I. Não comete o crime de burla quem, após obter o documento de distrate da entidade bancária de cancelamento da hipoteca do imóvel, se recusa a entregar o cheque recebido no acto da escritura de compra e venda a essa mesma entidade bancária, por haver dúvidas sobre os montantes em dívida, em virtude de não se mostrar preenchido o dolo específico exigido pelo tipo legal – “intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo”;
II. O crime de falsas declarações do artigo 348º A do Código Penal, apenas se reporta à falsidade sobre “identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios”.
Assim, não comete o crime de falsas declarações o arguido que declara falsamente, em escritura pública perante notária, que vende o imóvel livre de ónus ou encargos.
1. Por acórdão de 08 de Novembro de 2023 proferido nos presentes autos que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal – Juiz 8, foram os arguidos S..., S.A. e AA absolvidos da prática, dos crimes de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º e 218.º e de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348.º-A todos do Código Penal.
2. Dessa decisão absolutória, o Ministério Público na 1ª instância e a Assistente BB interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão de 18 de dezembro de 2024, após deferir a reclamação da decisão sumária proferida pela Desembargadora Relatora, concedeu provimento aos recursos interpostos e consequentemente condenou os arguidos:
- AA pela prática:
- de um crime de falsas declarações, p. e p. no artigo 248º A), do Código Penal, numa pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 10,00€, o que perfaz 1000,00€.
- de um crime de burla qualificada p. e p. no artigo 218. n.2 alínea a), numa pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, nos termos do artigo 50.º do Código Penal.
-A Sociedade S..., S.A., pela prática
- de um crime de burla qualificada p. e p. nos artigos 11º, n.2, 90ºA, n.1 e 218. n.2 alínea a), numa pena de 100 dias de multa, á taxa diária de dez euros, o que perfaz 1000,00.
3. Inconformados com tal acórdão, os arguidos S..., S.A. e AA interpuseram recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões: (transcrição)
1. O presente recurso fundamenta-se na existência de erro na aplicação do Direito aos factos dados como provados, nomeadamente na errada subsunção da conduta dos Recorrentes nos tipos penais de Burla Qualificada e de Falsas Declarações.
2. O Tribunal a quo incorreu igualmente em erro ao admitir como factos provados elementos que não constituem factos, mas juízos e conclusões, comprometendo o princípio da separação entre factos e Direito.
3. A argumentação do Tribunal a quo baseia-se na presunção errónea de que a Caixa Geral de Depósitos poderia revogar ou impugnar a validade dos distrates emitidos, ignorando o regime das declarações receptícias, o princípio da segurança jurídica e a protecção de terceiros de boa-fé.
4. O cancelamento da hipoteca era um facto juridicamente consolidado no Ordenamento Jurídico no momento da conclusão da outorga da escritura, não sendo passível de revogação unilateral pela entidade financeira após a sua emissão.
5. A Notária, ao entregar - em momento muito posterior à conclusão da escritura e quando já nem o representante da Assistente se encontrava no Cartório - os distrates à representante da Caixa, actuou de forma ilícita e contrária às suas obrigações
6. Tendo sido esse o acto que originou o prejuízo dos Assistentes, e não a realização da escritura.
7. Os Arguidos pretenderam outorgar as escrituras sem ónus ou encargos.
8. E estavam certos de o ter conseguido a partir do momento em que as mesmas estavam finalizadas, os compradores haviam abandonado o Cartório e a Notária estava na posse dos distrates, com a incumbência de proceder ao registo do cancelamento das hipotecas.
9. O crime de burla exige a existência de dolo directo ou necessário, sendo incompatível com dolo eventual.
10. A configuração dos factos não permite concluir pela existência de Falsas Declarações, uma vez que os Recorrentes declararam a realidade tal como a compreendiam, e a Notária detinha, efectivamente, os documentos para cancelamento da hipoteca.
11. O Tribunal a quo acrescentou factos aos autos que não correspondem a elementos objectivos, mas sim a inferências subjectivas, sendo tais acréscimos incompatíveis com o princípio da livre apreciação da prova.
12. O dano patrimonial alegado pelos Assistentes decorre de acto posterior à celebração da escritura e alheio à vontade dos Recorrentes, não existindo nexo de causalidade jurídica entre a conduta dos Arguidos e o prejuízo da Assistente.
13. Os Arguidos não quiseram obter para si enriquecimento ilegítimo, mas tão-só permanecer na posse de quantias que justificadamente entendiam pertencer-lhes.
14. Assim, não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos dos crimes imputados aos Recorrentes, impondo-se a sua absolvição.
Nestes termos, requer-se a V. Exas. Que seja concedido provimento ao presente recurso e, em consequência:
i. Seja revogado o acórdão recorrido;
ii. Sejam os Recorrentes absolvidos da prática dos crimes de Burla Qualificada e Falsas Declarações;
iii. Sejam retiradas do elenco de factos provados as considerações e juízos constantes dos pontos 71 a 99, por não constituírem factos, mas meros juízos e conclusões. (fim de transcrição)
4. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, respondeu ao recurso retirando da resposta as seguintes conclusões: (transcrição)
1. O douto Acórdão recorrido mostra-se correctamente fundamentado.
2. A qualificação jurídico-criminal dos factos mostra-se correta.
3. A ser assim, a argumentação apresentada pelos Recorrentes não tem qualquer fundamento e como tal o douto Acórdão recorrido não merece nenhum reparo ou censura.
Nestes termos, ao negarem provimento ao recurso e manterem o douto Acórdão sob recurso. (fim de transcrição)
5. Respondeu igualmente ao recurso a Assistente BB, apresentando as seguintes conclusões (transcrição)
I - O douto Acórdão explica a razão da sua decisão, assumindo, com total clareza, o percurso lógico e as regras de experiência acolhidas para fundamentar a Decisão., em criteriosa obediência ao disposto no artigo 127º do CPP.
II - O Tribunal recorrido valorou, corretamente, as especificações recursivas da Assistente e do Ministério Público, assim como as provas existentes nos autos e que serviram de base à decisão (artigos 412, nº 3 e 431º, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal).
IV – Inexistindo qualquer dissonância no que tange â análise crítica da prova, na conjugação dos factos provados e respetiva subsunção das condutas dos arguidos nas normas legais incriminadoras
V - Os Recorrentes tiveram, insofismavelmente, a intenção de obter para si o valor da venda dos imoveis.
VI- Contornando o pagamento da hipoteca, que após a venda, passou a estar garantida com património de terceiros (os assistentes).
VII - Determinaram os assistentes a agir, por meio de engano, ao ocultarem que não pretendiam pagar a quantia reclamada pela credora hipotecária.
VIII - O crime de burla consumou-se, porquanto a lesão do bem jurídico ocorreu como consequência da forma peculiar e premeditada de comportamento dos arguidos.
IX - Através da utilização de um meio enganoso (ardil) que induziu a Assistente em erro, e do qual resultou um prejuízo patrimonial de avultado valor, apenas resolvido quase 5 anos após a outorga da Escritura de Compra e venda.
X – O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é, não só o património globalmente considerado, mas também a segurança do tráfego jurídico e das operações negociais na vida em sociedade, maxime, a própria segurança autoridade do Estado.
XI - O arguido deu toda a aparência de uma escritura normal, tendo usado a reserva mental para com a Caixa Geral de Depósitos e para com os assistentes, gerando a ideia de que cumpriria o devido para a validade dos distrates da hipoteca e assim o declarou perante a Notária.
XII - Só apenas após a outorga da Escritura de compra e venda, informou os presentes que não iria proceder ao pagamento correspondente aos distrates emitidos pela CGD, não entregando os cheques, que retirou da mesa da Sra. Notária (resulta, à saciedade, do depoimento da Sra. Notária)
XIII - Pelo que merece o Acórdão recorrido total acerto, devendo ser mantido nos seus exatos termos por ser de plena Justiça.
Nestes termos, deverá o Recurso dos arguidos ser julgado improcedente, mantendo-se o Douto Acórdão recorrido,
assim se fazendo JUSTIÇA. (fim de transcrição)
6. Neste Supremo o Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitiu o seu douto parecer concluindo nos seguintes termos: “Padece o Acórdão recorrido de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação na parte em que configura os factos-provados 21., 26.e 41. e 26. e 33., respectivamente;
Tais vícios impõem que deva ser decretada a anulação do Acórdão recorrido nesta parte, com reenvio do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa para que seja proferido novo acórdão, eventualmente com renovação da prova, para sanação.
Não comete o crime de “falsas declarações”, p. e p. na disposição do art. 348º-A do Código Penal, quem, em escritura de compra-e-venda de imóvel, declara falsamente transmitir sem ónus ou encargos prédio hipotecado.” Pelo que,
“Deverá o recurso do arguido AA ser julgado parcialmente procedente, com absolvição da prática do crime de “falsas declarações”;
No restante – crime de “falsificação de documento” – deverão ser declarados os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação, com anulação da decisão recorrida nessa parte e com o reenvio dos autos para o Tribunal da Relação de Lisboa para suprimento dos vícios em causa.”
7. Notificados os sujeitos processuais, não houve respostas.
Realizado o exame preliminar, colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
II. Fundamentação
8. Do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, com a alteração da matéria de facto efectuada constante a negrito, resultam provados, os seguintes factos: (transcrição)
1. Em 28/11/2008, a sociedade arguida celebrou dois mútuos garantidos por hipoteca com a Caixa Geral de Depósitos (CGD).
2. Sobre o bem hipotecado passou a constar um prédio constituído em propriedade horizontal que passou a estar descrito sob o n.º ..25/2001/12/06 da Freguesia de ... e Concelho de Lisboa.
3. Sendo certo que a credora, à medida que as fracções iam sendo vendidas e pagos os valores de dívida a elas correspondentes, emitia e entregava os distrates, para que fosse possível a expurgação dos ónus que sobre as mesmas incidiam.
4. Em 29/8/2018, a sociedade arguida “S..., S.A.”, através do seu administrador, o arguido AA, outorgou um contrato de promessa de compra e venda com BB, no acto representada pelo seu procurador, CC, no qual a primeira se obrigava a vender fracção autónoma designada pela letra “B”, do prédio descrito na Conservatória do Registo Civil de Lisboa, n.º .05, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo n.º ..16, da Freguesia de ... Concelho de Lisboa, livre de ónus e encargos, obrigando-se a assegurar o cancelamento das hipotecas naquele inscritas até à data de assinatura do contrato definitivo de compra e venda.
5. Mais garantiu à promitente compradora que tal fracção não era objecto de qualquer decisão judicial ou administrativa que pudesse vir a afectar o seu valor ou o direito de disposição da promitente compradora.
6. Era condição essencial do negócio que a compra da fracção se fizesse livre de ónus e encargos.
7. A arguida recebeu da promitente compradora a título de sinal e pagamento do preço €130.000,00 (cento e trinta mil euros).
8. A arguida prometeu transmitir a Fracção S aos Assistentes DD e EE.
9. Os negócios de compra e venda da Fracção B, com a Assistente BB, e de compra e venda da Fracção S, com os Assistentes DD e EE, eram totalmente independentes e autónomos entre si.
10. O negócio de compra e venda da Fracção S configurou, na verdade, uma permuta técnica, isto é, a arguida permutou a Fracção S por um imóvel, propriedade dos Assistentes, vendendo-o, posteriormente, a terceiro indicado pelos Assistentes, a FF.
11. Por motivos de mera conveniência e economia de tempo e recursos, foram agendadas para o dia 30.11.2018, a outorga da escritura pública de compra e venda da Fracção B e as escrituras de permuta técnica da Fracção S.
12. No dia 30.11.2018, nenhuma destas escrituras foi outorgada.
13. A Escritura de Compra e Venda relativa à Fracção B não foi possível realizar, uma vez que o cheque bancário que se destinava ao pagamento do preço não continha todas as assinaturas necessárias.
14. A Escritura de Permuta a celebrar, também nessa data com os assistentes DD e EE relativa à Fracção S, não pôde ser outorgada uma vez que o texto do contrato de mútuo, redigido pelo Banco Millennium BCP, não se encontrava em conformidade com os requisitos legais.
15. O Arguido AA esteve, no dia 30.11.2018, horas no Cartório Notarial da Dra. GG a aguardar a celebração de ambos os contratos, sem que tal tivesse sido possível, pelos motivos supra elencados, e, quando percebeu que nenhuma das escrituras iria ser outorgada decidiu sugerir o adiamento das mesmas.
16. Por mera conveniência, e para a eventualidade de se repetir a impossibilidade de celebração das escrituras, o Arguido AA manifestou a sua preferência para que fossem todas realizadas no mesmo dia (a agendar consoante a disponibilidade das partes).
17. Foi então acordado entre o arguido AA e os assistentes que a nova data para outorga das escrituras seria o dia 12.12.2018, o que se confirmou após confirmarem a disponibilidade do referido Cartório para esse dia.
18. A escritura a realizar para a fracção S, ao contrário da escritura da fracção B implicava a constituição de nova garantia hipotecária a favor do Millennium BCP.
19. Para garantir a emissão dos distrates necessários para a expurgação das hipotecas sobre as fracções “B” e “S”, os arguidos solicitaram a sua emissão junto da credora hipotecária.
20. No dia 12/12/2018, no acto da escritura, o arguido AA declarou que a transmissão da fracção “B” se fazia livre de ónus e encargos e era com essas características essências que vendia o bem, o que a compradora aceitou.
21. Momentos antes da realização da Escritura de Compra e Venda da Fracção B, a arguida realizou um depósito de € 2.060,00 (dois mil e sessenta euros), de forma a viabilizar a entrega dos distrates que asseguravam o cancelamento das hipotecas registadas sobre as Fracções B e S.
22. A escritura de compra e venda entre a arguida e a assistente BB decorreu sem quaisquer percalços, dentro da normalidade.
23. No momento da celebração desta escritura, estavam presentes a Dra. GG, enquanto Notária; o procurador da Assistente BB, o arguido AA, na qualidade de legal representante da arguida; HH; e uma pessoa em representação da empresa de mediação imobiliária "R..., Lda".
24. A escritura foi outorgada pela arguida, na qualidade de vendedora e pela assistente BB, na pessoa do seu procurador, na qualidade de compradora.
25. A venda foi declarada livre de ónus ou encargos, constando das declarações do primeiro outorgante, que os cancelamentos das duas hipotecas a favor da CGD estavam assegurados, relativamente à fração acima identificada, pelo que a presente venda é feita livre de ónus ou encargos".
26. No momento anterior à outorga da escritura, o documento que atestava os cancelamentos das hipotecas registadas a favor da CGD sobre Fracção B foi confiado à Senhora Notária, o documento que atestava o cancelamento das hipotecas registadas a favor da CGD sobre a Fracção S foi confiado à Senhora Notária, para que esta oportunamente procedesse aos respectivos registos.
27. O preço de € 680.000 foi integralmente pago.
28. Houve tradição do imóvel, pela entrega das chaves da Fracção B.
29. As declarações de liquidação de IMT e Imposto de Selo e correspondentes comprovativos de pagamento foram arquivados junto com a respectiva escritura.
31. O procurador da Assistente BB deixou o Cartório Notarial, prosseguindo com os seus compromissos.
32. O arguido e HH permaneceram nesse Cartório Notarial para a realização das escrituras relativas à Fracção S.
33. A funcionária do Banco, encarregada de entregar os distrates, apenas surgiu no Cartório Notarial após a outorga da escritura referente à fracção “B”.
34. Estando os distrates e demais documentação na posse da Notária, realizou-se a escritura de compra e venda da fracção “S”.
35. A arguida e os assistentes DD e EE, representados por procurador, outorgaram uma escritura de "Permuta, Mútuo com Hipoteca".
36. O preço foi integralmente pago e houve tradição dos imóveis, pela entrega das respetivas chaves.
37. As declarações de liquidação de IMT e Imposto de Selo e correspondentes comprovativos de pagamento foram arquivados junto com a respectiva escritura.
38. A arguida celebrou ainda, após a conclusão da escritura acima referida, com FF, uma escritura de "Compra e Venda" lavrada de folhas 32 a 33 verso do livro de notas para escrituras diversas nº 260-A.
39. Após a outorga de tal escritura, o arguido AA foi abordado por II que lhe solicitou a entrega dos cheques que havia acabado de receber.
40. O Arguido solicitou a II a respectiva credenciação, bem como prova de que deveria entregar os cheques naquele momento por conhecer o representante da CGD que se desloca às escrituras.
41. Só após a assinatura pelas partes e acreditação do título e produção dos seus efeitos, é que o arguido AA informou os presentes que não iria proceder ao pagamento correspondentes aos distrates emitidos pela CGD e que não iria entregar os cheques, usados para o pagamento remanescente dos preços para depósito na sua conta na CGD, com a consequente amortização do valor em dívida naquela data, por conta das hipotecas a expurgar.
42. A Senhora Notária fechou a sala onde decorria a outorga da escritura pública, com o intuito de impedir que o arguido AA saísse.
43. Posteriormente, já com os Arguidos fora do Cartório Notarial -, a Senhora Notária, conforme anunciou ao Arguido Valdemar, entregou a II os documentos de distrate que atestavam os cancelamentos das hipotecas sobre a Fracção B e S que os Assistentes acabavam de adquirir.
44. Os valores recebidos pelos arguidos, no dia da escritura, não foram depositados numa conta aberta junto da credora hipotecária, mas na conta do Banco Comercial Português, S.A., com o IBAN PT.....................05.
45. Ainda que os referidos montantes já não estivessem nas respectivas contas bancárias dos compradores, permaneceram na mesma instituição bancária.
46. No dia 21.12.2018, a arguida enviou duas cartas à CGD a solicitar que lhe disponibilizasse um sumário/mapa dos valores que já haviam sido pagos no âmbito do Contrato de Crédito e no âmbito do contrato de garantia bancária celebrado entre a arguida e a CGD, procurando saber o valor que a CGD considerava estar em dívida naqueles contratos, tendo manifestado que o “interesse é apurar se existe – e, em caso positivo, quantificar detalhadamente – qualquer saldo em dívida ao abrigo dos Créditos hipotecários registados sobre os imóveis em questão”, referindo que, “[i] independentemente da razão de cada parte nesta sucessão de incidentes – cuja discussão não é o propósito desta carta – parece-nos imperioso apurar qual, exactamente, o montante em dívida ao abrigo dos Créditos hipotecários registados sobre as fracções em causa”, tendo alegado que estes pedidos de informações não eram uma novidade, pois “por diversas vezes, solicitou mapa detalhado de pagamentos e amortizações referente ao mútuo hipotecário em causa (…) e até ao dia de hoje, facultar-lhe o referido mapa”(…) “por forma a resolver rapidamente esta questão, que tanto prejuízo está a causar aos terceiros que adquiriram as fracções de boa fé, convictos de que o cancelamento das hipotecas se encontrava assegurado”.
46. Na outra carta mencionada, a arguida reforçou o pedido de mapas detalhados de todos os pagamentos e amortizações efectuadas ao abrigo dos contratos celebrados entre a arguida e a CGD.
48. Na resposta da Caixa Geral de Depósito ficou exarado que “que respeita à imputação dos valores das entregas anteriores, respectivas dívidas, atento o elevado número de movimentos efectuados” que fosse a arguida a disponibilizar “(…) os valores de distrate que constam da [sua] contabilidade” para que a CGD pudesse “validar e melhor esclarecer”.
49. Na resposta da arguida à CGD, aquela manifestou a sua posição relativamente à demora da resposta por parte da CGD, manifestando, desde logo, a sua “total incompreensão quanto à demora da (…) resposta [da CGD] ao nosso pedido de informações que, tendo sido endereçado [à CGD] no dia 21 de Dezembro 2018, apenas obteve resposta dois meses depois, no dia 21 de Fevereiro de 2019.”.
50. Deixando claro os prejuízos da demora da resolução desta situação: “O certo é que a falta reiterada de esclarecimentos relativamente aos supra identificados financiamentos tem gerado graves prejuízos, tanto à [Arguida S…S.A.], como aos adquirentes das fracções autónomas “B” e “S” do Imóvel.” (…) “porque assumiu, perante os compradores das fracções autónomas “B” e “S” do Imóvel – que adquiriram tais fracções no dia 12 de Dezembro de 2018, mediante escritura pública –, que iria encetar diligências junto de V. Exas. no sentido de apurar o valor em dívida no Contrato de Crédito. A falta desses esclarecimentos provocou- lhe danos graves na sua relação com os clientes, atendendo aos compromissos assumidos com estes” (…) “Aos compradores, evidentemente, pois muito embora tivessem celebrado escrituras em que os imóveis lhes eram vendidos livres de ónus ou encargos, vêem-se onerados com as mencionadas hipotecas, que permanecem registadas em nome de V. Exas., muito embora os Créditos subjacentes se encontrem pagos, ou sejam de montante muito inferior ao reclamado.”.
51. Bem como a incompreensão quanto à não disponibilização dos documentos pedidos pela arguida: “Adicionalmente, é com algum espanto que verificamos que a V. resposta não faculta toda a informação (…) (mesmo tendo demorado 2 meses a ser preparada). Pelo contrário, omite a maior parte dos dados que seriam necessários para apurar o historial – de acordo com a CGD – dos Créditos em causa e do seu cumprimento e amortizações. (…)
Em particular, não nos é disponibilizado um mapa detalhado de todos os pagamentos e amortizações realizados no âmbito do referido Contrato de Crédito (…)”.
52. A sua discordância quanto aos valores em dívida no âmbito do Contrato de Crédito e do contrato de garantia bancária: “(…) manifestamos o nosso desacordo relativamente aos valores apresentados pela Caixa como sendo devidos (…) a respeito do Contrato de Crédito. (…) Considerando as amortizações extraordinárias que tiveram lugar (entenda-se: os valores obtidos pela Caixa em resultado das vendas das várias fracções do Imóvel desde 2013), considera (…) que o valor apresentado por V. Exas. não se encontra correcto “ (…) “sendo ainda entendimento da arguida que “(…) a hipoteca registada ao abrigo da Garantia Bancária deveria ter sido cancelada aquando do pagamento do valor de €1.800.000,00 (um milhão e oitocentos mil euros), uma vez que esta Garantia Bancária visava assegurar o pagamento do valor do terreno à beneficiária da garantia, pagamento esse que foi efectuado.”.
53. E a total incompreensão quanto ao pedido que a CGD formula na sua resposta, na medida em que pede à arguida que disponibilize os documentos da sua contabilidade para que possa “validar e melhor esclarecer” o apuramento dos valores em dívida nos contratos: “É, também, totalmente incompreensível que Caixa solicite (…) que, no “que respeita à imputação dos valores das entregas anteriores respectivas dívidas, atento o elevado número de movimentos efetuados (…)” indique “valores de distrate que constam da [sua] contabilidade” para que a Caixa possa “validar e melhor esclarecer” e que “Todas as movimentações e operações de distrate foram efectuadas pela Caixa, sendo esta quem deverá relacioná-las e indicá-las.
Exaustiva e detalhadamente. Independentemente do eventual número de movimentos efetuados. Nem se compreende como poderia ser de outro modo.”
(…) e que se estranha “que a Caixa tente passar esse ónus para a contabilidade da [Arguida S..., S.A.], o que não só não é admissível, como constitui um pedido inquietante, não se vislumbrando o intuito que subjaz ao mesmo. Seja como for, indicia negligência grave do Banco no tratamento dos dados dos clientes”.
54. Os arguidos, AA e S..., S.A. propuseram uma acção declarativa com o número de processo 8085/19.0T8LSB, que corre termos no Juízo Central Cível de Lisboa - Juiz 19, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, contra a CGD, no dia 12.04.2019, com o intuito de ser reconhecido aos aí autores que o Contrato de Crédito se encontra total ou parcialmente reembolsado e amortizado, não existindo qualquer dívida ou, pelo menos não nos valores exigidos pela CGD para cancelamento das hipotecas que incidem sobre a Fracções B e S, dos Assistentes.
55. Todas estas diligências foram sendo sempre transmitidas aos mandatários, à data, dos assistentes, sendo os mesmos informados, designadamente, do envio da carta à CGD no dia 21 de dezembro de 2018 e do envio da carta de resposta à CGD no dia 18 de março de 2019,
56. A arguida sempre deu conhecimento aos assistentes dos desenvolvimentos das diferentes acções que compõem este diferendo, tendo estes conhecimento do peticionado na Acção Declarativa.
57. Foi trocada vária correspondência, deste Dezembro de 2018 entre os mandatários dos assistentes e dos arguidos, referente aos vários pontos de situação das diligências efectuadas por esta junto da CGD.
58. O preço dos imóveis recebido pelos arguidos foi penhorado à ordem dos autos do processo n.º 8800/19.1T8LSB, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução de Lisboa - Juiz 1.
59. Em 28 de Setembro de 2023, os arguidos S..., S.A. e AA entregaram aos assistentes DD e EE a declaração de distrate da hipoteca constante da ap. 7 de 2008/11/25, que incide sobre o imóvel do qual são proprietários, isto é, a fracção autónoma designada pela letra “S”, que corresponde, no bloco 2, ao piso 2, letra A, destinada a habitação, com 2 lugares de estacionamento, com os n.ºs 11 e 12 e uma arrecadação com o n.º 2, todos no piso -1, do prédio urbano situado na Rua 1 e Rua 2, freguesia de..., concelho de Lisboa, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ..25, da dita freguesia, e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ..16.
60. Em 28 de Setembro de 2023, os arguidos procederam à entrega à assistente BB da Declaração do Distrate da hipoteca constante da AP …7 2008/11/25, que incide sobre o imóvel do qual a assistente é proprietária, fração autónoma correspondente à Letra B do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº ..25, da Freguesia de ..., situado na Rua 1, concelho de Lisboa, e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 2216.
61. O arguido AA não tem antecedentes criminais.
62. O arguido AA é natural de uma aldeia do concelho de Vila Real e desenvolveu-se no agregado de origem, constituído pelos pais e sete filhos, em que ele é quinto na posição da fratria. Os progenitores, ele ... na empresa V..., S.A., ela doméstica, conseguiram construir uma situação económica que, embora modesta, era equilibrada, para o que contribuía o facto de explorarem uma pequena quinta agrícola, onde também criavam gado, de onde retiravam o necessário à subsistência de toda a família. A família observaria princípios éticos e morais rigorosos, assentando a interacção do agregado em valores de respeito e obediência, não questionados. O pai do arguido, descrito como pouco afetuoso mas esforçado e diligente, procurava assegurar o bem-estar material, enquanto a mãe, funcionando como contrapeso, se mostrava próxima e carinhosa, mais interveniente na educação dos descendentes.
63. Beneficiando do incentivo dado pela empresa em que o pai trabalhava, no sentido da promoção de competências escolares aos filhos dos trabalhadores, nomeadamente pagamento de despesas escolares, oferta de transporte e acompanhamento de estudo, o arguido AA pôde prosseguir a escolaridade em Chaves, tendo terminado, sem reprovações, o curso geral industrial, equivalente ao actual 9º ano. Depois disso, o arguido veio para Lisboa, onde já residia um irmão, com o objectivo de frequentar o Instituto Industrial, mas apenas concluiu o 1º ano, por ter preferido, aos dezassete anos, contrair matrimónio.
64. Com hábitos de trabalho arreigados, iniciados ainda em criança, quando em paridade com os outros elementos da família, ajudava já nas lides agrícolas, iniciou cedo actividade na indústria da construção civil, como empreiteiro, conseguindo, a pouco e pouco, uma situação auspiciosa, através de diversas empresas que constituiu.
65. As crises económicas que vieram a suceder, principalmente a de 2010, acabariam por repercutir-se negativamente nos negócios, que embora tenha recuperado, já não deixou as empresas com a mesma saúde financeira, razão porque, actualmente, o arguido terá contra ele, pendentes, vários processos de execução.
66. Encontrando-se reformado, tal como a mulher, o arguido possuirá actualmente uma situação económica de desafogo, conquanto todo o seu património tenha sido transmitido, há talvez nove ou dez anos, por doação, aos cinco filhos, com quem mantém uma ligação patriarcal, mesmo no universo dos negócios de construção civil, a que alguns deles igualmente se dedicam.
67. As características e valores sociais que têm norteado o percurso do arguido, a sua inserção numa família funcional, a idade que apresenta, mas sobretudo a situação de já escassa actividade profissional, são factores que, tudo indica, se oporão à prática futura de actos da mesma natureza.
68. A família de AA mantém intacta a confiança nele, crente na versão dos factos que invoca, não tendo o relacionamento com a mulher e filhos sido abalado pela questão judicial.
69. Nascido numa família de estrato sociocultural humilde, no seio da qual beneficiou de condições para o adequado desenvolvimento de valores éticos e sociais, o arguido tornou-se um adulto conformado às normas, sob as quais tem orientado o seu quotidiano.
70. Avaliando o equilíbrio entre os factores de risco criminógeno e aqueles que, pelo contrário, concorrem para uma normal inserção social do arguido, verifica-se que estes últimos se destacam pelo maior peso da sua representação, pelo que se entende que, caso venha a ser condenado, estarão reunidas condições para aplicação de medida de execução na comunidade.
71. Os arguidos nunca pretenderam pagar à Caixa Geral de Depósitos, a quantia por esta reclamada como contrapartida do distrate das hipotecas, pois entendem que não a devem.
72. Na data referida nos pontos 17. e 20. dos factos provados bem sabiam os arguidos quais os valores que a credora hipotecária reclamava.
73. E que aqueles eram superiores em 100.000,00€ aos valores a receber na data das outorgas.
74. Sabiam, ainda, os arguidos que não pretendiam naquela data pagar os valores reclamados para expurgação das hipotecas das últimas fracções daquele prédio (fracções B e S e parqueamentos).
75. Quiseram omitir e omitiram, deliberadamente, de forma livre, consciente e voluntária, tais informações quer aos assistentes, quer à credora hipotecária.
76. O depósito mencionado no ponto 21. dos factos provados tenha sido imediatamente antes da outorga da escritura da fracção “S” e no montante de €2.055,46 (dois mil e cinquenta e cinco euros e quarenta e seis cêntimos).
77. Tal depósito tenha sido feito pelos arguidos por forma a assim perfazer o valor total reclamado pela credora hipotecária para expurgação dos ónus e, com isso, criarem a convicção nos demais intervenientes que tudo se passava de forma regular e que era sua intenção procederem à entrega dos valores recebidos pelos compradores, bem sabendo que os valores a entregar ao Banco para contraentrega dos distrates eram superiores aos que iriam receber naquela data.
78. Conseguiram, ainda, reforçar tal convicção, através da intervenção de Notária, oficial dotado de fé pública, e criarem um véu de aparente segurança jurídica, ludibriando o representante da compradora, JJ, a assinar o acto notarial, convicto de que as declaradas qualidades do prédio correspondiam à realidade.
79. A Notária atribuiu fé pública ao falsamente declarado, bem sabendo os arguidos qual o valor necessário para pagamento ao credor hipotecário para expurgação das hipotecas inscritas na fracção “B” naquela data.
80. Os arguidos planearam eximir-se ao pagamento dos ónus.
81. E receber o preço de BB, como se o tivessem feito, de forma atempada.
82. O que premeditaram e executaram, bem sabendo que, com tal conduta, lesavam ou a C.G.D. ou a compradora.
83. Levaram a cabo os seus intentos de forma consciente e voluntária.
84. Bem sabendo que prestavam falsas declarações perante oficial público.
85. E que tal conduta era passível de ludibriar terceiros, ao criar-lhes a convicção de que o prédio comprado tinha qualidades que, de facto, não possuía.
86. O que lograram conseguir.
87. Levando-os a outorgar uma escritura com factos falsos.
88. O que prejudicou a compradora BB, directamente, na sua esfera patrimonial, pelo menos, no valor de €680.000,000.
89. Garantindo, ainda, que um terceiro assumia o ónus, resultante da garantia antes prestada pela sociedade.
90. Nas circunstâncias descritas no ponto 40. dos factos provados, os cheques estivessem na posse da Notária.
91. Tenha sido em acto prévio à formalização da escritura de permuta, que o documento que atestava o cancelamento das hipotecas registadas a favor da CGD sobre Fracção S foi confiado à Senhora Notária.
92. Após o descrito no ponto 49. dos factos provados, a Senhora Notária fez uma chamada telefónica, dizendo que era dirigida a um ou uma representante da Caixa Geral de Depósitos, não conseguindo o arguido perceber o teor desta chamada.
93. Os arguidos nunca pretenderam entregar os valores dos cheques recebidos dos compradores, até porque o somatório daqueles mostrava-se insuficiente para expurgar os valores em dívida, comunicados pela CGD para entrega dos respectivos distrates.
94. Com tal conduta os arguidos quiseram e conseguiram titular um negócio aparentemente livre de ónus e encargos, atribuindo fé pública ao acto, quando, nunca pretenderam expurgar as hipotecas sobre a fracção “S”.
95. Criaram a impressão e expectativa de que pretendiam entregar os cheques emitidos para pagamento da compra à credora hipotecária contra a entrega dos distrates, quando pretendiam, apenas, obter as assinaturas dos outorgantes e ficar na posse e disponibilidade dos cheques e creditá-los numa conta de outra instituição bancária que não a credora CGD.
96. Os arguidos lograram alcançar os resultados do plano delineado, ludibriando a credora, que cumpriu o seu papel entregando os distrates à Notária para titulação dos cancelamentos das hipotecas e os compradores da fracção “S”, que procederam à assinatura e entrega dos valores remanescentes, correspondentes ao pagamento do preço atribuído ao bem desonerado.
97. Com o comportamento adoptado, os arguidos puseram em causa a segurança do comércio jurídico e a autoridade pública.
98. Agiram de forma consciente, intencional e voluntária e sabiam que lesavam a CGD e os compradores.
99. Sabiam que as suas condutas são proibidas e punidas por lei. (fim de transcrição)
8.1 Resultam não provados os seguintes factos: (transcrição)
- que o arguido AA tenha saído da sala do Cartório Notarial da Dra. GG convictos da perfeição do negócio.
- que após a conclusão do referido negócio, o Arguido AA não tenha sido abordado por ninguém em nome e representação da CGD, nomeadamente pela Senhora D.ª II, solicitando a entrega do cheque de pagamento do preço da Fracção B.
- que não tenha sido declarado e/ou comunicado aos Arguidos ou à Assistente BB que a produção de efeitos da escritura que acabavam de outorgar, nomeadamente o cancelamento das referidas hipotecas, tivesse ficado condicionada a tal entrega.
- que os arguidos tenham indicado à credora hipotecária valores de venda diferentes dos que sabiam realizar, imediatamente, dois dias após a outorga do contrato-promessa.
- que o arguido não conhecia II, muito menos se esta era procuradora e/ou representante credenciada da CGD.
- que a arguida apenas tenha sabido sobre os valores em divida em 21.02.2019. (fim de transcrição)
8.2 O Tribunal da Relação de Lisboa justificou a alteração da matéria de facto, nos seguintes termos: (transcrição)
“Esta factualidade que entendemos encontrar-se provada, impõe a conclusão de que o Arguido AA, em representação da sua sociedade, no interesse e por conta de quem agiu, atestou falsamente perante funcionário, fazendo exarar numa escritura de compra e venda de imóveis, documento autêntico, um facto juridicamente relevante que sabia não corresponder à verdade, isto é, que os imóveis que estavam a ser transacionados estavam livres de ónus e encargos, quando assim não era, pois não pretendia proceder e não procedeu ao pagamento da quantia que a credora hipotecária exigia para a expurgação da hipoteca.
Cremos também que se verifica o elemento astúcia, elemento fundamental da burla.
Considera-se que existe astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade.
Entendemos que se verifica esta astúcia.
O arguido deu toda a aparência de uma escritura normal, tendo usado de reserva mental para com a Caixa Geral de Depósitos e para com os assistentes, gerando a ideia que cumpriria o devido para a validade dos distrates da hipoteca, e assim o declarou perante a notária.
Reservou o arguido, para depois da assinatura da escritura, o expediente que tudo veio alterar: não entregar o cheque à CGD, o que obviamente, tinha como consequência o não distrate da hipoteca, ou pelo menos a sua impugnação, caso a declaração não tivesse sido devolvida.
Bem sabia o arguido que existiam divergências com a CGD quanto ao montante em dívida, pelo que a sua estratégia de reter o cheque foi previamente engendrada, sendo para ele claro que estavam a enganar a assistente quando declarou vender o imóvel sem qualquer ónus e, outrossim, que a assistente só lhes entregou o cheque de pagamento porque estava convicta que o imóvel era vendido completamente desonerado.” (fim de transcrição)
9. Questões a decidir
É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3
Da leitura dessas conclusões, os recorrentes colocam a este Supremo Tribunal, as seguintes questões:
- elementos típicos do crime de burla, à luz dos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal;
- elementos típicos do crime de falsas declarações, à luz do artigo 348.º-A, nºs 1 e 2, do Código Penal.
Oficiosamente, proceder-se-á ainda à sindicância do texto do acórdão tendo em vista a detecção dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, mais concretamente, do erro notório na apreciação da prova – al. c), pelas razões que oportunamente trataremos em sede de análise dos elementos típicos do crime de burla.
10. Apreciando
10.1. Do erro notório na apreciação da prova à luz do artigo 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal.
Da leitura do acórdão do Tribunal da Relação, transcrito anteriormente, verifica-se que se deram por provados os factos respeitantes aos tipos objectivos dos crimes de burla qualificada e falsas declarações, bem como os respeitantes ao tipo subjectivo e à consciência da ilicitude. Estes últimos transitaram da matéria de facto não provada constante do acórdão da 1.ª instância para a matéria de facto provada no acórdão da Relação, tendo assim a Relação procedido aqui a uma alteração da matéria de facto em resultado da impugnação da matéria de facto de que conheceu.
Porém, pelas razões que adiante aduziremos, quando tratarmos da tipicidade dos ilícitos, resulta inequívoco que os factos provados não preenchem os elementos típicos dos crimes pelos quais os arguidos foram condenados.
Neste sentido, sem prejuízo dos restantes vícios invocados pelo Senhor Procurador-geral Adjunto que igualmente se verificam (vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição insanável da fundamentação), entendemos que o acórdão da Relação incorreu em erro notório na apreciação da prova, ao ter procedido à alteração da matéria de facto no que respeita aos factos relativos ao tipo subjectivo e, com especial acuidade, à consciência da ilicitude (“99. Sabiam que as suas condutas são proibidas e punidas por lei”), pondo-os nos factos provados do acórdão recorrido.
Vejamos.
Os vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, podem ser suscitados pelos sujeitos processuais e são de conhecimento oficioso4 (artigo 432º, nº1).
Os vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum, sem recurso a outros elementos estranhos ao texto da decisão, pois trata-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.5
Estamos em presença de erro notório na apreciação da prova sempre que do texto da decisão recorrida resulta, com evidência, um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores e que se traduza numa conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. Ou seja, que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum6.
Neste mesmo sentido, escreveu-se no sumário de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, «O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum»7.
Para se verificar este vício tem, pois, de existir uma «(…) incorrecção evidente da valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova, incorrecção susceptível de se verificar, também, quando o tribunal retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum»8.
Este entendimento da jurisprudência é também seguido pela doutrina, pois, como refere Paulo Saragoça da Matta, ao tribunal de recurso cabe apenas “(…) aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”9.
No caso sub judice, o erro notório materializa-se no acórdão do Tribunal da Relação ao dar como provados os factos relativos ao tipo subjectivo e, com especial acuidade, à consciência da ilicitude, quando os mesmos, para além de serem contrariados por outros factos provados (19º; 21º depósito de 2.060,00€ para serem entregues os distrates; 26º entrega dos distrates à Senhora Notária; 39º; 40º; 41º; 43º (entrega dos distrates à CGD pela Senhora Notária); 46º pedido à CGD informação sobre os montantes em dívida; 48º a 54º, 55º e 56º), são absolutamente irrelevantes atenta a circunstância de os mesmos nunca permitirem o preenchimento dos elementos do tipo de burla, como veremos.
Assim, encontrando-se o Supremo em condições de suprir de imediato tal vício da decisão, determina-se, para esse efeito, que os factos relativos ao dolo e à consciência da ilicitude dados como provados no acórdão recorrido transitem para os factos não provados do acórdão recorrido.
A verificação do vício e a sua correcção nos moldes referidos, levaria, só por si, à procedência do recurso.
Porém, para uma cabal compreensão do que acabamos de referir, importa analisar os tipos legais pelos quais os arguidos foram condenados.
Vejamos.
10.2 Do ilícito típico do crime de burla à luz dos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal
No acórdão da Relação, considerou-se que os factos provados consubstanciam o crime de burla com base, resumidamente, no seguinte.
Ao outorgar a escritura de compra e venda da fracção B do prédio referido livre de ónus ou encargos, o arguido induziu astuciosamente em erro a assistente (bem como os demais presentes por ocasião da realização da escritura), visto que omitiu a informação de que não tinha intenção de pagar à Caixa Geral de Depósitos a quantia por esta reclamada como contrapartida do distrate que onerava aquela fracção. Por conseguinte, determinou a assistente à prática de actos que lhe causaram prejuízo patrimonial (pelo menos, no valor de € 680.000,000).
Omitiu a Relação, no entanto, qualquer referência à intenção de obter enriquecimento ilegítimo, elemento subjectivo especial do tipo de burla ignorado na decisão.
Argumentam os recorrentes que não há burla, alegando, em síntese, que o cancelamento da hipoteca estava já juridicamente consolidado no Ordenamento Jurídico na conclusão da outorga da escritura, não sendo passível de revogação unilateral pela entidade financeira após a sua emissão. Em decorrência, foi o acto da Sra. Notária de entrega do distrate à representante da Caixa, já após a conclusão da escritura, que originou o prejuízo para a assistente, não a realização da escritura. No momento em que esta foi concluída, os recorrentes estavam convencidos de haverem outorgado a escritura e transmitido o prédio livre de ónus ou encargos.
Pronunciou-se o Ministério Público na 2.ª instância pela confirmação do acórdão recorrido.
No entanto, no Supremo Tribunal de Justiça, o Sr. Procurador-Geral Adjunto, divergindo da posição do Ministério Público na Relação, pronunciou-se notando que, ainda que tenha razão o Tribunal da Relação na solução de responsabilização do arguido dada à questão de Direito como ela está configurada, a matéria de facto provada revela incoerências e lacunas que impõem concluir pela verificação dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição insanável da fundamentação, nos termos do artigo 410.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal.
Resulta o primeiro da falta de explicação para a ausência de menção na escritura ao distrate emitido pela Caixa Geral de Depósitos, ao contrário do que normalmente sucederia. Decorre o segundo da contraposição entre os factos 26. e 33., pois aí se afirma em simultâneo que “no momento anterior à outorga da escritura, o documento que atestava os cancelamentos das hipotecas registadas a favor da CGD sobre Fracção B foi confiado à Senhora Notária” e “a funcionária do Banco, encarregada de entregar os distrates, apenas surgiu no Cartório Notarial após a outorga da escritura referente à fracção B”. Ambos os vícios geram incertezas quanto à factualidade respeitante ao uso do distrate, impossibilitando um juízo seguro sobre a causalidade do prejuízo.
Como ponto de partida, consigna-se que, para a decisão, relevam unicamente os factos dados como provados no acórdão recorrido.
Começa-se por notar que não têm razão os recorrentes nas suas alegações. Com efeito, o distrate de hipoteca é um documento emitido pelo credor (no caso, a entidade bancária) afirmando a liquidação, por pagamento, do crédito garantido.
As afirmações dos recorrentes parecem pressupor que o efeito de liquidação se gera pela mera emissão do distrate, independentemente do seu registo ou da verificação dos factos nele atestados.
Não é assim.
É o pagamento da dívida que implica a sua liquidação – o distrate apenas o atesta para os devidos efeitos no tráfego jurídico-probatório.
Ora, não só estava o arguido ciente do desacordo com a Caixa Geral de Depósitos sobre a liquidação do montante em dívida, como não podia razoavelmente esperar que, perante a recusa em entregar os cheques, (entregues pelas compradoras das fracções do prédio em causa) em pagamento dessa dívida, a Sra. Notária promovesse, ainda assim, o registo do cancelamento da hipoteca.
Destarte, é força concluir, por um lado, que o prejuízo não se deveu ao acto da Sra. Notária (de restituição do distrate à representante da entidade bancária), mas sim ao procedimento do arguido (que criou, primeiro, a convicção na assistente de que realizaria o pagamento necessário ao cancelamento da hipoteca e, depois, recusou fazê-lo); por outro, agiu o arguido, quando menos, representando a possibilidade de causar prejuízo à compradora (ao menos enquanto não se esclarecesse se havia ainda quantias em dívida à Caixa Geral de Depósitos e qual o seu montante) e conformando-se com ela.
Em face disto, tem razão o Senhor Procurador-Geral Adjunto quanto à estranheza suscitada pela ausência de menção do distrate na escritura – estranheza susceptível de gerar dúvidas sobre o desenvolvimento causal relevante para o apuramento dos factos típicos da burla.
Sem embargo, mesmo que tal ponto fosse esclarecido e ainda que fosse esclarecido no sentido de dissipar quaisquer dúvidas quanto à causalidade da actuação do arguido, não parece que este deva ser condenado por burla qualificada.
A realização típica deste delito exige que o agente, por meio de erro ou engano astuciosamente provocados e com intenção de obter enriquecimento ilegítimo (para si ou para terceiro), leve a vítima à prática de um acto de que lhe cause prejuízo patrimonial.
Para interpretação destes elementos típicos, é míster levar em conta o tipo social correspondente ao tipo legal em apreço (enquanto sua base e inspiração)10. Condensando sentidos jurídicos e sociais, o tipo social serve de instrumento interpretativo e exprime “modelos sociais de conduta, mais ou menos nuclearmente precisos e perifericamente difusos, aos quais a experiência axiológica comunitária atribui um desvalor qualificado”11. Apresenta assim um modelo de comportamento a ter em conta na interpretação e “é a expressão da violação da norma e corresponde a um padrão de comportamento socialmente comum de negação da vigência da norma”12. A sua definição há-de estar informada também pelos princípios jurídicos relevantes – importando aqui sobremaneira o princípio da necessidade da pena (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).
Serve este enquadramento para notar que a actuação do arguido não parece revelar o desvalor associável ao tipo de ilícito da burla.
Com efeito, mesmo aceitando a configuração factual em que ele planeou ardilosamente o engano, executou-o e assim causou prejuízo à assistente, vale notar que, por um lado, não estava ele seguro de que (ou de quanto) devia à Caixa Geral de Depósitos; por outro, não se retira da factualidade provada que o arguido tivesse intenção de nunca vir a pagar qualquer montante em dívida, ou de nada fazer no futuro para conseguir o cancelamento da hipoteca (o contrário, aliás, se extrai dos factos provados constantes nos pontos 46., 47., 49., 50., 51., 52. ou 53.).
Quando se afirma, v. g., no ponto 94. que os recorrentes “nunca pretenderam expurgar as hipotecas sobre a fracção “S””, só se pode entender, em coerência com a restante factualidade provada, que o arguido nunca pretendeu fazê-lo na data da escritura, sem prejuízo de não se recusar a fazê-lo mais tarde.
Neste quadro, temos que o arguido pretendeu receber o dinheiro da venda e admitiu a possibilidade de parte desse dinheiro ser devido à Caixa Geral de Depósitos em pagamento da hipoteca. Mas não o manteve na sua posse por desejar eximir-se a esse pagamento, e sim por desejar esclarecer primeiro o montante da dívida.
Não visava, assim, um enriquecimento ilegítimo (como exigido no tipo legal), não apenas porque não desejou guardar o montante monetário a título definitivo (no caso de não lhe caber) como porque não estava sequer seguro de ser ou não o seu legítimo proprietário.
Ora, o dolo no crime de burla tem de ser específico, pois “Para que se verifique o preenchimento do tipo subjectivo não basta, contudo, o dolo de causar um prejuízo patrimonial ao sujeito passivo ou a terceiro, exigindo-se, de outra parte, que o agente tenha a “intenção” de conseguir, através da conduta, um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio. A burla consubstancia, portanto, um delito de intenção (Absichtsdelikt) – categoria que exprime, do lado do tipo subjectivo, a mesma ideia que, no plano do tipo objectivo, preside à sua qualificação como um “crime de resultado parcial” ou “cortado” (kupiertes Erfolgsdelikt): não obstante se requeira que o sujeito actue com aquela intenção de enriquecimento, a consumação do crime não depende da efectivação do último, verificando-se logo que ocorra o prejuízo patrimonial da vítima”.13
Não serve isto para dizer que o procedimento do arguido merece aprovação do Direito.
O engano por ele induzido foi causador de prejuízo para a assistente e deixa-se aqui em aberto a possibilidade de ser gerador de responsabilidade civil. Trata-se apenas de verificar que não revela esse procedimento, ainda assim, o desvalor qualificado que, à luz do princípio da necessidade da pena, é condição para punição por qualquer crime, incluindo a burla (qualificada ou não).
Em suma, os factos provados não permitem concluir pela prática do crime de burla qualificada, pelo que, embora por fundamentos diversos, o recurso dos arguidos procede neste ponto.
10.3. Do ilícito típico do crime de falsas declarações à luz do artigo 348.º-A, nºs 1 e 2, do Código Penal
No acórdão da Relação, considerou-se que os factos provados consubstanciam o crime de falsas declarações, concluindo o Tribunal que o arguido “atestou falsamente perante funcionário, fazendo exarar numa escritura de compra e venda de imóveis, documento autêntico, um facto juridicamente relevante que sabia não corresponder à verdade, isto é, que os imóveis que estavam a ser transacionados estavam livres de ónus e encargos, quando assim não era, pois não pretendia proceder e não procedeu ao pagamento da quantia que a credora hipotecária exigia para a expurgação da hipoteca”.
Argumentaram os recorrentes que não foi praticado um crime de falsas declarações, visto que, por um lado, o cancelamento da hipoteca já estava consolidado no momento da conclusão da outorga da escritura, e, por outro, os recorrentes declararam a realidade tal como a configuravam (i. e., estavam convictos de que a fracção se transmitiria livre de ónus e encargos).
Pronunciou-se o Ministério Público na 2.ª instância pela confirmação do acórdão recorrido.
No entanto, no Supremo Tribunal de Justiça, o Sr. Procurador-Geral Adjunto, divergindo da posição do Ministério Público na Relação, pronunciou-se no sentido de que o arguido não praticou o crime de falsas declarações, por não haver declarado falsamente sobre identidade, estado ou qualidade a que a lei atribuísse efeitos jurídicos. Explicou isto sustentando que a declaração em causa não produziu efeito jurídico nenhum – nem o de cancelamento da hipoteca (por não poder fazê-lo sem o distrate), nem o da transmissão da propriedade (que se operou em virtude do contrato de compra e venda). Os únicos efeitos produzidos relevantes (mais concretamente, o de engano da compradora) são-no apenas para efeitos da burla. Não se tem assim por realizado o tipo de crime em apreço.
Como ponto de partida, consigna-se novamente que, para a decisão, relevam unicamente os factos dados como provados no acórdão recorrido.
Impõe-se concluir que os recorrentes não praticaram o crime em questão – mais uma vez, por fundamentos diversos dos invocados no seu recurso.
Com efeito, os motivos que impõem esta conclusão situam-se a montante desses fundamentos.
Para que se imponha apurar se a falsidade em questão respeita a “identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios” (como exigido no tipo legal) e se o agente tencionou declará-la dolosamente, é força esclarecer primeiro se a falsidade respeita a “identidade, estado ou outra qualidade”. E aqui surgem dúvidas, ou mesmo certezas, que impedem que se dê por verificado tal pressuposto.
Cabe notar, em primeiro lugar, a dificuldade de apreensão imediata do sentido das expressões usadas no texto legal – foi já notada pela doutrina a sua falta de clareza14.
A elaboração interpretativa orientadora em torno deste preceito tem considerado que as qualidades em causa hão-de ser qualidades pessoais do declarante, como a filiação, a naturalidade ou a nacionalidade, não incluindo factos ou acontecimentos, ainda que vivenciados pelo declarante15.
Tão-pouco as realidades abrangidas pela referência ao estado são “facilmente intuídas”, mas sempre se impõe concluir que, inclusive quando se aceite que o estado ou qualidade possam ser o de proprietário de algo (como um imóvel), tal não permitirá incluir afirmações “sobre factos concretos que não correspondem necessariamente àquelas qualidades típicas, ainda que deles, juntamente com outros, possam retirar-se conclusões sobre as mesmas”16.
Qualquer derivação interpretativa que se distancie destas orientações terá de assumir um procedimento de construção normativa que, ou se desligará do teor literal do texto legal, ou o estenderá a um ponto em que se imporá concluir que o julgador estará já a assumir as vestes de legislador – pois então estará a tomar opções normativas que a lei não impõe claramente e, portanto, caberia ao legislador apontar17.
Em face disto, não se podendo dar por verificados os elementos do seu tipo objectivo, deve inferir-se que a actuação do arguido não realiza o tipo de falsas declarações, pois a falsidade em questão não respeitava a “identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios”.
Por conseguinte, se bem que por outros fundamentos, procede o recurso dos arguidos também neste ponto.
Assim, por tudo o que fica dito, merecem provimento os recursos interpostos.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, em julgar procedente o recurso dos arguidos, embora por outros fundamentos, absolvendo-se os mesmos dos crimes de burla qualificada (artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal) e falsas declarações (artigo 348.º-A, nºs 1 e 2, do Código Penal) e em, consequência revogar o acórdão recorrido.
Sem custas, atento o vencimento - artigo 513.º, n. º1 do Código de Processo Penal
Supremo Tribunal de Justiça, 01 de Outubro de 2025.
Antero Luís (Relator)
Carlos Campo Lobo (1º Adjunto)
Maria Margarida Almeida (2ª Adjunta)
_______
1. Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267.
2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
4. Cf. Ac. do STJ de 19/10/1995, in DR 1ª Série A, de 28/12/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP.
5. Neste sentido, vejam-se Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339, e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e segs.) e ao nível jurisprudencial, por todos, sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça In Proc. nº 4375 in www.dgsi.pt
6. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Outubro de 1999 in BMJ 490, 200.
7. Proc. 308/08, em que foi relator o Conselheiro Simas Santos.
8. Ac. STJ 19/07/2006 Proc. 1932/06 ambos in www.dgsi.pt
9. In “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253
10. Ver, neste sentido, Augusto Silva Dias, «Delicta in Se» e «Delicta Mere Prohibita» – Uma análise das Descontinuidades do Ilícito Penal Moderno à Luz da Reconstrução de uma Distinção Clássica, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, pp. 392 e ss.; Inês Ferreira Leite, Ne (idem) bis in idem – Proibição de Dupla Punição e de Duplo Julgamento: Contributos para a Racionalidade do Poder Punitivo Público, vol. I, Lisboa: AAFDL Editora, 2016, pp. 938 e ss.
11. Cf. Augusto Silva Dias, ibid., p. 403.
12. Cf. Inês Ferreira Leite, ibid., p. 945.
13. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Ed., Tomo II, pág. 309.
14. Neste sentido, falando em “óbvios problemas de tipicidade”, Maria Fernanda Palma, “Análise das propostas de alteração legislativa em matéria penal e processual penal”, 12-10-2012, disponível em https://www.idpcc.pt/wp-content/uploads/2020/11/Fernanda_Palma__Analise_das_propostas_de_Alteracao_Legislativa_AR_19.10.2012.pdf. O caminho interpretativo teria outros instrumentos se fosse convocável o artigo 97.º do Código do Notariado, no qual se configurava justamente (por remissão) um crime de falsas declarações praticado por outorgantes, mas a norma foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral no Acórdão n.º 96/2015 (rel. Fernando Ventura) do Tribunal Constitucional.
15. Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Anotação ao artigo 348.º-A, in Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal – À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 6.ª ed., Lisboa: Universidade Católica Editora, 2024 (pp. 1259-1262), p. 1261.
16. Cf. António Latas, “As alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro”, Revista do CEJ, (1), 2014 (pp. 55-103), pp. 99-100.
17. V. Maria Fernanda Palma, Direito Penal – Conceito Material de Crime, Princípios e Fundamentos – Teoria da Lei Penal: Interpretação, Aplicação no Tempo, no Espaço e Quanto às Pessoas, 4.ª ed., Lisboa: AAFDL, 2019, pp. 156-157.