RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONCURSO DE INFRAÇÕES
PENA ÚNICA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
CÚMULO POR ARRASTAMENTO
SUCESSÃO DE CRIMES
ERRO DE ESCRITA
RETIFICAÇÃO
Sumário


I. No cúmulo jurídico superveniente exigem-se três pressupostos: 1º que os crimes tenham sido julgados em processos diferentes; 2º que as decisões tenham transitado; 3º que as datas dos factos nos vários processos sejam anteriores à data do trânsito em julgado da primeira das condenações.
II. O Supremo Tribunal de Justiça em jurisprudência recente e unânime, tem-se afastado do chamado “cúmulo por arrastamento”, que no passado foi defendida por alguma jurisprudência deste mesmo tribunal.
III. Um possível atraso na aplicação da justiça, não pode servir de argumento jurídico para justificar a prática de um crime pelo arguido e, muito menos, alterar as regras legais do concurso superveniente.
IV. A interpretação do artigo 78º do Código Penal proibindo o chamado “cumulo por arrastamento”, não viola os artigos 13º, n.º 1 e 18º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

Texto Integral



Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Central Criminal de Coimbra - Juiz 3, por acórdão cumulatório proferido em 17 de Fevereiro de 2025, foi o arguido AA1 condenado, nos seguintes termos:

A) - Pelo 1º concurso de crimes (dos processos 1. 3. e 4.), o arguido será condenado na pena única de 6 (seis) anos e 7 (sete) meses de prisão (após desconto da pena de cinco meses de prisão já cumprida no âmbito do proc. 98/16.0PECBR);

- A esta pena única cabe proceder ao desconto de 1 (um) ano de prisão, sob a condição resolutiva de o mesmo não ter praticado infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor do referido diploma legal (caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena perdoada) nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1 e 4 e 7.º, n.º 3, da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto e artigo 128º, nº 3 do Código Penal.

Pelo que se fixa a pena a única deste primeiro cúmulo, após perdão, em 5 (cinco) anos e 7 (sete) meses de prisão.

B) - Pelo 2º concurso de crimes (dos processos 5. e 6.), o arguido será condenado na pena única de 14 (catorze) anos e 9 (nove) meses (após desconto da pena de seis meses de prisão já julgada extinta no âmbito do proc. 1211/18.8PCCBR do JL Criminal de Coimbra), não beneficiando de qualquer perdão.

2. Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs recurso directamente para este Supremo Tribunal de Justiça, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões: (transcrição)

1. O presente recurso é interposto do acórdão de cúmulo jurídico de ref.ª 96418018, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito, com fundamento na incorreta separação das condenações do recorrente em dois blocos distintos de cúmulo jurídico, em manifesta violação dos princípios legais e constitucionais aplicáveis.

2. O cúmulo jurídico destina-se a corrigir o atraso da jurisdição penal na condenação do arguido, evitando que este seja prejudicado pelo desconhecimento, por parte dos Tribunais, da globalidade do ilícito praticado aquando da fixação das penas. No entanto, o Tribunal a quo optou, indevidamente, por não aplicar uma pena única, mas sim duas penas únicas, condenando o recorrente num cômputo de uma pena única de 5 anos e 7 mês e outra de 14 anos e 9 meses de prisão., impondo-lhe, assim, uma sanção desproporcional e desadequada.

3. O recorrente entende que o Tribunal a quo errou ao não reconhecer a conexão substancial entre os crimes praticados, dividindo arbitrariamente a atividade criminosa em dois blocos distintos, quando todos os ilícitos perpetrados integram um único ilícito global, o que determinou uma errada individualização das condenações.

4. A sucessão de crimes, ainda que interrompida por uma data de trânsito em julgado, pode configurar um ilícito global indivisível, pois decorre de uma realidade criminosa una e de uma concreta personalidade delitiva. É precisamente nesta linha que se desenvolve a corrente doutrinária do cúmulo por arrastamento, consolidada na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no Aresto de 05/02/1997, Proc. n.º 922/96.

5. A doutrina e a jurisprudência têm sustentado que o momento relevante para a determinação do cúmulo jurídico deve ser o momento da condenação ou da advertência solene do juiz ao condenado, e não o trânsito em julgado dessa condenação. A jurisprudência do STJ tem aceite este entendimento, desde que o arguido já esteja a cumprir pena de prisão, ainda que os crimes tenham sido praticados após o primeiro trânsito em julgado.

6. A interpretação rígida e formalista do artigo 78.º, n.º 1, do Código Penal, recentemente acolhida pelos Tribunais – e adotada pelo Tribunal a quo – não se coaduna com os princípios da proporcionalidade e da justiça material.

7. A pena tem como finalidade não apenas a retribuição, mas também a ressocialização do condenado. O fracionamento artificial da atividade criminosa e a imposição de penas separadas, sem a consideração pela conexão entre os factos, inviabilizam uma adequada individualização da pena, comprometendo a função ressocializadora do sistema penal.

8. O recorrente encontra-se preso desde 2019, conforme resulta provado nas “Condições Pessoais” descritas no Acórdão recorrido. É evidente que a conduta ilícita perpetrada entre 2014 e 2018 configura um único ilícito global. O próprio Acórdão a quo reconhece que o primeiro trânsito em julgado ocorreu em 2017, mas o recorrente só foi preso em 2019, revelando uma permissão tácita dos Tribunais para a continuação da conduta delituosa ocorrida.

9. Conforme consta claro do Acórdão a quo, o segundo bloco de condenações, considerado para efeitos da segunda pena única fixada, refere-se a factos praticados antes da efetiva responsabilização do arguido, demonstrando uma motivação una para a prática dos ilícitos – a impunibilidade –, justificando a apreciação dos factos como um todo.

10. No caso sub judice, as condições que favoreceram a reiteração criminosa foram criadas pelo próprio Estado e não pelo recorrente. O recorrente foi, na verdade, arrastado pela oportunidade, pois o atraso na responsabilização permitiu a continuação da prática criminosa até que, finalmente, foi detido e sujeito a prisão preventiva. Apenas nesse momento cessou o ilícito global.

11. O cúmulo jurídico visa corrigir atrasos processuais e evitar que o arguido seja penalizado por circunstâncias processuais alheias à sua conduta – essa é a ratio legis do artigo 78.º do Código Penal. Se todos os factos praticados entre 2014 e 2018 tivessem sido conhecidos simultaneamente, teriam sido julgados em conjunto, resultando numa única pena única.

12. O Tribunal a quo errou ainda ao excluir do cúmulo jurídico a pena aplicada ao arguido no processo n.º 119/16.6PECBR, uma vez que os factos ocorreram em 10/08/2016, inserindo-se no mesmo ilícito global, pelo que deveriam ter sido considerados para efeitos de cúmulo.

13. A inexistência de um cúmulo único impede a aplicação de uma pena justa e adequada à situação concreta do arguido, desconsiderando a sua evolução pessoal e social desde a prática dos factos, designadamente, que está agora a esforçar-se para manter um comportamento adequado ao normativo instituído (cfr. factos provados no Ac. a quo).

14. O entendimento adotado pelo Tribunal a quo, ao negar a clara conexão substancial entre os crimes praticados entre 2014 a 2019, resultou numa medida concreta de pena manifestamente desproporcional, com a qual o recorrente não pode conformar-se.

15. A divisão dos crimes em dois blocos autónomos, com a aplicação de duas penas únicas, viola os artigos 77.º e 78.º do Código Penal, que impõem expressamente uma análise global da personalidade do agente e dos factos praticados.

16. Independentemente da pena única a fixar, o efeito dissuasor ou ressocializador será duplamente exercido sobre o recorrente AA1, pois este casou recentemente, aguarda o nascimento de um filho muito desejado e pretende ser um pai presente e um apoio incondicional para a sua esposa, que enfrenta a gravidez sozinha em virtude da sua prisão.

17. Ao condenar-se um arguido que praticou uma séria encadeada de ilícitos, munido de um espírito de impunibilidade potenciado pelo próprio Estado, no cumprimento sucessivo de duas penas, uma de 5 anos e 7 meses e outra de 14 anos e 9 meses, o Tribunal a quo olvidou a ratio do cúmulo jurídico e das respetivas normas legais aplicáveis, ignorando que as penas, no atual ordenamento jurídico, não têm uma função meramente retributiva, mas visam essencialmente a reintegração social do condenado. O recorrente atravessa, neste momento, uma fase de estabilidade e reestruturação da sua vida, demonstrando um juízo de prognose favorável à sua reintegração social.

18. O relatório social e as declarações do arguido na audiência de cúmulo jurídico evidenciam, claramente, que os crimes cometidos decorreram de um contexto de precariedade económica e dependência aditiva, sendo praticados numa continuidade temporal e substancial, o que reforça a necessidade de um cúmulo jurídico único.

19. O arguido não apresenta uma personalidade de alta tendência criminosa, mas de quem, em tempo adequado, não foi responsabilizado pela atuação em desconformidade ao direito. O arguido reestruturou a sua vida, casou, vai ter um filho, compreendeu finalmente a antijuridicidade dos atos que praticou e reconhece a importância da pena que se encontra a cumprir, o que deve ser ponderado na fixação da pena.

20. Ao optar por dois cúmulos autónomos, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 40º, 71º e 77º do Código Penal, desconsiderando as necessidades de prevenção especial, nomeadamente a ressocialização do arguido, que revela sinais claros de mudança comportamental (frequenta o 12º ano, beneficia do apoio familiar e apresenta comportamento disciplinado).

21. A decisão recorrida violou o princípio da proporcionalidade, consagrado no art. 18.º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, ao individualizar duas penas únicas, em vez de uma única pena conjunta, excedendo as necessidades preventivas e impondo ao arguido uma sanção claramente desproporcional face ao ilícito global perpetrado e à sua personalidade

22.O cômputo das penas aplicado no Acórdão recorrido resulta numa prisão do recorrente superior a 20 anos, evidenciando uma penalização excessiva e desproporcional, contrária aos princípios da justiça material e da proporcionalidade, pois, sem desconsiderar o evidente desvalor da conduta do arguido, a verdade é que não estamos perante um crime de homicídio.

23.A interpretação excessivamente formalista do cúmulo jurídico viola ainda o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP, permitindo que agentes com percursos criminais similares sejam tratados de forma desigual apenas devido a fatores processuais (como o momento do primeiro trânsito em julgado ou o número de processos em que os crimes foram julgados). Tal interpretação contraria ainda a finalidade do cúmulo jurídico, que visa evitar que circunstâncias exógenas ao arguido resultem em sanções injustificadamente mais gravosas.

24. A decisão recorrida é, por conseguinte, inconstitucional, uma vez que a interpretação da norma prevista no art.º 78º, n.º 1 CP aplicada ao caso concreto viola diretamente os preceitos constitucionais consagrados nos artigos 13º, n.º 1 e 18º, n.º 2 da Lei Fundamental – INCONSTITUCIONALIDADE ESTA QUE SE INVOCA E REQUER PARA TODOS OS EFEITOS LEGAIS.

Posto isto,

25. Cabe agora a V. Exas., Colendos Juízes Conselheiros, interpretar o art.º 78º, n.º 1 do CP de forma consentânea com a própria ratio legis, revogando o Acórdão Recorrido e aplicando ao recorrente uma pena única inferior ao cômputo determinado pelo Tribunal a quo, o que se requer.

Nestes termos, requer-se a REVOGAÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO, determinando-se a aplicação de UMA PENA ÚNICA justa, adequada e proporcional, que considere todos os factos ilícitos em concurso e que reflita corretamente a conexão dos factos, a personalidade do arguido e as finalidades da prevenção especial de socialização.

Normas Violadas:

−Artigos 40º, 71º, 77º e 78º do Código Penal;

−Artigos 13.º, n.º 1 e 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa. (fim de transcrição)

3. O Ministério Público na 1ª Instância apresentou resposta ao recurso, defendendo a manutenção da decisão recorrida, concluindo como segue (transcrição):

1-O trânsito em julgado da condenação que primeiramente tiver ocorrido é o limite temporal intransponível, no âmbito do concurso de crimes, à determinação de uma pena única, excluindo desta os crimes cometidos depois.

2- O trânsito a considerar para efeitos do cúmulo jurídico de penas no presente processo é o ocorrido em 29 de Março de 2017 no Processo nº 495/14.5TACBR, do Juízo Central Criminal de Coimbra, J.2, factos de 6 de Agosto de 2014.

3- Assim as penas parcelares dos processos n.º 4171/17.9 (factos de Outubro de 2017) e n.º 1211/18.8PCCBR (factos de 18.11.2018) não estão em relação de cúmulo jurídico com as penas determinadas nos presentes autos e nos processos n.º 495/14.5TACBR, n.º 1393/15.0PBCBR (factos de 17.12.2015), e n.º 98/16.0PECB (factos de 31.05.2016), por os crimes praticados o terem sido em data posterior ao trânsito em julgado do aludido processo n.º495/14.5TACBR .

6- O douto despacho recorrido não interpretou deficientemente qualquer preceito legal e, designadamente, os mencionados pelo recorrente. Bem pelo contrário, observou e fez correctas interpretação e aplicação dos normativos legais, nomeadamente, do disposto nos artigos 77º, n.º 1, 78º, n.º 1, do Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 9/2016 e do disposto no artigo 13.º, n.º 1 e 18º n.º 2, da CRP.

Nestes termos e pelo mais que, V.as Ex.as, Venerandos senhores Juízes Conselheiros, por certo e com sabedoria, não deixarão de suprir, julgando-se improcedente o recurso interposto e, consequentemente, confirmando-se o douto acórdão cumulatório recorrido, far-se-á Justiça. (fim de transcrição)

4. Neste Supremo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer, no qual, após rebater os argumentos aduzidos pelo recorrente, conclui, “que o recurso deverá ser julgado improcedente, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.”

5. Notificado o recorrente, o mesmo não respondeu.

Realizado o exame preliminar, colhidos os vistos e efectuada a conferência, cumpre decidir.

II. Fundamentação

6. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3

Da leitura dessas conclusões, o recorrente coloca a este Supremo Tribunal de Justiça as seguintes questões:

Cúmulo jurídico único e pena única;

Inconstitucionalidade da decisão por violação dos artigos 13º e 18º da Constituição da República Portuguesa.

7. Dos factos (transcrição)

I. No âmbito do processo comum singular 1211/18.8PCCBR, Juízo Local Criminal – J2:

Data dos Factos: 18/11/2018

Data da Decisão: 31/05/2021

Data do Trânsito em Julgado: 30/06/2021

Crimes e pena aplicada: condenado na pena de 6 meses de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, n.º 1 e 145º, n.º 1, al. a) e n.º 2, por ref.ª ao art.º 132º, nºs 1 e 2, al. l), todos do Código Penal.

Factos descritos na sentença:

1. No dia 15.11.2018, pelas 16h55m, no interior da sala de aula da Escola EB1 1 o ofendido, AA2, exercia as funções de professor.

2. Momentos antes da aula terminar o ofendido mandou a aluna AA3 sentar, momento em que o arguido entrou no interior da sala de aula, cuja porta se encontrava aberta, dirigindo-se ao ofendido dizendo, “tu não falas assim para a minha filha” e “tu não mandas sentar a minha, sendo retirado do interior da sala de aula.

3. Em momento posterior, em hora não concretamente apurada mas após as 16h55m, ao sair do recinto escolar o ofendido foi abordado pelo arguido que lhe desferiu um soco na face esquerda, junto ao olho.

4. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido o ofendido sentiu nessa altura dores.

5. O arguido sabia que AA2 era professor da sua filha

6. AA3 o que não o inibiu de o agredir fisicamente à frente dos pais dos seus alunos e destes, no interior do recinto escolar da Escola EB1 1.

7. O arguido agiu de forma livre, voluntária e concertada com o intuito de atingir corporalmente o ofendido, o que conseguiu, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.


*


II. No processo comum Colectivo nº 4171/17.9T9CBR, de Coimbra - JC Criminal - Juiz 2:

Data dos Factos: Outubro 2017

Data da Decisão: 21.04.2020

Data do Trânsito em Julgado: 13.10.2022

Crimes e pena aplicada: condenado pela prática de um crime de associação criminosa, do artigo 28º, nºs 1 e 3, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, na pena de treze anos de prisão; pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, dos artigos 21º e 24º, alíneas b) e c), ambos do DL 15/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-B anexa ao mesmo diploma legal, na pena de oito anos de prisão; Em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de quinze anos de prisão.

Factos descritos na sentença:

1. Em data não concretamente apurada, o arguido AA1 decidiu organizar um grupo de pessoas para se dedicar à compra de cocaína na cidade do Porto para venda na zona da Baixa de Coimbra.

2. Na concretização desse desígnio, pelo menos desde Outubro de 2017 e até 20 de Novembro de 2018, o arguido AA1 juntou outras pessoas para o ajudarem na realização das diversas tarefas necessárias a tal actividade.

3. Esse grupo de pessoas foi sendo composto pelos arguidos AA4, AA5, AA6, AA7, AA8 e AA9.

4. O arguido AA1 organizava e distribuía as tarefas de cada um dos co-arguidos que o ajudavam, encarregando uns de transportar a cocaína desde o Bairro do Aleixo, no Porto até Coimbra, outros de a pagarem, outros de a ocultarem em suas casas, de procederem ao seu acondicionamento em “cabeças” (cada uma com doze “dentes” ou unidades de cocaína) e ainda outros que se encarregavam de fazer a entrega aos vendedores directos que actuavam na zona da Baixa de Coimbra (Terreiro da Erva, Largo do Romal ou imediações da Loja do Cidadão de Coimbra) e supervisionavam esta distribuição/venda.

5. A cocaína cozida (“crack”) era comprada no Bairro do Aleixo, Porto a cerca de cinco euros cada dente e vendida na baixa de Coimbra a 10 euros.

6. Para tanto, o arguido AA1 ordenava, em média, a compra de cerca de 0,5 Kgs em cada viagem ao Porto.

7. Em cada viagem, a pessoa encarregada de trazer a cocaína, seguia, com outra pessoa, para o Porto de carro e voltava para Coimbra sozinha e de comboio, para que, caso fosse detectada pelas autoridades, apenas essa pessoa fosse interceptada, mantendo-se desconhecida a identidade dos demais membros do grupo.

8. Também por razões de “segurança”, o pagamento da cocaína ao fornecedor não era efectuado pela pessoa que a trazia para Coimbra mas por outro membro do grupo.

9. A cocaína trazida do Porto era guardada em casas de pessoas que ajudavam e ia sendo disponibilizada aos vendedores directos à medida em se escoavam as quantidades que anteriormente lhes haviam sido entregues.

10. O arguido AA1, sem tocar na cocaína, organizava toda a actividade, desde a compra no Porto, respectivo pagamento, seu transporte para Coimbra, guarda em “casas de recuo”, recolha e entrega aos distribuidores/vendedores, bem como os pagamentos e recebimentos decorrentes das compras e vendas.

11. Desse modo, o arguido AA1 não só evitava ser relacionado directamente com a actividade em causa, como permitia que eventuais intercepções e detenções dos seus colaboradores fossem tomadas por actos isolados, desde logo pelas quantidades apreendidas.

12. Nas circunstâncias supra descritas, o arguido AA1 bem como os arguidos AA4, AA5, AA6, AA7, AA8 e AA9 actuaram de forma livre, voluntária e consciente, de forma organizada e estruturada, em execução conjunta de plano previamente elaborado por aquele, no sentido de comprarem, transportarem, guardarem, dividirem, venderem directa ou indirectamente cocaína em forma de crack a consumidores.

13. Esses arguidos actuaram em colaboração, com tarefas definidas e atribuídas a cada um e em cada momento, sob a direcção e supervisão do arguido AA1, sendo este quem definia quando iam buscar a cocaína ao Porto, quem fazia tal transporte e o respectivo pagamento, a quem seria o produto entregue em Coimbra, quem o guardaria, quem o recolheria e entregaria aos distribuidores e vendedores para que, por sua vez, o vendessem aos consumidores na baixa de Coimbra, garantindo que aí sempre se encontrava alguém a vender e produto disponível – para o efeito sendo organizados turnos – e controlando também os respectivos pagamentos e recebimentos.

14. O arguido AA1 tinha perfeita consciência de que, ao organizar e dirigir o referido grupo, constituído por si e pelos arguidos AA4, AA5, AA6, AA7, AA8 e AA9, cujo objecto se traduzia na aquisição e posterior distribuição em Coimbra de cocaína, em forma de crack, colocava em causa, como efectivamente colocou, as expectativas sociais de uma vida comunitária livre da especial perigosidade de organizações que tenham por escopo o cometimento de crimes.

15. O arguido AA1 planeou sempre a forma de agir e os meios empregues, controlando todos os movimentos dos demais membros do grupo com o objectivo de monopolizar, durante mais de um ano, a venda de crack em Coimbra, bem sabendo as consequências para a saúde do consumo de tal substância, bem como as decorrentes consequências para a saúde pública, paz pública e segurança de toda a comunidade.

16. Os arguidos AA4, AA5, AA6, AA7, AA8 e AA9 estavam perfeitamente cientes de fazerem parte daquele grupo, que sabiam desenvolver tal actividade e da qual conheciam o objectivo e forma de o atingir, tendo aceite fazer parte do mesmo, com o desempenho das diversas funções que lhes eram atribuídas, tendo sempre em vista o objectivo comum de venda de cocaína e obtenção do lucro daí decorrente.

17. Todos aqueles conheciam as características de tal substância e que a sua compra, detenção e venda são proibidos.

18. Os arguidos AA10, AA11, AA12, AA13, AA14, AA15, AA16, AA17, AA18, AA19 e AA20, actuaram de forma livre, voluntária e consciente, no desenvolvimento das referidas actuações.

19. Estes arguidos também conheciam as características e a natureza dos referidos produtos bem sabendo que a sua detenção, compra, venda, cedência a qualquer título e o transporte é proibida por lei.

20. Todos os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram e são proibidas e punidas por lei penal.

III. No processo comum colectivo nº1393/15.0PBCBR, do Juízo Central-Juiz 1:

Data dos Factos: 17.12.2015

Data da Decisão: 10/12/2020

Data do Trânsito em Julgado: 13/09/2021

Crimes e Pena aplicada: foi condenado na pena de 5 anos e 6 meses de prisão pela prática de 16 crimes de burla qualificada, p.e p. pelo art.º 218º do Código Penal;

Factos descritos na sentença:

1. Em data não concretamente apurada, mas no início do ano de 2015, os arguidos AA1 e AA4, em conjugação de esforços e de intentos, formularam o propósito de obter para si dinheiro de forma célere.

2. Para tanto, em conjugação de esforços e de intentos, os arguidos elaboraram um plano através do qual pretendiam adquirir veículos automóveis aos proprietários que queriam que os mesmos fossem entregues para abate nos respetivos centros de abate de veículos, negociando com eles a entrega dos veículos pelo preço correspondente àquele que é pago pelos centros de abate, dando-lhes posteriormente destino diferente e introduzindo-os em circulação.

3. Na prossecução desse desígnio previamente formulado, os arguidos, sempre em conjugação de esforços e de intentos, no dia 17 de Janeiro de 2015, celebraram um contrato de arrendamento, em nome do arguido AA4, com AA21, mediante o qual tomaram de arrendamento um armazém situado na Rua 1, em ..., neste concelho de Coimbra, que passaram a utilizar, desde então, para depósito dos veículos ou para o seu desmantelamento e para a venda de peças e de automóveis.

4. Mais decidiram os arguidos, prosseguindo o seu propósito, fabricar e distribuir, por todo o concelho de Coimbra e concelhos limítrofes e durante todo esse ano de 2015, panfletos publicitários que colocavam nos para-brisas dos veículos estacionados na via pública, com indicação de que compravam qualquer tipo de veículo, procediam ao seu abate em troca de um valor pré-acordado, o que bem sabiam não corresponder à verdade.

5. Acordaram, ainda, os arguidos que os referidos panfletos tinham, para além de imagens, o nome de um individuo para ser contactado - que variava nos diversos panfletos - um número de telemóvel, que era sempre o mesmo, atribuído ao arguido AA1.

6. Na sequência da distribuição desses panfletos, os arguidos foram contactados através do número de telemóvel que constava naqueles folhetos, por diversas pessoas que, convencidas da legalidade de todo o processo, lhes contratavam o serviço de entregar os veículos de que eram proprietários para abate nos centros destinados a tal.

7. Para o efeito, e sempre que eram contactados por via telefónica, os arguidos, identificavam-se utilizando nomes falsos, designadamente, AA22, AA23, AA24, AA25, entre outros, e mostrando-se interessados na aquisição do veículo para abate marcavam encontros para concretizar o negócio.

8. Nesses encontros com os ofendidos, os arguidos de forma convincente, mostrando-se conhecedores da tramitação do processo de entrega de veículos para abate, diziam que adquiriam o veículo, que seria por si apresentado num centro de abate e que o pagamento do veículo seria realizado em função do peso do mesmo, acrescentando que o valor a pagar seria enviado através dos correios, para a residência do proprietário do veículo, em data posterior.

9. Não obstante, e ao invés do que afirmavam, os arguidos, sempre na concretização do desígnio prévia e comumente elaborado, para além de não procederem ao pagamento do valor acordado com os proprietários dos veículos, decidiam transportá-los para o armazém que haviam arrendado onde os reparavam e posteriormente vendiam a terceiros que para tal ali se deslocavam.

10. Para tanto os arguidos solicitavam aos proprietários dos veículos que lhes entregassem os documentos originais dos veículos (documento único e /ou livrete), cópia dos seus documentos pessoais e as chaves dos veículos, bem como o documento de registo automóvel devidamente preenchido e assinado pelo proprietário do automóvel, documentos estes que posteriormente utilizavam para proceder ao registo do veículo em nome do novo proprietário a quem o vendiam, apropriando-se das quantias monetárias assim obtidas.

11. Contudo, após a entrega dos veículos e dos documentos pelos proprietários, os arguidos ficavam incontactáveis, pois nunca tinham sido sua intenção vir a entregar os veículos no centro de abate, nem proceder ao pagamento do valor respetivo, já que o seu objetivo era tão só manipular os cidadãos que quisessem entregar os veículos para abate, apossando-se desta forma dos referidos veículos automóveis.

12. Na concretização do desígnio formulado previamente, em conjugação de esforços e de intenções, os arguidos obtiveram para si e para seu benefício os indicados veículos, nos seguintes termos:

13. No dia 27 de fevereiro de 2015, cerca das 12.00 horas, o arguido AA1 deslocou-se ao local combinado onde se encontrava AA26 na posse do veículo e, identificando-se como AA24, funcionário do AA23, acordou com AA26 que esta lhe entregaria o veículo matrícula V1, e os respetivos documentos, designadamente o livrete, dizendo-lhe o valor a pagar pelo automóvel, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

14. No 30 de julho de 2015, cerca das 16.36 horas, o arguido AA1 deslocou-se ao local combinado onde se encontrava AA27 na posse do veículo e, identificando-se como AA24, funcionário do AA23, acordou com AA27 que este lhe entregaria o veículo automóvel de matrícula V2 e os respetivos documentos, designadamente o livrete, dizendo-lhe que o valor a pagar pelo automóvel seria de € 130,00, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

15. No dia 12 de Outubro de 2015, cerca das 19.45 horas, o arguido AA1 deslocou-se ao local combinado, onde se encontrava AA28 na posse do veículo e, identificando-se como AA29, acordou com AA28 que esta lhe entregaria o veículo automóvel de matrícula V3 e os respetivos documentos, designadamente o livrete, dizendo-lhe que o valor a pagar pelo automóvel seria de € 250,00, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

16. No dia 14 de outubro de 2015, cerca das 13.15 horas, o arguido AA1 deslocou-se ao local combinado, onde se encontrava AA30 na posse do veículo e acordou com este que este lhe entregaria o veículo e os respetivos documentos, designadamente o livrete, dizendo-lhe que o valor a pagar pelo automóvel de matrícula V4 seria de €120,00, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

17. No dia 23 de Outubro de 2015, cerca das 20.30 horas, o arguido AA1 acompanhado pelo arguido AA4, deslocou-se ao local combinado onde se encontrava AA31 na posse do veículo matrícula V5 e, identificando-se como AA22, acordou com AA31 que este lhe entregaria o veículo e os respetivos documentos, designadamente o livrete, dizendo-lhe que o valor a pagar pelo automóvel seria de € 150,00, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

18. No dia 10 de novembro de 2015, cerca das 12.00 horas, o arguido AA1 deslocou-se ao local combinado onde se encontrava AA32 na posse do veículo e, identificando-se como AA33, acordou com AA32 que este lhe entregaria o veículo matrícula V6, e os respetivos documentos, designadamente o livrete e o documento de registo automóvel devidamente assinado e preenchido por si, dizendo- lhe que o valor a pagar pelo automóvel dependeria do peso do mesmo a apurar no centro de abate, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

19. No dia 11 de novembro de 2015, cerca das 12.00 horas, o arguido AA1 deslocou-se ao local combinado onde se encontrava AA34 na posse do veículo e, identificando-se como AA22, acordou com AA34 que este lhe entregaria o veículo matrícula V7 e os respetivos documentos, designadamente o livrete e o requerimento de registo automóvel para venda, devidamente assinado e preenchido por si, dizendo-lhe que o valor a pagar pelo automóvel seria de € 214,00, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal, para a morada da sua residência.

20. No dia 13 de novembro de 2015, cerca das 19.06 horas, o arguido AA1 deslocou-se ao local combinado onde se encontrava AA35 na posse do veículo e, identificando-se como AA22, acordou com AA35 que esta lhe entregaria o veículo matrícula V8 e os respetivos documentos designadamente o livrete, dizendo-lhe que o valor a pagar pelo automóvel seria de € 210,00, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

21. No dia 23 de novembro de 2015, o arguido AA1 deslocou-se ao local combinado onde se encontrava AA36 na posse do veículo e, identificando-se como AA33, acordou com AA36 que este lhe entregaria o veículo matrícula V9 e os respetivos documentos, designadamente o livrete, dizendo-lhe que o valor a pagar pelo automóvel seria de € 150,00, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

22. No dia 24 de novembro de 2015, cerca das 12.40 horas, o arguido AA1 deslocou-se ao local combinado onde se encontrava AA37 na posse do veículo e, identificando-se como AA22, acordou com AA37 que este lhe entregaria o veículo matrícula V10 e os respetivos documentos, designadamente o livrete, dizendo-lhe que o valor a pagar pelo automóvel seria de € 250,00, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

23. No dia 25 de novembro de 2015, cerca das 00.00 horas, o arguido AA1 identificando-se como AA22, acompanhado pelo arguido AA4, deslocaram-se à residência de AA38, onde acordaram com este que ele lhes entregaria o veículo matrícula V11 e os respetivos documentos, designadamente o livrete, dizendo- lhe que o valor a pagar pelo automóvel seria de € 250,00, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

24. No dia 25 de novembro de 2015, cerca das 19.57 horas, o arguido AA1 deslocou-se ao local combinado onde se encontrava AA39 na posse do veículo e, identificando-se como AA22, acordou com AA39 que esta lhe entregaria o veículo matrícula V12 e os respetivos documentos, designadamente o livrete, dizendo- lhe que o valor a pagar pelo automóvel seria de € 220,50, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

25. No dia 26 de novembro de 2015, cerca das 10.00 horas, o arguido AA1 deslocou-se ao local combinado, onde se encontrava AA40 na posse do veículo matrícula V13 e, identificando-se como AA33, acordou com AA40 que este lhe entregaria o veículo e os respetivos documentos, designadamente o livrete, dizendo-lhe que o valor a pagar pelo automóvel seria de € 200,00, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

26. No dia 26 de novembro de 2015, cerca das 18.00 horas, o arguido AA1 acompanhado pelo arguido AA4, deslocou-se à residência de AA41 e AA42 e, identificando-se como AA22, acordou com estes que eles lhe entregariam o veículo matrícula V14, e os respetivos documentos, designadamente o livrete, dizendo-lhe que o valor a pagar pelo automóvel seria de € 0,18 por cada quilo, perfazendo o valor de cerca de € 200,00, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

27. No dia 30 de novembro de 2015, cerca das 14.41 horas, o arguido AA1 deslocou-se ao local combinado, onde se encontrava AA43, na posse do veículo matrícula V15, e, identificando-se como AA22, acordou com AA43 que este lhe entregaria o veículo e os respetivos documentos, designadamente o livrete, dizendo- lhe que o valor a pagar pelo automóvel seria de € 224,00, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

28. No dia 1 de dezembro de 2015, cerca das 16.30 horas, o arguido AA1 deslocou-se ao local combinado, onde se encontrava AA44 na posse do veículo matrícula V16, e, identificando-se como AA22, acordou com AA44 que esta lhe entregaria o veículo e os respetivos documentos, designadamente o livrete, dizendo-lhe que o valor a pagar pelo automóvel seria de € 350,00, afirmando que tal montante seria posteriormente enviado por via postal para a morada da sua residência.

29. Convictos de que os veículos seriam entregues para abate no respetivo centro destinado para o efeito e que receberiam o valor acordado, os ofendidos entregaram ao arguido o veículo, as chaves, o documento único e cópia do seu cartão do cidadão, ficando a aguardar o pagamento do valor acordado com o arguido, tal como este lhe havia prometido, o que não aconteceu.

30. Por não lhe ter pago a quantia combinada, contactaram telefonicamente o arguido AA1, por diversas vezes, tendo este apresentando desculpas, sem nunca cumprir o combinado, como era intenção inicial dos arguidos.

31. Após se terem apropriado dos veículos, em seu exclusivo benefício, os arguidos repararam-no e posteriormente venderam-no a terceiras pessoas, que passaram a circular com ele na via pública, apropriando-se os arguidos do dinheiro que assim obtiveram e com o qual se locupletaram.

32. Atuando da forma e circunstâncias descritas, agiram os arguidos com o propósito concretizado de fazer crer aos ofendidos que iriam cumprir o que lhes prometeram, assim os determinando a largarem mão dos veículos e dos respetivos documentos, que ilegitimamente os arguidos pretendiam integrar no seu património, como efetivamente integraram, convencendo-os da veracidade do que lhes diziam, pelo que só por isso cada um dos referidos lesados aceitou entregar aos arguidos os veículos automóveis e os documentos de que eram proprietários.

33. Os arguidos praticaram todos os factos supra descritos com o intuito concretizado de obter proveito económico que lhes permitisse fazer face aos seus gastos diários e às despesas do seu quotidiano.

34. O esquema elaborado pelos arguidos constituía o seu meio obter rendimentos, porquanto os arguidos faziam destas condutas o meio de obterem rendimentos, não tendo, no período de tempo descrito, qualquer outro rendimento que não o proveniente dos factos descritos supra.

35. Agiram sempre os arguidos em conjugação de esforços e de intentos, mediante um plano que criaram e concretizaram, alcançando benefícios económicos para si, à custa do engano que criaram deliberadamente nos ofendidos, benefícios esses que sabiam ser ilegítimos e com o qual se locupletaram.

36. Atuaram os arguidos, em todas as circunstâncias descritas, de modo, livre, voluntário e consciente, bem sabendo que todas as suas relatadas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

IV. No processo comum colectivo nº 495/14.5TACBR, que correu termos no Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz 2

Data dos Factos: 06/08/2014

Data da Decisão: 27/02/2017

Data do Trânsito em Julgado: 29/03/2017

Crimes e Pena aplicada: foi condenado na pena de 3 anos de prisão suspensa na sua execução com regime de prova pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.e p. pelo art.º 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, cuja suspensão da execução da pena foi revogada em 20/03/2023, com trânsito em julgado em 02/05/2023

Factos descritos na sentença:

1. O arguido AA1 desde o final do ano de 2013 até Março de 2014 vendeu, na cidade de Coimbra, directa e pessoalmente cocaína, nalgumas ocasiões, a AA45.

2. No dia 6 de Agosto de 2014, nomeadamente, cerca das 13H00, no bairro 1, o arguido AA1 entregou ao arguido AA46 1,09 gramas de peso bruto de cocaína, a qual veio a ser encontrada e apreendida no interior do bolso da camisa deste.

3. O arguido agiu com o propósito de deter, ceder, transportar e vender produto estupefaciente, bem conhecendo a sua natureza, sabendo que a sua conduta era proibida e punidas por lei penal.

V. Proc. Sumaríssimo nº 98/16.0PECBR, Coimbra – J.L Criminal - Juiz 1 de Coimbra:

Data dos Factos: 31/05/2016

Data da Decisão: 26/09/2017

Data do Trânsito em Julgado: 13/10/2017

Crimes e Pena aplicada: foi condenado na pena de 5 anos de prisão substituída por 150 horas de trabalho a favor da comunidade, pela prática de um crime de furto simples

1. Em momento não concretamente apurado, situado em data próxima do dia 15 de Junho de 2013, o arguido AA1, por si ou por intermédio de terceiro, a seu pedido e em seu benefício, procedeu, na qualidade de arrendatário da habitação, a uma ligação direta da rede pública de distribuição de energia elétrica à instalação particular sita na Rua 2, em Coimbra, ligação esta que permitiu o abastecimento de energia elétrica à residência do arguido situada naquela morada.

2. Com esta atuação, o arguido logrou abastecer de energia elétrica a sua residência, sem proceder ao pagamento devido à EDP pela prestação deste tipo de serviços.

3. Deste modo o arguido logrou lançar mão e fazer sua energia elétrica e potência no valor de 1.801,27 euros, que gastou em proveito próprio.

4. A situação manteve-se ininterruptamente até ao dia 31 de Maio de 2016.

5. O arguido lançou deste modo e fez sua a energia elétrica acima mencionada, passando a dispor de tal bem como se seu dono fosse, gastando-o em proveito próprio.

6. O arguido, ao agir como o descrito, quis e conseguiu lançar mão e fazer sua a energia elétrica pertença e distribuída pela ofendida EDP, passando a dispor dela como se seu dono fosse, bem sabendo que tal bem não lhe pertencia, a ele não tinha direito e que agia sem e contra a vontade do seu dono.

7. O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta lhe estava vedada por lei penal.

Mais se provou:

VI. Condições pessoais:

1. O arguido AA1 nasceu em D/M/1989, no seio de uma família de etnia ..., constituída pelos pais e três descendentes, sendo AA1 o irmão do meio.

2. O agregado familiar era de condição socioeconómica modesta e a subsistência era assegurada pelo trabalho dos progenitores na venda ambulante de peças de vestuário, atividade que o arguido e seus irmãos cedo acompanharam.

3. O relacionamento intrafamiliar é recordado como coeso e gratificante, subordinando-se as interações familiares e práticas parentais aos valores e tradições característicos da comunidade de pertença.

4. O arguido iniciou o percurso escolar em idade normal, concluindo o 2º ciclo do ensino básico com uma retenção, no 5º ano, e abandonando a escola com 14 anos de idade.

5. Após a saída da escola, começou a sua vida ativa trabalhando com os pais e irmãos na venda ambulante de roupa em feiras na região de ... e, posteriormente, passou a comprar e vender automóveis.

6. Aos 19 anos de idade, iniciou um relacionamento afetivo com AA47 do qual nasceriam duas filhas, AA3 e AA48, que contam atualmente 16 e 13 anos de idade, respetivamente, sendo que este relacionamento já terminou.

7. À data da reclusão o arguido refere que já não residia com a ex-companheira e as suas duas filhas menores, no Bairro 1, em Coimbra, encontrando-se nessa altura numa pensão.

8. Após a separação do casal a ex-companheira foi viver para Lisboa, tendo ficado a seu cargo com a filha mais nova do casal e a filha mais velha está entregue à avó paterna, também residente em Lisboa.

9. AA1 mantém atualmente relação afetiva com AA49, com a qual casou em ...de 2023.

10. Presentemente esposa do arguido habita, há cerca de um ano, o apartamento em que aquele viveu com a sua ex-companheira no Bairro 1. A habitação é de tipologia 3, apresenta condições para albergar os elementos do agregado e, embora situada em bairro social, é propriedade da ex-companheira do arguido, que o terá doado à filha mais velha, dispondo o arguido e a sua esposa de autorização para o ocuparem, decorrendo todas as despesas inerentes à manutenção do imóvel por conta do casal.

11. No presente o arguido dispõe do apoio da esposa, que o visita regularmente e beneficia do regime de visitas íntimas, encontrando-se grávida.

12. O arguido conta ainda com o apoio da sua família alargada e da família de AA49.

13. A situação económica do agregado é referida como suficiente, sendo a esposa beneficiária do RSI, no valor de cerca de 250,00€ mensais, acrescidos de valores variáveis provenientes da venda ambulante e trabalhos de manicure que realiza.

14. Dentro da prisão parece estar a esforçar-se por manter comportamento adequado ao normativo instituído, averbando apenas dois registos disciplinares em 2024, sancionados com 12 e 15 dias de POA, respetivamente.

15. Frequenta no presente ano letivo o 12º ano de escolaridade e a oficina de cidadania. Fez inscrição para um curso de francês e de técnicas de informática.

16. Aquando do seu ingresso no EPR de ..., realizou testes analíticos com resultados positivos para o consumo de haxixe. Em julho de 2019, solicitou acompanhamento terapêutico para a sua problemática aditiva pelo Centro de Respostas Integradas de ..., realizando a primeira consulta em agosto de 2019. Na atualidade não há referência a qualquer acompanhamento clinico, referindo o arguido estar abstinente de qualquer consumo.

17. O arguido cumpre a pena em regime comum e ainda não beneficia de medidas de flexibilização da pena.

18. Contextualiza o envolvimento nos crimes pelas dificuldades económicas, acentuadas pelo consumo de estupefacientes, e com a sua vulnerabilidade a influências de terceiros.

19. O arguido verbalizou arrependimento ainda que careça de consolidar juízo de autocensura e melhorar o sentido de autorresponsabilização.

VII. Dos antecedentes criminais:

O arguido tem averbado no seu Certificado de Registo Criminal os seguintes antecedentes criminais:

i. Por sentença datada de 02.05.2008 transitada em julgado em 22.05.2008, foi o arguido condenado numa pena de multa, pela prática em 2.5.2008 de um crime de condução sem habilitação legal extinta em 06.02.2014 (proc. 124/08.6GTALQ).

ii. Por sentença datada de 20.01.2009, transitada em julgado em 20.01.2009, foi o arguido condenado numa pena de multa, pela prática em 20.03.2007 de um crime de condução sem habilitação legal (Proc.65/07.4GTCBR), extinta em 15.07.2009.

iii. Por sentença datada de 09.02.2010 transitada em julgado em 01.03.2010, foi o arguido condenado numa pena de multa, pela prática em 29.01.2009 de um crime de detenção de arma proibida, extinta em 21.10.2010 (proc. 431/08.8JACBR).

iv. Por sentença datada de 29.09.2009 transitada em julgado em 04.05.2010, foi o arguido condenado numa pena de multa, pela prática em 18.09.2008 de um crime de condução sem habilitação legal, extinta em 08.11.2013 (proc. 666/08.3PCLRS).

v. Por sentença datada de 17.05.2012 transitada em julgado em 06.06.2012, foi o arguido condenado numa pena de 18 meses de prisão suspensa por igual período, pela prática em 14.02.2010 de um crime de roubo, extinta em 20.12.2013 (proc. 1188/10.8PBLRA).

vi. Por sentença datada de 31.08.2016 transitada em julgado em 30.09.2016, foi o arguido condenado numa pena de 1 ano de prisão, pela prática em 10.08.2016 de um crime de detenção de arma proibida extinta em 30.09.2017 (proc. 119/16.6PECBR).

vii. Por sentença datada de 27.02.2017 transitada em julgado em 29.03.2017, foi o arguido condenado numa pena de 3 anos de prisão suspensa na execução, pela prática em 06.08.2014 de um crime de tráfico de estupefacientes, a qual foi revogada por decisão de 20.03.2023, transitada em 02.05.2023 (proc. 495/14.5TACBR).

viii. Por sentença datada de 26.09.2017, transitada em julgado em 13.10.2017, foi o arguido condenado numa pena de 5 meses de prisão substituída por 150 horas de TFC, pela prática em 31.05.2016 de um crime de furto, extinta em 31.05.2018 (proc. 98/16.0PECBR).

ix. Por sentença datada de 21.04.2020, transitada em julgado em 13.10.2022, foi o arguido condenado pela prática de um crime de associação criminosa, do artigo 28º, nºs 1 e 3, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, na pena de treze anos de prisão; e pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, dos artigos 21º e 24º, alíneas b) e c), ambos do DL 15/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-B anexa ao mesmo diploma legal, na pena de oito anos de prisão; Em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de quinze anos de prisão.

x. Por sentença datada de 31.05.2021, transitada em julgado em 30.06.2021, foi o arguido condenado numa pena única de 6 meses de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada extinta em 26.10.2021 (proc. 1211/18.8PCCBR). (fim de transcrição)

8. Apreciando

8.1 Cúmulo jurídico único e pena única

O artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, dispõe que “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”. Acrescenta o número 2º que a “pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.

Por sua vez, estabelece o artigo 78.º, n.º 1, do referido diploma legal, que “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes”. O número 2 do estatui que “o disposto no n.º 1, só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado”.

No cúmulo jurídico deverá ter-se em conta a personalidade do arguido e o conjunto dos factos e a gravidade dos mesmos ou, na expressão do legislador, são “considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

Da leitura dos referidos preceitos resulta que devem ser consideradas como estando em situação de concurso superveniente, todas as condenações transitadas em julgado relativas a factos anteriores à primeira das condenações englobadas no concurso.

Como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/09/2009, “A primeira decisão transitada é, assim, o elemento aglutinador de todos os crimes que estejam em relação de concurso, englobando-os em cúmulo, demarcando as fronteiras do círculo de condenações objecto de unificação”.4

Exigem-se assim três pressupostos: 1º que os crimes tenham sido julgados em processos diferentes; 2º que as decisões tenham transitado; 3º que as datas dos factos nos vários processos sejam anteriores à data do trânsito em julgado da primeira das condenações.5

Tendo em conta estes pressupostos legais e jurisprudenciais é manifesto estarmos, no caso dos autos, em presença de duas situações de concurso superveniente.

Vejamos.

Como ficou referido anteriormente, o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência considerando o momento determinante para o concurso superveniente, a data da primeira condenação transitada em julgado.

A propósito desta questão, o Tribunal de 1ª instância na sua douta decisão, elenca as datas das decisões, trânsito, penas e respectivos crimes, tendo considerado, em sede de análise das mesmas, o seguinte: (transcrição)

A. Dos Processos Abrangidos:

Em matéria de cúmulo de penas, dispõe o art.º 77º, nº 1 do Código Penal que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

O art.º 78º do Código Penal dispõe que «1 - Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes. 2 - O disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado. 3 - As penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na sentença anterior mantêm-se, salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão; se forem aplicáveis apenas ao crime que falta apreciar, só são decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior.»

Em conformidade com o Acórdão de Fixação de Jurisprudência 9/2016 «O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso (in, DR, I série, n.º 111, de 19.06.2016)

O trânsito em julgado de uma condenação é um limite temporal intransponível, no âmbito do concurso de crimes, à determinação de uma pena única, excluindo desta os crimes cometidos depois.

Por outro lado, a alteração legislativa dada pela Lei nº 59/2007, de 04-09, ao n.º 1 do art. 78.º do CPenal, foi inquestionavelmente no sentido6 de incluir no cúmulo as penas cumpridas, que serão descontadas na pena única, como expressamente se dispõe no texto legal. Por força desse desconto, a inclusão dessas penas não envolve nenhum prejuízo para o condenado, podendo, ao invés, representar um significativo benefício.

No caso em apreço, importa, então, realizar o cúmulo jurídico de penas, por se verificar um conhecimento superveniente de crimes anteriores (art.° 78°, n°1 Código Penal), sendo que de acordo com os factos provados, são relevantes para o cúmulo as seguintes condenações praticadas até 18.11.2018:

(…)

Face ao à tabela que antecede constatamos que:

O 1º trânsito em julgado ocorreu no âmbito do Processo comum nº119/16.6PECBR em 30-09-2016.

Todavia, tratava-se de uma pena suspensa na execução a qual foi já julgada extinta.

Ora, não devem ser consideradas no cúmulo superveniente as penas de prisão que tenham sido suspensas e cujo período de suspensão já tenha decorrido, salvo se a suspensão já tiver sido revogada.

Este parâmetro visa a paz jurídica do arguido (e isto ocorre mesmo que erradamente extinta por se encontra pendente um processo por crime cometido no período de suspensão). Neste sentido, veja-se Dá Mesquita (in Concurso de Penas, Coimbra Editora, 1997, pags, 57/72, pag. 90/91); e Acórdão do STJ de de 25-09-2008, publicado sob o nº08P2818, disponível na base de dados do ITIJ

Por esta razão a pena principal de 12 meses de prisão suspensa na execução por igual período aplicada no processo comum nº119/16.6PECBR, e já declarada extinta, não entra no presente cúmulo.

Ao invés, a pena de 3 anos de prisão suspensa na execução com regime de prova em que o arguido foi condenado no âmbito do Processo comum nº 495/14.5TACBR, uma vez que foi revogada tal suspensão em 20.03.2023 (trânsito em 02.05.2023) já entra no cúmulo jurídico a realizar.

Assim, analisada a tabela que antecede, face ao disposto no artigo 77º do Código Penal, constatamos que:

O 1º trânsito em julgado, operante para este cúmulo, ocorreu em 29-03-2017. Antes desta data foram cometidos os crimes dos processos 1) e 4) da tabela que antecede.

O 2º trânsito em julgado ocorreu 30.06.2021. Antes desta data foi cometido o crime do processo 5) da tabela que antecede.

Portanto, há que fazer dois cúmulos de penas de acordo com a posição que é hoje seguida por unanimidade (cfr. Paulo Dá Mesquita, in Concurso de Penas, Coimbra Editora, 1997, pags. 57/72, e Acórdão do STJ de 04 de Dezembro de 1997, publicado na CJSTJ, 1997, tomo III, pag. 246).

Com efeito, nos termos do art. 77º, nº1 do CP quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Ora, de acordo com a referida doutrina e jurisprudência, hoje absolutamente dominante, só estão em concurso os crimes cometidos antes do trânsito em julgado da primeira condenação7.

Está, portanto, afastado o cúmulo por arrastamento: em que se fazia um cúmulo de várias penas porque, embora elas vistas no conjunto não estivessem numa situação de cúmulo (não integrassem a hipótese do art. 77º, nº1 do CP) já que as últimas diziam respeito a crimes cometidos depois de uma primeira condenação, todavia, consideradas aos pares, estavam numa situação de concurso. Ou seja, falava-se do cúmulo por arrastamento nos casos em que, por força da consideração de qualquer condenação, houvesse penas que pertencessem simultaneamente a dois grupos de concursos. Referia-se, então, que só arbitrariamente seria possível dar preferência a um deles, em detrimento do outro, e por isso, para evitar a arbitrariedade da escolha, a situação implicaria o cúmulo por arrastamento de todas as penas respectivas. Aliás, contra a teoria do cúmulo por arrastamento, já há muito estava Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do crime, Aequitas, 1993, pags. 293 e 295, capítulos 425 e 429, respectivamente), o qual citamos: “Se os crimes agora conhecidos forem vários, tendo uns ocorrido antes de proferida a condenação anterior e outros depois dela, o tribunal proferirá duas penas conjuntas, uma a corrigir a condenação anterior, outra relativa aos crimes praticados depois daquela condenação; a ideia de que o tribunal deveria ainda proferir uma só pena conjunta contraria expressamente a lei e não se adequaria ao sistema legal de distinção entre punição do concurso e da reincidência”.

E isto apesar, como é sabido, da prática da efectivação dos cúmulos sempre partir, não de cúmulos parcelares mas das várias penas concretas aplicadas desfazendo-se sempre os cúmulos que entretanto tivessem sido feitos, pelo que não tem particular razão de ser o argumento de que há uma decisão transitada a considerar duas penas como estando em concurso.

A interpretação exposta, que teve o reforço de Paulo Dá Mesquita (obra citada), é actualmente unanimemente seguida pelo STJ, que rejeita de forma frontal a tese do cúmulo por arrastamento. Parafraseando o acórdão do STJ de 23-01-2003, cujo relator foi PEREIRA MADEIRA, de que o denominado «cúmulo por arrastamento» é de rejeitar não só porque contraria os pressupostos substantivos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, como ignora a relevância de uma condenação transitada em julgado como solene advertência ao arguido, quando, relativamente aos crimes que se pretende abranger nesse cúmulo, uns são anteriores e outros posteriores a essa condenação. É inadmissível cumular penas aplicadas a crimes cometidos depois do trânsito em julgado de condenação anterior, por evidente falta de um dos pressupostos contidos na norma do n.º 1 do artigo 78.º do Código Penal.

Em síntese: o que releva é a primeira condenação por qualquer dos crimes, e não uma condenação qualquer, o que implica que se negue o cúmulo por arrastamento, pois que este não dá o relevo devido à existência de “uma condenação transitada em julgado como solene advertência ao arguido” (cfr. Figueiredo Dias, obra citada, pags. 278, 293).

Assim, a partir do momento em que existe uma condenação transitada em julgado, deixa de ser possível cumular penas de crimes posteriores que entrarão, se a tal houver lugar, em posteriores cúmulos de penas. Por outras palavras, depois do trânsito de uma primeira condenação o arguido inicia um novo ciclo de crimes, até que haja uma nova primeira condenação transitada em julgado8. (fim de transcrição)

Não podíamos estar mais de acordo.

Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça em jurisprudência recente e unânime, tem-se afastado do chamado “cúmulo por arrastamento”, que no passado foi defendida por alguma jurisprudência deste mesmo tribunal e que o recorrente invoca para fundamentar o seu recurso.

A este propósito, escreveu-se no acórdão de 22 de Novembro de 2023, desta mesma secção: “O trânsito em julgado de uma condenação penal é, pois, o limite ou momento temporal a ter em conta para a definição do número de crimes a que é aplicável uma pena única, excluindo desta as penas aplicadas a crimes cometidos depois da data do trânsito, os quais poderão dar lugar à aplicação de diferentes penas únicas, em caso de concurso com outros cometidos posteriormente, ou, não havendo concurso, a penas singulares, todas elas de execução sucessiva [assim, por todos, os acórdãos de 06.07.2022, Proc. 571/19.8T8AVR.P1.S1, www.dgsi.pt, que se segue de perto, e de 12.02.2018 (Raul Borges), ECLI:PT:STJ:2018:734.14.2PCLRS.S1.CB, com exaustiva indicação de jurisprudência].

Sendo de afastar o «cúmulo por arrastamento», conforme jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça de há muito unânime, haverá que proceder a «cúmulos autónomos», cujas penas se «acumulam materialmente», em execução sucessiva (artigo 63.º do Código Penal) [assim, acórdão de 11.4.2018 (Maia Costa), Proc. 15/14.1GDLLE.S1, em www.dgsi.pt].9

No mesmo sentido, escreveu-se no sumário do acórdão de acórdão de 13 de Fevereiro de 2019: “O denominado cúmulo “por arrastamento” que consiste em cumular [juridicamente] penas aplicadas por crimes cometidos antes ou depois do trânsito em julgado da 1.ª condenação por qualquer deles, é uma solução rejeitada pela doutrina e pela jurisprudência do STJ. Se os crimes conhecidos supervenientemente forem vários, uns cometidos antes do trânsito em julgado da condenação e outros depois, o tribunal aplicará duas penas conjuntas, uma a corrigir a condenação anterior, outra relativamente aos crimes praticados depois, porquanto, a ideia de que o tribunal deveria ainda proferir uma só pena conjunta contraria expressamente a lei e não se adequaria ao sistema legal de distinção entre punição do concurso de crimes e de reincidência.…”).10

Perante esta jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, bem andou o Tribunal recorrido em considerar dois blocos de crimes e penas e proceder à elaboração de dois cúmulos jurídicos, porquanto estamos perante situações de sucessão de crimes.

Para defender um único cúmulo jurídico e respectiva pena única, o recorrente invoca, a passividade do Estado no exercício do seu poder punitivo o que se traduz numa “permissão tácita dos tribunais para continuação da conduta delituosa” (sic).

Não nos parece que um possível atraso na aplicação da justiça, possa servir de argumento jurídico para justificar a prática de um crime pelo arguido e, muito menos, alterar as regras legais do concurso superveniente.

De todo o modo, no caso sub judice, o arguido ao longo dos anos foi sendo condenado em várias penas (31/08/2016, 27/02/2017 e 26/09/2017) e nem por isso passou a ter um comportamento conforme ao direito, porquanto os factos a que se reportam os processos 4171/17.9T9CBR (factos cometidos em Outubro de 2017) e nº 1211/18.8PCCBR (factos praticados a 18.11.2018), foram cometidos após as referidas condenações. Neste quadro factual e processual, não foi o Estado a criar condições para o arguido delinquir, mas, antes, a insensibilidade do mesmo em relação aos valores tutelados pelas normas, como, aliás, se alcança do seu certificado de registo criminal, no qual estão averbadas várias condenações anteriores.

Improcede esta questão mantendo-se os dois cúmulos jurídicos de penas em função dos dois grupos de condenações englobadas.

De igual modo, bem andou o Tribunal recorrido em excluir do 1º cúmulo a pena suspensa na sua execução da pena, aplicada no processo comum nº119/16.6PECBR, a qual já tinha sido julgada extinta, porquanto é essa a jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça.

A titulo meramente exemplificativo, escreveu-se no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Novembro de 2024: “A jurisprudência do STJ é hoje amplamente majoritária, se não for uniforme, na defesa da orientação de que, no conhecimento superveniente do concurso, as penas de execução suspensa entram no cúmulo jurídico como penas de prisão - as penas de prisão substituídas -, só no final se decidindo se a pena conjunta resultante do cúmulo deve ou não ficar suspensa na sua execução; Se à data da elaboração do cúmulo jurídico não se mostra decorrido o tempo de suspensão de execução da pena, que se conta a partir do trânsito em julgado da decisão (artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal), nada obsta à inclusão no cúmulo jurídico da pena principal que tinha sido objeto de substituição; Porém, se à data da elaboração do cúmulo jurídico se mostrar decorrido o tempo de suspensão de execução, não deverá a pena ser considerada no cúmulo sem previamente ser averiguado se foi proferida decisão de extinção, de revogação da suspensão ou de prorrogação do período de suspensão; O cúmulo jurídico sequente a conhecimento superveniente do concurso abrange as penas já cumpridas (ou extintas pelo cumprimento), procedendo-se, após essa inclusão, no cumprimento da pena única que venha a ser fixada, ao desconto da pena já cumprida; no que concerne às penas prescritas ou extintas (por causa diversa do cumprimento de prisão), tem-se entendido que não entram no concurso, pois, de outra forma, interviriam como um injusto fator de dilatação da pena única, sem justificação material, já que essas penas, pelo decurso do tempo, foram “apagadas” da ordem jurídico-penal, por renúncia (definitiva) do Estado à sua execução.11

Inconstitucionalidade da decisão por violação dos artigos 13º e 18º da Constituição da República Portuguesa.

O recorrente vem invocar que “a decisão recorrida é inconstitucional, porquanto a interpretação do art.º 78º, n.º 1 CP, aplicada ao caso concreto, viola diretamente os preceitos constitucionais consagrados nos artigos 13º, n.º 1 e 18º, n.º 2 da Lei Fundamental”.

Não tem razão o recorrente.

Como refere o Senhor Procurador-geral Adjunto no seu douto parecer, “o entendimento seguido pelo acórdão recorrido e pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça acima citada tem suporte no entendimento do tribunal constitucional, designadamente no acórdão do TC n.º 212/02, de 22 de maio de 2002 e também na Decisão Sumária do TC n.º 307/2003, onde se lê:

2. A questão de constitucionalidade que é objecto do presente recurso já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, embora como referida apenas ao n.º 1 do artigo 77º do Código Penal, no seu acórdão n.º 212/2002 (Diário da República, II série, de 28 de Junho de 2002), nos seguintes termos:

«Consequentemente, apenas está em causa apreciar neste processo a interpretação normativa do artigo 77º, nº 1, do Código Penal nos termos da qual se considera como momento decisivo para a aplicabilidade da figura do cúmulo jurídico (e da consequente unificação de penas) o trânsito em julgado da decisão condenatória – com a consequência de que a prática de novos crimes, posteriormente ao trânsito de uma determinada condenação, dará origem à aplicação de penas autonomizadas.

Ora, como bem sublinha o Ministério Público nas suas contra-alegações, a exigência formulada pelo artigo 77º, nº 1, do Código Penal como condição para a unificação das penas correspondentes aos crimes em concurso – isto é, a exigência de que a prática de um outro crime tenha ocorrido antes do trânsito em julgado da decisão condenatória pelo primeiro crime – não pode entender-se como mera condição formal, antes revela um substancial sentido ético, ligado ao princípio da culpa, que deve relacionar-se com as dificuldades de reinserção do arguido, anteriormente condenado.

A condição estabelecida no preceito em análise não se afigura como desrazoável ou injustificada, pois, como ficou dito, assenta num fundamento material bastante e tem uma justificação racional: designadamente, o regime contido na norma impugnada assenta no princípio da culpa e justifica-se pelas especiais dificuldades de ressocialização nos casos em que um arguido a quem tenha sido aplicada uma sanção penal demonstre, pela sua actuação posterior – pela prática de novos crimes –, que não conforma o seu comportamento em função das exigências do direito penal.

Por outro lado, é manifesto que, no caso dos autos, a acumulação de penas impostas ao arguido corresponde à reiteração da actividade criminosa do arguido, não podendo atribuir-se-lhe o significado de imposição de qualquer pena de duração perpétua ou indeterminada. Na verdade, resulta dos elementos do processo que o arguido cometeu novos crimes durante o cumprimento da pena que lhe havia sido anteriormente imposta por decisão transitada em julgado, aproveitando para tal um período de saída precária, que aliás prolongou indevidamente por quase dois anos.

Conclui-se que a interpretação normativa atribuída pelo Supremo Tribunal de Justiça ao artigo 77º, nº 1, do Código Penal, nos termos da qual se considera como momento decisivo para a aplicabilidade da figura do cúmulo jurídico (e da consequente unificação de penas) o trânsito em julgado da decisão condenatória não ofende os princípios da dignidade da pessoa humana, do Estado de direito, da tipicidade, da culpa e da inexistência de penas de duração perpétua ou indefinida, consagrados nos artigos 1º, 2º, 20º, 29º, nº 1, e 30º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.»(…)

Portanto, são bem distintas materialmente as situações de sucessão de crimes cometidos após uma decisão transitada em julgado – que, na perspetiva do recorrente importariam um cúmulo jurídico de penas por arrastamento, mas que é ilegal por contrário à lei (artigos 77.º e 78 Código Penal) e porque não distinguiria a punição do concurso de crimes da punição da reincidência – das situações de concurso de crimes, onde se tratam igualitariamente as situações de concurso simultâneo ou superveniente.

Em resultado dessa diferença substancial, sendo cometidos crimes após uma condenação transitada em julgado, não estamos perante concurso de crimes para a economia normativa dos artigos 77.º e 78.º do Código Penal, mas perante sucessão de crimes a serem punidos de forma autónoma, pelo que sendo situações juridicamente diferentes não pode haver apelo a qualquer violação do princípio da igualdade ou da proporcionalidade que sempre pressuporiam uma arbitrariedade das diferenças ou um tratamento igual de situações juridicamente diferentes, que no caso não se verifica. Só assim seria se as situações jurídicas fossem equivalentes ou análogas. Porém, não o são.

O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade, “previsto de forma expressa no artigo 13.º da nossa Constituição, configurando jurisprudência absolutamente estabilizada que a nossa Lei Fundamental só proíbe o tratamento diferenciado de situações quando o mesmo se apresente arbitrário, sem fundamento material, havendo que precisar o sentido da igualdade jurídica. A este propósito, pode ler-se no Acórdão n.º 362/2016, no seguimento de inúmeras decisões anteriores do mesmo sentido, que:

«[…]

Numa perspetiva de igualdade material ou substantiva – aquela que subjaz ao artigo 13.º, n.º 1, da Constituição e que se traduz na igualdade através da lei –, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da desigualdade. Tal implica a determinação prévia da igualdade ou desigualdade das situações em causa, porquanto no plano da realidade factual não existem situações absolutamente iguais. Para tanto, é necessário comparar situações em função de um certo ponto de vista. Por isso, a comparação indispensável ao juízo de igualdade exige pelo menos três elementos: duas situações ou objetos que se comparam em função de um aspeto que se destaca do todo e que serve de termo de comparação (tertium comparationis). Este termo – o «terceiro (elemento) da comparação» – corresponde à qualidade ou característica que é comum às situações ou objetos a comparar; é o pressuposto da respetiva comparabilidade. Assim, o juízo de igualdade significa fazer sobressair ou destacar elementos comuns a dois ou mais objetos diferentes, de modo a permitir a sua integração num conjunto ou conceito comum (genus proximum).

Porém, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88:

‘A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).

O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º.

Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.

O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.’

Por outro lado, não é função do princípio da igualdade garantir que todas as escolhas do legislador sejam racionais e coerentes ou correspondem à melhor solução. Nesse particular, justifica-se recordar a jurisprudência constitucional firmada no Acórdão n.º 546/2011:

‘[O] n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os atos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003 – que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do “merecimento” – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face à ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador. Fora destas circunstâncias, e, nomeadamente, sempre que estiver em causa a simples verificação de uma menor “racionalidade” ou congruência interna de um sistema legal, que, contudo, se não repercuta no trato diverso – e desrazoavelmente diverso, no sentido acima exposto – de posições jurídico-subjetivas, não pode o Tribunal Constitucional emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem através do princípio da igualdade (artigo 13.º) nem através do princípio mais vasto do Estado de direito, do qual em última análise decorre a ideia de igualdade perante a lei e através da lei (artigo 2.º), pode a Constituição garantir que sejam sempre “racionais” ou “congruentes” as escolhas do legislador. No entanto, o que os dois princípios claramente proíbem é que subsistam na ordem jurídica regimes legais que impliquem, para as pessoas, diversidades de tratamento não fundados em motivos razoáveis.».12

O Tribunal Constitucional sobre o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, considera que o mesmo enquanto “dimensão concretizadora do princípio do Estado de Direito, pressupõe, para efeitos da averiguação da sua eventual afetação inconstitucional por parte de atos normativos, um controlo materializado em três testes. Sinteticamente, o a da idoneidade ou adequação dos meios ao fim que se pretende alcançar (o qual há de ser um fim legítimo); o da necessidade ou exigibilidade, que impõe a escolha do meio menos oneroso, sob várias perspetivas, para os cidadãos; e o da proporcionalidade em sentido restrito, que consiste num juízo custos/benefícios a aplicar a uma determinada medida que se pretende adotar. Sobre os dois primeiros testes, leia-se o que foi dito no Acórdão n.º 187/2001:

“[é], porém, certo que medidas que sejam de considerar necessárias ou exigíveis não podem deixar de ser também adequadas (embora o inverso não seja verdadeiro). Assim, na prática, a verificação da necessidade ou exigibilidade resolve logo também a da adequação.

A verificação da necessidade ou exigibilidade pode envolver, por outro lado, uma avaliação in concreto da relação empírica entre as medidas e os seus previsíveis efeitos, à luz dos fins prosseguidos, para apurar a previsível maior ou menor consecução dos objetivos pretendidos, perante as alternativas disponíveis”.13

Ora, tendo em conta a interpretação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade pelo Tribunal Constitucional, é manifesto que nenhum dos dois se encontra violado na interpretação efectuada pelo Tribunal recorrido.

Na verdade, estamos em presença de situações juridicamente diferentes, as quais assentam no princípio da culpa, não comprometem a função ressocializadora do direito penal14 e justificam-se “pelas especiais dificuldades de ressocialização nos casos em que um arguido a quem tenha sido aplicada uma sanção penal demonstre, pela sua actuação posterior – pela prática de novos crimes –, que não conforma o seu comportamento em função das exigências do direito penal.”

Em resumo, inexiste qualquer inconstitucionalidade.

Rectificação de lapso de escrita (artigo 380.º do Código de Processo Penal).

O Senhor Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, com pertinência, requereu a reparação de um erro de escrita no acórdão, consistente em ter-se consignado, no quadro de penas, em relação ao processo comum colectivo nº1393/15.0PBCBR, a condenação do arguido pela prática de “17 crimes de burla qualificada”, quando estão em causa apenas 16 crimes, como resulta do texto do acórdão (pág. 5), no qual se consignou: “Crimes e Pena aplicada: foi condenado na pena de 5 anos e 6 meses de prisão pela prática de 16 crimes de burla qualificada, p.e p. pelo art.º 218º do Código Penal”.

Assistindo razão ao Ministério Público e atenta a evidência do ostensivo lapso, ordena-se a sua correcção, ao abrigo do artigo 380.º do Código de Processo Penal.

Esta norma determina que o tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando a mesma contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial (al. b) do n.º 1), e se já tiver subido recurso da sentença, a correção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso (n.º 2)).

Consequentemente, procede-se a rectificação do referido ponto do quadro de penas, passando a constar “16 crimes de burla qualificada” em substituição do que erradamente ali se mencionou.

Em resumo, determina-se a rectificação do lapso referido e, no mais, improcede o recurso confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.

III. Decisão

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, decide determinar a rectificação do lapso referido e, no mais, julgar improcedente o recurso do arguido AA1 e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC’s - artigo 513.º, n. º1 do Código de Processo Penal e artigo 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).

Supremo Tribunal de Justiça, 01 de Outubro de 2025.

Antero Luís (Relator)

António Augusto Manso (1º Adjunto)

Maria Margarida Almeida (2ª Adjunta)

_______________

1. Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267.

2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.

3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.

4. Proferido no Proc. n.º 181/03, in www.dgsi.pt

5. Acórdão de unificação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 9/2016, de 28 de Abril de 2016, publicado no DR 1.ª série, de 9.6.2016,

6. Aqui se parafraseando o Acórdão do STJ de 15.4.2010 (Processo n.º852/03.2PASNT.L1.S1 – 3ª secção), in www.stj.pt.

7. Embora parte da doutrina (v.g. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, 1999, pags. 278 e 293 e Vera Lúcia Raposo em anotação ao acórdão do STJ de 07-02-2002, publicado na RDCC, Out./Dez. 2003, pags. 590 e segs.), sejam de opinião que partindo de uma interpretação restritiva da lei que não tem suficiente suporte legal, que o que interessa é a data da condenação, não a data do trânsito. Todavia, afigura-se-nos que não se entende ser possível ultrapassar a letra do art. 77º, nº1 do CP que é em sentido contrário. Neste sentido Paulo Dá Mesquita, obra citada, capitulo II, e ponto 2 do capítulo IV, al. a) de pag. 41 e nota 59 da pag. 44; também neste sentido Germano Marques da Silva; na jurisprudência cita-se o recente Ac. STJ de 15-03-2007, nº06P4796 na base de dados do ITIJ.

8. Em termos práticos, para averiguar da existência do concurso de penas, procura-se na tabela supra, em que os crimes foram agrupados por ordens crescentes, a primeira condenação transitada em julgado, considerando-se em concurso todos os crimes com datas anteriores a essa primeira condenação; quanto aos crimes que ficarem de fora, procura-se de novo a data da nova primeira condenação transitada em julgado, e ficam englobados de em novo concurso de crimes anteriores a essa nova 1ª condenação; e assim sucessivamente.

9. Proc. nº 5704/22.4T8VNG.S1, disponível em www.dgsi.pt

10. Proc. n.º 920/17.3T9CBR.S1, disponível em www.dgsi.pt

11. Proc. nº. 28420/23.5T8LSB.S1, disponível em www.dgsi.pt

12. ACÓRDÃO Nº 230/2025, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20250230.html↩︎

13. Acórdão 433/2025, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20250433.html

14. A este propósito, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 557/2025, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20250557.html