I - O princípio do contraditório garante a participação efectiva das partes no desenvolvimento de toda a lide, de forma a, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e que, em qualquer fase do processo, surjam como potencialmente relevantes para a decisão, proibindo decisões-surpresa, incluindo as de conhecimento oficioso.
II - Integram-se neste conceito decisões sobre questões que os destinatários razoavelmente não poderiam esperar que fossem apreciadas e julgadas sem que previamente lhes fosse concedida a oportunidade de sobre elas tomar posição.
III - Definindo a lei prazo para a prática de determinado acto processual, ou condicionando essa prática a um específico espaço temporal, não pode o mesmo ser praticado para além dele, não podendo tal princípio ser derrogado pelo princípio da economia processual, sob pena de ser comprometida a segurança jurídica que o princípio da preclusão visa garantir.
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Gaia – Juiz 2
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO
No processo de inventário para partilha de bens comuns do ex-casal, instaurado a requerimento AA, que exerceu o cargo de cabeça de casal, veio a interessada BB deduzir incidente de sonegação de bens alegando, em síntese:
A 23.01.2023 foi obtida transacção nos autos, homologada por sentença de 24/01/2023
O requerente e cabeça de casal faleceu no dia 16 de Março de 2023;
Recentemente, a requerente CC tomou conhecimento, por terem chegado às suas mãos, de dois documentos ocultados propositadamente pelo seu ex-marido que demonstram que este sonegou dolosamente bens ao património comum do ex-casal para os fazer exclusivamente seus: o original de um contrato promessa celebrado em ..., no dia 07.01.2008, com DD e mulher EE, onde estes prometeram vender e aquele interessado falecido, ainda casado, prometeu, por sua vez, comprar, três prédios rústicos;
A compra prometida foi feita livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, pelo preço global de € 20.000,00 (vinte mil euros), sendo o valor do primeiro e terceiro prédio de cinco mil euros, cada, e o valor do segundo prédio de dez mil euros;
Como sinal e princípio de pagamento, o cabeça de casal entregou àqueles promitentes vendedores, no momento da assinatura do contrato, a quantia de € 19.500.00 (dezanove mil quinhentos euros), da qual, os ali primeiros outorgantes, deram quitação, tendo, de imediato, transferido a posse dos três imóveis prometidos vender;
O cabeça de casal omitiu no contrato promessa, celebrado a 7.01.2008, o seu estado civil – casado com a requerente.
No dia 15.10.2010, foi celebrado o respectivo contrato de compra e venda;
O primeiro dos prédios objecto dos supra aludidos contratos foi vendido, no dia 21.03.2011, a FF, pelo preço de 5000,00 euros que o cabeça de casal fez seus e sendo que actualmente o imóvel se encontra registado em nome de GG.
Entendendo a requerente que se verificam os requisitos do instituto da sonegação de bens, pede, designadamente, que seja “o cabeça de casal e os seus herdeiros condenados a restituir massa da herança aberta para divisão de património comum, com a sua ex-mulher, a aqui requerente, os imóveis que ocultou e à sua consequente relacionação e adição nos autos, com as necessárias consequências pela sonegação consciente e desejada que praticou, ou seja, declarando-se a perda dos mesmos em benefício da co-herdeira, a aqui requerente, no direito que tem na parte dos bens sonegados, além de incorrer nas mais sanções que forem aplicáveis, de harmonia com o disposto no artigo 2096º do Cód. Civil”.
Após a habilitação dos sucessores do cabeça de casal, foram os mesmos notificados para, querendo, se pronunciarem quanto ao requerido pela interessada, sem que nada tenham vindo dizer.
Seguidamente, foi proferida decisão que indeferiu o incidente em causa.
Notificada de tal despacho e não se conformando com o mesmo, veio a interessada BB interpor recurso de apelação para esta Relação, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) O cabeça de casal (AA) requereu inventário para partilha de bens comuns contra a Recorrente, tendo sido proferida sentença homologatória em (24/01/2023).
B) Após o falecimento daquele, a Recorrente constatou a existência de outros bens que haviam sido sonegados com dolo na identificados na relação de bens apresentada por aquele.
C) O que motivou que a Recorrente deduzisse o presente incidente de sonegação de bens neste processo de inventário.
D) O incidente foi liminarmente aceite,
E) A Recorrente viu-se obrigada a realizar habilitação de herdeiros,
F) Procederam-se a inúmeros atos e citações (alguns internacionais).
G) A prova é de manifesta simplicidade, resulta unicamente de documentos (contratos-promessa).
H) Contudo, o Meritíssimo Tribunal a quo proferiu douto despacho datado de 19/02/2025 (ref. 468474023), depois de todos este actos e aceitação liminar do incidente e suas citações às partes, concluindo “que não é esta a sede própria para apreciar o pedido ora formulado que, assim, se indefere”, apontando aparentemente o caminho dos meios comuns.
I) Salvo o devido respeito, a atenta a fase em que se encontra já o incidente, com todos citados e todos habilitados, tal configura uma decisão surpresa, o que não se pretende que ocorra para se assegurar uma maior eficácia do sistema,
J) O princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, impõe ao juiz a obrigação de permitir que as partes apresentem as suas razões e argumentos antes de qualquer decisão, assegurando assim uma maior eficácia do sistema judicial e contribuindo para a justa composição dos litígios, o que não foi observado e constitui uma nulidade processual, que expressamente se invoca.
Mas mais,
K) Novamente e sempre com o maior respeito por melhor opinião, também se entende infringido o princípio da economia processual, entendendo-se, como acima se explicou, que o presente incidente é suficiente para a prova da sonegação de bens pretendida, pelo que deverá ser revogado o douto despacho e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, com as legais consequências, fazendo-se assim Justiça!
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- se o despacho recorrido constitui decisão surpresa;
- se o incidente deduzido de sonegação de bens deve prosseguir.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Os factos/incidências processuais relevantes para o conhecimento do objecto do recurso são os narrados no relatório introdutório.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Violação do contraditório/Decisão surpresa.
Manifesta a recorrente a sua discordância com a decisão de que recorre, que qualifica de “decisão surpresa”, alegando não ter sido observado o princípio do contraditório imposto pelo artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
Constitui facto incontroverso que o princípio do contraditório constitui actualmente um dos princípios estruturantes do processo civil.
Dispõe o artigo 3.º do Código de Processo Civil:
1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição. 2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4 - Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.
Numa concepção ampla do princípio do contraditório, este é encarado na perspectiva do direito a uma fiscalização recíproca ao longo de todo o processo, por forma a garantir a participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio[1].
De facto, como lembra Lebre de Freitas[2], o princípio do contraditório deixou de ter como escopo principal a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, passando a ter como finalidade fundamental a influência, no sentido positivo de direito de influir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo.
O princípio do contraditório garante, pois, a participação efectiva das partes no desenvolvimento de toda a lide, de forma a, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e que, em qualquer fase do processo, surjam como potencialmente relevantes para a decisão, proibindo decisões-surpresa, incluindo as de conhecimento oficioso, integrando-se neste conceito decisões sobre questões que os destinatários razoavelmente não poderiam esperar que fossem apreciadas e julgadas sem que previamente lhes fosse concedida a oportunidade de sobre elas tomar posição, e de assim participar na obtenção da norma-do-caso no confronto com as concretas especificidades em presença.
Na definição dos limites do conceito de “decisão-surpresa”, tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça que “o princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão surpresa, não determina ao tribunal de recurso que, antes de decidir a questão proposta pelo recorrente e/ou recorrido, o alerte para a eventualidade de o fazer com base num quadro normativo distinto do por si invocado, desde que as normas concretamente aplicadas não exorbitem da esfera da alegação jurídica efetuada”[3], admitindo igualmente que o cumprimento do contraditório não significa “(…) que o tribunal «discuta com as partes o que quer que seja» e que alivie as mesmas «de usarem a diligência devida para preverem as questões que vêm a ser, ou podem vir a ser, importantes para a decisão»[4].
A decisão pode qualificar-se de surpresa, “(…) se o Juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta e atinada decisão do litígio. Ou seja, apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever”[5].
Segundo Teixeira de Sousa[6], é decisão surpresa aquela que “contém uma decisão que a parte, atuando com uma diligência normal, não tinha a obrigação de prever”.
A questão mostra-se detalhadamente analisada no acórdão da Relação de Guimarães de 2.05.2024[7], onde se pode ler: “O princípio da proibição das decisões-surpresa constitui uma manifestação do princípio do contraditório. Este, por sua vez, é uma emanação do princípio da equidade previsto no art. 20 da Constituição da República, próprio do carácter democrático do processo.
O CPC de 1961, na sua versão anterior à reforma de 95/96, levada a cabo pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, e pelo DL n.º 180/96, de 25.09, apenas previa o sentido clássico do princípio do contraditório, situando-o num plano estritamente horizontal, assim explicado por Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 379): “[o] processo reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars), muito embora se admita que as deficiências e os transvios ou abusos da atividade dos pleiteantes sejam supridos ou corrigidos pela iniciativa e autoridade do juiz. Cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e outras.” É com este sentido – o de defesa, oposição, resistência aos factos, às provas e aos fundamentos jurídicos do processo invocados pela contraparte e a respetiva exceção – que o princípio do contraditório está enunciado nos números 1 e 2 do art. 3.º do atual CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, redundando assim numa proibição de indefesa (Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, I, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2004, p. 16).
Com a referida Reforma, a previsão do princípio do contraditório na lei ordinária foi ampliada a uma dimensão vertical, através da introdução da seguinte fórmula legal: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.” Esta foi mantida, ipsis verbis, no art. 3.º/3 do atual CPC.
Impõe-se, assim, ao juiz a audição das partes quando pretenda tomar uma decisão inesperada sobre qualquer questão de direito ou de facto. Dito de outra forma, o juiz não pode tomar uma decisão que não seja previsível pelas partes sem antes lhes dar oportunidade de se pronunciarem, com isso participando no processo decisório.[1] Nas palavras de Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil: Conceito e Princípios Gerais à luz do Novo Código, 4.ª ed., Coimbra: Gestlegal, 2021, pp. 126-127), “[s]ubstitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtliches Gehor germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.” Daqui decorre que, nesta dimensão, o contraditório é, também, influência na decisão, como se reconhece em RG 5.12.2019 (858/15.9T8VNF-A.G1) e 22.06.2023 (3731/21.8T8BRG-A.G1), ambos relatados por José Alberto Moreira Dias, aqui segundo Adjunto.
A consagração legal do princípio impõe a sua observância, tanto no que concerne à matéria de facto, com à matéria de direito. No que tange à primeira, implica que, nas situações em que é lícito ao juiz introduzir oficiosamente factos no processo (art. 5.º/2 do CPC[2]), deve ser permitido que ambas as partes se pronunciem sobre os seus pressupostos e a sua existência. Pressupõe também que as partes possam pronunciar-se, designadamente nos debates orais, sobre os termos em que a prova deve ser apreciada (art. 604/3, e), e 5 do CPC). No que tange à segunda, implica que, “antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie” (Lebre de Freitas, Introdução cit., p. 126), de tal modo que se o juiz encontrar uma solução jurídica do litígio que não tenha sido vislumbrada pelas partes ao longo do processo – isto é, uma decisão para a qual as “exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração” (RC 13.11.2012, 572/11.4TBCND.C1, relatado por José Avelino Gonçalves) – deve, antes de proferir a sentença, informá-las e permitir-lhes a emissão de pronúncia.
[...] O que antecede serve de mote para definirmos o que deve entender-se por decisão-surpresa.
Sobre isto, seguindo a sistematização de Luís Correia de Mendonça (“O contraditório e a proibição das decisões-surpresa, ROA, ano 82, V. 1-2, pp. 185-239), encontramos essencialmente duas correntes: a anti-formalista e a Garantista.
Para a primeira, defendida por Pereira Baptista (Reforma do Processo Civil, Princípios Fundamentais, Lisboa: Lex, 1997, pp. 37-38), Carlos Lopes do Rego (Comentário cit., p. 33) e Paulo Ramos de Faria / Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2014, p. 32), a decisão-surpresa não se confunde com a suposição ou expectativa que as partes possam ter feito ou acalentado quanto à decisão. Assim, não se pode falar de decisão-surpresa quando as decisões, de facto ou de direito, devam ser conhecidas pelas partes como viáveis, como possíveis. Dito de outra forma, só há decisão-surpresa quando se trate de apreciar argumentos jurídicos suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada os tivesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre eles.
Para a segunda, defendida por Lebre de Freitas (Introdução cit., pp. 126-127), a contrariedade, no processo civil, deve ser perspetivada como “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”. Caso exista algum argumento, não debatido pelas partes, em que o juiz entenda dever basear nela a sua decisão, deve previamente convidar ambas as partes a sobre ele tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade (art. 3.º/3), circunscrita às situações simples e em que não exista controvérsia. O autor faz, porém, uma ressalva relativa aos arts. 552/1, d), e 572, b), que impõem que o autor, na petição inicial, exponha os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à sua ação e que o réu, na contestação, exponha as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor, respetivamente. Estes dois preceitos consagram ónus cuja inobservância “pode ter como consequência a inaplicabilidade da vertente do princípio do contraditório ora considerada”, o que só acontecerá com a total omissão de tal indicação, sendo sancionada, em paralelismo com a situação de falta absoluta de causa de pedir.
Na jurisprudência tem prevalecido a primeira corrente, conforme se pode constatar através dos arestos do STJ enumerados por Luís Correia de Mendonça (loc. cit., pp. 21-29). Acrescenta-se, ao nível das Relações, RP 4.05.2022 (475/21.4T8STS-B.P1), relatado por Manuel Domingos Fernandes, no qual se definiu decisão-surpresa como a “solução dada a uma questão que, embora pudesse ser previsível, não tinha sido configurada pela parte, sem que esta tivesse obrigação de prever que fosse proferida.” Parte-se aqui do pressuposto de que as partes têm o ónus de prever algumas questões. Nesta medida, escreve-se que “não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo por isso, de lhes ser dada a priori possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico”, o que faz todo o sentido, na medida em que, tal como o acórdão refere, o juiz não se encontra vinculado ao enquadramento jurídico feito pelas partes; tem ele mesmo o poder funcional de enquadrar juridicamente os factos. Evidentemente que, se no caso concreto, a figura a que o juiz chegou for previsível, pode considerar-se manifestamente desnecessário chamar as partes para se pronunciarem, pois as partes não foram diligentes, adotaram uma atitude negligente. Se esse novo enquadramento for marcadamente inesperado, já deve ser considerado que não é manifestamente desnecessário ouvir as partes. Acrescenta-se também o já citado RC 13.11.2012 (572/11.4TBCND.C1), no qual, depois de se ter considerado que o cumprimento do princípio do contraditório não se reporta, pelo menos essencial ou determinantemente, às normas que o juiz entende aplicar, nem à interpretação que delas venha a fazer, mas antes aos factos invocados e às posições assumidas pelas partes, se concluiu que “a decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º, nº 3 do CPC, não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito.” Acrescenta-se, finalmente, no mesmo sentido, na jurisprudência desta Relação, os Acórdãos de 19.11.2029 (899/18.4T8VCT.G1), relatado por José Alberto Moreira Dias, 21.01.2021 (1202/18.9T8BGC-A.G1), relatado por Rosália Cunha, 30.06.2022 (199/21.2T8EPS.G1), relatado por Alcides Rodrigues, 7.06.2023 (2155/22.4T8BRG.G1), relatado por Sandra Melo, e 21.09.2023 (2445/22.6T8GMR.G1), relatado por Paulo Reis.
A nosso ver, a tese garantista desvaloriza o princípio da autorresponsabilidade das partes, sobretudo nos casos em que estas estão representadas por advogado, sendo, assim, de exigir que nos momentos processuais próprios, designadamente nos articulados, se pronunciem sobre os cenários possíveis, dando-lhes o adequado enquadramento jurídico. Nesta medida, às partes apenas será legítimo invocar a surpresa quando, atentas as circunstâncias do caso, a decisão não fosse, de todo, previsível para elas. Assim sucederá quando a solução do juiz se apresente como inovadora ou, nas palavras de Paulo Ramos de Faria / Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas cit., p. 32), quando corporize “uma subsunção notada pela sua originalidade, pelo seu caráter invulgar e singular, objetivamente considerado”, e, bem assim, quando toda a discussão pretérita tenha sido feita à luz de um determinado instituto jurídico, ainda que na base de equívocos, sem qualquer alerta por parte do tribunal, e, na decisão, o juiz opte por uma outra via, nunca antes cogitada”.
No caso em apreço, não sendo a decisão inesperada, de tal forma imprevista para a parte por ela afectada, que, fundadamente, com ela não contava, não se exigia que fosse antecedida da sua prévia audição.
A decisão objecto do presente recurso não pode ser reputada como “decisão surpresa”, quer em termos de ritualismo processual, quer quanto à solução jurídica que a mesma encerra.
O artigo 1105.º prevê a tramitação subsequente à dedução de oposição ao inventário, impugnação [da legitimidade dos interessados, invocação da existência de outros, para além dos indicados, da competência do cabeça de casal ou das indicação os constantes das declarações por ele prestadas], ou reclamação à relação de bens.
Dispõe o referido normativo:
“1 - Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada.
2 - As provas são indicadas com os requerimentos e respostas.
3 - A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º
4 - A alegação de sonegação de bens, nos termos da lei civil, é apreciada conjuntamente com a acusação da falta de bens relacionados, aplicando-se, quando julgada provada, a sanção estabelecida no artigo 2096.º do Código Civil.[...]”.
A sonegação de bens no âmbito do processo de inventário pode ser invocada em sede de reclamação à relação de bens, podendo ainda ser deduzida a título incidental.
Para esta última hipótese prevê o artigo 1091.º, n.º 1 do Código de Processo Civil a aplicação, salvo disposição em contrário, do disposto nos artigos 292.º a 295.º do mesmo diploma legal, que, em termos gerais, disciplinam o regime dos incidentes de instância.
Deduzido o incidente, com indicação, no respectivo requerimento, dos meios de prova que a parte que o haja suscitado se proponha produzir, é notificada a parte contrária para, querendo, deduzir oposição, devendo também as provas ser apresentadas com a oposição.
Nos termos do artigo 295.º, “Finda a produção da prova, pode cada um dos advogados fazer uma breve alegação oral, sendo imediatamente proferida decisão por escrito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 607.º”.
Observada a tramitação processual fixada para os incidentes, não tendo sido deduzida oposição, foi proferida decisão, agora sindicada recursivamente, que indeferiu o incidente, com fundamento no facto de o processo de inventário não ser a sede própria para apreciação da invocada sonegação de bens, não tendo, por essa razão, havido produção de prova sobre os pressupostos da convocada sonegação de bens.
Existindo na lei processual civil normas específicas que definem a tramitação processual dos incidentes da instância, aplicáveis ao incidente de sonegação de bens suscitado no âmbito do processo de inventário, tendo a decisão sido antecedida do cumprimento dessas normas procedimentais - que as partes, representadas pelos seus mandatários judiciais, não podem deixar de conhecer -, e contendo tal decisão solução jurídica com acolhimento também previsto na lei, não deve tal decisão ser qualificada de “decisão surpresa” para justificar a necessidade de prévia audição das partes antes de ser proferida.
Não foi, como tal, cometida qualquer infracção processual, não se configurando a existência da invocada nulidade processual.
2. Da invocada sonegação de bens.
Como resulta do já citado artigo 1105.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, “A alegação de sonegação de bens, nos termos da lei civil, é apreciada conjuntamente com a acusação da falta de bens relacionados, aplicando-se, quando julgada provada, a sanção estabelecida no artigo 2096.º do Código Civil”.
Quer invocada na reclamação à relação de bens, quer em momento antecedente, a sonegação de bens é sempre apreciada conjuntamente com a acusação de falta de relacionação de bens.
No caso em análise, a sonegação de bens foi invocada em processo de inventário que culminara com uma transacção homologada por sentença de 24.01.2023 - findo, por conseguinte.
O princípio da preclusão comporta ciclos processuais rígidos, cada um com finalidade própria, formando compartimentos estanques. Daí que os actos processuais devam ter lugar no ciclo próprio, ficando precludido o direito de os praticar fora desse ciclo específico[8].
Definindo a lei prazo para a prática de determinado acto processual, ou condicionando essa prática a um específico espaço temporal, não pode o mesmo ser praticado para além dele, não podendo tal princípio ser derrogado pelo princípio da economia processual, sob pena de ser comprometida a segurança jurídica que o princípio da preclusão visa garantir.
Ora, como já se adiantou, de acordo com n.º 4 do artigo 1105.º do Código Civil a sonegação de bens deduzida no âmbito do processo de inventário é apreciada conjuntamente com a acusação de falta de relacionação de bens.
No caso dos autos, a sonegação de bens é invocada muito para além desse limite temporal, quando já havia sido proferida sentença homologatória da partilha, nos termos do artigo 1122.º do Código de Processo Civil.
Transitada em julgado a sentença homologatória da partilha e cumprido, com ela, o fim do inventário instaurado para por termo à comunhão do património que foi do ex-casal, fica precludida a possibilidade de nele ser discutida qualquer eventual ocultação de bens comuns, a menos que seja requerida partilha adicional, nos termos consentidos pelo artigo 1129.º do Código de Processo Civil, o que, no caso, não ocorreu, sendo que, como alerta a decisão sob recurso, de acordo com a factualidade alegada pela própria interessada requerente, a propriedade de, pelo menos, um dos imóveis já foi transferida para terceiros.
Não merece reparo, por conseguinte, a decisão recorrida, pelo que improcede o recurso, com manutenção do decidido.
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Custas – pela apelante: artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Notifique.
[Acórdão elaborado pela primeira signatária com recurso a meios informáticos]
Porto, 23.10.2025
Judite Pires
Álvaro Monteiro
Isabel Peixoto Pereira
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[1] Cfr. José Lebre de Freitas; João Redinha; Rui Pinto, Código de Processo Civil (anotado), vol. I, Coimbra Editora, pág. 8.
[2] José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 1999, pág. 8.
[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de fevereiro de 2015, processo n.º 877/12.7TVLSB.L1-A.S1, www.dgsi.pt.
[4] Acórdãos do STJ de 09 Novembro de 2017, processo nº 26399/09.5T2SNT.L1.S1, e de 17 de Junho de 2014, processo nº 233/2000.C2.S1, www.dgsi.pt.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 2016, processo nº 6473/03.2TVPRT.P1.S1. www.dgsi.pt.
[6] Código de Processo Civil On Line, em anotação ao artigo 3.º.
[7] Processo n.º 753/21.2T8VVD.G2, www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 382.