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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DECISÃO FINAL
REQUISITOS
NEGLIGÊNCIA
Sumário
I- Não padece de nulidade, por violação do disposto no art.º 615º, n.º 1, als. c) e d), do CPC, a decisão final proferida no procedimento de exoneração do passivo restante que decide recusar a exoneração, afirmando um incumprimento negligente por parte do devedor, em contrário ao parecer final do fiduciário e sem que tenha sido requerido por qualquer credor tal recusa. II- Deduzido pedido de exoneração do passivo restante, se, após o trânsito em julgado - da decisão que fixou o rendimento disponível ao insolvente, das decisões que posteriormente o alteraram e da decisão que prorrogou o prazo da cessão - o insolvente, durante todo o período de cessão, não procedeu à entrega do valor exato que daqueles despachos decorria estar obrigado a ceder, em cada mês, evidenciado resulta o incumprimento de uma das obrigações impostas no período de cessão, que é, precisamente, a de entrega dos valores devidos. III- A garantia de estabilidade daqueles despachos, que o caso julgado obriga, vinculando o juiz às decisões já proferidas e transitadas nos autos, impede que o insolvente possa pretender entregar o valor que entende ser-lhe possível e que não resulta, na verdade, daqueles ditos despachos. IV- Não obstante, daquela não entrega não resulta, por si só, justificada a recusa de concessão de exoneração do passivo restante, pois que o incumprimento tem de resultar de uma concreta atuação dolosa ou gravemente negligente por parte do insolvente. V- Se do teor dos relatórios apresentados, informações reportadas pelo fiduciário, e diversos requerimentos que o insolvente dirigiu aos autos, em face das circunstâncias de vida ali espelhadas, não é possível afirmar, sem margem para dúvidas, uma intencional não entrega dos valores em causa, uma conduta de desresponsabilização total, ou uma falta grave e indesculpável do insolvente, justificativas daquelas não entregas, não vemos razão para recusar ao insolvente a exoneração do passivo restante. VI- Se cumprido o 244.º n.º 1 do CIRE, os credores nada vêm opor nos autos, emitindo o fiduciário parecer final em que dá conta que o insolvente durante todo o período de cessão sempre prestou todas as informações solicitadas, alertando para as dificuldades que o mesmo enfrentou em fazer face às despesas necessárias atento os custos elevados de vida nos Países Baixos, tendo o insolvente sempre informado os rendimentos obtidos e justificado a não entrega parcial do rendimento disponível, e tendo, ainda assim, entregado à fidúcia o montante total de €25.882,60, importa concluir que não está demonstrado nos autos que o incumprimento do insolvente é doloso ou gravemente negligente. VII- Ainda que não se deva premiar qualquer incumprimento, certo é que tem que existir evidenciada nos autos uma negligência grave; negligência que não se presume, nem se pode presumir, mas que tem que ter assento nos factos que o tribunal chama à colação para a decisão que se lhe impõe proferir, o que deve fazer pela análise de todo o comportamento do devedor durante o período de cessão, não se bastando para aquela recusa a existência de um comprovado incumprimento.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I-/ Relatório:
1. AA, com demais sinais nos autos, apresentou-se à insolvência, pedindo também a exoneração do passivo restante.
2. Decretada a insolvência, foi, posteriormente, por despacho proferido em 24-10-2017, liminarmente admitido o pedido de exoneração.
3. Decorrido o período de cessão, incluindo a prorrogação autorizada nos termos do art.º 242.º-A do CIRE, foi dado cumprimento ao estatuído no art.º 244.º n.º 1 do mesmo código, notificando-se devedor, fiduciário e credores da insolvência, para se pronunciarem, querendo, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
4. Pronunciando-se, o insolvente veio aos autos defender que não existe fundamento para que lhe seja recusada a exoneração, uma vez dos mesmos não resulta que qualquer incumprimento ocorrido tivesse resultado de uma atuação dolosa ou gravemente negligente da sua parte, conforme o exige o art.º 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE. Mais alega não concordar com o valor que no relatório final é mencionado como devido à fidúcia, pois que tal como resulta do acórdão do TRL, proferido no Processo n.º 35/13.3TBPVC.L1-1, em 06-12-2022, havendo prorrogação o devedor não tem de pagar a quantia que estava em falta à fidúcia, devendo apenas continuar a entregar, no período em causa, o valor que foi fixado como correspondendo ao rendimento disponível. Assim, durante o período de prorrogação (20 meses), apenas teria que ceder o seu rendimento disponível, nos termos anteriormente fixados, e não pagar a quantia que estava em falta, o que importaria apenas num saldo devedor por entregar, de €6.578,37, que não foi cumprido por efetiva impossibilidade e não por negligência. Alertou ainda para o facto de atendendo às dificuldades com a habitação, foi obrigado a mudar de casa seis vezes, e ainda assim sempre obrigado a suportar rendas altas para poder viver, facto que se deve à crise no mercado do arrendamento em Amsterdão.
5. Em parecer final, o Sr. Fiduciário, dando conta que desde o último relatório o insolvente procedeu ainda a mais três entregas, no valor global de €1500,00, consignou então que «O insolvente durante todo o período da exoneração do passivo restante sempre prestou todas as informações solicitadas pelo Fiduciário, aliás, encontra-se explanado nos presentes autos a sua intenção de entregar o rendimento disponível e a sua dificuldade em fazer face às despesas do dia a dia com o rendimento indisponível fixado, atento os custos elevados nos Países Baixos. De facto, é entendimento do signatário que não houve negligência grave por parte do insolvente, uma vez que sempre informou dos rendimentos obtidos e justificou a não entrega parcial do rendimento disponível. Acresce ainda que o insolvente procurou melhores condições remuneratórias e emigrou com a intenção de pagar aos seus credores, tendo entregado à fidúcia o montante total de €25.882,60. Concluímos assim que, pese embora a violação na falta de entrega de todas as quantias a que estava adstrito, o insolvente não o fez diretamente por dolo, mas apenas por insuficiência de rendimento para fazer face às suas despesas básicas conforme comprovado nos autos ao longo do período de cessão. NESTES TERMOS, é entendimento do fiduciário que deverá ser concedida a exoneração do passivo restante do insolvente».
6. Por despacho proferido em 20/03/2025 foi então proferida a seguinte decisão:
Nesta conformidade, e por violação com grave negligência dos deveres previstos na alínea c), do n.º 4, do art.º 239.º, do CIRE, em conformidade com o disposto nos artigos 24.3º, n.º 1, al. a) e n.º 3, e 244º n.º 2, do CIRE, decido recusar a exoneração do passivo restante que foi deferido liminarmente ao insolvente Paulo Manuel Nunes Santos Gomes.
Notifique, registe e publique, nos termos previstos no artigo 247º do CIRE.
7. Não se conformando com o teor do despacho que recusou a exoneração, dele apelou o insolvente, finalizando com as conclusões que aqui se sintetizam:
«(i) a decisão recorrida encontra-se afetada por uma incorreta apreciação da matéria de facto e uma aplicação defeituosa do direito, infringindo os artigos 239.º, 243.º, n.º 1, al. a) e 244.º do CIRE, bem como os artigos 607.º, n.ºs 3 e 4 e 615.º, n.º 1, alíneas b) e d) (ex vi artigo 613.º, n.º 3), todos do Código de Processo Civil.
(ii) O tribunal recusou a exoneração com base na violação, por grave negligência, do disposto no artigo 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE, o que afirma genericamente, sem tanto sustentar, contendo os autos elementos, nomeadamente relatórios e parecer do Sr. Fiduciário, que apontam para a inexistência de dolo ou negligência, não decorrendo o incumprimento ocorrido de vontade própria, mas de uma impossibilidade real, devidamente justificada ao longo do processo, sem esquecer que, ainda assim, o insolvente entregou € 24.382,60 à fidúcia, valor significativo, conseguido graças ao esforço de trabalhar no estrangeiro, longe da família.
(iii) Em caso de prorrogação do período de cessão, o devedor não tem de repor o que ficou em dívida anteriormente, devendo apenas continuar a entregar o rendimento disponível, sendo que, durante o período de abril/2022 a novembro/2023 (20 meses), o insolvente deveria ter entregado €19.832,97, tendo entregado €13.939,60, resultando um saldo devedor de €5.893,37.
(iv) O insolvente sempre colaborou com os fiduciários, comunicando regularmente rendimentos e transferências, bem como episódios que limitaram a sua capacidade de trabalho, como aconteceu quando sofreu um acidente de trabalho e lhe foi diagnosticado um burnout.
(v) O insolvente entregou voluntariamente a totalidade dos subsídios de férias (sendo que não se aufere subsídio de Natal nos Países Baixos) em sacrifício pessoal, impedindo-o de visitar a sua família em Portugal, e que muito contribuiu para os distúrbios mentais e emocionais sofridos. O custo de vida em Amsterdão, onde reside o insolvente, comprometeu a sua capacidade de entrega. O insolvente cumpriu na medida das suas possibilidades.
(vi) Não foi, pois, apurado dolo ou negligência grave, nem prejuízo efetivo para os credores;
(vii) Sem prescindir, a decisão recorrida padece de nulidade, pois que a recusa da exoneração foi decidida contra o parecer do fiduciário e sem que os credores tivessem manifestado a sua oposição, não podendo assim o tribunal recorrido decidir como decidiu, conhecendo de questões que lhe estavam vedadas (art.º 615.º, n.º 1, al. d) do CPC).
(viii) De acordo com a jurisprudência do TRG, a aplicação do art.º 243.º, n.º 1 do CIRE depende de requerimento dos interessados. O juiz não pode conhecê-lo oficiosamente, nem mesmo na decisão final da exoneração.
Nestes termos, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o Douto Despacho recorrido e substituído por outro que conceda ao Insolvente/Recorrente a exoneração do passivo restante, com as legais consequências, fazendo-se assim VERDADEIRA JUSTIÇA».
8. Não foram apresentadas contra-alegações nos autos.
9. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
*
II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, como decorre dos arts.º 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões essenciais que se colocam à apreciação deste Tribunal, pela ordem indicada em recurso, consistem em:
(i) aferir se estão preenchidos os pressupostos legais que permitem a recusa definitiva da exoneração do passivo restante do insolvente, conforme foi concluído na decisão recorrida, aferindo, essencialmente, se o insolvente agiu de forma gravemente negligente no incumprimento da sua obrigação de entrega de rendimentos;
(ii) aferir se a decisão recorrida padece de nulidade, por a recusa ter sido decidida contra o parecer do fiduciário e sem que os credores tivessem manifestado a sua oposição, não podendo o tribunal recorrido decidir como decidiu, conhecendo de questões que lhe estavam vedadas e com a afirmação genérica e sem sustentação fática de que o insolvente agiu de forma gravemente negligente (arts.º 243.º, n.º 1 do CIRE e 615.º, n.º 1, als. b) e d) do CPC).
*
III-/ Fundamentação de facto:
Com relevo para a decisão tomada o tribunal recorrido elencou a seguinte factualidade:
1- Durante o período normal de cessão, o insolvente não entregou a totalidade dos valores devidos à fidúcia, comprometendo-se sempre a efetuar o pagamento em prestações.
2- Por despacho de 20-04-2021, a requerimento do insolvente foi alterado o rendimento indisponível para 3 SMN.
3- Por despacho de 22-09-2022, a requerimento do insolvente foram excluídas do rendimento disponível as despesas de saúde apresentadas no valor de €9.869,92.
4 - Findo o período normal de cessão, permanecia em dívida o valor total de €23.199,94.
5- Por despacho de 26-10-2023 foi decidida a «prorrogação do prazo da cessão de rendimentos até que complete 6 anos, com pagamento da quantia em dívida em prestações mensais, iguais e sucessivas, consignando-se que a prorrogação do prazo de cessão de rendimentos implica a continuação da cessão dos rendimentos que venham a ser auferidos que ultrapassem o rendimento indisponível fixado.»
6- Findo o período de cessão, incluindo o ano de prorrogação, ficou em dívida a quantia total de €42.538,45.
7- Durante todo o período de cessão, incluindo o ano de prorrogação, o insolvente fez entregas parcelares no valor total de €24.382,60.
8- Posteriormente, o insolvente procedeu ainda a entregas no valor de €1.500,00, ficando em dívida €41.038,45, dos quais €5.893,37 dizem respeito apenas ao período da prorrogação.
Dos autos, e com relevância para a decisão do presente recurso, resulta ainda que:
9- No despacho inicial proferido em 24-10-2017 foi fixado o valor equivalente a 2 vezes o salário mínimo nacional, o excluído do rendimento disponível.
10- Em 23-02-2018, o insolvente veio aos autos requerer a fixação de, pelo menos, três salários mínimos nacionais, para efeito de cessão de rendimento indisponível, compatível com as condições de vida do país onde encontrou trabalho (Holanda), e adequado às suas necessidades básicas e condignas, em observância do disposto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b) do CIRE. Ali deu conta que com o seu vencimento, liquido de €2.100,00, tinha que suportar as suas despesas, com a renda de um quarto, no valor de €610,00; eletricidade, água e gás; seguro de saúde, no valor mensal de €141,57, a que acresce uma franquia anual de €385,00; passe mensal de transporte, no valor de €93,00; medicação mensal obrigatória, no valor de €130,00; telecomunicações no valor de €19,99; alimentação, com um gasto médio mensal no valor de €450,00 e um custo acrescido com aulas de holandês para se valorizar profissionalmente, dado que trabalha num hotel sendo necessária a interação com terceiros no seu local de trabalho. Ao que acresce ainda despesas com vestuário, consultas e medicação ocasional não cobertas pelo seguro de saúde, como por exemplo dentista, viagens a Portugal, e €150,00 que por vezes consegue enviar para ajudar a sua mãe, surda-muda, que vive sozinha em Portugal, com uma pensão de reforma de cerca de €300,00, tendo ela de fazer face a todas as despesas correntes, incluindo renda, alimentação e medicamentos.
11- Por decisão proferida em 06-09-2018, foi parcialmente deferido o assim requerido, ali se considerando que pese embora despesas invocadas numa média cerca de €1.600,00, impõem-se alguns sacrifícios e reajustamentos pelo devedor, fixando-se o rendimento disponível em tudo o que excedesse a quantia mensal de €1.500,00.
12- Em relatório apresentado pelo fiduciário, à luz do n.º 2 do art.º 240.º do CIRE, datado de 26-10-2018, este informou que no decurso de um ano (o primeiro) desde o encerramento do processo para efeitos de início do período de cessão de rendimentos, o insolvente nunca efetuou qualquer cessão.
13- Em relatório apresentado pelo fiduciário, à luz do n.º 2 do art.º 240.º do CIRE, datado de 28-10-2019, este informou que decorrido o segundo ano de período de cessão, apenas em agosto/2019, o insolvente iniciou o cumprimento de um plano de entregas mensais de €200,00, destinado à regularização das suas responsabilidades para com a Massa Insolvente, sendo que, desde a data de encerramento do processo para início do período de cessão até novembro/2018, ascendia a €11.784,00 o valor em dívida. Por essa razão, informa, trocou correspondência quer com o insolvente quer com a sua mandatária, alertando para a insuficiência do valor da mensalidade com que pretendia regularizar o valor daquela dívida, tendo-lhes feito ver que as responsabilidades do insolvente não se restringiam à dívida calculada até novembro de 2018, mas a todo o período de cinco anos em curso.
14- Em 04-02-2020, o tribunal, considerando que o insolvente não entregou a fidúcia todas as quantias devidas, mandou notificar o mesmo para o alertar das suas obrigações durante o período de cessão e para que o mesmo, no prazo máximo de 10 dias, contactasse o fiduciário, prestando todas as informações que por este fossem solicitadas, entregando, também, os montantes que integrem o rendimento disponível em falta sob pena de ter que se ponderar a cessação antecipada.
15- Em 10-02-2020, o fiduciário veio aos autos alertar para o facto de o insolvente, no final do segundo ano de cessão, ter responsabilidades para com a Massa Insolvente que ascendiam a €20.258,01, tendo nos primeiros 3 meses do 3.° período de cessão cedido mensalmente a quantia de €250,00, tendo sido proferido novo despacho nos mesmos termos elencados em 14.
16- Em relatório apresentado pelo fiduciário, à luz do n.º 2 do art.º 240.º do CIRE, datado de 02-11-2020, este informou que decorrido mais um ano da fase de cessão de rendimentos do insolvente - o terceiro - certo é que o plano mencionado no último relatório não teve qualquer concretização prática, uma vez que as cessões de rendimentos efetuadas são insuficientes, não cobrindo nem o valor a entregar em cada mês nem o montante em dívida para com a massa insolvente. Mais ali consignou que «O insolvente, no âmbito da colaboração a que está obrigado, fez-nos chegar quer os seus recibos de vencimento deste último período anual, quer os comprovativos das entregas que mensalmente efectuou no mesmo, que se limitaram a €250,00 por mês. Contudo, como inequivocamente alertado por e-mail de 27/01/2020, a entrega do montante mensal de €250,00 não tem o meu aval - este montante foi unilateralmente estipulado pelo próprio, ficando bastante aquém do montante que o mesmo está obrigado a ceder (os rendimentos que ultrapassem €1500,00 mensais) sendo que, como Fiduciário, não tenho qualquer autoridade para alterar o montante estabelecido como indisponível para cessão (não obstante continuar a sugerir que o insolvente requeira ao Tribunal a alteração deste valor, pois "€1500,00 em Portugal são bastante diferentes de €1500,00 na Holanda"). Refira-se que o próprio Tribunal, por despacho que nos foi notificado em 27/02/2020, intimou o insolvente a cumprir com o estipulado no despacho que deliberou aprovar a exoneração do passivo, entregando à fidúcia os montantes em falta (de acordo com informação que já havíamos prestado em 10/02/2020) "sob pena de (...) ponderar a cessação antecipada". No entanto, as entregas mensais de €250,00 continuaram, o que se revela um valor muito inferior ao que o insolvente estaria obrigado a ceder, tendo por referência o seu vencimento, que no período anual transacto foi de €29.933,00. Neste mesmo período, as suas cessões apenas somaram €4.327,00, quando deveriam ter sido entregues à massa insolvente €13.433. Assim sendo, estão em falta nesta data, no que a este período anual diz respeito, €9.106,00. Nos termos da lei, esta informação foi levada ao conhecimento dos credores reconhecidos, conforme o comprovativo junto».
17- Após novo despacho a insistir com o insolvente, o mesmo apresentou requerimento nos autos, em 13-03-2021, dizendo que tem feito sacrifícios significativos e ajustamentos consideráveis para poder entregar mensalmente ao Sr. Fiduciário um montante de forma regular, solicitando que o valor do rendimento excluído da cessão fosse alterado para montante nunca inferior a €3.000,00, pois que a sua vida sofrera novo revés ao ver resolvido o anterior arrendamento, obrigando-o a arrendar um estúdio, pagando €900,00 de renda inicial, que foi agora atualizada para €1200,00, dando conta que a procura de um local mais barato onde pudesse residir foi contínua mas, como sucedeu com as demais grandes cidades europeias, o mercado de arrendamento de Amsterdão foi “tomado” pelo alojamento local, reduzindo drasticamente a disponibilidade para o arrendamento de longa duração.
18. Foi então proferido despacho em 20-04-2021, que decidiu que teria de ser cedido ao fiduciário tudo o que excedesse o montante correspondente a 3 SMN (portugueses), notificando-o também para regularizar os valores em falta ou apresentar proposta de regularização, sob pena de ser ponderada a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
19- Dessa decisão recorreu o insolvente, recurso que o Tribunal da Relação julgou improcedente por acórdão de 06-07-2021, ali considerando que o valor do SMN na Holanda era, à data, de 1.684,00€, pelo que a atualização para o valor de 1.995,00€ (correspondente a 3 vezes o SMN em Portugal), revelava-se equilibrada, devendo o recorrente adequar as suas despesas a esse valor, comprimindo as despesas no período de cessão, não sendo razoável o incremento do valor suportado com a renda. Após a baixa daquele recurso, o tribunal insistiu com o insolvente nos termos consignados na parte final do ponto 18.
20- Em relatório apresentado pelo fiduciário, à luz do n.º 2 do art.º 240.º do CIRE, datado de 27-10-2021, este informou que, decorrido mais um ano (o quarto) da fase da cessão, mantinha-se a situação de incumprimento (pelo menos, parcial) e de acumulação de dívidas do insolvente, que, não obstante, ter cumprido pontualmente com as cessões (à exceção do mês de novembro/2020, relativamente ao qual não nos foi entregue o recibo de vencimento - entretanto já pedido) apenas o fez no montante mensal de €350,00, desrespeitando assim o judicialmente determinado, ainda que se mostre sempre nas suas comunicações, cooperante. Não obstante, o valor mensalmente cedido fica aquém do montante que deveria ceder (acima de €1500,00 até abril de 2021 e €1995,00 daí em diante) estando assim em dívida quanto ao último período da fase de cessão o valor de €7.757,00.
21- Em 30/11/2021, novamente o insolvente veio aos autos propondo entregar ao Sr. Fiduciário a quantia mensal de €500,00, alegando que tem procurado cumprir com as obrigações a que está adstrito, apenas não o fazendo em novembro/2020, por falecimento do seu irmão, o que implicou a sua deslocação a Portugal, e consequentemente a despesas extra dessa viagem; e em outubro/2021, pelo agravamento do estado de saúde da sua mãe, que novamente obrigou a uma deslocação a Portugal, com a inerente despesa. Defende que sempre foi absoluta e totalmente transparente para com o Sr. Fiduciário, disponibilizando-lhe todo o tipo de comprovativos e explicando antecipadamente o seu dia-a-dia e as dificuldades que atravessa, sendo que o valor que despende para a sua habitação, com pouco mais do que 20 m2, ultrapassa em mais de metade do valor fixado para efeitos de rendimento indisponível, sendo que em face da grave crise no mercado da habitação nos Países Baixos, concretamente em Amsterdão, não consegue alojamento mais barato, tendo o Sr. Fiduciário alertado que, estando em dívida o valor global de €38.710,86, o mesmo não será regularizado com tais entregas em 10 meses, período em falta para completar os cinco anos de cessão.
22- Em 22-09-2022, após novo requerimento do insolvente, o tribunal julgou as despesas apresentadas pela Insolvente, no montante de €9.869,92, como excluídas do seu rendimento disponível. Nesse mesmo despacho, foi determinado que o Sr. Fiduciário, atenta a entrada em vigor da Lei n.º 9/2022, de 11/01, apresentasse relatório final quanto ao período da cessão.
23- Nesse relatório referente ao quinto ano de cessão, apresentado em 29-09-2022, informa o Sr. Fiduciário que o insolvente apresentou proposta de pagamento dos valores em dívida em €500,00, que tem parcialmente cumprido, devendo à Fidúcia o valor de €23.199,94, sendo que, a continuar a pagar tal valor nos termos delineados, a situação só ficaria regularizada ao fim de 3 anos e 11 meses.
24- Por despacho de 24-11-2022 foi ordenada a notificação do insolvente e fiduciário para, em 10 dias, virem aos autos dizer o que tivessem por conveniente face ao disposto no art.º 242.º-A, do CIRE, aditado pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, ali se consignando que a prorrogação do período de cessão não poderia ultrapassar o período total de 6 anos.
25- Nada sendo dito, foi determinado o cumprimento do estatuído no art.º 244.º n.º 1 do CIRE, após o que, em face dos requerimentos apresentados, e tendo o insolvente informado o seu estado de saúde, juntando comprovativos médicos para o efeito, a saber, traumatismo craniano e burnout, e declarado que pretende beneficiar da prorrogação do período de cessão legalmente possível, entregando o valor de €500,00/mensais ao Sr. Fiduciário, foi proferido novo despacho em 26-10-2023 nos seguintes termos «Tendo em conta os motivos invocados e a não oposição, ao abrigo do disposto no art.º 242.º-A, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aditado pela Lei nº 9/2022, de 11/01, defiro a prorrogação do prazo da cessão de rendimentos até que complete 6 anos, com pagamento da quantia em dívida em prestações mensais, iguais e sucessivas, consignando-se que a prorrogação do prazo de cessão de rendimentos implica a continuação da cessão dos rendimentos que venham a ser auferidos que ultrapassem o rendimento indisponível fixado».
26- Em 30-10-2024, foi junto relatório final pelo fiduciário – sexto ano de cessão – informando que de um total de €66.921,05 de valor que deveria ter sido entregue à fidúcia durante o período total de cessão, o insolvente cedeu apenas €24.382,60, encontrando-se assim em dívida o valor global de €42.538,45, conforme quadros que apresenta, solicitando a notificação do insolvente para proceder ao pagamento da quantia em divida.
Assim exemplificando:
Período de
Cessão
Rendimento Auferido
Rendimento Indisponivel
A ceder
Cedido
Em divida
dez/17
2
069,00
€
1
114,00
€
955,00
€
jan/18
2
073,00
€
1
160,00
€
913,00
€
fev/18
2
073,00
€
1
160,00
€
913,00
€
mar/18
2
152,00
€
1
160,00
€
992,00
€
abr/18
2
152,00
€
1
160,00
€
992,00
€
mai/18
3
247,00
€
1
160,00
€
2
087,00
€
jun/18
2
152,00
€
1
160,00
€
992,00
€
jul/18
2
152,00
€
1
160,00
€
992,00
€
ago/18
2
152,00
€
1
160,00
€
992,00
€
set/18
2
152,00
€
1
500,00
€
652,00
€
out/18
2
152,00
€
1
500,00
€
652,00
€
nov/18
2
152,00
€
1
500,00
€
652,00
€
dez/18
2
152,00
€
1
500,00
€
652,00
€
jan/19
2
541,00
€
1
500,00
€
1
041,00
€
fev/19
2
541,00
€
1
500,00
€
1
041,00
€
mar/19
2
606,00
€
1
500,00
€
1
106,00
€
abr/19
2
606,00
€
1
500,00
€
1
106,00
€
mai/19
4
118,00
€
1
500,00
€
2
618,00
€
jun/19
2
606,00
€
1
500,00
€
1
106,00
€
jul/19
2
606,00
€
1
500,00
€
1
106,00
€
ago/19
2
540,00
€
1
500,00
€
1
040,00
€
200,00
€
set/19
2
557,00
€
1
500,00
€
1
057,00
€
200,00 €
out/19
2
606,00
€
1
500,00
€
1
106,00
€
200,00 €
nov/19
2
606,00
€
1
500,00
€
1
106,00
€
250,00 €
dez/19
2
606,00
€
1
500,00
€
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106,00
€
250,00 €
jan/20
2
541,00
€
1
500,00
€
1
041,00
€
250,00 €
fev/20
2
541,00
€
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500,00
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041,00
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250,00 €
mar/20
2
606,00
€
1
500,00
€
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106,00
€
250,00 €
abr/20
2
606,00
€
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500,00
€
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106,00
€
250,00 €
mai/20
4
118,00
€
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500,00
€
2
618,00
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jun/20
2
606,00
€
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500,00
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jul/20
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606,00
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500,00
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250,00 €
ago/20
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540,00
€
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500,00
€
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040,00
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250,00 €
set/20
2
557,00
€
1
500,00
€
1
057,00
€
250,00 €
out/20
2
796,00
€
1
500,00
€
1
296,00
€
350,00 €
nov/20
2
767,00
€
1
500,00
€
1
267,00
€
dez/20
2
663,00
€
1
500,00
€
1
163,00
€
350,00 €
jan/21
2
819,00
€
1
500,00
€
1
319,00
€
350,00 €
fev/21
2
819,00
€
1
500,00
€
1
319,00
€
mar/21
2
721,00
€
1
500,00
€
1
221,00
€
700,00 €
abr/21
2
738,00
€
1
995,00
€
743,00
€
mai/21
4
216,00
€
1
995,00
€
2
221,00
€
2
166,00 €
jun/21
2
819,00
€
1
995,00
€
824,00
€
350,00 €
jul/21
2
819,00
€
1
995,00
€
824,00
€
ago/21
2
819,00
€
1
995,00
€
824,00
€
350,00 €
set/21
2
819,00
€
1
995,00
€
824,00
€
700,00 €
out/21
2
819,00
€
1
995,00
€
824,00
€
nov/21
2
819,00
€
1
995,00
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824,00
€
200,00 €
dez/21
2
819,00
€
1
995,00
€
824,00
€
jan/22
2
930,00
€
2
115,00
€
815,00
€
500,00 €
fev/22
2
930,00
€
2
115,00
€
815,00
€
mar/22
2
930,00
€
2
115,00
€
815,00
€
1
000,00 €
abr/22
2
930,00
€
2
115,00
€
815,00
€
500,00 €
mai/22
4
571,00
€
2
115,00
€
2
456,00
€
jun/22
2
930,00
€
2
115,00
€
815,00
€
2
141,00 €
jul/22
2
930,00
€
2
115,00
€
815,00
€
500,00 €
ago/22
2
930,00
€
2
115,00
€
815,00
€
540,00 €
set/22
2
752,00
€
2
115,00
€
637,00
€
460,00 €
out/22
2
752,00
€
2
115,00
€
637,00
€
300,00 €
nov/22
2
752,00
€
2
115,00
€
637,00
€
dez/22
2
930,00
€
2
115,00
€
815,00
€
jan/23
3
133,07
€
2
280,00
€
853,07
€
fev/23
3
133,07
€
2
280,00
€
853,07
€
mar/23
3
133,07
€
2
280,00
€
853,07
€
abr/23
3
133,07
€
2
280,00
€
853,07
€
mai/23
5
140,27
€
2
280,00
€
2
860,27
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jun/23
3
133,07
€
2
280,00
€
853,07
€
jul/23
3
133,07
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2
280,00
€
853,07
€
500,00 €
ago/23
3
133,07
€
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280,00
€
853,07
€
500,00 €
set/23
3
133,07
€
2
280,00
€
853,07
€
out/23
3
133,07
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2
280,00
€
853,07
€
400,00 €
nov/23
3
133,07
€
2
280,00
€
853,07
€
500,00 €
Tenho ainda entregue:
dez/23
500,00 €
jan/24
500,00 €
mar/24
498,60 €
abr/24
600,00 €
mai/24
500,00 €
jun/24
1
500,00 €
jul/24
500,00 €
agot/24
500,00 €
set/24
500,00 €
out/24
500,00 €
Sub Total:
6
098,60 €
*
IV-/ Do mérito do recurso:
Em causa no presente recurso a apreciação da decisão que recusou a exoneração do passivo restante ao recorrente, por alegada violação, com grave negligência, dos deveres previstos na alínea c), do n.º 4, do art.º 239.º, do CIRE, em conformidade com o disposto nos arts.º 243.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, e 244.º n.º 2, do mesmo diploma legal.
Apreciando.
O instituto da exoneração do passivo restante encontra-se previsto nos arts.º 235.º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), e, como escreve Catarina Serra (na obra “O Novo Regime Português da Insolvência - Uma Introdução”, págs. 73 e 74) tem como objetivo «a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua atividade económica».
Resulta também da exposição de motivos que consta do diploma preambular que aprovou o CIRE (Dec. Lei nº 53/2004 de 18/03) que durante o período de cessão o insolvente «assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica” - ponto 45.
Como tal, deduzido pedido de exoneração do passivo restante, cumpre então verificar se não existe motivo para o seu indeferimento liminar, à luz do art.º 238.º do CIRE, e, admitido o mesmo, uma eventual recusa de exoneração após o período de cessão, de acordo com o n.º 2 do art.º 244.º do CIRE, dar-se-á depois pelos mesmos fundamentos, e com subordinação aos mesmos requisitos, da cessação antecipada do procedimento de exoneração, tal como este se encontra regulado no art.º 243.º do CIRE.
Neste enquadramento, e ao que ao caso agora interessa, o juiz deve recusar a exoneração (não se tratando assim de um qualquer poder discricionário), quando, como preceitua o aludido 243.º n.º 1, na sua alínea a)«(…) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência»; consagrando, por sua vez, o art.º 239.º, n.º 4, do mesmo diploma e no que ao caso releva, que: «Durante o período da cessão, o devedor fica obrigado a: (….) c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão; (…) ».
Em suma, constitui causa de recusa da exoneração a violação dolosa ou com grave negligência de alguma das obrigações respeitantes à cessão do rendimento disponível, de que resulte prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
No caso de que aqui cuidamos, e com relevo para os autos, cumpre ainda ter em atenção que quando foi proferido o despacho inicial, a lei determinava um período de cessão de 5 anos, período esse que foi encurtado para 3 anos com as alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2022 de 11/01 (entrando em vigor em 11 de abril) que, no seu art.º 10.º n.º 3, previu um regime transitório, assim determinando «Nos processos de insolvência de pessoas singulares pendentes à data de entrada em vigor da presente lei, nos quais haja sido liminarmente deferido o pedido de exoneração do passivo restante e cujo período de cessão de rendimento disponível em curso já tenha completado três anos à data de entrada em vigor da presente lei, considera-se findo o referido período com a entrada em vigor da presente lei.»
Balizado assim o enquadramento legal em que nos movemos, principiaremos o conhecimento do mérito do recurso invertendo a ordem de apreciação das duas questões suscitadas pelo recorrente nos autos, aferindo, pois, em primeiro lugar, se, tal como alegado em sede recursiva, o despacho recorrido padece de nulidade, à luz do disposto no art.º 615.º, n.ºs 1, als. b) e d) do CPC.
Com efeito, e em suma, defende o recorrente que o tribunal a quo não podia ter recusado a exoneração do passivo restante da forma em que o fez, limitando-se a afirmar genericamente que houve incumprimento da obrigação de entrega do rendimento disponível, não podendo decidir contra o parecer do fiduciário e sem que os credores tivessem manifestado a sua oposição.
Não tem, contudo, qualquer razão.
Vejamos porquê.
Como é sabido, as nulidades taxativamente enumeradas no art.º 615.º do CPC prendem-se com a violação de regras de estrutura das decisões proferidas pelo julgador, reportando-se assim a vícios formais das decisões proferidas, que não contendem com o seu mérito, não se confundindo com um qualquer erro de julgamento.
No caso dos autos, nem o vício decorrente da falta de fundamentação, previsto na al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, nem o do excesso de pronuncia, previsto na al. c) do mesmo preceito legal, ocorreram.
A decisão proferida encontra-se suficientemente fundamentada, quer de facto quer de direito, e nada obstava a que fosse proferida contra o parecer do fiduciário e sem que os credores tivessem manifestado a sua oposição.
Com efeito, e como vimos supra, o procedimento da exoneração tem que passar, pelo menos, por dois momentos processuais: o despacho inicial e a decisão final. Podendo ainda ocorrer um outro momento nesta sede incidental, que consiste no despacho de cessação antecipada da cessão, previsto no art.º 243.º, do CIRE, que permite fazer cessar o procedimento antes de terminado o período de cessão.
Nos autos, estando em causa a decisão final definitiva (não houve cessação antecipada, essa sim dependente de requerimento fundamentado de algum credor, do administrador da insolvência ou do fiduciário, não podendo ser declarada oficiosamente pelo juiz) a mesma impõe-se obrigatória e não dependente da apresentação de qualquer requerimento nesse sentido. Na decisão final, o juiz deve, pois, verificar se estão reunidos os pressupostos para a concessão da exoneração, ou se assim não acontece, o que deve fazer com base nos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos que poderiam ter levado à cessação antecipada e que se encontram previstos no art.º 243.º, para o qual remete o art.º 244.º, n.º 2, ambos do CIRE. Como se consignou no acórdão do TRG, proferido em 14-09-2023, no proc. 2071/13.0TBGMR.G1, relatado por Rosália Cunha, disponível na dgsi, e que acompanhamos «Esta remissão não significa que o juiz só pode recusar a exoneração se tal lhe for requerido pois tal entendimento implicaria que, caso nada fosse requerido quanto à recusa de exoneração, o juiz, aquando da prolação do despacho final, nada teria que apreciar e se limitaria a conceder a exoneração, sem efetuar qualquer controle efetivo sobre a verificação dos fundamentos de recusa». Subscrevendo tal entendimento, também não temos dúvidas que, em face do consignado no n.º 1 do art.º 243.º do CIRE, compete ao juiz, ouvindo previamente o devedor, o fiduciário e os credores, decidir, o que deve, pois, fazer, independentemente da posição por estes manifestada, ou na falta dela. Como se escreveu no apontado aresto «O nº 2 do art.º 244º do CIRE, na parte em que refere a exoneração é recusada com subordinação aos mesmos requisitos que poderiam ter levado à cessação antecipada, não significa que o juiz só pode recusar a exoneração se tal lhe for requerido pelos credores ou pelo fiduciário, mas antes que estes, caso se pronunciem no sentido de recusa de exoneração, têm que se basear em fundamentos de que tenham tido conhecimento nos seis meses anteriores, ou de que pudessem ter tido conhecimento nesse prazo, sendo esse o sentido útil de tal remissão».
Por conseguinte, e sem mais, encontrando-se a decisão recorrida fundamentada e nada impedindo o tribunal recorrido de apreciar a questão nos termos em que o fez, resta concluir pela inexistência de qualquer nulidade na decisão proferida.
Questão diversa é a de saber se, no caso, se verificam os requisitos legais para recusar a exoneração, mas tal é matéria que se prende com a existência de erro de julgamento, e não com a existência de qualquer nulidade.
Entramos assim, na segunda questão que nos compete apreciar. Isto é, aferir se o insolvente agiu de forma gravemente negligente, justificativa de uma recusa da exoneração do passivo restante, conforme foi concluído no despacho recorrido, sem descurar, por um lado, que no contexto dos autos foi considerado um período de cessão num total de seis anos, em face da prorrogação do prazo de cessão (já à luz da nova lei - 242.º A do CIRE - conforme despacho aludido no ponto 5 da factualidade assente), por outro lado, que está já assente nos autos que o recorrente não procedeu à entrega à fidúcia de todos os valores que estava obrigado a ceder.
Para fundamentar a recusa da exoneração, pode ler-se na decisão recorrida: «Revertendo à factualidade assente, verifica-se que ao longo de todo o período normal de cessão o insolvente incumpriu a obrigação de entrega da totalidade do rendimento disponível. Pese embora as justificações apresentadas pelo insolvente (nomeadamente, o elevado custo de vida em Amsterdão, onde reside), a verdade é que o insolvente estava bem ciente dos seus deveres como consta expressamente na decisão liminar do procedimento de exoneração e tal como também foi sendo advertido ao longo dos anos. Foram concedidas diversas oportunidades ao insolvente, tendo sido ajustado o rendimento disponível para o máximo de 3 SMN, assim como autorizado sucessivamente o pagamento da dívida em prestações, bem como excluídas as despesas de saúde conforme requereu, e, finalmente, foi ainda prorrogado o período de cessão até ao limite máximo legalmente admissível (6 anos). Não obstante, o insolvente não cumpriu escrupulosamente as obrigações assumidas, mantendo uma dívida acumulada de €41.038,45. A este propósito, o insolvente defende que apenas deve ser considerado o valor que deveria ser entregue no período de prorrogação, atento nomeadamente o douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.12.2022 (processo 35/13.3TBPVC.L1-1, www.dgsi.pt). Todavia, salvo o devido respeito, afigura-se que a “prorrogação” do período de cessão prevista no art.º 242º.A do CIRE não corresponde a um novo período de cessão, mas sim ao alargamento ou prolongamento do prazo inicialmente previsto para o período de cessão. Note-se que o pedido deve ser efetuado antes de terminado o período inicial e, por outro lado, o prazo máximo de seis anos abrange todo o período de cessão, incluindo o período inicial e o prazo adicional de prorrogação - ou seja, o elemento literal da norma aponta, precisamente, no sentido de se tratar de um único período de cessão. E, se assim é, entende-se que não se pode iniciar um novo período de cessão, abstraindo-se do incumprimento anterior (que, aliás, constitui fundamento do pedido de prorrogação).
Além do mais, a prorrogação do período de cessão constitui uma última oportunidade dada ao insolvente, permitindo-lhe cumprir nesse período adicional as obrigações a que se sujeitou ab initio para obter a exoneração, o que não pode deixar de significar que o insolvente deve pagar os valores que ficaram em dívida, mantendo-se simultaneamente vinculado às demais obrigações inerentes ao procedimento de exoneração. Isso mesmo ficou a constar expressamente da decisão que deferiu a prorrogação, transitada em julgado, tendo o insolvente sido advertido «que a prorrogação do prazo de cessão de rendimentos implica a continuação da cessão dos rendimentos que venham a ser auferidos que ultrapassem o rendimento indisponível fixado». Mas, mesmo que se considerasse apenas o período da prorrogação, certo é que também aí o insolvente incumpriu a obrigação de entrega do rendimento disponível no valor total de € 5.893,37 (…).
Ora, o insolvente não questiona ter, de facto, incumprido com o dever de entrega que sobre si impedia, ainda que discorde do valor total que foi considerado estar em dívida no final do período de cessão. Argumenta, contudo, como vimos, que o despacho recorrido se limita a afirmar genericamente que houve incumprimento da obrigação de entrega do rendimento disponível, não contendo, contudo, os autos, elementos que apontem para a existência de dolo ou negligência grave, dos mesmos claramente resultando que o incumprimento ocorrido não decorreu de vontade própria, mas de uma impossibilidade real, devidamente justificada ao longo do processo, pois que não tinha meios para cumprir com o que estava obrigado. Sempre colaborou com os fiduciários, tudo reportando, e sempre cumpriu na medida das suas possibilidades, tendo entregue €24.382,60 à fidúcia, valor significativo que não pode ser desvalorizado, chamando a atenção para o facto de o custo de vida em Amsterdão, onde reside, ter comprometido a sua capacidade de entrega.
Vejamos então.
Sobre o conceito de negligência, que o preceito convoca (243.º n.º 1 al. a) do CIRE), é consabido que o mesmo envolve a violação de um dever objetivo de cuidado, podendo assumir diferentes graus, de leve a grave, importando apenas, no caso de que aqui cuidamos, aquela que se revela grosseira e grave; logo, altamente reprovável, à luz do mais elementar juízo de normalidade e senso comum. No fundo, na negligência grave, o agente atua de forma particularmente displicente ou descuidada, em circunstâncias que tal não justifica, revelando um comportamento de total desprezo pelas suas obrigações, que sabe não estar a cumprir e de que não quer saber, alheando-se do processo, das suas responsabilidades e dos interesses dos seus credores.
Convém também não esquecer que a recusa da exoneração depende sempre da verificação cumulativa da violação pelo insolvente de alguma das obrigações que lhe são impostas pelo art.º 239.º do CIRE, causadoras de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, e o dolo ou a negligência grave do devedor/insolvente no incumprimento dessas mesmas obrigações.
Donde, a ser assim, tem razão o insolvente quando afirma que o incumprimento da entrega das quantias devidas ao fiduciário no período da cessão não basta nem pode sustentar a recusa da exoneração do passivo restante, pois que tem de ficar plenamente demonstrado nos autos que esse incumprimento foi doloso ou gravemente negligente.
No enquadramento que daqui decorre, teremos então que analisar todo o percurso do insolvente durante o período de cessão, período em que está em observação, para aferir se do mesmo resulta uma atuação que o desresponsabilize por aquela não entrega, sempre norteados pelo facto de a exoneração ser uma benesse que é conferida aos devedores, em sacrifício dos credores, e, por isso mesmo, obrigando também os devedores que, naquele período de cessão, façam sacrifícios, adequando as suas despesas às obrigações a que são sujeitos.
Ora, da análise dos autos resulta desde logo uma primeira constatação: o insolvente nunca cumpriu, na verdade, com a obrigação de entrega pela totalidade devida em cada mês do período de seis anos de cessão, e que resultava do determinado pelos despachos que nos autos foram proferidos e neles transitaram em julgado - despacho que fixou o rendimento inicial - 24-10-2017 - despachos que aumentaram o valor do seu rendimento indisponível – 06-09-2018 e 20-04-2021 - e despacho que autorizou a prorrogação do período de cessão - 26-10-2023 (nele se determinando não só a continuação da obrigação de cessão como o pagamento do valor até então em dívida).
Com efeito, da análise do quadro inserto no relatório final apresentado pelo fiduciário nos autos, mencionado no ponto 26 da factualidade assente com relevo para a presente decisão, verificamos que, desde o início do período de cessão – dezembro de 2017 até julho de 2019 – o insolvente nada entregou à fidúcia.
Ou seja, durante 20 meses, nada cedeu. Não obstante, nesse período veio aos autos alegar que não conseguia cumprir com o que lhe fora determinado, em face dos custos associados ao facto de viver em Amesterdão, tendo sempre pugnado por um aumento do rendimento indisponível para fazer face àqueles custos. O tribunal acabou por dar cobertura às suas reivindicações, ainda que deferindo apenas parcialmente o seu pedido, feito em fevereiro/2018, por despacho de 06-09-2018, altura em que aumentou o rendimento indisponível para €1500,00. Principiou então o insolvente a ceder parte do seu rendimento em agosto/2019, após o que foi fazendo entregas, quase mensais, em valores muito variados, como bem espelha o quadro assinalado.
Ora, ainda que a garantia de estabilidade dos despachos que foram sendo proferidos impeça que o insolvente possa pretender entregar o valor que entende ser-lhe possível e que não resulta, na verdade, daqueles ditos despachos, certo é que, na avaliação da conduta do devedor durante todo o período de cessão, não podemos ignorar o esforço feito nas entregas parcelares que foi fazendo, não revelando o seu comportamento, apesar daquele manifesto incumprimento, uma atitude displicente e manifestamente censurável de desresponsabilização. Tanto mais que, no decurso do período de cessão, o insolvente colaborou sempre com o fiduciário, a quem sempre deu resposta e explicações, a quem foi comunicando as alterações no seu rendimento e mesmo dos aumentos que foi auferindo, reportando sempre, ainda assim, as suas dificuldades, ao ponto de este o alertar para pedir uma revisão do rendimento indisponível, consciente de que “viver na Holanda seria muito diferente de viver em Portugal” em face dos custos que tal vivência acarreta. E se é certo que o insolvente viu alterado o valor da retribuição indisponível para três salários mínimos nacionais portugueses, importa, ainda assim, reconhecer que o custo de vida em Amesterdão é superior ao de Portugal, sendo que o valor da retribuição então fixada, ainda que levando em conta o facto de o devedor residir no estrangeiro, teve por referência o salário mínimo português (veja-se, sobre esta temática, o decidido em 08/04/2025, no proc. 18367/24.3T8LSB-C.L1-1, relatado por Fátima Reis Silva, em que a aqui relatora e a 1ª adjunta ali foram adjuntas, onde se reconheceu a necessidade de se atender ao custo de vida do local onde o insolvente faz a sua vida quotidiana, devendo o rendimento indisponível para cessão ser fixado tendo em conta a remuneração mínima garantida no local onde vive e durante o período em que aí se encontre).
Da análise do processo resulta também que durante o período de cessão o insolvente sofreu diversas vicissitudes na sua vida, sempre relatadas nos autos e comunicadas ao fiduciário (nunca contestadas ou impugnadas por qualquer credor), desde a doença da mãe, que acompanhou, que veio a falecer em dezembro/2021 (o que acarretou diversos custos ao insolvente, com viagens acrescidas, e outros, ainda que, por decisão de 22/09/2022, tenham sido excluídas parte dessas despesas extraordinárias, no montante de € 9.869,92, dos rendimentos a ceder), um acidente de trabalho, do qual resultou um traumatismo craniano em setembro/2022, com agravamento do seu estado de saúde, padecendo de síndrome de burnout em 2023 (com evidente inerente acréscimo de despesas, consequência da sua situação clínica), e um claro aumento do custo com a habitação, de onde decorre que no período de cessão foi obrigado a mudar de casa seis vezes, sempre obrigado a suportar rendas elevadas, em face do estado do mercado de arrendamento de todos sobejamente conhecido. Não se anotam despesas irrazoáveis ao longo do processo, ainda que o valor da renda seja um tanto exacerbado em face dos seus rendimentos e retribuição disponível que lhe foi fixada. Despesas que, todavia, foram sendo documentadas e trazidas aos autos, e mesmo reportadas pelo fiduciário, sem nunca merecer a impugnação de qualquer credor, como vimos, nomeadamente no que concerne ao valor suportado com as aludidas rendas. A factualidade assim apurada, no concreto circunstancialismo dos autos, não nos permite, pois, de forma óbvia e rigorosa, afirmar uma grave negligência no comportamento do insolvente, única que permite e fundamenta a recusa da exoneração do passivo restante.
Conscientes que a exoneração do passivo restante apenas deve ser concedida a quem se mostre merecedor desse benefício, por força de uma lisura no comportamento, pautado por um esforço de cumprir os deveres a que está adstrito, não pode o tribunal ignorar todas as vicissitudes ocorridas e atentar apenas na falta de cumprimento do devedor na entrega imediata das quantias devidas.
É certo que o insolvente beneficiou ainda de um período de prorrogação do prazo de cessão (que a Lei n.º 9/2022 veio expressamente admitir como uma última oportunidade dada ao insolvente de forma a evitar a possível recusa da exoneração) durante o qual, ainda assim, não cumpriu com o determinado pelo despacho que tanto autorizou. Despacho que não impugnou e de onde resultava que, para além de uma prorrogação do prazo de cessão, em que se impunha continuar a ceder a retribuição disponível, o obrigava também a pagar o valor em divida à fidúcia. Valor que, de acordo com a factualidade dada por provada, nos pontos 4 e 5, importava em €23.199,94 à data do final do período normal de cessão. O que significava, pela análise do quadro aludido em 25 – veja-se, a título de exemplo, os meses de junho a agosto/2022 - que, auferindo um salário de €2.930,00, para além de ser sua obrigação ceder o valor de €815,00, teria ainda que pagar, em prestações (mensais, iguais e sucessivas, segundo o despacho então proferido) o valor total em dívida àquela data, ou seja €23.199,94 (que a dividir pelos 20 meses da prorrogação importaria sempre num valor mais de mil euros/mês), o que implicaria descurar o sentido da exoneração e o chamado rendimento mínimo condigno.
E ainda que aquele despacho, proferido em 30-06-2022, não tenha sido objeto de impugnação, assim transitando em julgado (art.º 628.º do CPC), tornando indiscutível a decisão ali tomada, por força da estabilidade e segurança que aquele caso julgado encerra, nada impede, contudo, que se possa chamar tudo à colação para avalizar a conduta do recorrente ao longo de todo o período de cessão, atentas as circunstâncias em que a mesma teve lugar, para ponderar a concessão ou recusa de exoneração. É a globalidade daquela conduta e as circunstâncias que a rodearam que deve ser ponderada para se aferir se o devedor é ou não merecedor de uma exoneração. Veja-se, a propósito, o Acórdão do TRE de 13-02-2020, relatado por Vítor Sequinho, disponível na dgsi, que subscrevemos, onde também ali se defende que «A falta de entrega ao fiduciário, pelo devedor, da parte dos seus rendimentos que constitui objeto da cessão, não determina, automaticamente, a recusa da exoneração do passivo restante», consignando em defesa do concluído que «… impõe-se avaliar a atuação da recorrente ao longo do período da cessão na sua globalidade e as circunstâncias em que a mesma teve lugar» e também que «É certo que a decisão que fixou aquele valor transitou em julgado e a recorrente nunca requereu o seu aumento ao tribunal a quo. Contudo, nada disso impede que, no momento da prolação da decisão final da exoneração, se pondere a exiguidade do mesmo valor e a extrema dificuldade ou, mesmo, incapacidade que qualquer pessoa nas circunstâncias da recorrente sentiria para, com ele, assegurar as despesas quotidianas, mesmo num período em que é suposto diminuir-se estas últimas àquilo que seja indispensável para o “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” referido no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i). Tal ponderação não visa, obviamente, fixar um novo valor, mas sim ajuizar sobre a exigibilidade de uma atuação diferente daquela que a recorrente teve no decurso do período da cessão no que toca à falta de entrega, ao fiduciário, de parte das quantias a que se encontrava obrigada, pelo que não está em causa a força de caso julgado do despacho inicial. Não ponderar o valor em causa com o argumento de que a decisão que o fixou transitou em julgado seria errado pela razão que acabamos de referir e conduziria a um pior julgamento da situação porquanto ignoraria um facto para o efeito relevante (….)».
Donde, e a ser assim, tudo ponderado, olhando para os autos, e lendo os relatórios apresentados, não vemos que se possa afirmar por parte do devedor uma clara e intencional não entrega dos valores em causa, uma falta grave e indesculpável. Na verdade, ainda que não se possa, de forma alguma, premiar o incumprimento dos devedores, conscientes de que a exoneração é uma benesse que lhes pode ser concedida, isentando-os do pagamento das suas dívidas à data em que a concessão for dada (art.º 245.º, n.º 1 do CIRE), certo é que, para que possa existir a recusa, sancionando o devedor insolvente pela não entrega ao fiduciário do rendimento que o tribunal determinou como disponível para o efeito, sabendo que tinha de o fazer por ter sido expressamente advertido das obrigações que impendiam sobre si e das consequências da sua violação, tem que existir evidenciada nos autos uma negligência grave; negligência que não se presume, nem se pode presumir, mas que tem que ter assento nos factos que o tribunal chama à colação para a decisão que se lhe impõe proferir, não impendendo sobre o devedor o ónus da prova da não verificação dos requisitos que impedem a concessão, mas sim sobre os interessados o ónus de alegar e demonstrar os factos dos quais devem ditar a recusa da exoneração.
Num quadro em que as dificuldades que o insolvente foi sentindo foram sendo sucessivamente reportadas ao fiduciário e aos autos, sendo o próprio fiduciário, habituado a estas andanças, o primeiro a considerar que deve ser concedida a exoneração, não obstante o incumprimento ocorrido, não temos como não acompanhar o parecer final que o mesmo fiduciário apresentou nos autos. Não estamos, manifestamente, perante uma atitude de quem não quer saber, de quem se pretende apenas desresponsabilizar e furtar-se ao pagamento do que é devido aos seus credores, credores que nada vieram aos autos requerer, salientar ou impugnar, nunca tendo, ao longo da cessão, onde foram tomando conhecimento dos incumprimento do devedor, requerido a cessação antecipada do procedimento ou sequer tomado posição a final, quando instados para o efeito de ser concedida ou não a aludida exoneração. Não vemos, pois, como possa concluir-se por uma negligência grave tal como exigida por lei.
Acompanhamos assim a própria jurisprudência que tem vindo a alertar para a necessidade de os autos evidenciarem um incumprimento reiterado, doloso ou com culpa grave e causador de prejuízos aos credores. Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 09-04-2019, relatado por Ana Paula Boularot, no processo n.º 279/13.8TBPCV.C1.S2, ainda que reportado a um caso de cessação antecipada, onde se consignou que, «não se mostrando apurado que o comportamento do Devedor tenha sido voluntariamente encetado, isto é, que tenha querido violar as imposições que lhe foram cominadas e consequentemente a Lei; e de outro lado, que o tenha feito, voluntária e consciente, com a intenção de prejudicar os credores, maxime, o Credor/Requerente, sendo que esses elementos, um subjetivo (o dolo do devedor) e outro objetivo (o prejuízo relevante para os credores), têm de estar devidamente enunciados e provados, sem embargo de podermos constatar que o Recorrente incumpriu determinados deveres, ao não entregar ao fiduciário parte do seu rendimento, o apontado incumprimento não é suscetível de gerar a cessação antecipada requerida, porquanto esta pressuporia um comportamento doloso do Devedor, que tivesse sido causa de um dano relevante para os seus credores, e o nexo de imputação deste à conduta daquele».
Deste modo, na ponderação de tudo o que expusemos, não podemos acompanhar o despacho recorrido que concluiu de forma líquida por uma negligência grave que, a nossa ver, dos autos não pode ser afirmada, não nos permitindo assim, em consciência, concluir que o devedor «não se mostra digno de obter a exoneração» (como alude, Menezes Leitão, em Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 333).
Em jeitos de conclusão, diremos, pois, que os factos que o tribunal recorrido deu por provados, e os factos que da tramitação processual resultam dos autos, não são suficientes para sustentar uma recusa, não podendo dar por preenchido o condicionalismo previsto no art.º 243.º n.º 1, al. a) do CIRE, tendo por referência a obrigação que decorre do art.º 239.º, n.º 3, alínea b) do aludido diploma legal.
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V-/ Decisão:
Perante o exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente procedente a presente apelação, assim revogando o despacho recorrido, que se substitui por outro que, em decisão final, à luz do art.º 244.º do CIRE, concede ao apelante/insolvente a exoneração do passivo restante, com as limitações legais decorrentes do consagrado no art.º 245.º do CIRE.
Sem custas.
Lisboa, 14/10/2025
Paula Cardoso
Nuno Teixeira
Ana Rute Pereira