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PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO DO PASSIVO
VENDA
NULIDADES
ACÇÃO AUTÓNOMA
INCIDENTE
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
CONVOLAÇÃO
Sumário
Sumário (elaborado pela relatora) [1] I- Verificando-se erro na forma do processo impõe-se a convolação, oficiosa, para os termos processuais adequados – cfr nº3, do art. 193º, do CPC. II- Tal convolação só não terá lugar se entre a forma errada e a forma adequada existir uma incompatibilidade absoluta ou se do aproveitamento resultar uma diminuição das garantias de defesa do réu.
[1] Por opção da relatora, o presente acórdão não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem.
Texto Integral
Acordam os Juízes na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
1. P…, S.A, foi declarada insolvente por sentença proferida em 19/08/2014.
Em 06/06/2022, a insolvente intentou, por apenso à insolvência, acção declarativa de condenação contra a MASSA INSOLVENTE da sociedade P…, S.A e a COMISSÃO DE CREDORES da Insolvência da mesma sociedade, peticionando que:
1) seja “proibida a venda do Prédio misto, composto por rés-do-chão e primeiro andar, capela, dependência de rés-do-chão e primeiro andar, pátio e jardim, pomares e horta, com água nativa incluindo duas nascentes que têm a sua origem na Tapada …, com área coberta de 1.101,00 m2 e área descoberta de 40.419,00 m2, sita na Serra de …, com o respectivo aqueduto com servidão por diversas propriedades, sito em …, freguesia de …, concelho de …, a confrontar a norte, sul e nascente com Estrada e Caminhos e a poente com … e Outro, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º … e na matriz rústica sob o artigo n.º 2, Secção T, com o artigo … da freguesia de …, a F… V… ou a sociedade por si representada ou da qual o mesmo seja sócio, por violação expressa do disposto no artigo … número1 alínea b aplicável ao processo de insolvência por remissão do número 4 do artigo 164 do CIRE”;
2) seja “declarada a nulidade, por violação do disposto no artigo 812º, nº 3, alínea b), do CPC e ao abrigo do disposto no artigo 195º do Código de Processo Civil, designadamente, por preterição de uma formalidade que a lei prescreve – fixação do valor base do imóvel - e que pode influenciar o exame ou a decisão da causa, isto é, a medida da satisfação dos créditos dos credores reclamantes”;
3) seja declarada “a nulidade da deliberação tomada pela deliberação da Comissão de Credores, porque tem por objecto um acto nulo – proposta de alteração do valor base de venda do imóvel e modalidade da venda – ao abrigo do artigo 280º, nº 1, do Código Civil, o que argui para os devidos e legais efeitos”;
4) seja determinada “a proibição de alienação, por qualquer meio legalmente admissível, designadamente, por venda, do Prédio misto, composto por rés-do-chão e primeiro andar, capela, dependência de rés-do-chão e primeiro andar, pátio e jardim, pomares e horta, com água nativa incluindo duas nascentes que têm a sua origem na Tapada …, com área coberta de 1.101,00 m2 e área descoberta de 40.419,00 m2, sita na Serra …, com o respectivo aqueduto com servidão por diversas propriedades, sito em …, freguesia de …, concelho de …, a confrontar a norte, sul e nascente com Estrada e Caminhos e a poente com … e Outro, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º … e na matriz rústica sob o artigo n.º …, Secção T, com o artigo … da freguesia de …, com o valor patrimonial de € 802.929,75” e
5) seja “proibida a venda do Prédio misto, composto por rés-do-chão e primeiro andar, capela, dependência de rés-do-chão e primeiro andar, pátio e jardim, pomares e horta, com água nativa incluindo duas nascentes que têm a sua origem na Tapada …, com área coberta de 1.101,00 m2 e área descoberta de 40.419,00 m2, sita na Serra …, com o respectivo aqueduto com servidão por diversas propriedades, sito em …, freguesia de …, concelho de …, a confrontar a norte, sul e nascente com Estrada e Caminhos e a poente com … e Outro, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º … e na matriz rústica sob o artigo n.º …, Secção T, com o artigo … da freguesia de …, com o valor patrimonial de € 802.929,75, por valor base inferior a € 3.000.000,00 (três milhões de euros)”.
Alegou, em síntese, que, por consulta ao apenso que corre termos sobre a letra K – liquidação –, verificou que o imóvel apreendido à ordem da massa insolvente e descrito sobre a verba 3 do activo, terá sido vendido por proposta em carta fechada no dia 28 de Fevereiro de 2022. A mesma não foi notificada de qualquer diligência relativa à venda do imóvel senão em 14 de Dezembro de 2020.
O valor base de venda do prédio em questão era de € 3.000.000,00 e em 18.02.2022 o Sr. Administrador da Insolvência informou os autos que o mesmo foi objecto de proposta de compra no valor de € 2.200.000,00.
De Julho de 2021 a 02.03.2022 foram apresentadas três propostas pelo Sr. F… (nos valores sucessivos de €2.225.000,00, €2.200.000,00, e €2.225.000,00).
O leilão do imóvel promovido por leiloeira não cumpre as formalidades para garantir o valor mais elevado possível.
A A. não foi notificada dos actos e decisões do AI e da comissão de credores.
Só em 18.05.2022, o AI informou o tribunal do estado da liquidação, não tendo os credores e a devedora tomado conhecimento de qualquer das alegadas deliberações da comissão de credores a respeito do preço da venda, subsumindo-se o activo apreendido à previsão da al. g) do nº 3 do art. 161º do CIRE.
No caso ocorre violação dos arts. 824º e 825º do CPC, aplicável ex vi art. 164º do CIRE, porque depois de promovida a venda do imóvel por leilão electrónico promovido por leiloeira, o AI decidiu a venda do mesmo por proposta em carta fechada nos termos do art. 811º, nº 1, al. a) do CPC no âmbito da qual a única proposta apresentada foi de F… e pelo mesmo valor já apresentado em Julho de 2021, tendo só então apresentado cheque caução no valor de €445.000,00, sem que até à data tenha depositado o remanescente do preço.
Invocou que F… não poderia ter sido admitido a apresentar nova proposta relativamente ao mesmo bem, que o contrato de compra e venda não pode ser com ele celebrado por violação do art. 825º, nº 1 do CPC e que a deliberação da comissão de credores de alteração do valor base de venda do imóvel e modalidade de venda é nula nos termos do art. 280º, nº 1 do Código Civil, violando o art. 812º, nº 3, al. b).
Veio arguir nulidade nos termos do art. 195º do CPC, sustentando que o valor de mercado a que alude o art. 812º, nº 3 al. b) do CPC não depende de deliberação da comissão ou da assembleia de credores e tem que ser fixado em pressupostos reais e justificados e com a audição da devedora e dos restantes credores. O imóvel em questão tem mercado para ser vendido por valor superior a €2.225.000,00 e não inferior a €3M, pelo que a comissão de credores e o AI extravasaram dos seus poderes quanto à fixação do valor de venda do imóvel por violação do art. 3º, nº 3 do CPC.
Concluiu que, «face às nulidades invocadas, certo é que a venda que se encontra a ser “negociada” no âmbito do apenso K aos autos principais, não pode ser concretizada».
2. Após terem sido apresentadas contestações pelas RR., em 13/03/2014 teve lugar audiência prévia, tendo, no decurso da mesma, o Mmº Juiz a quo declarado que os autos continham todos os elementos para conhecer das excepções invocadas e do mérito da causa, por inexistir matéria controvertida com relevância para a respectiva decisão, pelo que, nos termos do artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, foi facultado às partes a discussão de facto e de direito.
Seguidamente foi proferido despacho saneador, julgando procedente a excepção dilatória de nulidade de todo o processo, por erro na forma do processo e, em consequência, foram as RR. absolvidas da instância (arts. 193º, 1, 196º, 200º, 2, 278º, 1, b), 576º, 2, 577º, b), CPC).
3. Inconformada a A./Insolvente interpôs recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Lisboa, peticionando que a decisão seja revogada e que se determine o prosseguimento dos autos para a apreciação dos pedidos formulados pela recorrente.
Formulou as seguintes CONCLUSÕES, que se reproduzem: A. O presente recurso tem como objecto a sentença prolatada pelo Tribunal da 1ª Instância que julgou verificada a excepção dilatória de erro na forma de processo e, em consequência desta decisão, absolveu as RR. da Instância. 47. São os seguintes os argumentos invocados pelo Tribunal “a quo” para sustentar a sentença prolatada. 48. Que a Insolvente “… pretende discutir nestes autos a regularidade de um processo de venda conduzido pelo Sr. Administrador de Insolvência, no âmbito do apenso de liquidação.” 49. Que “…qualquer decisão a proferir a respeito da validade ou invalidade do processo de venda afetaria não apenas os intervenientes nesta ação, mas todos os demais intervenientes/interessados do processo de insolvência, incluindo a Comissão de Credores e os demais interessados e intervenientes diretos na venda da verba em questão. 50. “Para além disso, a pretensão da autora (na eventualidade de ser atendida), refletir-se-ia também nos termos da liquidação e no seu resultado. 51. Face a todo o exposto, é manifesto o interesse na discussão concentrada de todas as questões que se possam repercutir na liquidação do âmbito de um processo de insolvência. 52. A esse respeito, prescreve o artigo 170º do CIRE que o processado relativo à liquidação constitui um apenso (próprio) ao processo de insolvência. Como anotam LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, in Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 638, a respeito deste preceito legal, «(…) quanto aos procedimentos necessários a assegurar a regularidade das alienações, nomeadamente no que se refere às intervenções da comissão de credores ou da própria assembleia em actos de especial relevo para o processo de insolvência, bem como as notificações devidas as credores garantidos e preferentes, tudo tem lugar em sede de processamento da liquidação e, por tal motivo, expressão no respectivo apenso. É também aí que o administrador deve cumprir, quanto à liquidação e seus documentos, as obrigações informativas a que está vinculado, por virtude do disposto no artigo 61º do Código». 53. Ou seja”, no entendimento do Tribunal a quo “toda e qualquer questão que se suscite no âmbito da venda de património da insolvente terá que ter expressão, ser tramitada e resolvida no âmbito do apenso de liquidação previsto neste artigo 170º do CIRE, ali se observando o princípio do contraditório, nos moldes julgados adequados pelo juiz. Nunca numa ação declarativa de condenação, sujeita a limitações de formalismo processual, necessariamente mais rígido. 54. Só esta interpretação se coaduna com o disposto no artigo 58º do CIRE, segundo o qual o administrador exerce a sua atividade sob a fiscalização do juiz que pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da atividade desenvolvida e do estado da administração e liquidação. 55. E também só desta forma pode ser cabalmente, em caso de necessidade, controlada a prestação de consentimento exigida pelo artigo 161º do mesmo CIRE. 56. Acresce que, se o CIRE não prevê diretamente a forma de apreciação da regularidade da venda, a mesma encontra necessariamente resposta nas normas do processo civil que não contrariem as disposições do CIRE (artigo 17º do CIRE). Impõe-se a aplicação subsidiária, a respeito da venda do património da sociedade, das disposições dos artigos 811º e seguintes, sendo que qualquer irregularidade que surja nesse procedimento teria que ser suscitada no âmbito do processo em que decorre a venda – neste caso, no apenso de liquidação. 57. Não faz, pois, qualquer sentido que as questões que se suscitem no âmbito de uma liquidação em processo de insolvência possam ser apreciadas em ações dispersas, com tramitação autónoma e própria e sujeitos processuais delimitados, ainda que apensas ao processo de insolvência, sob pena de poder vir a ocorrer contraditório de julgados a respeito da mesma liquidação de uma sociedade declarada insolvente. 58. Em suma, impõe-se concluir que as eventuais irregularidades ocorridas no âmbito de procedimentos de venda no processo de insolvência devem ser todas suscitadas perante o juiz da insolvência, no próprio apenso de liquidação do ativo da insolvente e aí tramitadas e tratadas. Ocorre, pois, erro na forma do processo. 59. O erro na forma de processo é uma nulidade de conhecimento oficioso (que no caso acabou também por ser suscitada) e determina a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime da forma estabelecida por lei, salvo se daí resultar uma diminuição de garantias do réu (art.º 196º e 193º do Código de Processo Civil). 60. No caso presente, afigura-se-nos não ser possível o aproveitamento de atos do processo nos moldes pretendidos pelo legislador, uma vez que tal pressupõe sempre o prosseguimento de uma ação, embora de natureza diversa. 61. Ora tal não é possível, visto que não se pode aproveitar como ação aquilo que deveria ter sido suscitado, de forma incidental, num processo já em curso e que, em qualquer caso, nunca levaria à condenação ou absolvição dos sujeitos passivos desta ação, mas apenas a decisões jurisdicionais sobre uma venda em concreto, a que ficariam submetidos todos os intervenientes e interessados no processo de insolvência.” 62. Está em causa, pois, no presente recurso, tão só saber se os pedidos formulados pela Insolvente devem ocorrer em acção declarativa comum de condenação, e por apenso aos autos de insolvência ou, pelo contrário, deveriam ter sido suscitados no âmbito do apenso de liquidação dos bens apreendidos à ordem da Massa Insolvente. 63. E, neste caso, ainda, se deve ou não haver lugar ao aproveitamento dos actos praticados pela Insolvente no âmbito da acção declarativa por si proposta e, consequentemente, o Tribunal apreciar as questões aqui suscitadas. 64. O artigo 161º do CIRE tem como objecto a previsão de todos os actos que carecem de consentimento da Comissão de Credores ou da Assembleia de Credores para que sejam eficazes no âmbito do processo de insolvência. 65. O artigo 164º do CIRE rege o acto da venda, propriamente dito. 66. Em ambos os casos, parece claro, pela aplicação dos princípios gerais do direito e, concretamente, do regime processual civil, aplicável nos termos do disposto no artigo 17º, nº do CIRE que face à violação do disposto no artigo 161º ou 164º do CIRE, susceptível de configurar uma nulidade ou irregularidade, qualquer credor ou insolvente possa vir a invocar a mesma, ao abrigo do disposto no artigo 195º do CPC, desde que verificados os seus pressupostos. 67. Parece também não haver dúvidas que tal requerimento deverá ser apresentado no âmbito do apenso da liquidação dos bens que integram a massa insolvente. 68. Outra questão diferente, sobre a qual a sentença de que se recorre não se pronuncia, é a de saber se, excluído o regime das nulidades ou irregularidades processuais cometidas, e querendo deduzir pretensão por violação da lei substantiva ou adjetiva contra, designadamente, o Administrador de Insolvência, a Massa Insolvente ou a Comissão de Credores, a mesma deva ser deduzida, também, por requerimento ou “como incidente” no apenso de liquidação ou ao apenso de liquidação, como configura a sentença de que se recorre, com recurso ao artigo 170º do CIRE. 69. Ora, com o devido respeito que é muito por entendimento diferente, nos presentes autos não está apenas em causa o disposto no artigo 161º e a cominação prevista no artigo 163º do CIRE. 70. Com efeito, um dos pedidos formulados pela Insolvente é o de o Tribunal “Declarar verificada a nulidade da deliberação tomada pela deliberação da Comissão de Credores, porque tem por objecto um acto nulo – proposta de alteração do valor base de venda do imóvel e modalidade da venda – ao abrigo do artigo 280º, nº 1, do Código Civil, o que argui para os devidos e legais efeitos.” 71. O que pressupõe, naturalmente, que a Insolvente entende que o consentimento da Comissão de Credores é nulo, com os fundamentos expendidos na sua petição inicial, por violação da lei substantiva. 72. Assim, não se trata de saber se o AI vendeu, sem consentimento da Comissão de Credores, “… bem da empresa por preço igual ou superior a (euro) 10000 e que represente, pelo menos, 10% do valor da massa insolvente, tal como existente à data da declaração da insolvência, salvo se se tratar de bens do activo circulante ou for fácil a sua substituição por outro da mesma natureza.”, conforme dispõe o artigo 161º, nº 3, alínea f) do CIRE, mas, 73. Saber se a venda do Prédio misto, composto por rés-do-chão e primeiro andar, capela, dependência de rés do-chão e primeiro andar, pátio e jardim, pomares e horta, com água nativa incluindo duas nascentes que têm a sua origem na Tapada …, com área coberta de 1.101,00 m2 e área descoberta de 40.419,00 m2, sita na Serra de …, com o respectivo aqueduto com servidão por diversas propriedades, sito em …, freguesia de …, concelho de …, a confrontar a norte, sul e nascente com Estrada e Caminhos e a poente com … e Outro, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º … e na matriz rústica sob o artigo n.º …, Secção T, com o artigo … da freguesia de …, com o valor patrimonial de € 802.929,75 foi efectuada em cumprimento do disposto no artigo 164º do CIRE, o qual remete para o regime jurídico previsto no artigo 811º e seguintes do CPC. 74. Designadamente, e muito sinteticamente, saber se aquele imóvel em concreto poderia ter sido vendido com o assentimento tácito da Comissão de Credores, com o valor base muito inferior aquele que tinha sido anteriormente aprovado por aquela mesma Comissão e se o poderia ter sido à mesma pessoa singular que apresentou três propostas (a primeira, mediante licitação, sem que tenha apresentado o cheque para depósito correspondente a 20% do preço), a segunda, mediante licitação por preço inferior e, a terceira, mediante proposta por carta fechada com o preço já indicado na sua primeira proposta, que não cumpriu por falta de entrega do cheque a que se fez referência). 75. Bastará analisar a causa de pedir desenvolvida pela Recorrente e na qual entroncam os pedidos por si formulados contra as RR., Recorridas, para concluir-se que, numa primeira fase, a Recorrente faz um enquadramento das “negociações” (o que inclui comunicações ao processo e consentimento prestado pela Comissão de Credores) com vista à concretização da venda do identificado imóvel e, 76. Posteriormente, a Recorrente invoca a violação do disposto no artigo 164º do CIRE, quanto à concreta venda do prédio misto sub judice. 77. Certo é que, estamos perante regimes jurídicos diferentes e não parece poder concluir-se que o não cumprimento pelo AI do disposto no artigo 164º do CIRE, nos termos configurados pela Recorrente, dê lugar à arguição de uma ou mais irregularidades previstas no artigo 195º do CPC, a submeter no âmbito do processo de liquidação. 78. Não existindo qualquer regime específico previsto no CIRE, para que se submeta a Tribunal a apreciação das questões jurídicas que consubstanciam a causa de pedir e os pedidos formulados pela Recorrente no âmbito dos presentes autos, nada mais há a fazer do que recorrer, nos termos do invocado artigo 17º, nº 1, do CIRE, ao regime supletivo consagrado no Código de Processo Civil, mais concretamente ao disposto no artigo 10º, nº 1, 2 e 3, alínea b), do CPC. 79. Com efeito, o que a Recorrente pretende é a condenação das Recorridas à prestação dos factos constantes no seu peditório, uma vez que comportamento inverso, pressupõe a violação de um ou mais direitos. 80. Esta acção declarativa comum de condenação terá, forçosamente, de correr por apenso ao processo de insolvência em curso e, ainda que se entenda que deverão ser chamados ao processo (conforme parece decorrer da sentença de que se recorre) os demais credores, estes, sim, seriam chamados através de um incidente da instância, que se aplicasse ao caso concreto. 81. Parece não restarem dúvidas que a sentença de que se recorre não decide de forma fundamentada e de acordo com os regimes jurídicos aplicáveis – CIRE e CPC – quando decide declarar verificada a excepção dilatória de erro na forma do processo, uma vez que, como é sabido, na ausência de regime especial concretamente aplicável, o legislador determina que o intérprete se socorra do regime subsidiariamente aplicável, a saber, o CPC e mais concretamente o invocado artigo 10º, nº 1, 2, 3, alínea b). 82. Aliás, pelo menos o Tribunal da Relação de Évora, em Acórdão proferido no âmbito do processo 3223/13.9TBSTB-D, citado em inúmeros outros Acórdãos proferidos, nomeadamente, por esse Tribunal da Relação e pelo Tribunal da Relação do Porto decidiu que: 83. “Não consagrando o CIRE meio processual para o efeito, tanto a pretensão de declaração de ineficácia dos actos do Administrador da Insolvência, deitando mão do disposto no n.º1 do art.º 163º do CIRE, como da sua responsabilização nos termos atrás expendidos, por violação do disposto nos n.ºs 2 e 3, do art.º 164º do CIRE, têm que ser deduzidas em acção declarativa que correrá por apenso ao Processo de Insolvência (vide CIRE Anotado, Carvalho Fernandes e João Labareda, 3ª Ed., págs. 347, 614 e 615). Não podendo assim o Juiz do Processo decidir essa matéria de forma incidental, no processo principal.” B. C. Isto é, toda a causa de pedir – factos principais alegados pela Recorrente – assentam na circunstância do AI ter violado o disposto no artigo 164º do CIRE, que remete para o regime jurídico previsto nos artigos 811º e seguintes do Código de Processo Civil. D. E, relativamente a este facto – violação das regras processuais aplicáveis à venda dos bens imóveis apreendidos à ordem da massa insolvente – inexistindo um meio processual adequado no CIRE, aplica-se, por via do disposto no artigo 17º, nº 1, deste diploma legal, o disposto no Código de Processo Civil, E. O que nos conduz à possibilidade, e aliás, exigibilidade de ser instaurada acção declarativa comum de condenação com vista à apreciação judicial da pretensão de quem tenha legitimidade processual para o efeito. F. Este entendimento não é isolado. G. É um entendimento jurisprudencial e doutrinariamente reconhecido. H. O que determina, de imediato, que não haja qualquer lugar ao erro na forma de processo e, consequentemente, deva ser revogada a sentença que decretou verificada esta excepção dilatória.
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As RR./recorridas contra-alegaram, CONCLUINDO que o recurso deve ser julgado improcedente.
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Após a admissão do recurso, em 31/05/2024 os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação.
Em 15/07/2024, o Sr. Administrador da Insolvência juntou ao apenso de Liquidação – apenso K -, requerimento no qual declarou que “no que tange à venda do imóvel apreendido sob a verba 3 – Quinta … –, cujo negócio está na origem do apenso W, cumpre referir que a proponente S… I… desistiu do negócio (v. doc. anexo). Nesta medida, afigura-se que o referido apenso W padece de inutilidade superveniente, o que se requer a V.ª Ex.ª. (…)”
Foi então solicitado ao tribunal da 1ª instância informação sobre a decisão proferida relativamente ao requerimento apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência no dia 15/07/2024 no apenso de Liquidação – apenso K -, despacho esse que foi o seguinte: “Tomei conhecimento. Decorrido que seja o prazo estabelecido no art. 61º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), sem que tenha sido apresentada informação sobre o estado da administração e liquidação dos bens integrados na massa insolvente, notifique-se o Sr. Administrador da Insolvência para o efeito”.
Por se afigurar que a desistência da venda, aceite pelo AI, configuraria uma situação de impossibilidade superveniente da lide, foi determinado que se ouvissem as partes no que tal concerne nos termos do artº 655º, nº1, do C.P.Civil, que mereceu resposta com requerimentos (durante e após o prazo de 10 dias) por parte da Autora Apelante.
Em 22/11/2024 foi proferido despacho pela relatora, declarando extinta a instância do recurso por impossibilidade superveniente da lide.
Não se conformado com a decisão da relatora, a recorrente P…, S.A., deduziu Reclamação para a Conferência e em 14/01/2025 foi proferido acórdão confirmando a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide.
4. A A. interpôs, então, recurso de revista excepcional para o STJ, tendo por base o art. 672º, 1, a), do CPC, visando a revogação do acórdão recorrido e a determinação em última instância da apreciação da apelação interposta.
5. Subidos os autos ao STJ e por iniciativa processual oficiosamente desencadeada por aquele douto tribunal junto do tribunal de 1.ª instância (12/3/2025), foi proferido despacho de fixação do valor da causa em € 30.00,01, com data de 19/5/2025, transitado em julgado.
6. Em 9 de Julho de 2025, foi proferido Acórdão pelo STJ, julgada parcialmente procedente a Revista, confirmando a declarada impossibilidade superveniente da lide no que concerne aos pedidos descritos sob os nºs 1, 4 e 5 e determinando a devolução dos autos a esta Relação “para conhecimento da apelação no que respeita aos pedidos não afectados pela extinção da instância, a saber, os pedidos descritos sob os n.os 2 e 3 do petitório da Autora, em face do decidido pelo despacho saneador em 1.ª instância”.
*
Remetidos os autos a este tribunal, foram colhidos os vistos.
* II- Questões a decidir:
Atento o que ficou referido e em face do decidido pelo douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, importa decidir se se deve manter a decisão proferida pelo Mmº Juiz da 1ª instância que absolveu as RR. da instância relativamente aos pedidos deduzidos sob os nºs 2 e 3 do petitório da A./apelante por erro na forma do processo.
* III- Fundamentação
A) De Facto
Com relevo para a decisão a proferir, encontram-se provados os factos vertidos no relatório que antecede e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
*
B) O Direito
Invocou a recorrente que os pedidos por si deduzidos só o podem ser em acção declarativa de condenação instaurada por apenso aos autos de insolvência. Sustentou ainda que, mesmo a entender-se que as nulidades invocadas deveriam ter sido suscitadas de forma incidental no apenso de liquidação, deve ter lugar o aproveitamento dos actos já praticados – Conclusões 62 e ss.
Como resulta dos autos, foi peticionado que seja: (…) 2- declarada a nulidade, por violação do disposto no artigo 812º, nº 3, alínea b), do CPC e por preterição de uma formalidade que a lei prescreve – a aceitação da venda do imóvel pelo valor de € 2.225.000,00; 3- declarada “a nulidade da deliberação tomada pela deliberação da Comissão de Credores, porque tem por objecto um acto nulo – proposta de alteração do valor base de venda do imóvel e modalidade da venda – ao abrigo do artigo 280º, nº 1, do Código Civil” (são estes os dois pedidos, considerando decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, não afectados pela extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide). «O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.» – art. 1º, nº1, do CIRE.
É um processo especial, o qual, quanto à sua natureza, pode ser considerado misto, com uma fase marcadamente declarativa (até à declaração de insolvência) e outra claramente executiva (após a declaração de insolvência com liquidação de todo o património do devedor que integra a massa insolvente para satisfação dos credores ou através da aprovação de um plano de insolvência).
Nos termos do nº1 do art. 17º do CIRE, o processo de insolvência é regido pelas regras deste código e, subsidiariamente pelo Código de Processo Civil, «em tudo o que não contrarie as disposições do presente código.».
A liquidação do activo insere-se, claramente, na fase “executiva” do processo de insolvência e está orientada directamente para a finalidade principal deste processo: conversão do património que integra a massa insolvente numa quantia pecuniária a distribuir pelos credores.
Atento o princípio da tutela jurisdicional efectiva, constitucionalmente consagrado nos nºs. 1 e 5, do artº 20º da Constituição da República Portuguesa, não pode deixar de ser reconhecido à parte alegadamente lesada o direito a arguir, no incidente de liquidação da massa insolvente, vícios procedimentais, perante o Juiz do Processo.
Deste modo, os intervenientes nos autos de liquidação, alegadamente prejudicados, podem reagir relativamente aos actos praticados nesta fase, nomeadamente invocando as regras gerais sobre a nulidade dos actos, nos termos dos artºs. 195º e 197º, do Cód. de Processo Civil, ex vi do artº. 17º, do CIRE.
Tal invocação deve ter lugar no próprio apenso de liquidação, uma vez que estarão em causa actos praticados nesses próprios autos, com a intervenção dos interessados aí também intervenientes.
Assim e se no processo executivo, o pedido de declaração de nulidades alegadamente cometidas na fase da venda executiva não pode deixar ser processualmente configurado como incidente, o mesmo se impõe aplicar à venda realizada no âmbito da insolvência.
As pretensões da A., ora apelante, relativas à declaração de nulidade alegadamente cometida na fixação do valor base do imóvel apreendido para a massa insolvente e da deliberação da Comissão de Credores que deliberou sobre a “proposta de alteração do valor base de venda do imóvel e modalidade da venda”, deviam ter sido deduzidas através de impugnação incidental no próprio apenso de liquidação e não mediante acção declarativa autónoma, sob a forma de processo comum.
Estabelece o artº 193º do C.P.Civil: “1 - O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei. 2 - Não devem, porém, aproveitar-se os atos já praticados, se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu. (…)”
Como refere Miguel Teixeira de Sousa, Miguel Teixeira de Sousa, em anotação a este artigo em CPC ONLINE, versão de 2025.09, consultada em 01.10.2025, in https://blogippc.blogspot.com/: “4. (a) O nº 1 estabelece, numa perspectiva de economia processual, duas regras: (i) a anulação incide apenas sobre os actos que não possam ser aproveitados, nomeadamente porque eles implicam uma diminuição das garantias do réu (nº 2); (ii) devem ser praticados apenas os actos necessários para que o processo se aproxime, tanto quanto possível, da forma estabelecida pela lei. (b) Qualquer acto praticado por qualquer das partes – incluindo, p. ex., a p.i. – pode ser aproveitado ou não aproveitado. O acto que não pode ser aproveitado deve ser repetido.”
Dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Sousa, in CPC Anotado, vol. I, 2ª ed., p. pág. 246: “O erro na forma do processo importa somente a inatendibilidade dos atos praticados que não possam ser aproveitados, praticando-se os necessários a que, tanto quanto possível, o processo se aproxime da forma prevista na lei. O limite a observar é sempre o das garantias da defesa, não podendo aquele aproveitamento traduzir-se numa diminuição dessas garantias”. In casu, embora estejamos perante espécies processuais estruturalmente diferentes (uma acção declarativa versus um incidente de impugnação), entendemos que os mesmos não se apresentam como irredutivelmente incompatíveis, na medida as nulidades invocadas podem ser declaradas no foro incidental. Por outro lado, o aproveitamento dos actos já praticados na presente acção não implicará uma diminuição das garantias das Rés Massa Insolvente, representada pelo Administrador da Insolvência e Comissão de Credores. Estas foram citadas para contestar e apresentaram contestações, no prazo estabelecido. Nesta acção não é peticionada a condenação das RR., mas tão só a declaração de nulidade dos actos supra referidos.
Assim, verificado o erro na forma do processo e não resultando que do aproveitamento dos actos já praticados resulte uma diminuição de garantias das rés, impõe-se tal aproveitamento e, em consequência, a revogação do despacho recorrido que julgou procedente a excepção dilatória de nulidade de todo o processo e absolveu as RR. da instância. Deverão igualmente ser consideradas a petição inicial e as contestações, prosseguindo os autos como incidente, tendo como o objecto o peticionado sob os referidos pontos 2) e 3) do petitório da A. - cfr artºs 292º a 295º do C.P.Civil ex vi do nº 1 do artº 17º do CIRE supra citado.
* IV – Decisão
Nestes termos, os juízes desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa, acordam em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e, convolando o suscitado nos autos em incidente de nulidade, determinando o prosseguimento dos autos, para conhecimento dos pedidos não afectados pela extinção da instância, em conformidade.
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As custas seriam a cargo da recorrente - uma vez que tirou proveito do recurso – artº 527º, nº1, in fine, do C.P.Civil. Todavia, as mesmas não são devidas, dado a recorrente se encontrar isenta de custas – artº 4º, 1, alínea u), do Regulamento das Custas Processuais.
Registe e Notifique.