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IMPUGNAÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
DIREITO DE PROPRIEDADE
INTERESSADOS PARA EFEITOS DE IMPUGNAÇÃO DA JUSTIFICAÇÃO
LEGITIMIDADE SUBSTANCIAL DO IMPUGNANTE
Sumário
I- Numa ação de impugnação de justificação notarial, o autor vem reagir contra a afirmação de titularidade do direito de propriedade por parte do justificante; trata-se, pois, de uma “ação de simples apreciação negativa” (art. 10º, n.º 3, al. a), do C. P. Civil).
II- A impugnação da justificação notarial não está limitada apenas aos que afirmam ser os proprietários do imóvel ou que invocam direito real em colisão com o direito daqueles que justificaram notarialmente; reconhecendo-se também interesse em agir àqueles que invocam direito, diverso do direito de propriedade ou outro direito real, cujo exercício pode ser afetado se a ação não for proposta.
III- Poderemos assim concluir que “interessados” para efeitos de impugnação da justificação, são os titulares de uma relação jurídica ou direito que pode ser afetado, posto em crise pelo facto justificado de modo que a declaração da inexistência do direito do justificante seja apta a pôr termo à situação de dúvida objetiva e grave em que se encontra o direito invocado pelo autor.
IV- Neste tipo de ação, o interesse em demandar exprime-se, desde logo, pela utilidade derivada da procedência da ação (art. 30º, n.º 2, do C. P. Civil), sendo que, porém, deverão ser fundadas e ponderadas criteriosamente as razões que são indicadas pelo impugnante, designadamente quando este não invoca direito que esteja em colisão direta com o direito de propriedade que o justificante conseguiu ver reconhecido.
V- Assim, para ser assegurada a “legitimidade substancial” do impugnante, no caso de este não gozar de direito que se oponha diretamente àquele que resulta da presunção do direito de propriedade que beneficia o justificante, nos termos do disposto no art. 7º do C. R. Predial, cumpre ainda ao impugnante alegar factos indicadores de que o interesse salvaguardado pelo direito do impugnante possui relevância igual ou equivalente ao do direito que foi objeto de justificação notarial.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
I. RELATÓRIO
António e mulher Fernanda vieram intentar a presente ação de simples apreciação negativa, com processo comum, contraMaria, pedindo que seja declarado que a ré não é proprietária do prédio justificado, declarando-se nula e ineficaz quanto à produção de quaisquer efeitos, designadamente o de fundamentar qualquer registo na Conservatória do Registo Predial, cancelando os registos já feitos com fundamento na escritura de justificação de posse aqui impugnada, declarando-se de igual forma tal escritura ineficaz quanto à definição e constituição de outros direitos.
Alegam, para tanto, que são proprietários e possuidores de 1/16 avos do prédio urbano situado em …, freguesia de …, concelho de Chaves, composto de habitação de rés-do-chão e 1º andar, inscrito na respetiva matriz predial sob o art. 66, que confronta do norte com Albertina, a sul com estrada, a nascente com Roberta e a poente com Altino.
Tal prédio encontra-se descrito a favor dos autores na proporção da sua quota na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 77 da dita freguesia de ….
Tal imóvel na proporção de 1/16 adveio à propriedade dos autores por escritura de doação datada de 8 de Novembro de 2016.
A ré, por sua vez, arroga-se dona de 15/16 do mencionado prédio, afirmando que o adquiriu por usucapião e tendo lavrado a correspondente escritura de justificação a 12 de Janeiro de 2016.
Nessa escritura refere a ré que a sua posse teve início em 1984 por doação verbal dos seus tios Manuel e mulher Sandra, o que é falso.
Sandra faleceu em 5 de Março de 1999, não tendo qualquer relação com a ré, não se visitando nem se falando.
Desde o óbito de Sandra nunca a ré pagou qualquer contribuição ou imposto sobre o imóvel, o que acabou por ser suportado por Filipa, sobrinha neta da mencionada Sandra.
A ré nunca exerceu quaisquer atos de posse sobre o imóvel, a não ser a colocação já no ano de 2016 de um portão.
A ré nunca usou tal prédio, nunca dele fruiu nem o habitou.
Nunca a ré realizou quaisquer benfeitorias ou obras de conservação e restauro.
Não obstante a ré nunca ter tido a posse do imóvel, o certo é que ainda não decorreu o tempo necessário para usucapir, uma vez que a D. Sandra faleceu há 18 anos.
Assim, impugnam a escritura de justificação celebrada pela ré a 12 de Janeiro de 2016 por ser falsa.
Os autores, em Novembro de 2016, para além da doação de 1/16 que já referiram, compraram aos herdeiros de Henrique mais 1/16 do mesmo prédio, que lhe pertencia, contando como tal na repartição de finanças (cfr. doc. de fls. 18 verso).
Após celebrar o negócio, pretenderam proceder à sua formalização dada a obrigatoriedade da escritura pública, tendo, nessa altura, descoberto que o prédio se encontrava inscrito a favor da ré.
Tal causa grave prejuízo aos autores uma vez que tinham outorgado um negócio válido com quem de direito não o podendo inscrever a seu favor.
Grave prejuízo é também causado aos herdeiros de Henrique que se veem impedidos de vender os bens pela atitude da ré.
Regularmente citada, a ré contestou, alegando que os autores são parte ilegítima para a presente lide.
Os autores nenhum interesse têm na presente lide. Nos arts. 34º e ss da petição inicial alegam que são promitentes-compradores de uma quota-parte pertencente, alegadamente, aos herdeiros de Henrique.
Porém, os alegados proprietários ou herdeiros não intervém nos autos, sendo certo que, sendo a compra e venda um negócio formal a sua realização de modo verbal acarreta necessariamente a sua invalidade.
Os interessados na presente lide serão os titulares do direito que afirmam ter sido usurpado.
Com base na causa de pedir alegada na petição inicial, os proprietários seriam os herdeiros de Henrique, sendo que a sua herança se encontra, por ora, indivisa.
Acresce que, nos artigos 4º a 28º, da petição inicial, os autores arrogam-se defensores dos alegados direitos dos herdeiros de Sandra e de Manuel, sem que esbocem qualquer interesse legítimo para o efeito.
Os autores não invocam qualquer mandato para representarem os herdeiros de Sandra e de Manuel.
Na situação dos autos os interessados seriam as heranças ilíquidas e indivisas que têm de ser representadas em juízo por todos os herdeiros.
Invoca a exceção dilatória da ilegitimidade ativa, pugnando pela sua absolvição da instância.
Em sede de defesa por exceção vem ainda a ré arguir a nulidade da doação feita aos autores pelos herdeiros de João, uma vez que o negócio efetivamente celebrado foi uma compra e venda, a fim de dissuadir o direito de preferência da ré.
Deduz reconvenção em que reafirma a titularidade do direito de propriedade, e ainda pretende exercer o direito de preferência em relação à alegada venda simulada.
Conclui pela procedência das exceções deduzidas ou pela improcedência da ação.
Peticiona, ainda que a reconvenção seja julgada procedente por provada e, em consequência:
- Seja a reconvinte declarada dona e legitima comproprietária, na proporção de 15/16 do prédio urbano composto de habitação e rés-do-chão sito no …, freguesia de …, concelho de Chaves, com a área de 7 m2, inscrito na matriz predial da freguesia de … sob o art. 66º, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 77;
- Seja a escritura pública de doação levada a cabo no dia 8 de Novembro de 2016 declarada nula e de nenhum efeito;
- Sejam cancelados os registos que os reconvindos fizeram a seu favor ou de quaisquer terceiros adquirentes na Conservatória do Registo Predial;
- Sejam os reconvindos condenados a reconhecer que na qualidade de comproprietária do prédio, lhe asiste o direito de preferir na venda do prédio urbano descrito;
- Sejam os reconvindos condenados a, após o trânsito em julgado da sentença informarem a reconvinte do preço e condições do negócio.
Replicaram os autores, concluindo pela improcedência das exceções suscitadas, assim como a reconvenção apresentada, por inadmissibilidade, ou caso assim não se entenda deverão ser julgadas improcedentes quer as exceções quer a reconvenção, por não provadas.
Na sequência, foi proferido despacho saneador, no qual se decidiu:
“ (…) Em face do exposto, julgo procedente a excepção da ilegitimidade activa dos autores para a presente lide e, em consequência, absolvo a ré da instância.”
Inconformada com o assim decidido, vieram os autores António e Fernanda interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes
CONCLUSÕES
1. O Tribunal “a quo”, por despacho que põe termo à ação, julgou procedente a exceção de ilegitimidade ativa, tendo absolvido a Ré da instância. 2. A legitimidade processual reconduz-se à qualidade ou posição juridicamente relevante da parte em relação ao objeto do processo. 3. No mesmo sentido, o artigo 101º do Código do Notariado refere que “se algum interessado impugnar em juízo o facto justificado” devendo entender-se por interessado quem seja titular de qualquer relação jurídica que possa ser afetada pelo facto justificado. 4. No caso em concreto, a causa de pedir tem também por base a defesa dos interesses privados dos Apelantes, sendo estes comproprietários do imóvel justificado na proporção de 1/16, e tendo-se vistos impedidos de inscrever na sua esfera jurídica uma outra aquisição de 1/16 desse mesmo prédio, em virtude da escritura de justificação levada a cabo pela Ré/Apelada. 5. Tal conduta da Ré/Apelada causa-lhes prejuízo. 6. Os Autores/Apelantes têm assim um interesse direto em ver julgados procedentes os pedidos que formularam. 7. É inegável que daí podem colher diretamente uma enorme utilidade jurídica. 8. A confirmar-se em juízo que, com a escritura de justificação levada a cabo pela Ré, os Autores se viram impedidos de celebrar para si escritura de compra e venda de parte desse mesmo prédio, tal afeta objetivamente os seus interesses. 9. Ambas as partes se arrogam de direitos substancialmente incompatíveis sobre o mesmo bem. 10. Aquilo que os Autores/Recorrentes pretendem é apenas e só ver confirmada a ausência do direito da Ré/Recorrida, para justificar uma aquisição, arrogando-se proprietária de algo que, efetivamente, não lhe pertence. 11. Os Autores só pedem que “seja declarada nula e ineficaz quanto à produção de quaisquer efeitos….a escritura de justificação aqui impugnada” e que consequentemente se anule o registo dessa aquisição. 12. O Tribunal a quo violou o artigo 30º do Código de Processo Civil. 13. A Lei confere legitimidade processual a todos aqueles que se arroguem titulares de interesses, desde que juridicamente relevantes e objetivamente afetados pelo reconhecimento do direito justificado, como sucedeu com os Autores. 14. Com a presente ação os aqui Apelantes pretendem defender os seus direitos relativamente ao identificado prédio, sendo estes já comproprietários do mesmo e tendo a escritura de justificação impedido de inscrever na sua esfera jurídica a aquisição de outra quota-parte. 15. Existe prova cabal nos autos que a justificação realizada pela Apelada é nula, nulidade que pode ser invocada a todo o tempo e por qualquer interessado. 16. Violou o Tribunal a quo o artigo 286º do Código Civil. 17. O comportamento da Ré/Apelada consubstancia a prática do crime de falsas declarações perante oficial público, assim como incorrem no crime de falsidade de testemunho as pessoas presentes na escritura de justificação e que atestaram os factos, totalmente falsos, nela vertidos. 18. Assim, deveria ter o tribunal a quo considerado improcedente a invocada exceção dilatória de ilegitimidade ativa e em consequência ter mandado prosseguir a presente ação, considerando os Autores parte legítima. 19. Pelo que, a douta sentença (saneador) viola o disposto nos artigos 552º, 576º, 577º, 578º, 609º e no artigo 30º todos do Código de Processo Civil. 20. Viola igualmente o vertido nos artigos 89º n.º 1 e 101º do Código do Notariado, assim como o artigo 286º do Código Civil.
Finalizam, pugnando a revogação da sentença (saneador) recorrida, sendo substituída por outra que que declare os autores parte legítima e mande os autos prosseguir os seus termos.
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A ré Maria apresentou contra-alegações, nas quais deduziu as seguintes
CONCLUSÕES
1- Não deve ser admitido o recurso, por intempestivo, nos termos dos artigos art.638.º, n.º 1 do CPC, no n.º 2 do artigo 644.º e no artigo 677.º, n.º 2 alínea f) do art. 644.º 2- Ora, conjugando os normativos citados com a datas de notificação da decisão objeto de recurso, a qual ordenou o cancelamento do registo de impugnação da escritura peticionado pelos autores, entendemos que o prazo para interpor recurso era de 15 dias (arts.638.º, e 644.º, n.º 2, al. f), ambos do C. P. Civil; 3- Assim sentença transitou em 4 de Julho de 2017 pelo que o recuso apresentado é intempestivo e como tal não deve ser admitido. 4- Na presente situação não se questiona que se está perante uma ação de impugnação de escritura de justificação notarial instaurada ao abrigo do disposto nos arts. 101º, do Cód. do Notariado e 116º, do Cód. do Registo Predial. 5- Atentos os factos alegados pelos autores, muito embora afirmem ter adquirido aos herdeiros de Henrique 1/16 do mencionado prédio, não são titulares de nenhum direito incompatível com o da ré. 6- A transmissão de direitos de propriedade sobre imóveis tem de ser efetuada escritura pública ou documento particular autenticado tal como resulta do art. 875º, do Cód. Civil, sendo que, ao abrigo do disposto no art. 220º, do Cód. Civil a inobservância da forma legal acarreta a nulidade do negócio. 7- Conforme resulta da certidão da Conservatória do Registo Predial junta pelos autores, a ré inscreveu a sua aquisição no registo a 12 de Janeiro de 2016, sendo que os autores inscreveram a sua aquisição da proporção de 1/16 a 21 de Dezembro de 2016, logo, podiam e deviam, aquando da realização do negócio aferir da situação jurídica do prédio, constatando desde logo que os restantes 15/16 se encontravam inscritos a favor da ré. 8- Tem legitimidade processual para instaurar ação de impugnação de escritura de justificação notarial (cfr. art. 89º, n.º1, e 101º, do Cód. do Notariado) o interessado que, relativamente ao prédio justificado, invoque ser titular de direito ou interesse incompatível com o declarado na escritura de justificação. 9- Nenhuma ação da aqui apelada " afeta objetivamente o pleno exercício do direito de propriedade de que aqueles se arrogam titulares (artigo 1305.º do Código Civil), pelo que o aresto invocado não tem aplicação no presente caso. 10- O direito dos apelantes, a existir, o alegado 1/16 que lhes foi doado, pode ser exercido na sua plenitude, nem os aqui apelantes invocam qualquer violação do mesmo. 11- A intenção dos apelantes é outra e foi já explicada na contestação, sendo que a presente ação vem na sequência de outro processo já existente e tem como objetivo intimidar a aqui Ré, aqui apelada. 12- Os interessados na defesa de um direito de propriedade, alegadamente usurpado e que pode ver a sua situação jurídica alterada, são os supostos proprietários, ou quem lhes suceder nessa qualidade. 13- Os apelantes intentam assim uma ação que, tendo em conta a tese expandida na petição inicial, poderá ter reflexos patrimoniais nos referidos herdeiros de Sandra e Manuel. 14- Assim, “os interessados”, seriam, neste caso, as heranças ilíquidas e indivisas, que tem objetivamente de ser representadas por todos os herdeiros, sob pena de, se todos os herdeiros não estiverem presentes poderem os faltosos, mais tarde, alegar a não produção de efeitos da sentença em relação a si mesmos. 15- A ação interposta pelos aqui apelantes, e na configuração que lhe é dada pelos mesmos, coloca em “perigo” a substância das heranças, pondo em risco a sua perda, pelo que teria necessariamente de ser interposta por todos os herdeiros, cfr. artigo 2079º “ a contrário ” do Código Civil, sob pena da sentença perder o seu efeito útil. 16- Ora, para formular tal pedido apenas teriam legitimidade para intervir na ação os herdeiros de Henrique e herdeiros de Sandra e Manuel. 17- A lei exige a intervenção de todos os interessados na lide, quando pela própria natureza da relação jurídica a intervenção de todos os interessados seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, cfr. artigo 33º do Código de Processo Civil, que estabelece que “É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.” 18- Assim, a única maneira de obviar a este inconveniente e dar cumprimento ao estatuído no artigo 33º do Código de Processo Civil, é considerar que estamos perante um caso de litisconsórcio necessário resultante da própria natureza da relação jurídica. 19- Assim, verificando-se a ilegitimidade de alguma das partes, como é o caso, o juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver a Ré da instância, cfr. estipula o artigo 278º nº 1 d), do Código de Processo Civil, constituindo a ilegitimidade, como vimos, uma exceção dilatória (artigo 577º e), o tribunal a quo pode mesmo conhecer oficiosamente da ilegitimidade (artigo 578º). 20- Pelo que, e salvo opinião contrária, o Tribunal a quo bem andou ao decidir-se pelo conhecimento da exceção dilatória da ilegitimidade, por violação das normas legais aplicáveis, nomeadamente o artigo 2091º do Código Civil, concluindo pela absolvição da aqui Apelada, da instância, tudo com as legais consequências. 21- Assim, a douta sentença recorrida não enferma de errada aplicação do direito, pelo que o Tribunal a quo deveria, pois, ter concluído como concluiu pela absolvição da aqui Apelada. 22- Não houve, por isso, errada aplicação da lei substantiva e processual e não existiu qualquer violação das normas legais aplicáveis, nomeadamente do artigo 30º, 552º, 576º, 577º, 578º e 609º do 1º do C.P.C., nem foram violados os artigos 89º e 101º do Código de Notariado nem o artigo 286º do C.C. 23- Assim, a decisão do Tribunal a quo não deve sofrer qualquer alteração, concluindo pelo deferimento da invocada exceção, pois enquadra-se perfeitamente na letra e no espírito da lei.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DO OBJETO DO RECURSO:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil).
No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto do presente recurso.
Neste âmbito, as questões decidendas traduzem-se nas seguintes:
A) Saber se o recurso foi apresentado tempestivamente. B) Saber se cumpre proceder à alteração da decisão de mérito, admitindo-se a legitimidade ativa dos aqui autores.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Factos Provados
Os constantes do Relatório supra.
IV) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A) Da tempestividade do recurso
Esta questão sobre a tempestividade do recurso de apelação interposto pelos autores já foi adequadamente analisada pelo tribunal a quo no despacho que o admitiu (cfr. fls. 77 e 78).
Na verdade, o recurso em presença foi interposto ao abrigo do disposto no art. 644º, nº 1, als. a) e b), do C. P. Civil, e não com fundamento em nenhuma das alíneas do n.º 2 do art. 644º, do C. P. Civil, designadamente com base na al. f), conforme é alegado pela ré recorrida, nas suas contra-alegações; sendo certo igualmente que não estamos perante um processo de natureza “urgente”.
Sendo assim, o prazo de interposição do recurso do despacho saneador, que acabou por pôr termo à causa, para além de ter absolvido a ré da instância, é de 30 dias e conta-se a partir da notificação daquela decisão final – cfr. art. 638º, n.º 1, 1ª parte, do C. P. Civil.
Nesta medida, uma vez que aquele prazo se iniciou a 20 de Junho de 2017, tendo os autores interposto o presente recurso a 4 de Setembro de 2017, sendo certo que no período de férias judiciais suspende-se o prazo processual em curso (art. 138º, n.º 1, do C. P. Civil), torna-se ingente concluir que o recurso foi interposto naquele prazo de 30 dias, sendo portanto tempestivo, tal como já havia sido decidido pelo tribunal a quo.
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B) Da legitimidade processual dos autores
Na decisão (despacho saneador) recorrida o tribunal a quo julgou procedente a invocada exceção dilatória de ilegitimidade ativa dos autores e, na sequência, absolveu a ré da instância.
Fundamentou a sua decisão, designadamente na conclusão a que chegou que “ (…) no caso em apreço não há qualquer situação de incerteza da titularidade do direito ou do interesse relevante que se imponha regular, considerando a factualidade declarada na petição inicial e na réplica apresentada pelos autores.”
Nos termos do disposto no art. 30º, do C. P. Civil, “o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar …” (n.º 1).
“O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação …” (n.º 2); sendo que, “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor” (n.º 3).
Assim, a legitimidade processual do autor afere-se apenas pela relação material controvertida configurada pelo autor. Já no que se refere à efetiva titularidade da relação material a mesma respeita ao fundo ou mérito da causa, sendo que, a sua falta, conduz à improcedência da ação.
Neste sentido, referem J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre(1) que o pressuposto processual da legitimidade “exprime a relação entre a parte no processo e o objecto deste (pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o.”
Ora, em consonância com o exposto, dir-se-á que a parte só estará em posição (relativamente ao objeto do processo) de deduzir a respetiva pretensão formulada em juízo se for, na sua própria configuração, a titular ativa da relação jurídica substantiva (admitindo que ela exista e, portanto, sem indagar do seu mérito) que suporta aquela sua pretensão.
Dito de outro modo, não sendo ela a titular ativa da relação jurídica invocada em juízo, não tem ela um interesse direto (direto e não meramente indireto ou reflexo) nessa pretensão, por falecer a conexão legalmente configurada e exigida entre o autor e o objeto do processo. .
Outra situação traduz-se no pressuposto do “interesse em agir”, que consiste em o requerente mostrar interesse, não no objeto do processo (legitimidade), mas no processo em si. Além de invocar um direito ou interesse juridicamente tutelado, teria ainda de alegar achar-se esse direito ou interesse numa situação que necessita do processo para sua tutela.
O requerente deve mostrar interesse no objeto do processo e interesse no próprio processo, por o seu direito estar a necessitar de tutela (2). Se o não tem, se não existe essa necessidade de recurso ao processo para fazer valer ou defender o direito invocado, a ação é inútil. O direito não está carenciado de tutela judicial.
Justifica-se o processo se o direito do demandante estiver carecido de tutela judicial e, daí, o interesse em utilizar a arma judiciária.
Esse interesse não se basta com um interesse vago ou remoto. “Trata-se de algo intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir pela via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece” (3).
Ora, é exatamente nas ações de simples apreciação (como aquelas em que, reagindo contra uma situação de incerteza, o autor pretende apenas obter a declaração com a força vinculativa própria das decisões judiciais da existência ou inexistência de um direito ou de um facto) – artigo 10º, n.º 3, al. a), do C. P. Civil – onde mais se manifesta a necessidade deste requisito e tem lugar quando se verifica um estado de incerteza, objetiva e grave, sobre a existência ou inexistência de um direito a apreciar, um estado de incerteza objetiva que possa comprometer o valor ou a negociabilidade da própria relação jurídica. O “interesse em agir” surgiria, assim, da necessidade em obter do processo a proteção do interesse substancial, pelo que pressupõe a lesão de tal interesse e a idoneidade da providência requerida para sua satisfação. (4)
Neste tipo de ações não basta qualquer situação subjetiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual (ou interesse em agir) na ação. De facto, “ (…) a incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objetiva e grave”. (5)
Por sua vez, a escritura de justificação (notarial) é um instrumento destinado a suprir a falta de documento bastante para a prova do direito do interessado na primeira inscrição no registo.
A justificação, para os efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do C. R. Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais (cfr. artigo 89º, n.º 1, do C. Notariado).
Sendo assim, a justificação notarial é o ato por que alguém explicita o modo de aquisição do seu direito de propriedade, precisando os factos que o comprovam ou donde advém tal propriedade.
Por sua vez, o art. 101º do C. Notariado prescreve no seu n.º 1 que “se algum interessado impugnar em juízo o facto justificado deve requerer simultaneamente ao tribunal a imediata comunicação ao notário da pendência da ação.”
Não limita a letra da lei a qualidade de “interessado” àquele que invoca ser proprietário do imóvel cuja justificação notarial pretende impugnar. A lei também não limita ao pretenso titular do direito a legitimidade para outorgar como justificante, pois tal legitimidade é conferida a quem “demonstre ter legítimo interesse no registo do respetivo facto aquisitivo, incluindo, designadamente, os credores do titular do direito justificando.” (cfr. art. 92.º, n.º 2 do C. Notariado).
A lei também não impõe que o impugnante, ainda que invoque a qualidade de proprietário, deduza pedido para se declarar ser ele e não o impugnado o proprietário do imóvel.
A procedência da ação de impugnação de escritura de justificação implica antes o cancelamento do registo de propriedade a favor do justificante (cfr. arts. 2º, n.º 1, al. a), 3º, n.º 1, al. a), 8º e artigo 101º, n.º 2, al. g), todos do C. R. Predial).
Daqui decorre que o justificante deixa, por força do cancelamento do registo, de beneficiar da presunção de propriedade sobre o imóvel que o registo lhe proporcionara.
Por conseguinte, tudo parece evidenciar, tal como o defendido no Ac. STJ de 29.06.2017, (6) “(…) que a impugnação da justificação notarial não está limitada apenas aos que afirmam ser os proprietários do imóvel ou que invocam direito real em colisão com o direito daqueles que justificaram notarialmente, reconhecendo-se também interesse em agir àqueles que invocam direito, diverso do direito de propriedade ou outro direito real, cujo exercício pode ser afetado se a ação não for proposta.”
Na ação de impugnação de justificação notarial prevista nos artigos 116º, n.º 1, do C. R. Predial e 89.º e 101.º do C. Notariado, incumbe aos réus, “que afirmaram a aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente, no registo a seu favor, com base nessa escritura, a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção de registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial.” (7)
Estamos, pois claramente perante uma ação de simples apreciação negativa (cfr. art. 10º, nºs 2 e 3, al. a), do C. P. Civil) em que cabe ao impugnado (demandado) o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito (cfr. art. 343º, n.º 1, do C. Civil).
Porém, o impugnante não pode deixar de alegar os factos que justificam o seu interesse na impugnação da escritura de justificação notarial enquanto factos que fundamentam a sua pretensão à declaração negativa, ou seja, “ao autor cabe demonstrar aqueles fundamentos do pedido (as causas e as razões do seu direito) e negar, antecipadamente, as declarações contrárias do réu; a este cabe alegar e demonstrar, por seu lado, os fundamentos do direito que contrapõe ao do autor.” (8)
O interesse em demandar exprime-se, assim, pela utilidade derivada da procedência da ação (art. 30º, n.º 2, do C. P. Civil), sendo que, porém, deverão ser fundadas e ponderadas criteriosamente as razões que são indicadas pelo impugnante, designadamente quando o impugnante não invoca direito que esteja em colisão direta com o direito de propriedade que o justificante conseguiu ver reconhecido.
Poderemos assim concluir que “interessados” – agora mais enquanto pressuposto de “interesse em agir” – para efeitos de impugnação da justificação, são os titulares de uma relação jurídica ou direito que pode ser afetado, posto em crise pelo facto justificado de modo que “a declaração da inexistência do direito do justificante seja apta a pôr termo à situação de dúvida objetiva e grave em que se encontra o direito invocado pelo autor”. (9)
Outrossim, como é defendido no citado Ac. STJ de 29.06.2017, para ser assegurada a legitimidade substancial do impugnante, no caso de este não gozar de direito que não colide diretamente com aquele que resulta da presunção do direito de propriedade que beneficia o justificante, nos termos do disposto no art. 7º do C. R. Predial, “há de ser alegada factualidade que evidencie que o interesse salvaguardado pelo direito do impugnante é igual ou, pelo menos, equivalente ao do direito que foi objeto de justificação notarial.”
No caso em apreço, os autores, são comproprietários do imóvel justificado (na proporção de 1/16), e alegam que foram (ou estão) impedidos de inscrever a seu favor uma outra aquisição de 1/16 desse mesmo imóvel, em virtude da aludida escritura de justificação notarial levada a cabo pela ré, que culminou com o registo predial dos outros 15/16 a favor da justificante.
Podemos, pois, concluir que processualmente os autores deverão ser considerados parte legítima, designadamente tendo em atenção que eles se apresentam como interessados em impugnar a justificação notarial, tendo em vista o cancelamento do registo do imóvel de que a ré beneficia.
O interesse em demandar, que se exprime pela utilidade derivada da procedência da presente ação, reside na circunstância de, mediante a impugnação da justificação notarial, a ré deixará de beneficiar da presunção de propriedade que o registo lhe confere, conferindo aos autores a possibilidade de efetuar escritura de compra e venda sobre o invocado direito de 1/16 do prédio em questão; direito esse que alegadamente compraram aos herdeiros de Henrique, o qual se encontra ainda inscrito matricialmente a favor deste último, conforme resulta do teor do documento de fls. 18 verso.
Do ponto de vista da legitimidade substancial afigura-se-nos igualmente que a mesma se mostra preenchida, considerando que a pretendida aquisição do direito de propriedade sobre o referido direito de 1/16 sobre o prédio em causa, só poderá ser formalizada mediante escritura pública e a mesma está inteiramente dependente do cancelamento do respetivo registo de propriedade (presuntiva) de 15/16 que incide sobre o imóvel em questão a favor da ré.
Termos em que se conclui pela legitimidade dos autores, julgando-se assim procedente o presente recurso.
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V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação apresentada pelos autores e, em consequência revoga-se a decisão recorrida de absolvição da instância da ré, ordenando-se o prosseguimento dos autos.
Custas pela apelada (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil).
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Guimarães, 18.12.2017
Relator António José Saúde Barroca Penha
Des. Eugénia Marinho da Cunha
Des. José Manuel Alves Flores
1. Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 3ª edição, pág. 70. 2. Neste sentido, cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, 2º vol., AAFDL, pág. 187. 3. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1956, págs. 79-80. 4. Neste sentido, cfr. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, 1981, Vol. I, pág. 117. 5. Cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, págs. 186-187. 6. Proc. n.º 5043/16.0T8STB.S1., relator Salazar Casanova, disponível em www.dgsi.pt. 7. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008, de 4-12-2007, in D.R., n.º 63, I Série, de 31-3-2008. 8. Cfr. Ac. STJ de 03.07.2003, proc. n.º 03B2066, relator Quirino Soares, disponível em www.dgsi.pt. 9. Cfr. Ac. STJ de 11.11.2010, proc. n.º 33/089TBVNG, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, acessível em www.dgsi.pt.