciliação, através da qual, mediante as comunicações das partes e a vontade de obterem um acordo presencialmente e na presença de um juiz, haveria grande probabilidade de se chegar a um acordo.

G. A douta sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por decisão que ordene o prosseguimento dos autos mediante a obtenção da certidão de óbito da usufrutuária junto das autoridades competentes e mediante a marcação da tentativa de conciliação.

H. Foram violados, entre o mais, os artigos 6º, 7º e 411º do Código de Processo Civil.

Termina por pedir que se julgue procedente o recurso, revogando-se a douta decisão em crise e substituindo-se por decisão que por decisão que ordene o prosseguimento dos autos mediante a obtenção da certidão de óbito da usufrutuária junto das autoridades competentes e mediante a marcação da tentativa de conciliação.


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Não foi apresentada resposta ao recurso.

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O recurso foi admitido como recurso de apelação.

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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art.º 639º do CPC.

As questões a decidir:

- da nulidade processual por omissão de diligência de instrução, que consistia em obter a certidão de assento de óbito da usufrutuária junto da competente conservatória do registo civil;

- da verificação dos pressupostos para realizar uma tentativa de conciliação;

- se a pretensão formulada pelo requerente é manifestamente improcedente.


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2. Os factos

Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório.


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3. O direito

- Da nulidade processual por omissão de diligência de instrução -

Nas conclusões de recurso, sob as alíneas A) a D), o apelante insurge-se contra o despacho que indeferiu a diligência de instrução por si requerida, através da qual se pretendia obter a certidão de assento de óbito da usufrutuária.

Suscita a nulidade do despacho recorrido, ao abrigo do art.º 195º/1 CPC, por violação do disposto nos art.º 4º, 7º e 411º do CPC, por entender que o tribunal devia oficiosamente promover as diligências de instrução requeridas, no sentido de obter a certidão de assento de óbito da usufrutuária, junto da Conservatória do Registo Civil de Vila Nova de Gaia.

Trata-se, assim, de apurar se o indeferimento da diligência requerida, de obtenção da certidão de assento de óbito da usufrutuária junto da Conservatória do Registo Civil de Vila Nova de Gaia, constitui uma nulidade, que interfere no exame e decisão da causa.

Antes, porém, cumpre ter presente a natureza da ação, no âmbito da qual vem suscitada a irregularidade.

O apelante instaurou ação de divisão de coisa comum.

Conforme determina o art.º 925º CPC “todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requer, no confronto dos demais consortes, que fixadas as respetivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respetivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas”.

A ação tem de ser proposta por quem figure como comproprietário contra todos os comproprietários, sendo por isso, um caso típico de litisconsórcio necessário, sob o aspeto passivo, imposto pela própria natureza da relação jurídica, pois a decisão a obter não produz o seu efeito útil normal sem estarem em juízo todos os interessados[2].

Nos termos do art.º 1403º/1 do Código Civil existe propriedade em comum ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.

A medida da participação dos comproprietários no direito comum corresponde às quotas, como se prevê no art.º 1403º/2 CC.

A compropriedade consiste na contitularidade num único direito de propriedade sobre a coisa comum[3].

Contudo, considerando os inconvenientes da propriedade em comum e que o aproveitamento da coisa é mais profícuo, com um só titular, existe um interesse público na cessação da compropriedade, moldando o regime da compropriedade em termos desta assumir um caráter transitório[4].

Prevê-se, assim, no art.º 1412º/1 CC que “nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa”.

Nos termos do art.º 1413º/1 CC “a divisão é feita amigavelmente ou nos termos da lei de processo”.

O processo judicial segue a tramitação prevista nos art.º 925º seg. CPC.

No caso concreto, questiona-se na ação a compropriedade dos prédios cuja divisão é requerida, porque na escritura de partilhas apenas foi adjudicado ao requerente e requerida a nua-propriedade de dois imóveis, descritos no art.º 1º da petição, sob as alíneas (i) e (ii).

Alegou o apelante/requerente que a usufrutuária faleceu, mas não juntou certidão de assento de óbito e indicou o motivo pelo qual não juntou o documento, pretendendo que o tribunal diligencie pela sua obtenção, o que foi indeferido.

Prevê o art.º 341º CC sob a epígrafe “Função das provas” que “as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”.

Nos termos do art.º 342º/1 CC àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.

No mesmo preceito, prevê o nº 2, que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.

Por fim, no nº3, em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.

O art.º 410º CPC com a epígrafe “Objeto da instrução” prevê:

“A instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova”.

De acordo com o atual modelo processual a prova tem por objeto os factos pertinentes para o objeto do processo.

Os temas da prova constituem quadros de referência das questões fundamentais do processo controvertidas e que decorrem da causa de pedir e das exceções.

Nesses quadros de referência há que recorrer aos factos alegados pelas partes e que são em primeira linha os factos principais da causa[5].

Os articulados têm como função constituírem o meio de alegação dos factos principais da causa[6]. Os factos instrumentais e acessórios podem ou não decorrer da alegação nos articulados, como se prevê no art.º 5º CPC.

Observa o Professor LEBRE DE FREITAS “[a]ssim, é com incorreção terminológica que o art.º 410º diz que a instrução tem por “objeto” os temas da prova enunciados e, pleonasticamente, que, só na falta dessa enunciação o seu objeto são os factos “necessitados de prova”. Provam-se factos; não se provam temas”[7].

Prevê o art.º 411º CPC que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.

Os poderes-deveres do juiz estabelecidos no preceito em análise, que se fundam no princípio do inquisitório, não se limitam à prova de iniciativa oficiosa, cumprindo ao juiz ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de prova propostos pelas partes[8].

Contudo, o exercício de tais poderes coexiste com o princípio do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, “de modo que não poderá ser invocado para, de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente, quando esteja precludida a apresentação de meios de prova”[9].

Como observa o Professor LEBRE DE FREITAS o juiz apenas deve ordenar a diligência: “na medida em que necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio”[10].

Esse juízo de necessidade resulta do confronto entre a prova produzida e os factos controvertidos a apreciar, alegados pelas partes e relacionados com os temas da prova (art.º 5º e 410º CPC e art.º 341 e seg. do CC)[11].

Por outro lado, nos termos do art.º 7º/4 CPC: “sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo”.

No caso concreto, atenta a natureza da ação, recai sobre o requerente/autor (apelante) o ónus de alegação e prova, em relação aos imóveis descritos no art.º 1º (i) e (ii) da petição, que pertencem em compropriedade ao requerente e requerida, pois apenas o comproprietário pode pedir a divisão, como já se referiu.

Contudo, na escritura de partilhas lavrada no Sétimo Cartório Notarial da cidade do Porto, em 28 de julho de 1976, por óbito de CC, requerente e requerida apenas adquiriram a nua-propriedade dos imóveis.

Alegou o requerente, no requerimento de aperfeiçoamento da petição, que a usufrutuária faleceu.

Constituía também um ónus do requerente provar o óbito, pois só dessa forma, conseguiria provar a extinção do usufruto e a aquisição em compropriedade dos imóveis (art.º 342º/1 CC).

Estamos, assim, na presença de factos essenciais, que contendem com a procedência da pretensão do requerente.

O apelante começou por requerer prazo para juntar a certidão de óbito, o que foi concedido.

Depois veio formular o seguinte requerimento:

“a) Dizer que se verificam dificuldades, atenta a antiguidade e a não informatização, em localizar a certidão de óbito da antiga usufrutuária, apesar das várias démarches feitas pelo autor junto de várias repartições do registo civil, incluindo de Vila Nova de Gaia;

b) Em face de tal realidade e por forma a alcançar a certidão de óbito com a celeridade necessária, requer a V. Excia a notificação dos Serviços Centrais do Registo Civil por forma a juntar aos autos, com a máxima celeridade, a certidão de óbito de “DD”, casada sob o regime de separação absoluta de bens com EE, nascida na freguesia ..., do concelho de Vila Nova de Gaia, com antigo bilhete de identidade conhecido com o número ..., emitido pelos SIC do Porto;[…]”

Proferiu-se o seguinte despacho:

“Solicite aos Serviços Centrais do Registo Civil a certidão de óbito de DD, casada sob o regime de separação absoluta de bens com EE, nascida na freguesia ..., do concelho de Vila Nova de Gaia, com antigo bilhete de identidade conhecido com o número ..., emitido pelos SIC do Porto.

No que se refere à marcação de uma tentativa de conciliação, vai indeferida por não se justificar, podendo, naturalmente, a qualquer altura as partes chegar a acordo”.

Solicitada a informação, veio a Conservatória dos Registos Centrais informar que “efetuadas pesquisas nesta Conservatória não foi localizado nenhum processo ou registo de óbito referente a DD”.

Em 16 de dezembro de 2024 o requerente veio formular novo requerimento, com o teor que se transcreve:

“a) Dizer que a resposta dos Serviços Centrais do Registo Civil decorre do facto de a certidão de óbito de “DD” não estar informatizada, atenta a sua antiguidade, cuja Conservatória local competente é a Conservatória do Registo Civil de Vila Nova de Gaia, onde tal informação se encontrará arquivada;

b) Requerer que se oficie à Conservatória do Registo Civil de Vila Nova de Gaia por forma a oferecer aos autos certidão de óbito de “DD”, casada sob o regime de separação absoluta de bens com EE, nascida na freguesia ..., do concelho de Vila Nova de Gaia, com antigo bilhete de identidade conhecido com o número ..., emitido pelos SIC do Porto;[…]”.

A diligência foi indeferida e proferiu-se sentença.

Contudo, perante a sequência de atos praticados justifica-se realizar a diligência.

Com efeito, o requerente sobre quem recai o ónus de juntar o documento para prova do óbito, alegou “justificadamente dificuldade séria em obter o documento”, quando formulou o primeiro requerimento a solicitar a obtenção do documento junto da Conservatória dos Registos Centrais e agora, renovou os argumentos para requerer que se oficiasse junto da Conservatória do Registo Civil de Vila Nova de Gaia. Afirmou que pelo facto de se tratar de um documento antigo não foi objeto de tratamento informático, o que dificulta a obtenção do documento. É certo que não comprovou as diligências que efetuou, mas alegou factos que revelam justificadamente a dificuldade séria em obter o documento, documento que é relevante para o cumprimento do ónus que sobre si recai.

Conclui-se que a obtenção do documento se revela determinante para a prova de um facto essencial e a omissão de tal diligência interfere na decisão do mérito da causa, sendo certo que cumpre ao juiz realizar as diligências necessárias à justa composição do litígio e providenciar pela remoção do obstáculo, quando a parte alegue justificadamente dificuldade séria na obtenção do documento.

Mas ainda que se considerasse que o tribunal não está obrigado a diligenciar pela obtenção do documento, sempre deveria, determinar que o requerente procedesse à sua junção, por se revelar necessário para a justa composição do litígio (art.º 411º CPC).

A omissão do ato constitui uma nulidade processual, por se tratar de uma irregularidade processual que interfere no mérito da causa.

As nulidades processuais “[…] são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais”[12].

Atento o disposto nos art.º 195º e seg. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.

Porém, como referia o Professor ALBERTO DOS REIS há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades”, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos[13].

As nulidades principais estão previstas, taxativamente, nos art.º 186º a 194º e 196º a 198º do CPC e por sua vez as irregularidades estão incluídas na previsão geral do art.º 195º CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art.º 199º CPC.

O indeferimento da diligência requerida, a respeito de um meio de prova, não constitui uma nulidade principal, pois não consta do elenco das nulidades previstas nos art.º 186º a 194º e 196º a 198º do CPC.

Representa, pois, a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve, que cai na previsão do art.º 195º CPC e por isso, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, estando o seu conhecimento dependente da arguição, nos termos previsto no art.º 199º CPC.

A lei não fornece uma definição do que se deve entender por “irregularidade que possa influir no exame e decisão da causa”.

No sentido de interpretar o conceito o Professor ALBERTO DOS REIS tecia as seguintes considerações:“[o]s actos de processo têem uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, actos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram actos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela”[14].

Daqui decorre que uma irregularidade pode influir no exame e decisão da causa, se comprometer o conhecimento da causa, a instrução, discussão e julgamento.

Tal omissão tinha de ser arguida logo que conhecida, e no prazo previsto no art.º 149º/1 CPC, ou seja, a partir da data em que foi notificado o despacho que indeferiu o requerimento apresentado.

O recurso de apelação não constitui o meio processual próprio para conhecer das infrações às regras do processo quando a parte interessada não arguiu a nulidade perante o tribunal onde aquela alegadamente ocorreu, conforme resulta do regime previsto nos art.º 196º a 199º CPC.

Contudo, seguindo os ensinamentos de MANUEL DE ANDRADE[15], ALBERTO DOS REIS[16] e ANTUNES VARELA[17], porque existe a decisão recorrida que se pronunciou sobre os meios de prova requeridos pelo apelante, o conhecimento da nulidade pode-se fazer através do recurso. É que a nulidade está coberta por uma decisão judicial que a sancionou ou confirmou, pelo que o meio próprio de a arguir, será precisamente o recurso.

Considera-se, assim, que a irregularidade foi suscitada em tempo, pelo meio próprio e o indeferimento da pretensão do apelante interfere na apreciação do mérito da causa.

A nulidade praticada determina a anulação dos atos subsequentes, entre os quais a sentença proferida (art.º 195º/2 CPC).

Procedem, nesta parte, as conclusões de recurso.


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- Da tentativa de conciliação -

O apelante insurge-se contra o segmento do despacho que indeferiu a realização de tentativa de conciliação.

A questão suscitada fica prejudicada, face à apreciação da anterior questão, porque a prova da compropriedade constitui uma questão prévia e determinante na promoção dos ulteriores termos do processo (art.º 608º/2 CPC).


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Nos termos do art.º 527º/1 CPC as custas são suportadas pelo apelante, que obtém proveito com a decisão.

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III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar o despacho e anular os atos subsequentes, entre os quais a sentença proferida e nessa conformidade, defere-se a diligência requerida, oficiando-se junto da Conservatória do Registo Civil de Vila Nova de Gaia como se requereu no requerimento formulado em 16 de dezembro de 2024.


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Custas a cargo do apelante.

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Porto, 27 de outubro de 2025
(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art.º 131º, 132º/2 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
José Eusébio Almeida
Fátima Andrade
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] Cf. Professor ALBERTO DOS REIS, PROCESSOS ESPECIAIS, reimpressão, Coimbra Editora, Limitada., Coimbra, 1982, pág. 41 e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, Reimpressão, Almedina, abril 2017, pág.72-73.
[3] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, CÓDIGO CIVIL ANOTADO, vol. III, 2ª edição revista e atualizada-reimpressão, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora-grupo Wolters Kleber, Coimbra, fevereiro 2011, pág. 344.
[4] Cf. PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, CÓDIGO CIVIL ANOTADO, vol. III, ob. cit., pág. 386; LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, Reimpressão, Almedina, 2017 pág. 12.
[5] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum – À luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, setembro de 2013, pág. 206.
[6] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum – À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., pág. 197.
[7][7] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum – À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., pág. 207.
[8] JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE Código Processo Civil Anotado, vol. II, 3º Edição, Almedina, Coimbra, julho 2017, pág. 208.
[9] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, setembro 2018, pág. 484.
[10] JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE Código Processo Civil Anotado, ob. cit., pág. 208.
[11] JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE Código Processo Civil Anotado, ob. cit., pág. 206.
[12] MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pág. 156.
[13] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, pág. 357.
[14] JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, ob. cit., pág. 486.
[15] MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, ob. cit., pág. 183.
[16] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, pág. 424.
[17] ANTUNES VARELA et al Manual de Processo Civil, 2ª edição, revista e atualizada, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1985, pág. 393.