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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA DE CONCESSÃO
INCUMPRIMENTO DO DEVER DE ENTREGA DO RENDIMENTO
DOLO/NEGLIGÊNCIA GRAVE
PREJUÍZO PARA A SATISFAÇÃO DOS CRÉDITOS
Sumário
Sumário (cf. nº 7, do art.º 663º, do CPC): I. No âmbito do incidente da Exoneração do Passivo Restante, durante o atual período de três anos do denominado período de cessão (artigo 239.º, n.º 2, do CIRE) a conduta do devedor é sujeita a avaliação anual e, findo aquele período, sujeita ao crivo de uma decisão judicial, ouvidos que são os credores, o fiduciário (artigos 240.º e 241.º CIRE) e o próprio devedor (artigo 237.º, al. d), do CIRE). II. Durante o período da cessão, o devedor fica sujeito ao cumprimento das obrigações previstas no n.º4 do art.º 239º, das quais se destaca a entrega dos rendimentos que extravasem o rendimento indisponível fixado pelo tribunal - os quais serão afetados aos fins previstos no artigo 241.º III. A decisão de recusa da exoneração do passivo restante, à luz das disposições conjugadas dos artigos 243.º, n.º 2 e do art.º 244.º do CIRE pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a) violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido de exoneração (pressuposto objetivo); b) que essa violação decorra de uma atuação dolosa ou com grave negligência (pressuposto subjetivo); c) verificação de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência; d) e existência de nexo de causalidade entre a conduta e o prejuízo. IV. No caso dos autos, do circunstancialismo apurado, resulta que o insolvente podia e devia ter cumprido pontual e corretamente a entrega dos valores estabelecidos na decisão que fixou o rendimento objeto de cessão, e de forma voluntária e consciente, reteve quantias que bem sabia que não podia fazer suas, adotando uma conduta, se não dolosa, pelo menos grosseiramente negligente, traduzindo o incumprimento da obrigação de entrega de parte do rendimento disponível referente a cada um dos períodos de cessão. V. A não entrega do montante disponível em cada um dos períodos da cessão, acarreta prejuízo para os credores na medida em que inviabilizou que, através dessa quantia, fossem ressarcidos, mesmo que parcialmente, sendo esse prejuízo consequência do incumprimento reiterado do devedor.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
1. “AA”, contribuinte fiscal nº. (…), residente (…), apresentou-se à insolvência, a qual foi declarada por sentença de 6 de julho de 2015, já transitada em julgado, e simultaneamente deduziu pedido de exoneração do passivo restante.
2. No relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE (ref. citius n.º …), a Sra. Administradora de Insolvência pronunciou-se pela concessão da exoneração do passivo restante e, no que concerne à determinação do rendimento indisponível pela fixação de quantia equivalente a um ordenado e meio nacional, considerando a composição do agregado familiar do devedor e as despesas normais da vida corrente.
3. Pelos credores não foi deduzida oposição.
4. Realizada Assembleia para apreciação do relatório a que alude o art.º 155º do CIRE foi decidido relegar para momento subsequente ao rateio a prolação de despacho liminar referente ao pedido de exoneração do passivo restante.
5. Em 21/01/2018 (ref. citius n.º…) foi proferido despacho com o seguinte teor: « Pese embora o despacho proferido a fls. 141, nos termos do qual foi decidido relegar a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante para momento posterior ao termo da liquidação, entendemos que, em face da recente alteração legislativa introduzida pelo DL n.º79/2017 de 30.6.20017 impõe-se a alteração tal posição.// Efectivamente, o art.6º n.º6 daquele diploma estipula que, nos casos previstos na alínea e) do n.º1 do artigo 230º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, em que não tenha sido declarado o encerramento e tenha sido proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante, considera-se iniciado o período de cessão do rendimento disponível na data de entrada em vigor do referido Decreto-lei.// Por outro lado, o n.º7 do art.233º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas passou a prever que o encerramento do processo de insolvência, nos termos da al. e) do art.230º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.// Do exposto resulta expresso que o legislador previu a possibilidade de existirem bens ou direito a liquidar no momento em que o tribunal deve apreciar o pedido de exoneração do passivo restante e pretendeu que, nesses casos, o processo prosseguisse com a liquidação, sem embargo de se iniciar de imediato o período de cessão.// Ora, tendo presente esta clara opção legislativa, manter a posição expressa no despacho de fls. 141 implicaria uma real e efectiva lesão dos interesses do insolvente, que o tribunal não pode tolerar, razão pela qual se entende dever ser proferido, na sequência, o despacho previsto no art.239º n.º1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.// Para o efeito, notifique o insolvente para juntar o seu CRC actualizado.// Deverá ainda informar alguma alteração na sua situação pessoal, laboral e patrimonial e juntar documentos que repute relevantes para a decisão a proferir.»
6. Na sequência do despacho referido em 3. apresentou o insolvente o seguinte seguimento: «(…) Mais requer a V. Exa se digne mandar alterar a quantia mínima para o sustento digno do insolvente e sua família, de 1,5 SM para 2 SM, uma vez que, tendo em conta as despesas mínimas para o seu sustento e para o pagamento dos alimentos a seus filhos (quantias já apurados nos autos), o valor que, actualmente, resulta disponível é manifestamente insuficiente.»
7. Por despacho de 2/05/2018 (ref. Citius n.º…) ordenou o Tribunal a quo a notificação do insolvente para esclarecer qual o montante atual das prestações que paga a título de alimentos aos seus filhos, juntando comprovativos dos três últimos pagamentos efetuados e certidão com nota de trânsito das respetivas decisões homologatórias ou condenatórias.
8. Respondeu o insolvente por requerimento de 17/05/2018 (ref. Citius n.º … com o seguinte teor: «(…) o valor mensal pago aos seus dois filhos é de €240,00, sendo o respectivo pagamento feito por desconto directo no vencimento, e ordenado pelo senhor Administrador de Insolvência.»
9. Em 12/06/2018 (ref. Citius n.º…) juntou o insolvente comprovativos de pagamento da pensão de alimentos – recibo de vencimento onde consta o desconto da pensão de alimentos no montante de € 240,00, e certidão homologatório do divórcio por mútuo consentimento.
10. Em 20/06/2018 (ref. Citius n.º…) juntou certidão da sentença homologatória do exercício das responsabilidades parentais de 23/11/2011 relativas aos seus filhos menores da qual consta a obrigação fixada de pagamento de uma prestação alimentar a cada um dos seus filhos no montante de 240,00€ (duzentos e quarenta euros) mensais, 120,00€ mensais para cada filho, quantia essa a pagar à mãe da menor por cheque, vale postal, transferência ou depósito, até ao dia 8 de cada mês, pensão alimentícia que será objeto de atualização anual, em função do índice de inflação a divulgar pelo I.N.E. (Instituto Nacional de Estatística) e reportado ao ano imediatamente anterior, no mês de Janeiro de cada ano. A primeira atualização ocorrerá em Janeiro de 2012
11. Em 25/06/2018 (ref. Citius n.º…) foi proferida decisão que, admitindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pela devedora/insolvente, determinou que: «(…) Em face dos rendimentos e despesas do insolvente e atendendo à composição do seu agregado familiar, entende-se fixar o montante destinado a assegurar o sustento do insolvente no valor correspondente a uma vez o salário mínimo nacional, acrescido do valor fixado a título de pensão de alimentos aos filhos.»
Mais se consignou que: «4. Determino que o rendimento disponível que o devedor venha a auferir, no prazo de 5 anos a contar da data de encerramento do processo de insolvência (período da cessão), se considere cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia mensal supra indicada, acrescido do valor fixado a título de pensão de alimentos aos filhos, que se destina ao sustento do insolvente e do seu agregado familiar.»
Este despacho foi devidamente notificado ao insolvente, conforme certificação citius e transitou em julgado.
13. Na mesma decisão de 25/06/2018 foi declarado encerrado o processo de insolvência, atenta a admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante e tendo os autos prosseguido para liquidação, ao abrigo do disposto no artigo 230º, número 1, alínea e).
14. Findo o período de cessão, por despacho de 9/07/2025 (ref. Citius n.º…) foi proferida pelo Tribunal a quo a seguinte decisão: «no caso concreto, o insolvente violou dolosamente a sua obrigação de entregar à fidúcia a quantia em causa e já acima mencionada (cfr. artigo 239.º, n. º4, alínea c) do CIRE), prejudicando, dessa forma, a satisfação dos créditos sobre a insolvência. Assim sendo, o Tribunal deverá recusar a exoneração do passivo restante.// Pelo exposto: a) Recuso a exoneração do passivo restante ao insolvente “AA”, (...), (…), natural da freguesia (…), concelho (…), portador do Cartão de Cidadão Nacional nº. (…), contribuinte fiscal nº. (…), residente (…).// b) Declaro extinto o incidente de exoneração do passivo restante.// Proceda às legais notificações, publicite e registe - artigos 37º e 38º aplicável ex vi 247º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas»
Inconformado o insolvente apresentou o presente recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES que se reproduzem:
A- Não podem o ora Recorrente conformar-se com a decisão proferida nos autos.
B-A decisão é nula nos termos do artigo 615º, nº 1. alínea d, do CPC.
C - Em 18 de Julho de 2024, o recorrente solicitou a correção da contas apresentadas pela senhora fiduciária, nos termos seguintes:
Exmo. Senhor Dr. Juiz,
(…), na qualidade de mandatária de “AA”, insolvente nos autos à margem identificados, vem solicitar a V. Exa., o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
1.Na decisão de exoneração do passivo restante, foi determinado, a fixação ao insolvente de um salário mínimo nacional, acrescido do valor da pensão de alimentos aos filhos, no montante global de €240,00.
2. No primeiro ano de cessão de rendimentos, de Setembro de 2018 a Agosto de 2019, e tendo em conta que o salário mínimo nacional foi de €580,00 até Dezembro de 2018, o valor indisponível foi de €580,00+€240,00=€820,00, os valores a entregar à Sra. Fiduciária , foram os seguintes:
Setembro de 2018 - €1383,35-€820,00=€563,35;
Outubro de 2018 - €1153,12-€820,00=€333,12;
Novembro de 2018 - €2052,19-€820,00=€1232,69;
Dezembro de 2018 - €976,15-€820,00=€156,15;
3. No período de Janeiro de 2019 a Agosto de 2019, para o salário mínimo
nacional de € 600,00 o valor indisponível foi de €600,00+€240,00=€840,00 e os valores a entregar à Sra. Fiduciária, foram os seguintes:
Janeiro de 2019 - €1071,56-€840,00=€231,56;
Fevereiro de 2019 - €1082,64-€840,00=€242,64;
Março de 2019 - €1017,32-€840,00=€177,32;
Abril de 2019 - €1023,00-€840,00=€183,00;
Maio de 2019 - €1036,55-€840,00=€196,55;
Junho de 2019 - €1025,64-€840,00=€185,64;
Julho de 2019 - €2017,42-€840,00=€1177,42;
Agosto de 2019 - €1406,69-€840,00=€566,69;
4. No final do 1º ano de cessão o valor a entregar seria de €5246,13 e não de €8129,13.
5. No segundo ano de cessão de rendimentos, de Setembro de 2019 a Agosto de 2020, e tendo em conta que o salário mínimo nacional foi de €600,00 até Dezembro de 2019, o valor indisponível foi de €600,00+€240,00=€840,00, os valores a entregar à Sra. Fiduciária , foram os seguintes:
Setembro de 2019 - €1228,24-€840,00=€388,24;
Outubro de 2019 - €1086,94-€840,00=€246,94;
Novembro de 2019 - €2042,44-€840,00=€1202,44;
Dezembro de 2019 - €1022,01-€840,00=€182,01;
6. No período de Janeiro de 2020 a Agosto de 2020, para o salário mínimo nacional de € 635,00 o valor indisponível foi de €635,00+€240,00=€875,00 e os valores a entregar à Sra. Fiduciária, foram os seguintes:
Janeiro de 2020 - €1247,00-€875,00=€372,00;
Fevereiro de 2020 - €1037,91-€875,00=€162,91;
Março de 2020 - €1032,89-€875,00=€157,89;
Abril de 2020 - €1209,66-€875,00=€394,66;
Maio de 2020 - €1427,89-€875,00=€552,89;
Junho de 2020 - €714,89-€875,00=€00,00;
Julho de 2020 - €1851,53-€875,00=€976,53;
Agosto de 2020 - €842,68-€875,00=€00,00;
7. No final do 2º ano de cessão o valor a entregar seria de €2616,88 e não de €7264,05.
8. No terceiro ano de cessão de rendimentos, de Setembro de 2020 a Agosto de 2021, e tendo em conta que o salário mínimo nacional foi de €635,00 até Dezembro de 2020, o valor indisponível foi de €635,00+€240,00=€875,00, os valores a entregar à Sra. Fiduciária , foram os seguintes:
Setembro de 2020 - €836,15-€875,00=€00,00;
Outubro de 2020 - €873,27-€875,00=€00,00;
Novembro de 2020 - €1829,93-€875,00=€954,93;
Dezembro de 2020 - €741,59-€875,00=€00,00;
9. No período de Janeiro de 2021 a Agosto de 2021, para o salário mínimo
nacional de € 665,00 o valor indisponível foi de €665,00+€240,00=€905,00 e os valores a entregar à Sra. Fiduciária, foram os seguintes:
Janeiro de 2021 - €852,19-€905,00=€00,00;
Fevereiro de 2021 - €745,43-€905,00=€00,00;
Março de 2021 - €836,89-€905,00=€00,00;
Abril de 2021 - €786,31-€905,00=€00,00;
Maio de 2021 - €770,50-€905,00=€00,00;
Junho de 2021 - €773,70-€905,00=€00,00;
Julho de 2021 - €1919,89-€905,00=€1014,89;
Agosto de 2021- €773,80-€875,00=€00,00;
10. No final do 3º ano de cessão o valor a entregar seria de €1969,82 e não de €3879,65.
11. No quarto ano de cessão de rendimentos, de Setembro de 2021 a Abril de 2022, e tendo em conta que o salário mínimo nacional foi de €665,00 até Dezembro de 2021, o valor indisponível foi de €665,00+€240,00=€905,00, os valores a entregar à Sra. Fiduciária , foram os seguintes:
Setembro de 2021 - €773,46-€905,00=€00,00;
Outubro de 2021 - €775,04-€905,00=€00,00;
Novembro de 2021 - €1861,08-€905,00=€956,08;
Dezembro de 2021 - €776,04-€905,00=€00,00;
12. No período de Janeiro de 2022 a Abril de 2022, para o salário mínimo nacional de € 705,00 o valor indisponível foi de €705,00+€240,00=€945,00 e os valores a entregar à Sra. Fiduciária, foram os seguintes:
Janeiro de 2022 - €1058,62-€945,00=€113,61;
Fevereiro de 2022 - €912,10-€945,00=€00,00;
Março de 2022 - €1030,94-€945,00=€85,94;
Abril de 2022 - €491,48-€945,00=€00,00;
13. No final do 4º ano de cessão o valor a entregar seria de €1155,63 e não de €2635.62.
14.A senhora Fiduciária apresenta um pedido de €21908,45, quando o devedor só tem a entregar €10988,46.
Nestes termos, o requerente entendendo que as contas laboram em lapso, vem solicitar a V. E se digne ordenar à Senhora Fiduciária, a correcção das mesmas.
D- No entanto, as contas não foram corrigidas.
E- E o Tribunal aceitou as contas da senhora fiduciária, não conheceu a questão, e considerou o insolvente em incumprimento doloso.
F- Só que errou, não apreciando a questão do erro matemático.
G- O insolvente apenas solicitou a correção das contas da Fiduciária para, após correção, efectuar a entrega, eventualmente, em falta, não dissimulando rendimentos.
H-Não violou as obrigações impostas pela decisão de admissão liminar da exoneração do passivo restante.
I-Assim, não agiu certamente cm dolo, ou sequer negligência.
J--Por conseguinte, Não se verificando o nexo causal necessário entre a conduta do insolvente e os inexistentes danos causados para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Termina pedindo que seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida.
Não consta que tenham sido apresentadas contra alegações.
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A Mma. Juiz a quo proferiu despacho admitindo o recurso, sendo que o mesmo é admissível e foi recebido na forma e efeitos devidos.
Pronunciou-se, ainda, nos termos do disposto no art. 617º do CPC quanto à arguida nulidade da decisão nos seguintes termos: «Invoca o recorrente que a decisão recorrida é nula por falta de apreciação de matéria que ao tribunal cumpria analisar. No caso, o tribunal apreciou a questão que lhe cumpria, ou seja, a concessão ou recusa da exoneração do passivo restante, sendo que os argumentos do insolvente relativamente ao valor de rendimento a ceder já haviam sido apreciados, pelo que se crê que não se verifica a apontada nulidade. No entanto, V.ªs Excelências melhor decidirão.»
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II. Objeto do Recurso
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objeto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, importa decidir:
i) Se a decisão recorrida é nula por omissão de pronuncia;
ii) Da verificação dos pressupostos legais do artigo 244.º do CIRE para que haja lugar à recusa da concessão da exoneração do passivo restante.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
A) De Facto
Atentos os elementos que constam dos autos, encontram-se provados, com interesse para a decisão a proferir, os factos que constam do relatório que antecede e cujo teor se dá por reproduzido e bem assim os seguintes que resultam da consulta eletrónica dos autos:
1. Em 05.06.2020 (ref. Citius n.º…) juntou a Sra. Fiduciária relatório referente ao 1º ano de cessão no qual informou que: “no período de setembro de 2018 a agosto de 2019 o insolvente não transferiu para a conta bancária da signatária quaisquer quantias, encontrando-se em incumprimento.// Procedeu a signatária a várias diligências nomeadamente envio de carta registada para o insolvente a dar conhecimento do IBAN da conta bancária para transferência dos valores que excediam o valor fixada pelo Meritíssimo Juiz do processo de insolvência, tendo a mesma sido devolvida, contactou por via telefónica a mandatária do insolvente a dar-lhe conhecimento dessa devolução a qual se disponibilizou de imediato para dar conhecimento ao insolvente do teor da carta, no entanto desconhece-se que o tenha feito, dado que até à presente data não foi obtida qualquer resposta da referida mandatária apesar das várias insistências conforme documentos anexo.”
2. Em 12/11/2020 (ref. Citius n.º…) juntou a Sra. Fiduciária relatório referente ao 2º ano de cessão no qual informou o seguinte: «1-O devedor trabalha na (…)., exerce a função de motorista.// 2- Foi-lhe fixado o rendimento indisponível correspondente a um ordenado mínimo nacional mensal, conforme despacho inicial de exoneração de passivo restante.// 3- O devedor não cedeu quaisquer quantias ou documentos comprovativos dos seus rendimentos.// Pelo exposto encontra-se a signatária impedida de apurar qual o montante em divida.»
3. Em 2/02/2021 foi proferido despacho com o seguinte teor: «Vi a informação elaborada pela Sra. Fiduciária.// Notifique o insolvente para, em 10 dias, facultar à Sra. Fiduciária os recibos de vencimento e declaração de rendimentos de 2019 e 2020, alertando-o que a falta de colaboração com a mesma constitui incumprimento das suas obrigações e poderá justificar a cessação antecipada do procedimento de exoneração.»
4. Em 15/09/2021 (ref. Citius n.º …) juntou a Sra. Fiduciária relatório referente ao 3º ano de cessão no qual informou o seguinte: « 1-O devedor trabalha na (…), exerce a função de motorista.// 2- Foi-lhe fixado o rendimento indisponível correspondente a um ordenado mínimo nacional mensal, conforme despacho inicial de exoneração de passivo restante.// 3- O devedor á semelhança dos anteriores Relatórios Anuais não cedeu quaisquer quantias nem apresentou documentos comprovativos dos seus rendimentos.// Pelo exposto encontra-se a signatária impedida de apurar qual o montante em divida.»
Este relatório foi notificado à Ilustre mandatária do insolvente conforme certificação Citius.
5. Em 4/07/2022 o devedor, a Sra. Fiduciária e os credores da insolvência foram notificados nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 244º, n.º1 do CIRE.
6. Por requerimento de 5/07/2022 pronunciou-se a Sra. Fiduciária nos seguintes termos: «(…) Em face de se ter completado os três anos subsequentes ao encerramento do processo de Insolvência, não foram cumpridos pelo Devedor os pressupostos previstos no nº 4 do artº 239º do CIRE, ignorando reiteradamente as informações a prestar á signatária quanto aos rendimentos auferidos no decurso do período da cessão de rendimentos com vista á exoneração do passivo restante, com início em setembro do ano 2018 a Março de 2022.// Deste modo, e face ao supra exposto, entende a signatária que o Devedor não deverá beneficiar da concessão da exoneração do passivo restante, conforme previsto no art.º 245º do CIRE.»
7. Por requerimento de 14/07/2022 (ref. Citius n.º…) pronunciou-se o insolvente nos seguintes termos: «(…) inexistindo elementos em contrário, vem solicitar a V. Exa. se digne conceder-lhe a exoneração do passivo restante.»
8. Em 4/10/2022 foi proferido despacho com o seguinte teor: «(…)solicite à Sra. Fiduciária que junte aos autos todas as comunicações escritas remetidas ao insolvente ou à sua mandatária solicitando o envio de documentos/colaboração/informações.// Junta essa informação, notifique o insolvente, pessoalmente e na pessoa da sua mandatária, com cópia da informação prestada pela Sra. Fiduciária nos termos do art.244º, para, querendo, se pronunciar.»
9. Junta a documentação pela Sra. Fiduciária respondeu o devedor, por requerimento de 6/12/2022 (ref. Citius n.º…) nos seguintes termos: «(…) Possivelmente, não fez todas as entregas devidas ao senhor Fiduciário.// Porque desconhece o que estará em falta, solicita a V. Exa. se digne solicitar ao senhor Fiduciário, informação das quantias em dívida.// Mais requer um prazo suplementar de 6 meses para proceder aos pagamentos, eventualmente, devidos.»
10. Em 21/12/2022 (ref. Citius n.º…) foi proferido despacho com o seguinte teor: «Notifique o insolvente pessoalmente e na pessoa da sua mandatária para, em 10 dias, fazer chegar à Sra. Fiduciária cópia das suas declarações de rendimentos de 2018 e seguintes e cópia dos seus recibos de vencimentos referentes aos meses de Agosto de 2018 a Abril de 2022, sob pena de não concessão da exoneração do passivo restante – cfr. art.243º, n.º3, 2ª parte.// Dê conhecimento deste despacho à Sra. Fiduciária que deve informar se os documentos lhe foram entregues e na afirmativa elaborará um documento final apurando o valor devido (sendo o caso) pelo insolvente.»
11. Em 19/04/2023 (ref. Citius n.ºs…), juntou a Sra. Fiduciária os seguintes relatórios do estado da cessão
12. Em 22/05/2023 (ref. Citius n.º…) foi proferido despacho com o seguinte teor: «Notifique o insolvente para apresentar à Sra. Fiduciária as notas de liquidação de IRS do ano de 2018 e subsequentes.// Mais o notifique das informações apresentadas pela mesma em 19.4.2023.// No prazo de 20 dias a Sra. Fiduciária esclarecerá se os documentos em falta lhe foram apresentados e apresentará o apuramento final dos valores não entregues pelo insolvente.»
13. Em 13/06/2023 (ref. Citius n.º…) a Sra. Fiduciária apresentou requerimento com o seguinte teor: “(…) de acordo com o ordenado por V.Ex.ª, conforme despacho de 22.05.2023, informar que o devedor não procedeu ao envio dos documentos em falta até á presente data.// A signatária solicitou à Mandatária do insolvente o envio dos referidos documentos conforme e-mails junto, mas tal pedido não foi satisfeito.”
14. Em 10/07/2023 (ref. citius n.º…) foi proferido despacho com o seguinte teor: «A Sra. Fiduciária informou que o insolvente não entregou os documentos em falta.// Considerando a consequência desta omissão, notifique o insolvente, pessoalmente e na pessoa da sua Advogada para, em 10 dias, remeter à Sra. Fiduciária as liquidações de IRS do ano de 2018 e seguintes, advertindo-o que a falta de envio destes documentos constitui, por si só, fundamento para a recusa de exoneração do passivo restante – cf. art.243º n.º3 2ª parte do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.»
15. Em 11/07/2023 (ref. Citius n.º …) a Sra. Fiduciária juntou a seguinte informação: “na sequência da entrega das notas de liquidação de IRS pelo insolvente, precedeu-se à alteração das Relações de cessão de rendimentos relativo ao 1.º, 2.º e 3.º períodos, cujos valores apurados em divida são de €22.888,63, conforme Resumo da Cessão de Rendimentos de setembro/2018 a abril/2020 que se junta, pelo que se aguarda que seja feita a regularização pelo insolvente.”
16. Em 2/10/2023 (ref. n.º…) a Sra. Fiduciária juntou aos autos Relatório Final nos termos do art.º 244.º do CIRE do qual consta o seguinte: “Em face de se ter completado os três anos subsequentes ao encerramento do processo de Insolvência, não foram cumpridos pelo Devedor os pressupostos previstos no nº 4 do art.º 239º do CIRE, não regularizando a quantia €22.888,63 em divida, relativo ao seu valor disponível no período da cessão de rendimentos com vista à exoneração do passivo restante, com início em setembro do ano 2018.// Deste modo, e face ao supra exposto, entende a signatária que o Devedor não deverá beneficiar da concessão da exoneração do passivo restante, conforme previsto no artº 245º do CIRE.”
17. Em 23/10/2023 (ref. Citius n.º…) o insolvente juntou aos autos requerimento com o seguinte teor: “(…) insolvente nos autos à margem identificados, vem solicitar a V. Exa. se digne autorizar o pagamento da cessão de rendimentos. em falta, faseadamente, em prestações mensais, iguais e sucessivas de €250,00 cada.”
18. Em 1/12/2023 (ref. Citius n.º…) foi proferido despacho com o seguinte teor: «(…) O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não prevê o pagamento do valor devido à fidúcia em prestações, mas apenas a possibilidade de prorrogação do período da cessão, o que deve ser requerido no prazo e condições legalmente prescritas.// Nessa medida, porque o solicitado não tem acolhimento legal, deve ser indeferido.// Termos em que, por falta de base legal, indefiro o pedido de pagamento do valor devido à fidúcia em prestações.// Notifique o insolvente para entregar o valor ali referido à Sra. Fiduciária.// Notifique este despacho, devendo, oportunamente, à Sra. Fiduciária informar se lhe foi entregue pelo insolvente alguma quantia.// Essa mesma informação deve ser notificada aos credores.»
Este despacho foi devidamente notificado ao insolvente e à sua mandatária conforme certificação Citius.
19. Por requerimento de 14/12/2023 (ref. Citius n.º…) veio o insolvente apresentar requerimento com o seguinte teor: “(…) insolvente nos autos à margem identificados, vem solicitar a V. Exa. se digne autorizar a prorrogação do período de cessão, por um mínimo de 6 meses, uma vez que está a atravessar sérias dificuldades económicas.”
20. Em 12/02/2024 foi proferido despacho que concluiu pelo indeferimento do requerido, por não estarem reunidos os pressupostos de concessão da prorrogação do período de cessão, ao abrigo do disposto no artigo 242.º-A n.ºs 1 e 2 do CIRE, conforme requerido pelo Insolvente.
Este despacho foi devidamente notificado ao insolvente e à sua mandatária conforme certificação Citius.
21. Em 26/02/2024 (ref. Citius n.º…) veio o insolvente juntar requerimento com o seguinte teor: “(…) insolvente nos autos à margem identificados, vem solicitar a V. Exa. se digne autorizar a concessão de prazo não inferior a 10 dias, a fim comprovar o pagamento em falta, e uma vez que está a refazer as contas, as quais como comprovará não coincidem com as da Sra. Administradora.”
22. Em 4/03/2024 (ref. Citius n.º…) foi proferido despacho com o seguinte teor: «O momento para “refazer as contas” já foi ultrapassado, tendo o insolvente tido oportunidade de alegar o que tivesse por conveniente sobre os valores em falta.// Assim, indefiro o peticionado.// Notifique para comprovar o pagamento em 5 dias.»
Estes despacho foi devidamente notificado ao insolvente conforme certificação citius.
23. Em 13/03/2024 (ref. Citius n.º…) o insolvente apresentou requerimento com o seguinte teor: “insolvente nos autos à margem identificados, vem solicitar a V. Exa. A concessão de um prazo não inferior a 30 dias, para pagar a quantia em falta, uma vez que não tem condições de pagar no prazo concedido./// O insolvente terá que recorrer a um empréstimo particular, o que só logrará obter no prazo solicitado.”, requerimento que veio a merecer deferimento por despacho de 18/03/2024 (ref. Citius n.º…).
24. Em 3/06/2024 (ref. Citius n.º…) veio a Sra. Fiduciária informar que o insolvente até à data não entregou os valores em falta.
25. Em 18/07/2024 (ref. Citius n.º…) o devedor apresentou nos autos requerimento, mediante o qual, entendendo que as contas laboram em lapso, solicita seja ordenado à Senhora Fiduciária, a correção das mesmas.
26. Em 25/07/2024 (ref. Citius n.º…) a Sra. Fiduciária, notificada do requerimento referido em 25) juntou aos autos requerimento com o seguinte teor: “vem na sequência do requerimento apresentado pela mandatária do insolvente, requerer a V.Ex.ª, se digne ordenar que seja notificada a referida mandatária, para apresentar documentos comprovativos dos pagamentos efetuados a título de pensão de alimentos aos filhos do insolvente, dado que o mesmo nunca os apresentou á signatária no período da cessão de rendimentos e ter obtido informação de que o insolvente se encontrava em incumprimento.”, o que foi deferido por despacho de 11/09/2024 (ref. Citius n.º…).
27. Em 26/09/2024 (ref. Citius n.º…) respondeu o insolvente “que o pagamento das pensões de alimentos estão plasmados nos vários recibos de vencimento do insolvente, recibos estes que estão na posse da senhora Fiduciária.”
28. Em 22/10/2024 (ref. Citius n.º…) pronunciou-se a Sra. Fiduciária nos seguintes termos: “vem na sequência do requerimento apresentado pela mandatária do insolvente de 18.07.2024, esclarecer que a signatária informou de acordo com requerimento junto aos autos em 25.07.2024 que não foram apresentados documentos comprovativos dos pagamentos efetuados a título de pensão de alimentos, no entanto verificou-se que devido ao facto dos referidos pagamentos serem descontados mensalmente na remuneração do insolvente, não tinham que ser apresentados á Fiduciária.// Como já foi referido no requerimento junto aos autos em 03.10.2024 apenas foi considerado pela signatária para o cálculo da cessão de rendimentos, o valor líquido após as deduções das pensões de alimentos, a fim de não serem consideradas em duplicado.”
29. Em 11/11/2024 (ref. Citius n.º…) foi proferido despacho com o seguinte teor: «A Sra. Fiduciária foi notificada para se pronunciar sobre o exposto pelo insolvente em 18.7.2024 e veio esclarecer que no apuramento efectuado considerou o valor liquido, deduzido do valor pago a título de pensões de alimentos.// Assim sendo, o exposto pelo insolvente em 18.7.2024 não impacta com o valor devido à fidúcia e informado pela Sra. Fiduciária.// Termos em que, uma derradeira vez, determino a notificação do insolvente, pessoalmente e na pessoa da sua advogada, para entregar à fidúcia o valor correspondente ao rendimento disponível apurado.»
Este despacho foi devidamente notificado ao insolvente, conforme certificação citius e transitou em julgado.
30. Em 21/11/2024 (ref. Citius n.º…) juntou o devedor requerimento com o seguinte teor: “insolvente nos autos à margem identificados, vem reiterar o teor do requerimento apresentado em 18/07/2024.// De facto, os montantes apurados pela senhora Fiduciária não estão correctos, pois a eles não foram deduzidas as pensões de alimentos, pagas directamente pela entidade patronal. No modo de cálculo não teve em conta as pensões.// E assim deverão, antes de mais, serem as contas da senhora Fiduciária serem corrigidas.”
31. Em 14/01/2025 (ref. Citius n.º…) foi proferido despacho com o seguinte teor: «O exposto e agora reiterado pelo insolvente já foi apreciado no anterior despacho. O insolvente insiste com a mesma argumentação que já foi analisada e desconsiderada por, como já se referiu, não impactar com as contas apresentadas pela Sra. Fiduciária.// Assim sendo nada mais há a apreciar, devendo o insolvente cumprir o ordenado sob pena de lhe ser recusada a exoneração do passivo restante.»
Este despacho foi devidamente notificado ao insolvente e à sua mandatária conforme certificação Citius.
32. Em 26/01/2025 (ref. Citius n.º…) o devedor juntou aos autos requerimento com o seguinte teor: “insolvente nos autos à margem identificados, vem reiterar o teor do requerimento apresentado em 18/07/2024e 20/11/24.// De facto, os montantes apurados pela senhora Fiduciária não estão correctos, pois a eles não foram deduzidas as pensões de alimentos, pagas directamente pela entidade patronal. No modo de cálculo não teve em conta as pensões.// E, assim, deverão, antes de mais, serem as contas da senhora Fiduciária corrigidas.”
*
B) De Direito
I. Da nulidade da decisão recorrida por omissão de pronuncia
Invoca o apelante a nulidade do despacho recorrido prevista na alínea d) do art.º 615º do CPC, (conclusão 2), a qual ocorre quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…).
A omissão de pronúncia está relacionada com o comando contido no art.º 608º, n.º2 do CPC, exigindo ao juiz que resolva todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, “excetuadas aquelas cujas decisões estejam prejudicadas pela solução dada a outras”.
São coisas diferentes deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte.
É jurisprudência consensual dos tribunais portugueses que importa não confundir questões (cuja omissão de pronúncia desencadeia nulidade da decisão nos termos da alínea d) do nº 1 do art.º 615º do CPC) com argumentos, razões ou motivos que são aduzidos pelas partes em defesa ou reforço das suas posições – cf. Acórdão do STJ de 20/11/2014, processo n.º 810/04.0TBTVD.L1.S1, relator: Álvaro Rodrigues. Esta é também a lição da generalidade da doutrina, referenciando-se Alberto dos Reis, in Código de processo Civil Anotado, Vol. 5, pág. 143.
Só existe o dever de o juiz conhecer e decidir questões; não existe tal dever quanto aos argumentos invocados pelas partes para fazer valer as suas pretensões (cf. Acórdão do STJ de 14/07/2021, processo n.º 10/21.4YFLSB, relatora Catarina Serra).
As questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
O conceito de “questões”, a que ali se refere o legislador, deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos, como já acima deixámos referido, os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes (vide, por todos, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª. Ed., Almedina, págs. 713/714 e 737.” e Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processos Civil, 6ª. Ed. Atualizada, Almedina, pág.136.).
Diferente das questões a dirimir/decidir são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do art.º 608.º, n.º 2, do CPC.
Constitui, pois, jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, que a nulidade da decisão por omissão de pronúncia “apenas se verificará nos casos em que ocorra omissão absoluta de conhecimento relativamente a cada questão e já não quando seja meramente deficiente ou quando se tenham descurado as razões e argumentos invocados pelas partes (cf. Acórdão do STJ de 12/01/2021, processo n.º 379/13.4TBGMR-B.G1.S1, relator Paulo Ferreira da Cunha, de 16/11/2021, processo n.º 5097/05.4TVLSB.L2.S3, relator Pedro Lima Gonçalves, e de 01/02/2023, processo n.º 252/19.2T8OAZ.P1.S1, relator Júlio Gomes).
No caso, alega o recorrente que o Tribunal a quo não poderia deixar de se pronunciar sobre questão que tinha obrigação de conhecer, justamente a questão da correção das contas apresentadas pela Sra. Fiduciária e que, no entender no apelante se encontravam mal elaboradas.
A decisão recorrida tinha como objeto a decisão final do incidente de exoneração, conforme prevê o artigo 244º do mesmo CIRE sobre a concessão ou não da exoneração, a qual só virá a ter lugar depois de decorrido o designado período de cessão, (sem prejuízo da sua cessação antecipada, nas condições previstas no artigo 243º do CIRE).
Não tendo havido lugar a cessação antecipada, como é o caso dos autos, “ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor” (art. 244.º, n.º 1).
A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo 243.º (n.º 2 do art.º 244.º).
Assim, a decisão de recusa da exoneração do passivo restante, à luz das disposições conjugadas dos artigos citados, pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a) violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido de exoneração; b) que essa violação decorra de uma atuação dolosa ou com grave negligência; c) verificação de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência; d) e existência de nexo de causalidade entre a conduta e o prejuízo.
Foi, precisamente, sobre a verificação destes pressupostos que versou a decisão recorrida.
Mas, para além, e no que contende com a apreciação das contas que o apelante pretendia ver retificadas, escreveu-se o seguinte na decisão recorrida: «Ora, in casu, ante o exposto, constata-se que o Insolvente foi regularmente notificado de todos os despachos, e inclusive do Despacho de 14-01-2025, continuando a insistir que as contas devem ser corrigidas pela Sra. Fiduciária, e, portanto, não procedeu à fidúcia do valor correspondente ao rendimento disponível apurado.»
Com efeito, o apelante não concordando com os cálculos efetuados pela Sra. Fiduciária, por considerar existirem erros de cálculo - designadamente tendo em conta o montante das pensões de alimentos por si devidas aos seus filhos menores, e pagas diretamente, por desconto, no seu salário, nos termos do disposto no art.º 48º, n.º1, al. b) da Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro - , em 18/07/2024 (ref. Citius n.º…) apresentou nos autos requerimento, solicitando que fosse ordenado à Sra. Fiduciária, a correção das mesmas. Notificada a Sra. Fiduciária deste requerimento, e após, esclarecimento, pelo apelante, de que o pagamento das pensões de alimentos estão plasmados nos vários recibos de vencimento do insolvente, recibos estes que estão na posse da Sra. Fiduciária, pronunciou-se no sentido de que apenas foi por si considerado para o cálculo da cessão de rendimentos, o valor líquido após as deduções das pensões de alimentos, a fim de não serem consideradas em duplicado.
É, então que, em 11/11/2024 (ref. Citius n.º…) pelo Tribunal a quo foi proferido despacho com o seguinte teor: « A Sra. Fiduciária foi notificada para se pronunciar sobre o exposto pelo insolvente em 18.7.2024 e veio esclarecer que no apuramento efectuado considerou o valor liquido, deduzido do valor pago a título de pensões de alimentos.// Assim sendo, o exposto pelo insolvente em 18.7.2024 não impacta com o valor devido à fidúcia e informado pela Sra. Fiduciária.// Termos em que, uma derradeira vez, determino a notificação do insolvente, pessoalmente e na pessoa da sua advogada, para entregar à fidúcia o valor correspondente ao rendimento disponível apurado.»
Não obstante este despacho que apreciou, em concreto, a correção das contas apresentadas pela Sra. Fiduciária, no sentido de que o exposto pelo insolvente no requerimento de 18.7.2024 não impactava com o valor devido à fidúcia e informado pela Sra. Fiduciária, voltou, o apelante, em 21/11/2024 (ref. Citius n.º…) a reiterar o requerimento anterior, sobre o que incidiu despacho em 14/01/2025 onde o Tribunal a quo refere que a questão de novo suscitada já havia sido apreciada.
E, de facto assim é. Tendo presente que as questões submetidas à apreciação do tribunal se identificam com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas e que as questões a dirimir/decidir se distinguem dos argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do art.º 608.º, n.º 2, do CPC, é manifesto que o Tribunal a quo se pronunciou, expressamente, sobre a questão suscitada pelo recorrente e relativa à correção das contas apresentadas pela Sra. Fiduciária, dizendo, de modo inequívoco, que o exposto pelo recorrente no requerimento de 18/07/2024 não impactava com o valor devido à fidúcia e informado pela Sra. Fiduciária.
Proferido este despacho, posteriormente veio a ser reiterado pelo despacho de 14/01/2025.
O despacho proferido em 11/11/2024 foi devidamente notificado ao insolvente, conforme certificação citius, do qual não interpôs recurso.
A forma como se decidiu (mediante despacho transitado em julgado, logo vinculativo no processo), afasta a possibilidade de o apelante pretender, posteriormente, que a decisão apelada voltasse a reapreciar a questão da correção das contas apresentadas pela Sra. Fiduciária, continuando a insistir que as contas devem ser corrigidas. E, isso mesmo, se consignou no despacho recorrido.
Ao se ter conformado com tal decisão, não poderia o apelante pretender que tal questão fosse objeto de nova apreciação pelo Tribunal a quo, por a isso impedir o caso julgado formado – artigo 628.º do CPC. O decidido no despacho proferido em 11/11/2024, resolvendo a questão suscitada pelo apelante quanto ao erro de cálculo do montante devido à fidúcia, transitou em julgado, ou seja, consolidou-se o momento a partir do qual tal questão passou a revestir de certeza e segurança jurídica (vinculando o insolvente e a Sra. Fiduciária, quanto aos cálculos efetuados e ao montante ainda em divida à fidúcia).
Versando a decisão recorrida sobre os pressupostos da recusa da exoneração para efeitos do previsto no art.º 243, n.º1 do CIRE (para o qual remete o n.º 2 do artigo 244.º), o entendimento defendido pelo apelante apenas poderia ser alvo de reapreciação caso tivesse recorrido daquele despacho, evitando, deste modo, a consolidação dos cálculos efetuados, não tendo de o ser, novamente, na decisão recorrida, como de resto, nela mesma se diz ao referir que «(…) o Insolvente foi regularmente notificado de todos os despachos, e inclusive do Despacho de 14-01-2025, continuando a insistir que as contas devem ser corrigidas pela Sra. Fiduciária.»
Concluímos, assim, que a decisão recorrida não padece da nulidade prevista no art.º 615°, n.º1, al. d) do CPC, improcedendo, nesta parte, a apelação.
*
II.
A decisão sob recurso concluiu que o insolvente violou dolosamente a sua obrigação de entregar à fidúcia a quantia em falta apurada - €22.888,63, relativo ao seu valor disponível no período da cessão de rendimentos prejudicando, dessa forma, a satisfação dos créditos sobre a insolvência, pelo que, conforme artigo 239.º, n. º4, alínea c) do CIRE, recusou a exoneração do passivo restante.
Defende o apelante que apenas solicitou a correção das contas da Fiduciária para, após correção, efetuar a entrega, eventualmente em falta, que não dissimulou rendimentos, não violou as obrigações impostas pela decisão de admissão liminar da exoneração do passivo restante e apenas solicitou a correção efetiva dos valores apresentados, não agiu com dolo, ou sequer negligência e, finalmente, não se verificou o nexo causal necessário entre a conduta do insolvente e os danos causados para a satisfação dos créditos sobre a insolvência e que sequer existiram danos.
Como refere Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, 2ª edição, pág. 610, o instituto da exoneração do passivo corresponde à Discharge na lei norte americana e à Restschuldbefreiung da lei alemã, traduzindo uma ideia de “fresh start” em que ocorre a extinção das dívidas e a libertação do devedor por forma a que este não fique inibido de começar de novo e poder retomar a sua atividade económica.
O artigo 235º do CIRE (na redação dada pela Lei 9/2022 de 11/01) atribui ao devedor que seja uma pessoa singular, a possibilidade de lhe vir a ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos tês anos posteriores ao encerramento deste.
Consagrou, assim, o CIRE, uma “versão bastante mitigada” do modelo do fresh start, na medida em que, a seguir à liquidação, decorre um “período probatório”, que é atualmente de três anos, durante o qual o devedor deverá afetar o seu rendimento disponível ao pagamento das dívidas aos credores que não foram integralmente satisfeitas no processo de insolvência. Só depois de decorrido tal período e se a sua conduta tiver sido exemplar, poderá o devedor requerer a exoneração, obtendo, assim, o remanescente não pago (cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 04/02/2020, Relatora Maria João Areias, proc. n.º 1350/19.8T8LRA-D.C1, in www.dgsi.pt, citando Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, in Regular o sobre-endividamento” in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações Sobre o Anteprojeto de Código”, Ministério da Justiça – Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pp.88-91).
Durante os atuais três anos de provação, o devedor assume o cumprimento dos deveres que lhe são impostos, pautando a sua conduta pelos princípios da boa fé, transparência e honestidade. A sua conduta é sujeita a avaliação anual e, findo aquele período, sujeita ao crivo de uma decisão judicial, ouvidos que são os credores, o fiduciário (artigos 240.º e 241.º CIRE) e o próprio devedor (artigo 237.º, al. d), do CIRE).
É o chamado período de cessão (artigo 239.º, n.º 2, do CIRE), durante o qual o rendimento disponível do insolvente é afetado ao pagamento das dívidas que restarem após a liquidação do ativo. Tal rendimento é entregue ao fiduciário (artigo 240.º do CIRE).
Durante o período da cessão, o devedor fica sujeito ao cumprimento das obrigações previstas no n.º4 do art.º 239º, das quais se destaca a já mencionada entrega dos rendimentos que extravasem o rendimento indisponível fixado pelo tribunal - os quais serão afetados aos fins previstos no artigo 241.º - e que são determinados por contraposição com os rendimentos necessários a uma subsistência humana e socialmente condigna e que cabe ao juiz quantificar e fixar (o referido rendimento indisponível).
Na eventualidade de ser concedida a exoneração, extinguem-se todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data, sem exceção dos créditos não reclamados e verificados (artigo 245.º, n.º 1, do CIRE).
Como se trata de um benefício concedido pelo legislador, o devedor deve empenhar-se em merecê-lo – o perdão total das dívidas não integralmente pagas – e sua concessão estará vinculada à real disponibilização do “rendimento disponível”, conforme definido no n.º 3 do art.º 239º do CIRE, ao longo dos três anos após o encerramento do processo de insolvência. Trata-se da contrapartida pelo sacrifício do devedor, que, durante o período de cessão, deve cumprir várias obrigações, incluindo a de “exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e buscar ativamente um emprego quando estiver desempregado”, além de “entregar imediatamente ao fiduciário, assim que recebida, a parte de seus rendimentos objeto de cessão” – cf. as alíneas b) e c) do nº 4 do art.º 239º.
Relativamente a esta última decisão final, prevê o artigo 244º do CIRE, o seguinte:
1 – Não tendo havido lugar a cessão antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respectiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
2 – A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
Deste modo, o juiz, para efeitos de recusa da exoneração do passivo restante do devedor, está vinculado pelos fundamentos e pelos requisitos previstos nas alíneas a), b) e c), do antecedente artigo 243º do CIRE.
“O juiz do processo não tem, em sede de decisão final após o decurso do período da cessão, um poder discricionário quanto à concessão ou recusa da exoneração, antes vinculado, pois que deve atribuí-la ou não, consoante a avaliação que faça, à luz dos elementos colhidos nos autos ou de outras diligências de instrução que julgue pertinentes, quanto à verificação ou não de algum dos fundamentos e requisitos previstos nas alíneas a) a c), do n.º 1, do artigo 243º, do CIRE. “(cf. Luís A. Carvalho Fernandes, João Labareda, in CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 870).
Os pressupostos exigidos pelo referido preceito legal para a recusa da exoneração do passivo restante, designadamente o convocado para a presente decisão - art.º 243º nº 1 al. a) do CIRE - mantiveram-se os mesmos, apesar das alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022 de 11/1, que entrou em vigor a 11/4/2022 e, que de acordo com o art.º 10º nº 3 se aplica aos processos pendentes.
Preceitua aquele art.º 243º do CIRE, no que para aqui importa, o seguinte:
1 – Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se ainda estiver em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
A hipótese vertida no art.º 243º nº 1 al. a) do CIRE, remete para a violação de alguma das obrigações impostas aos devedores pelo art.º 239º nº 4 do CIRE.
Segundo esse último preceito legal, durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer qualquer pagamento aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
Assim, a recusa da exoneração para efeitos do previsto na alínea a) do n.º 1 do art.º 243º do CIRE está dependente da verificação de pressupostos objetivos – incumprimento pelo devedor de alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º e prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência em razão desse incumprimento – e subjetivos – dolo ou negligência grave do devedor.
Como se refere no Acórdão desta secção de 13/07/2023, proferido no processo n.º 693/19.5T8BRR.L1-1, relatora Renata Linhares de Castro, “Decorre, assim, da lei que nem toda e qualquer violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido exoneração releva como causa de recusa do benefício: o artigo 243.º, n.º 1, al. a), é taxativo ao exigir que se trate de uma prevaricação dolosa ou com grave negligência e, cumulativamente, que a atuação do devedor tenha prejudicado a satisfação dos credores da insolvência. Porém, ao contrário do que sucede para a revogação da exoneração, onde se exige que ocorra prejuízo relevante (artigo 246.º, n.º 1, in fine), na cessação antecipada e na recusa mostra-se suficiente um qualquer prejuízo para a satisfação dos créditos, desde que, claro está, não seja o mesmo insignificante. A estes dois requisitos adiciona a doutrina um terceiro, a saber: existência de nexo causal entre a conduta dolosa ou gravemente negligente do insolvente e o dano para a satisfação daqueles créditos (este dano há-de ser causado pela conduta do insolvente).”
Reportando ao caso concreto, o período de cessão inicialmente previsto (de 5 anos) apenas terminaria em junho de 2024. Contudo, em face da entrada em vigor da Lei n.º 9/2022, e da redução de tal período para 3 anos, ter-se-á de considerar que o mesmo cessou em abril de 2022.
Em face dos elementos constantes dos autos, decorrido o período de cessão, outra não pode ser a conclusão se não a de que ocorreu incumprimento por parte do devedor em entregar imediatamente ao fiduciário, quantia por si recebida, ou seja, a parte dos seus rendimentos objeto da cessão, incumprimento esse que se conclui ter sido reiterado e ausente de justificação.
Com efeito, o insolvente foi notificado do montante que lhe havia sido fixado a título de rendimento indisponível, contra o decidido não se tendo insurgido, questão que assim se tronou definitiva no despacho liminar.
Consequentemente, todas as quantias que excedessem tal rendimento (correspondente a 1 SMN acrescido do valor fixado a título de pensão de alimentos aos filhos no valor de 240,00€) teriam necessariamente de ter sido entregues à Sra. Fiduciária, facto que era, evidentemente, do conhecimento do apelante, que estava ciente da obrigação de entrega dos montantes a ceder e do momento a partir do qual tal obrigação teria que ser cumprida, não podendo ignorar o incumprimento em que incorria.
Resulta da factualidade apurada nos autos, que durante o 1.º, 2.º, 3.º e 4º períodos de cessão, o insolvente recebeu a quantia de €22.888,63, relativo ao seu valor disponível no período da cessão de rendimentos com vista à exoneração do passivo restante, com início em setembro do ano 2018, valor que que não entregou à fiduciária.
Resulta também que em 23/10/2023 pediu para efetuar tal pagamento em prestações mensais e sucessivas de 250,00€, o que veio a ser indeferido, por despacho de 1/12/2023, transitado em julgado.
Em momento anterior, e juntos pela Sra. Fiduciária os relatórios referentes ao 1º ano, 2º, 3º e 4ºs anos de cessão, deles consta que “o devedor não cedeu quaisquer quantias ou documentos comprovativos dos seus rendimentos”.
Notificado para efeitos do disposto no art.º 244, n.º1 do CIRE, pronunciou-se o insolvente nos seguintes termos: «(…) inexistindo elementos em contrário, vem solicitar a V. Exa. se digne conceder-lhe a exoneração do passivo restante.» e, após diligências do Tribunal no sentido de apurar todas as comunicações escritas remetidas ao insolvente ou à sua mandatária solicitando o envio de documentos/colaboração/informações, respondeu o apelante reconhecendo que: “Possivelmente, não fez todas as entregas devidas ao senhor Fiduciário.// E, alegando desconhecer o montante que estaria em falta, requereu informação das quantias em dívida, e prazo suplementar de 6 meses para proceder aos pagamentos, eventualmente, devidos.
É inequívoco que, mediante este requerimento, pelo insolvente foi reconhecido não ter procedido à entrega pontual das quantias por si devidas à fidúcia, durante todo o período da cessão.
O Tribunal a quo insistiu, novamente, em 21/12/2022 junto do apelante para que fizesse chegar à Sra. Fiduciária cópia das suas declarações de rendimentos de 2018 e seguintes e cópia dos seus recibos de vencimentos referentes aos meses de Agosto de 2018 a Abril de 2022, com a expressa advertência da não concessão da exoneração do passivo restante.
Porém, e como resulta do requerimento da Sra. Fiduciária de 13/06/2023 nem o devedor, nem a sua Ilustre mandatária enviaram à Sra. Fiduciária os elementos em falta, vindo a fazê-lo conforme informação da Sra. Fiduciária de 11/07/2023, contabilizando-se o apuramento do valor em divida à fidúcia na quantia de 22.888,63€, que não foi paga - conforme informação de 2/10/2023 -, pronunciando-se, novamente, a Sra. Fiduciária pela não concessão da exoneração do passivo restante, na sequência do que o apelante voltou a solicitar o pagamento da quantia em divida em prestações, conforme supra referido, pretensão que, como se disse, veio a ser indeferida, por despacho de 1/12/2023, transitado em julgado. E, foi na decorrência desse indeferimento, que o insolvente pediu a prorrogação do período de cessão, por um mínimo de 6 meses, pretensão, também ela indeferida, por despacho de 12/02/2024 transitado em julgado.
Em 26/06/2024 requereu, então, a concessão de prazo não inferior a 10 dias, a fim de comprovar o pagamento, assinalando a sua intenção de refazer as contas, as quais, no seu entender, não coincidiam com as da Sra. Administradora.
Subsequentemente, foi proferido despacho a indeferir ao requerido, fixando um prazo de cinco dias para comprovar o pagamento e anotando que o momento para “refazer as contas” já havia sido ultrapassado, tendo o insolvente tido oportunidade de alegar o que tivesse por conveniente sobre os valores em falta.
Com efeito, a decisão final sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante a que alude o art.º 244º, nº 1 do CIRE é proferida depois de ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência. Findo o prazo referido, o juiz decidirá nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artº 242º-A do CIRE, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor (nº 1 do art.º 244º do CIRE).”
No caso, em 4/07/2022, o devedor, a Sra. Fiduciária e os credores da insolvência foram notificados nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 244º, n.º1 do CIRE.
Por requerimento de 14/07/2022 (ref. Citius n.º…) pronunciou-se o insolvente nos seguintes termos: «(…) inexistindo elementos em contrário, vem solicitar a V. Exa. se digne conceder-lhe a exoneração do passivo restante.»
Se, do seu ponto de vista, existiam incorreções no cálculo efetuado pela Sra. Administradora de Insolvência no que diz respeito ao montante devido à fidúcia teria de ter sido nesta fase que a questão deveria ter sido suscitada.
Não obstante, o certo é, em derradeira oportunidade, o Tribunal a quo, permitiu a análise da questão porquanto, por despacho de 4/10/2022, ordenou que fosse solicitado à Sra. Fiduciária que juntasse aos autos todas as comunicações escritas remetidas ao insolvente ou à sua mandatária solicitando o envio de documentos/colaboração/informações. E, novamente, junta essa informação, ordenou a notificação do insolvente, pessoalmente e na pessoa da sua mandatária, com cópia da informação prestada pela Sra. Fiduciária nos termos do art.244º, para, querendo, se pronunciar.
Porém, e junta a documentação pela Sra. Fiduciária respondeu o devedor, por requerimento de 6/12/2022 (ref. Citius n.º…) reconhecendo que: «(…) Possivelmente, não fez todas as entregas devidas ao senhor Fiduciário.// Porque desconhece o que estará em falta, solicita a V. Exa. se digne solicitar ao senhor Fiduciário, informação das quantias em dívida.// Mais requer um prazo suplementar de 6 meses para proceder aos pagamentos, eventualmente, devidos.»
O insolvente continuou sem prestar as informações solicitadas e só após ter sido advertido pelo Tribunal a quo em 11/07/2023, tendo disponibilizado os elementos em falta à Sra. Fiduciária, alcançou esta o valor total da divida à fidúcia em €22.888,63, o qual e de acordo com informação prestada nos autos por aquela em 2/10/2023, permanecia por regularizar. Contudo, o insolvente, ao invés de a pagar, requereu o pagamento em prestações (o referido requerimento de 23/10/2023) e, a prorrogação do período de cessão, por um mínimo de 6 meses, pretensões indeferidas, como se disse, por despachos transitados em julgado.
Depois, em 13/03/2024, requereu o insolvente, novo prazo, para pagar a quantia em falta, requerimento que veio a merecer deferimento por despacho de 18/03/2024.
Não obstante, e conforme informação de 3/10/2024, nada pagou. E, só em 25/07/2024, apresentou nos autos requerimento, mediante o qual, entendendo que as contas laboram em lapso, solicitou que fosse ordenado à Senhora Fiduciária, a correção das mesmas.
A Sra. Fiduciária pronunciou-se sobre o por si exposto e concluiu que apenas havia sido considerado para o cálculo da cessão de rendimentos, o valor líquido após as deduções das pensões de alimentos, a fim de não serem consideradas em duplicado, questão que, como se disse supra a propósito da nulidade arguida, foi apreciada no despacho de 11/11/2024, nele se tendo concluído, por referência à informação prestada pela Sra. Fiduciária, não existir qualquer erro de cálculo no montante em divida à fidúcia, despacho esse que transitou em julgado e mediante o qual se ordenou, por uma derradeira vez, a notificação do insolvente, pessoalmente e na pessoa da sua advogada, para entregar à fidúcia o valor correspondente ao rendimento disponível apurado.
O insolvente, ao invés de proceder ao pagamento da quantia em falta, persistiu na sua tese quanto ao erro de cálculo do montante devido à fidúcia, nada tendo pago.
Perante este circunstancialismo resulta objetivamente um incumprimento por parte do insolvente da obrigação prevista no art.º 239º nº 4 al. c) do CIRE.
Apesar de o apelante questionar nas alegações de recurso o incumprimento, alegando que apenas solicitou a correção das contas da Fiduciária para, após correção, efetuar a entrega, eventualmente, em falta, certo é que tal afirmação não encontra respaldo na factualidade apurada nos autos, até porque nunca o alegou no processo sempre que foi notificado dos sucessivos relatórios do período da cessão, requereu o pagamento da quantia, que assumiu correta, em prestações e ainda a prorrogação do período de cessão, pretensões que foram indeferidas por decisões transitadas em julgado. Foram inúmeras as oportunidades que lhe foram concedidas para que esse pagamento fosse efetuado, embora já de forma tardia, com a cominação de que se não o fizesse a concessão da exoneração do passivo restante lhe seria recusada. E, só, em derradeira hipótese veio alegar um erro de cálculo, que, não obstante o já decidido, sem impugnação, persistiu em defender em sede de recurso.
Em conclusão, o apelante incumpriu com a obrigação de entrega (integral e pontual), pois que para além de não ter cedido espontaneamente os montantes em falta, mesmo perante as oportunidades concedidas pelo tribunal a quo para que regularizasse a situação, não o fez, apesar de ter sido alertado das graves consequências que para a insolvente poderiam advir caso persistisse no incumprimento das suas obrigações (despachos de 2/02/2021, 21/12/2022 - ref. Citius n.º…), de 10/07/2023 - ref. citius n.º…, de 14/01/2025 - ref. Citius n.º….
A isto acresce que, o devedor, mesmo após ter sido notificado para os efeitos do disposto no art.º 244º do CIRE, falhou em requerer a prorrogação do período de cessão, nos moldes previstos pelo artigo 242.º-A. Pelo contrário, pugnou pela concessão da exoneração do passivo restante, não podendo ignorar a sua postura de incumprimento da obrigação de forma espontânea e pontual do rendimento disponível à fidúcia.
Como se disse, para a recusa da decisão da exoneração do passivo restante, não bastará um incumprimento objetivo, sendo necessária a verificação do elemento subjetivo, que esse incumprimento seja imputável aos insolventes em termos de dolo ou negligência grave.
A culpa é um nexo de imputação que liga o facto ilícito à vontade do agente cujo conteúdo se traduz num juízo de censura dirigido ao agente por ter atuado de uma certa forma quando podia e devia tê-lo feito de modo diverso.
Refere Galvão Telles, in Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 349-350 que: “Quer a culpa grave, quer a culpa leve correspondem a condutas que uma pessoa normalmente diligente – o bonus pater familias – se absteria. A diferença entre elas está em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida. A culpa grave apresenta-se como uma negligência grosseira (…). A culpa levíssima, essa seria a que apenas uma pessoa excepcionalmente diligente conseguiria evitar.
Também Ana Prata, in Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual, págs. 306 a 308 e 643, defende que culpa grave é o mesmo que “negligência grosseira, erro imperdoável, desatenção inexplicável, incúria indesculpável – vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes”.
Por seu turno, lê-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.07.2019, proferido no processo n.º 4201/09. 8TBGMR.G2, relator Fernando Fernandes Freitas, que “A simples omissão do devedor de entregar ao fiduciário a parte dos rendimentos objeto de cessão não é fundamento bastante de recusa de concessão de exoneração do passivo restante, apenas a podendo fundamentar um comportamento doloso ou gravemente negligente do devedor. É havida como negligência grave a “negligência grosseira, o erro imperdoável, a desatenção inexplicável, a incúria indesculpável”, vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes.”
Quanto à culpa do insolvente, embora não constasse do elenco dos factos provados vertido na sentença recorrida elementos de facto suficientes para o efeito, é inegável que os mesmos se extraem dos autos, conforme consta do relatório desta decisão.
Conforme se extrai dos autos, contrariamente ao alegado na conclusão 10, o apelante estava perfeitamente inteirado desde a data em que foi proferido o despacho liminar, em 25/06/2018, que o valor do rendimento disponível a entregar referente a cada ano de cessão, nada tendo sido pago, e isso foi-lhe comunicado mais do que uma vez e, inclusivamente, já depois de findo o período da cessão foi-lhe dada a possibilidade de, como requereu, efetuar tal pagamento em prazo mais dilatado, sem que tenha aproveitado tal oportunidade, persistindo, a final, na alegação de um erro de cálculo, que não podia ignorar estar decidido, por despacho transitado, tanto mais que devidamente patrocinado por mandatário.
Em conclusão, o apelante estava ciente ou não podia ignorar que não efetuando os pagamentos em falta não lhe poderia ser concedida a exoneração do passivo restante.
Como resulta à evidência do processado dos autos, se o insolvente tinha intenção de pagar o valor em falta devia tê-lo feito nos prazos que lhe foram sucessivamente concedidos. Não obstante, manteve a omissão de pagamento, por mais de três anos consecutivos já após findo o período de cessão, bem sabendo que tal omissão lhe acarretaria as consequências gravosas da recusa de exoneração do passivo restante.
Para beneficiar da exoneração do passivo restante era suposto que o insolvente tivesse feito um esforço de contenção das despesas no período da cessão por forma a merecer a exoneração do passivo restante, de modo a começar do zero sem dívidas, devendo entregar imediatamente à fidúcia a parte dos rendimentos objeto de cessão, permitindo aos credores ver satisfeitos, na medida do possível, parte dos créditos reclamados, o que não fez.
Apurado o circunstancialismo que anteriormente mencionamos e consta do relatório desta decisão, podemos concluir que o insolvente podia e devia ter cumprido pontual e corretamente a entrega dos valores estabelecidos na decisão que fixou o rendimento objeto de cessão, e de forma voluntária e consciente, reteve quantias que bem sabia que não podia fazer suas.
O insolvente adotou uma conduta, se não dolosa, pelo menos grosseiramente negligente, traduzindo o incumprimento da obrigação de entrega de parte do rendimento disponível referente a cada um dos períodos de cessão uma conduta que só um cidadão particularmente displicente e descuidado cometeria, um erro indesculpável.
Sendo certo que, a final, depois de transitado em julgado o despacho de 11/11/2024 que decidiu não ocorrer o invocado erro de cálculo da Sra. Fiduciária quanto ao montante em falta, não regularizou a sua situação, não obstante ter-lhe sido dada oportunidade para o fazer, por mais duas vezes (despachos de 11/11/2024 - ref. Citius n.º…).
Temos, pois, que concluir que os autos evidenciam que toda atuação do apelante é reveladora de manifesta indiferença quanto às suas obrigações, bem sabendo das consequências da sua atitude de incumprimento porque delas foi advertido mais do que uma vez, procurando protelar no tempo a entrega do rendimento disponível que sabia ser devido.
Por conseguinte, evidencia-se dos autos que o incumprimento da obrigação imposta pelo art.º 239º, nº 4 al. c) do CIRE é imputável ao insolvente mais que não seja a título de negligência grave.
Por último, relativamente ao requisito que desse incumprimento decorra, em termos de causalidade adequada, prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência que o apelante entende não verificado (conclusão 11), a não entrega do montante disponível em cada um dos períodos da cessão, acarreta prejuízo evidente para os credores na medida em que inviabilizou que, através dessa quantia, fossem ressarcidos, mesmo que parcialmente, sendo esse prejuízo consequência do incumprimento reiterado levado a cabo pelo recorrente.
Estão, assim, preenchidos todos os pressupostos para que ocorresse recusa da exoneração, nos moldes em que foi decidido pela 1.ª instância – cfr. artigos 239.º, nº 4, al. c), 243.º, n.º 1, al. a) e 244.º, n.ºs 1 e 2.
*
IV. Decisão:
Em face do exposto, acordam as Juízas desta 1ª secção do Tribunal da Relação do Lisboa, em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo apelante, mantendo-se a decisão recorrida de recusa da exoneração do passivo restante ao Insolvente.
Custas a cargo do insolvente.
Lisboa, 14-10-2025,
Susana Santos Silva
Fátima Reis Silva
Ana Rute Costa Pereira