I - Para o senhorio pedir o pagamento judicial de rendas em dívida ao fiador, em ação declarativa, tem de o notificar previamente, nos termos do artigo 1041.º, n.º 5, do C. C..
II - A citação efetuada na ação judicial em que se pede o pagamento de rendas não equivale à efetivação prévia daquela notificação.
João Venade.
Isabel Peixoto Pereira.
Isabel Ferreira.
AA, com morada na Rua ..., ..., Maia,
propôs contra
BB, residente na Rua ..., ..., 3.º esq., Aveiro
CC, residente na Rua ..., ..., ..., ...
pedindo que:
. seja declarado resolvido o articulado contrato de arrendamento, com fundamento na falta de pagamento das rendas e, por via disso, decretar-se o despejo imediato do arrendado, sendo o Réu condenado a deixá-lo livre de pessoas e coisas de suas propriedades, e no estado de conservação em que se encontrava à data da celebração do contrato supra identificado;
. os Réus sejam condenadas a pagar ao Autor as rendas vencidas e não pagas no valor total de 1.600 EUR e as rendas vincendas, no montante individual 500 EUR/cada, referentes ao locado, até efetivo despejo, acrescido dos respetivos juros de mora, desde o vencimento de cada renda até efectivo e integral pagamento, à taxa legal de 4%.
O sustento de tais pedidos radica na falta de pagamento de rendas pelo 1.º Réu quanto ao locado, a partir de janeiro de 2025, pagando 400 EUR deste mês e faltando pagar a totalidade das as restantes;
. a 2.ª Ré é responsável por ser principal fiador e pagador, de todos os valores, fosse de rendas em atraso ou outros.
Por requerimento de 27/05/2025, o Autor informou os autos que o locado lhe foi entregue.
Proferiu-se despacho a julgar inútil a instância relativamente ao pedido de despejo.
Proferiu-se sentença que decidiu nos seguintes termos:
a) declaro resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre o autor AA e o primeiro réu BB, relativo à fração autónoma, designada pela letra “J”, destinada a habitação, no 3.º andar esquerdo, do prédio sito na Rua ..., ..., ..., Aveiro, inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...-J e descrita na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº ...-J;
b) condeno o primeiro réu BB a pagar ao autor AA as rendas vencidas, bem como a indemnização pelo atraso na restituição do locado, no valor total de 2.100,00€ (dois mil e cem euros), acrescidas de juros moratórios, à taxa prevista para os juros civis, calculados depois de decorrido o prazo de oito dias sobre a data de vencimento de cada uma das rendas/indemnização, até efetivo e integral pagamento;
c) absolvo a segunda ré CC dos pedidos contra si formulados pelo Autor AA.
«I - Vem o presente recurso interposto da sentença que decidiu absolver a 2ª Ré, fiadora, dos pedidos;
II- Entendeu o Tribunal a quo que não foi sequer alegado pelo autor a comunicação da mora e das quantias em dívida à segunda ré, nos termos do disposto no artigo 1041º nºs 5 e 6 do Código Civil.
III - O tribunal a quo interpretou erradamente o regime actualmente estabelecido no art.º 1041º, nºs 5 e 6, do CC, defendendo que a notificação do fiador prevista na citada norma corresponde, em termos processuais, a uma condição objectiva específica de procedibilidade para demandar o fiador a pagar as rendas vencidas e vincendas, ou seja, deveria ter sido efectuada previamente à interposição da presente acção (na qual os autores peticionam a resolução do contrato de arrendamento e o pagamento das rendas vencidas e vincendas).
IV- Afigura-se-nos que, do texto da lei, resulta apenas a necessidade de notificação do fiador em determinado prazo como condição para o senhorio o poder demandar ao cumprimento da dívida afiançada.
V- Não deriva que o senhorio tenha de proceder à notificação do fiador antes de interpor a acção a exigir as rendas, sob pena de ficar impedido de a instaurar.
VI - Por conseguinte, segundo esta interpretação, que se nos afigura a mais correcta, incumprido que seja o prazo fixado no art.º 1041º, do CC, para a notificação do fiador, caduca o direito do senhorio lhe exigir o cumprimento das rendas vencidas há mais de 90 dias.
VII - Aqui chegados, independentemente de a notificação do fiador ocorrer antes ou depois da propositura da acção com a citação, a consequência para o fiador é a mesma, o senhorio só poderá exigir do fiador as rendas vencidas nos 90 dias anteriores à notificação ou citação (bem como as que entretanto se vencerem), nada impedindo o fiador de, mesmo após ter sido interposta a acção, querendo, proceder ao pagamento voluntário das rendas reclamadas ou de fazer cessar a mora do arrendatário.
VIII- Destarte, no caso, nada obsta a que se considere que a citação para os presentes autos, atento o pedido formulado, satisfaz o dever de notificação e interpelação ao pagamento exigidos pelos nºs 5 e 6 do art.º 1041º, do CC, dado que transmite todos os elementos a tanto necessários, como inclui a própria interpelação ao pagamento.
IX- Assim sendo, tendo presente as rendas vencidas peticionadas (Janeiro, Fevereiro, Março de Abril), a data da instauração da acção – 18-03-2025 – e a data da citação da 2ª Ré - 24-03-2025-, facilmente se concluiu que o tribunal recorrido decidiu erradamente ao absolver a fiadora, 2ª Ré, dado que, o procedimento estipulado e exigido pelos nºs 5 e 6 do art.º 1041º do CC foi respeitado.
X- Razão pela qual,, impõe-se a prolação de Douto Acórdão que revogue a sentença em crise, e, consequentemente, condene a 2ª Ré, solidariamente, com o 1º Réu a pagar ao A. as rendas vencidas anteriores a partir dos 90 dias anteriores à citação para acção (e as que se venceram na pendencia da acção), no valor total de 2.100,00€, e, assim, fazendo Justiça.
XI - Razão pela qual, o Tribunal “a quo”, ao proferir Douta, Sentença, absolvendo a 2ª Ré do pedido, fê-lo com absoluto desacerto.
XII - Pelo exposto, e sem necessidade de mais considerações, o Tribunal “a quo” ao decidir nos termos em que o fez, violou, para alem do mais, por erro de interpretação e de aplicação, o disposto nos artigos 298º, nº 2, 627º e seguintes, 640º, e, 1041, nºs 2, 5 e 6, do CC.
XIII - Deverá, pois, a douta sentença ser revogada e substituída por Douto Acórdão que, nos termos supra expostos, julgue a acção totalmente procedente, por provados, com todas as consequências legais.».
2.1). Foram julgados assentes os seguintes factos, apesar de não constarem expressamente da sentença:
1). O Autor facultou ao 1.º Réu o gozo da fração autónoma, designada pela letra «J», destinada a habitação, no 3.º andar esquerdo, na Rua ..., ..., ..., Aveiro, através de contrato de arrendamento, celebrado em 26/05/2021, com inicio em 01/06/2021, renovando-se por iguais e sucessivos períodos de 1 ano.
2). O valor da renda mensal foi estipulado em 500 EUR.
3). O 1.º Réu pagou 400 EUR da renda de janeiro de 2025, não tendo pago as restantes.
4). A 2.ª Ré obrigou-se, nos termos do convencionado no contrato de arrendamento, a ser fiadora e principal pagadora, de todos os valores pecuniários decorrentes do contrato.
Como já referimos, importa aferir do alcance da citação efetuada nos presentes autos como forma de comunicar à fiadora, 2.ª Ré, a mora do arrendatário/afiançado.
Esta análise relaciona-se com o disposto no artigo 1041.º, do C. C. (redação conferida pela Lei n.º 13/2019, de 12/02) que, com a epígrafe «mora do locatário», dispõe que:
«1 Constituindo-se o locatário em mora, o locador tem o direito de exigir, além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização igual a 20 /prct. do que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento.
2. Cessa o direito à indemnização ou à resolução do contrato, se o locatário fizer cessar a mora no prazo de oito dias a contar do seu começo.
3. Enquanto não forem cumpridas as obrigações a que o n.º 1 se refere, o locador tem o direito de recusar o recebimento das rendas ou alugueres seguintes, os quais são considerados em dívida para todos os efeitos.
4. A recepção de novas rendas ou alugueres não priva o locador do direito à resolução do contrato ou à indemnização referida, com base nas prestações em mora.
5 - Caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora nos termos do n.º 2, o senhorio deve, nos 90 dias seguintes, notificar o fiador da mora e das quantias em dívida.
6 - O senhorio apenas pode exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito após efetuar a notificação prevista no número anterior.» - nosso sublinhado -.
Como se denota, está em causa determinar se o senhorio pode substituir a prévia notificação do fiador da existência de mora do arrendatário, a efetuar nos 90 dias seguintes à indicada mora, pela citação que é efetuada na ação declarativa, em que se pede o pagamento das rendas em dívida.
Na nossa opinião, pensamos que foi correta a decisão do tribunal. Na verdade, a lei impõe que o senhorio notifique o fiador, nos 90 dias seguintes à mora, a informá-lo da mesma e, só depois de efetuada a notificação, é que pode pedir o pagamento dos valores ao fiador, petição que abrange, a nosso ver, a satisfação via judicial.
Pretendeu-se que o fiador não fosse surpreendido com o pedido de pagamento de um valor que poderia desconhecer que já estava em dívida, permitindo-se não só que tenha esse conhecimento como eventualmente possa ele próprio cessar a mora, assim evitando uma ação judicial contra si, preferindo depois cobrar a quantia diretamente ao seu afiançado (artigo 644.º, do C. C.).
Se a citação fosse substitutiva daquela notificação, então aquelas duas finalidades da norma seriam postergadas:
. não só o fiador poderia não ter tido conhecimento da dívida antes de lhe ser cobrada como não lhe tinha sido conferida a possibilidade de evitar a referida propositura da ação judicial.
Daí que entendamos que, tal como resulta expressamente da lei, para que o fiador possa propor a ação a pedir o pagamento das rendas em atraso relativamente ao fiador, terá sempre de avisar previamente, através de notificação, o fiador da existência de mora, sob pena de faltar uma condição de exigibilidade da dívida, legalmente imposta.
Como se refere no Ac. da R. P. de 07/12/2023, www.dgsi.pt, desta mesma secção, relatora Isabel Peixoto, aqui 1.ª adjunta, «o estabelecimento do prazo ora em análise, acrescenta um outro nível de proteção ao fiador, garantindo, quando respeitado o prazo exigido à sua notificação da mora e quantias em dívida, que à data desta nunca estarão vencidas rendas de período superior a 4 meses [o mês da renda em mora, e – no máximo - as 3 subsequentes rendas que se vencem no período máximo de 90 dias]. Evitando a que só muito tardiamente e quando o valor da dívida é já muito elevado da mesma tome conhecimento, quando em momento anterior poderia ter providenciado pelo pagamento dos valores em falta.».
Ultrapassar a exigência da prévia notificação do fiador através da citação do mesmo já em plena vigência da ação judicial, seria não só violar lei expressa como impedir que o fiador pudesse exercer o direito de não ser confrontada com um possível avolumar de dívida e pagar sem estar sujeito à pressão de uma ação judicial.[1]
Não releva, para nós, pelo menos no sentido apontado pelo recorrente, se estão em divida, quando se propõe a ação, rendas por período de três meses e se o fiador sempre pode pagar no decurso da ação; o legislador pretendeu que existisse uma notificação prévia ao pedido de pagamento das rendas pelo que não pode equivaler aquela notificação prévia a uma citação contemporânea ao pedido de satisfação.
O que entendemos que sucede é que o legislador, expressamente, declarou que a dívida não é exigível em relação ao fiador enquanto previamente não for notificado, naqueles 90 dias, para pagar; como se refere no Ac. do S. T. J. de 21/06/2022, processo n.º 9443/20.2T8SNT-A.L1.S1, www.dgsi.pt, no âmbito já da execução intentada por senhorio contra fiador, «Os números 5 e 6 do art. 1041º do CC vieram, assim, conferir uma tutela específica ao fiador do arrendatário que, na medida da sua especificidade, afastam a aplicação das regras gerais da fiança. Por outro lado, não sendo feita qualquer distinção quanto ao meio processual a usar pelo locador, deverá concluir-se que se aquela notificação prévia vale quando o locador pretenda demandar o fiador numa ação declarativa, por identidade de razão (ou até por maioria de razão) deverá valer quando o locador pretenda mover ação executiva contra o fiador com base no art. 14º-A da Lei n. 6/2006.».
Pensamos que a questão se soluciona não tanto por saber se a citação pode equivaler à notificação prevista naquele artigo 1041.º, n.º 5 do C. C. mas antes que, exigindo a lei que aquela notificação seja prévia ao pedido de pagamento, essa antecedência se aplica também ao pedido judicial de pagamento, seja na vertente declarativa, seja na vertente executiva.
Assim, não havendo qualquer prova de que o Autor tenha efetuado aquela notificação prévia à interposição da ação, não se verifica o preenchimento daquela condição de exigibilidade das quantias em causa, conclui-se que foi correta a improcedência do pedido em relação ao ora recorrente.
Improcede assim o recurso.
Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente o presente recurso e. em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo do recorrente.
Registe e notifique.
Porto, 2025/10/23.
João Venade
Isabel Peixoto Pereira
Isabel Ferreira
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[1] No Ac. da R. L. de 04/07/2023, processo n.º 1202/22.4T8SXL.L1-7, www.dgsi.pt, menciona-se que, em relação à possibilidade dessa substituição, «A procedência de uma tal da argumentação tornaria, com inacreditável singeleza, absolutamente inúteis os normativos contidos nos n.ºs 5 e 6 do art.º 1041.º do CC, reduzindo-os a insignificante letra morta.». Em igual sentido, Ac. R. E. de 27/06/2024, processo n.º 345/23.1T8PTG.E1, no mesmo sítio - «A notificação do fiador nos termos dos n.º 5 e 6 do artigo 1041.º do CC, é uma condição específica objetiva de procedibilidade para demandar o fiador para pagar as rendas vencidas e vincendas, mais juros de mora, correspondendo a uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso».
Perspetivamos mais que, como já referimos, que decorre uma condição legal de exigibilidade da dívida que só pode ser preenchida com aquela notificação.