DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
CHAMAMENTO À DEMANDA
INTERVENÇÃO PROVOCADA
Sumário

i) Tendo sido intentada ação com vista ao exercício do direito de regresso previsto no artigo 27.º, n.º 1, alínea f), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, contra outrem que não o garagista sobre quem impendia a obrigação de segurar prevista no artigo 6.º, n.º 3, do mesmo diploma, não pode ser chamado a intervir o efetivo garagista, porquanto só a ilegitimidade plural (preterição de litisconsórcio) é suprível por via do incidente de intervenção.
ii) Tal intervenção permanece inadmissível ainda que o autor – na sequência da invocação, pelo réu, de uma relação comitente-comissário –, pretenda manter o réu primitivo na ação e passar a demandá-lo juntamente com o chamado com base na responsabilidade solidária decorrente daquela relação, porquanto esta solução configuraria a convolação para relação jurídica diversa da controvertida, convolação essa vedada pelo artigo 265.º, n.º 6, do CPC.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 458/24.2T8TNV-A.E1 – Apelação em separado

Tribunal Recorrido - Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local Cível de Torres Novas

Recorrente – (…), Companhia de Seguros, S.A.

Recorrido – (…)

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Processo n.º 458/24.2T8TNV-A.E1 – Apelação em separado

Sumário: (…)
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Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1.
(…), Companhia de Seguros, S.A. intentou, no Juízo Local Cível de Torres Novas, ação declarativa comum contra (…), pedindo a condenação deste a pagar-lhe € 38.269,68, acrescidos de juros vincendos.
Para o efeito alegou, em síntese, que, enquanto seguradora, aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo automóvel com a matrícula (…), propriedade de (…), veículo esse envolvido em acidente de viação enquanto se encontrava à guarda do Réu, para reparação, no exercício das funções profissionais deste, já que este explorava, juntamente com o seu pai (…), uma oficina de reparação automóvel, sendo seu sócio-gerente. Mais alegou que, aquando do acidente, a viatura era conduzida pelo Réu, que a levava para a oficina, a fim de proceder à sua reparação. Alegou, ainda, que o Réu não cumpriu a obrigação de paragem obrigatória num sinal STOP e, consequentemente, colidiu com um velocípede. Alegou, também, que à data do sinistro o Réu não tinha o seguro de garagista ou de responsabilidade civil, a que alude o artigo 6.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, e que, em consequência do sinistro, teve de proceder ao pagamento da quantia de € 38.269,68 ao lesado.
Concluiu, invocando assistir-lhe, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 27.º do sobredito diploma, o direito de exigir do Réu a quantia paga por conta dos danos por este provocados.
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O Réu apresentou contestação, sustentando ser parte ilegítima na ação, porquanto à data do acidente era mero empregado do seu pai, (…), só posteriormente tendo passado a trabalhar por conta própria na mesma oficina em que o seu pai exerceu atividade. Defendeu que, consequentemente, é sobre o pai do Réu, enquanto comitente, que recai a eventual obrigação de indemnizar decorrente do acidente de viação em que foi interveniente. Refutou, ainda, que o acidente se tivesse dado por sua culpa.
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Em articulado subsequente, que veio a ser admitido pelo tribunal a quo, a Autora defendeu que, atenta a relação comitente-comissário invocada pelo Réu, se presume a culpa deste e que, sendo, à data do acidente, o Réu o efetivo condutor do veículo seguro pela Autora, ainda que por conta de outrem, e, não possuindo seguro de carta, é responsável pelos danos que causou, solidariamente com o garagista, seu pai, que não possuía seguro de garagista.
Nesta sequência requereu a intervenção principal provocada de (…).
*
O Réu declarou nada ter a opor à intervenção principal provocada requerida pela Autora.
2.
O tribunal a quo pronunciou-se sobre a intervenção, concluindo que “inexistindo, à luz da relação material controvertida sub judice tal como foi configurada pela A. nestes autos, qualquer litisconsórcio entre o R. e a pessoa que a A. pretende chamar à demanda, não estão reunidos os pressupostos para a admissão da intervenção principal de (…), pelo que não se admite a requerida intervenção principal provocada”.

3.
Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação do assim decidido, enunciando as seguintes conclusões:
«
1. A Recorrente não se conforma com o teor do despacho de fls…, de 20/12/2024, no qual não se admitiu a intervenção principal provocada de (…), pois entende que o Tribunal a quo terá incorrido numa incorreta aplicação do Direito aos factos, sustentando-se em falácias/falsas premissas.

2. A Recorrida está, pois, convicta que Vossas Excelências, apreciando os factos e subsumindo-os nas normas legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de julgar procedente o presente recurso, substituindo o despacho em crise por outro que redunde no chamamento à presente ação de (…).

3. Com a presente ação pretendeu a Autora ver-se reembolsada das quantias que suportou com o ressarcimento dos lesados (num total de € 38.269,68) na sequência de acidente de viação ocorrido em 17/05/2021, em Torres Novas, e que envolveu o veículo automóvel seguro pela Autora, conduzido pelo Réu (…) e propriedade de (…), com a matrícula (…), e o velocípede propriedade e conduzido por (…).

4. Em síntese, alegou que o acidente em questão se deveu à atuação exclusiva, ilícita e culposa do Réu, por via do incumprimento da sinalização vertical existente na sua via de trânsito (STOP), o que levou a que colidisse com o velocípede ao ingressar na via por onde este transitava.

5. Mais se alegou que o veículo seguro estava à guarda e cuidado do Réu com o objetivo de ser reparado, sendo o Réu uma das pessoas que explorava a oficina em questão, à data designada por “Auto (…)”. Portanto, o Réu detinha a guarda do veículo por conta da sua atividade profissional quando se dá o acidente.

6. Além do mais, verificou-se que à data do sinistro, o Réu não tinha seguro de garagista ou de responsabilidade civil a que alude o artigo 6.º, n.º 3, do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.

7. Factualidade que, de acordo com o disposto no artigo 27.º, n.º 1, alínea f), do Decreto-Lei n.º 291/2007, conferem à Seguradora o direito de regresso contra o garagista, que julgava a Autora ser também o Réu.

8. Por requerimento de 08/07/2024, na sequência da Contestação apresentada pelo Réu, veio a Autora, ora apelante, no exercício do seu direito ao contraditório, responder à exceção de ilegitimidade passiva invocada por aquele e, além do mais, suscitar a intervenção principal provocada de (…), pai do atual Réu.

9. Sustentou, em suma, tal pedido, no facto de apenas com a contestação do Réu ter tido conhecimento que o único e efetivo garagista era o seu pai, sendo o Réu apenas funcionário deste. Pois que, conforme resulta da petição inicial apresentada, pensava a Autora que o Réu explorava igualmente a oficina à guarda da qual o veículo seguro pela Autora iria ser reparado. Motivo pelo qual demandou o Réu não só na qualidade do condutor do veículo seguro à data do acidente, como na qualidade de garagista.

10. Sendo que na resposta à exceção pugnou pela legitimidade passiva do Réu, pois, ainda que não fosse o garagista, mas mero funcionário, sempre seria responsável pelas consequências do acidente, nos termos do disposto do artigo 483º e artigo 503.º, n.º 3, todos do Código Civil.

11. Razão pela qual é solidariamente responsável pelo pagamento, com o garagista, perante a Autora, conforme se retira, a título exemplificativo, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12.10.2010 (proc. n.º 31/1997.P1, disponível in www.dgsi.pt).

12. Note-se que, o próprio Réu, na contestação apresentada, invocou estarmos perante uma relação de comissão, atenta a relação laboral que detinha à data do acidente com a oficina/seu pai, nos termos do artigo 500.º do Código Civil. No entanto, por esse motivo entendeu ser parte ilegítima na ação.

13. Ademais, determina o artigo 30.º, n.º 1, do CPC, a aferição da legitimidade das partes segundo o critério do interesse em demandar – quanto ao Autor – ou em contradizer – quanto ao Réu. Já a norma contida no n.º 2 deste artigo estabelece que o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação. Pelo que, utilizando este critério, conclui-se que o Réu é, plenamente, parte legítima na presente ação.

14. No entanto, conforme decorre dos autos, veio tal intervenção a não ser admitida pelo Tribunal a quo, apesar de o réu até não se ter oposto à mesma (vide requerimento com a Ref.ª 11106059, de 29-10-2024)!

15. Com todo o respeito que nos merece o Tribunal a quo, não podemos deixar de discordar com o mesmo, pois com a decisão em crise tomou posição precipitada, poiso Tribunal deve-se nortear pelo princípio da descoberta da verdade material e justa composição do litígio, podendo chamar-se igualmente à colação os princípios da cooperação, economia processual e gestão processual e ainda salvaguarda do direito constitucional a uma tutela jurisdicional efetiva. O que não se alcança com a decisão em crise.

16. Efetivamente, conforme decorre da fundamentação da decisão em crise, nos termos do artigo 260.º do Código de Processo Civil, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma, para além do mais, quanto às pessoas, ressalvadas as possibilidades de modificação consignadas na lei.

17. Nessas exceções que permitem a modificação subjetiva da instância cabe o incidente de intervenção principal provocada de terceiros, a pedido do autor, prevista no artigo 316.º, n.º 1 e 2, do CPC.

18. Há que aferir se, antes de mais, se o terceiro que se pretende fazer intervir na causa tem uma posição equivalente à das partes principais, em termos tais que nada impedisse que tivesse, ab initio, co-proposto a ação com o autor, ou sido co-demandado na mesma por este. O que implica que se determine se existe entre o chamado e qualquer das partes primitivas uma situação jurídica de litisconsórcio, para o que se terá de convocar, necessariamente, a configuração da relação material controvertida nos autos.

19. Nos termos do artigo 30.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, na falta de indicação legal em sentido diverso, os titulares do interesse relevante serão os sujeitos da relação controvertida tal como descrita pelo autor, i.e., é com base na factualidade alegada pelo autor e na relação material que a mesma espelha que se há de indagar a titularidade das posições ativa e passiva na mesma.

20. Quando uma das posições na relação controvertida é titulada por mais de um sujeito (havendo, portanto, legitimidade plural de uma das partes), poderemos estar perante uma situação de litisconsórcio, o qual, por seu turno, poderá ser voluntário ou necessário.

21. Existirá entre as partes uma relação litisconsorcial voluntária sempre que a relação material controvertida respeite a várias pessoas, e nem a lei, nem o negócio, nem a natureza da relação imponham a demanda simultânea de todos os interessados (cfr. artigo 32.º do Código de Processo Civil).

22. Reconhece igualmente o Tribunal a quo, a Autora já alegou na petição inicial que o Réu era o condutor do veículo por si segurado, porém entendeu (erradamente!) que não foi nessa qualidade que o demandou, mas antes (apenas) como garagista, e por violação da obrigação prevista no artigo 6.º, n.º 3, do Decreto-lei n.º291/2007, ao abrigo do artigo27.º, n.º1, alínea f), do mesmo diploma– vide os artigos 28º, 29º e 32º da petição inicial.

23. Concluindo que, acaso o tivesse feito, resultaria clara a improcedência da ação, na medida em que, na ausência da alegação de outros factos que permitissem colocar este condutor sob a facti specie das alíneas a) a e) e/ou g) a i) do artigo 27.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 291/2007 (no qual a Autora fundou a sua pretensão), não assistiria à A. qualquer direito de regresso sobre o condutor.

24. Portanto, viu o Tribunal a quo a alegada alteração da posição do Réu como dedução de novo pedido contra o R. com base nessa qualidade e numa suposta responsabilidade solidária com o garagista. O que, por sua vez, entendeu implicar a modificação da factualidade alegada como constitutiva do direito da A., e uma alteração material do pedido formulado, numa inadmissível convolação para relação jurídica diversa da controvertida (cfr. artigo265.º, n.º6,do Código de Processo Civil) que, sem acordo expresso entre Autora e Réu neste sentido(cfr.artigo264.º,acontrario,doCódigodeProcessoCivil), é vedada pelas normas processuais civis que visam garantir o princípio da estabilidade da instância.

25. E ainda que se admitisse ser possível esta alteração objetiva da instância, a norma que a Autora invocou e que lhe atribui a posição jurídica que pretende ver jurisdicionalmente tutelada (o seu direito de regresso sobre terceiros, por indemnizações que satisfez ao abrigo do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório), não lhe dá o direito de reclamar qualquer pagamento ao condutor do veículo que não esteja numa das situações elencadas nas alíneas a) a e) e g) a i) do artigo 27.º do Decreto-lei n.º 291/2007, ainda que, perante o lesado (e não já perante a Seguradora que indemnizou os danos do lesado) (???), este pudesse ser solidariamente responsável com o garagista.

26. Neste ponto, parece o Tribunal a quo esquecer-se da existência da figura da sub-rogação, pois assumindo a seguradora os danos advenientes do acidente, indemnizando os lesados, adquire na sua esfera jurídica os direitos detidos por aqueles e pode exercê-los plenamente tal como aqueles podiam tê-lo feito…mas continuemos.

27. Portanto, concluiu o Tribunal a quo que tendo a A. demandado como garagista alguém que o não era, não se poderá considerar haver qualquer litisconsórcio entre o R. (não garagista) e o verdadeiro garagista. Logo, ao fazer intervir o verdadeiro garagista, do que se trataria antes era de sanar uma ilegitimidade singular evidente, mas só a ilegitimidade plural (preterição de litisconsórcio) é suprível por via do incidente de intervenção.

28. Deste modo, por considerar que, à luz da relação material controvertida sub judice tal como foi configurada pela A. nestes autos, não existe qualquer litisconsórcio entre o R. e a pessoa que a A. pretende chamar à demanda, não estão reunidos os pressupostos para a admissão da intervenção principal de (…), pelo que não admitiu a requerida intervenção principal provocada.

29. Salvo o devido respeito, não pode a ora Recorrente aceitar a conclusão supra referida.

30. Isto porque, a lei é clara em permitir a alteração subjetiva da ação após a citação do Réu, quando, nomeadamente, perante situação em que é possível provocar a intervenção principal de terceiros.

31. Naturalmente que, esse terceiro terá de assumir posição igual à das partes, in casu, como co-demandado. Ou seja, será necessário avaliar se, de acordo com os factos vertidos na P.I. e que configuram a relação material controvertida, estamos perante uma situação de litisconsórcio (vide artigo 316.º, n.º 2, do CPC).

32. Sendo entendido como litisconsórcio voluntário sempre que a relação material controvertida respeite a várias pessoas, e nem a lei, nem o negócio, nem a natureza da relação imponham a demanda simultânea de todos os interessados (cfr. artigo 32.º do Código de Processo Civil).

33. Analisando a factualidade vertida na P.I., a Autora sustentou a ação, além do mais, no seguinte:

- acidente de viação, ocorrido em 17/05/2021, em Torres Novas, que envolveu o veículo automóvel seguro pela Autora, conduzido pelo Réu (…) e propriedade de (…), com a matrícula (…), e o velocípede propriedade e conduzido por … (facto aceite pelo Réu);

- a responsabilidade civil pelo aludido acidente recai, em exclusivo, por atuação ilícita e culposa, sobre o Réu, por via do incumprimento da sinalização vertical existente na sua via de trânsito (STOP), condutor do veículo seguro e, julgava a Autora, coproprietário da oficina onde este iria ser reparado (o Réu não ser proprietário da oficina reparadora, mas mero funcionário da mesma, consubstancia factualidade nova, trazida aos autos pelo próprio Réu com a sua Contestação);

- ou seja, o veículo seguro estava à guarda e cuidado do Réu com o objetivo de ser reparado, sendo o Réu uma das pessoas que explorava a oficina em questão, à data designada por “Auto (…)”, pelo que detinha a guarda do veículo por conta da sua atividade profissional quando se dá o acidente.

- à data do sinistro, o garagista não cumpriu com a obrigação a que alude o artigo 6.º, n.º 3, do Dec.-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto (facto também aceite réu).

34. Assim, quanto à responsabilidade do garagista, existe vasta jurisprudência no sentido de a direção efetiva do veículo seguro, quando entregue para reparação, se transferir para o garagista, ainda que à data do acidente o veículo estivesse a ser conduzido por funcionário deste. De facto, é quem tem a direção efetiva do veículo que assume o risco da sua circulação, nos termos do n.º 1 do artigo 503.º do Código Civil.

35. Aliás, sempre seria o garagista responsável pelos danos causados no veículo ou pelo veículo quando o mesmo esteja confiado à sua guarda, nos termos do dever de vigilância previsto no artigo 493.º do Código Civil.

36. A exigência da direção efetiva assume-se como fator de exclusão, de modo a afastar a responsabilidade daqueles que, a qualquer título, não tenham o poder efetivo da direção ou disposição do veículo e, por isso, não criem o risco especial derivado da sua utilização.

37. Por esse motivo (o garagista deter a direção efetiva do veículo que lhe é entregue para reparação), sobre o garagista impende também a obrigação de segurar, como preceitua o n.º 3 do artigo 6.º do DL n.º 291/2007, de 21.08.

38. Assim também se pronunciam Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, Vol. I, 4.ª edição, pág. 513 afirmando: “A fórmula, aparentemente estranha, usada na lei – ter a direção efetiva do veículo – destina-se a abranger todos aqueles casos em que, com ou sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objetiva, por se tratar das pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas, tomar as providências para que o veículo funcione sem causar danos a terceiros. A direção efetiva do veículo é o poder real (de facto) sobre o veículo e constitui elemento comum a todas as situações referidas, sendo a falta dele que explica, em alguns dos casos, a exclusão da responsabilidade do proprietário. Tem a direção efetiva do veículo a pessoa que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento”.

39. Por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 28/09/2004 (proc. n.º 04A2445), sublinhou-se: "Confiado o veículo, para reparação ou revisão, pelo seu proprietário, a uma garagem, é a entidade proprietária desta que fica com a direção efetiva do veículo, pelo que, ocorrido um acidente deviação por culpa de um empregado da mesma garagem quando este atuava no exercício dessas suas funções de empregado, não pode ser responsabilizado o proprietário do veículo nem a sua seguradora, mas o garagista ou a sua seguradora".

40. Orientação também partilhada no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 7/01/2016 (proc. n.º 128/12.4TBBRG, in www.dgsi.pt), onde se diz: “Detém a direção efetiva do veículo o garagista que o recebe para reparação, e no exercício da sua profissão o guarda e faz circular por intermédio do seu funcionário no âmbito em plena execução dum contrato de empreitada”.

41. Posto isto, em face da factualidade alegada pela Autora, ora Recorrente, na presente ação, dúvidas não existem que o garagista detinha a direção efetiva do veículo seguro pela Autora aquando do deflagrar do acidente.

42. Garagista esse que a aqui Recorrente julgava ser também o Réu, o que, como vimos, veio a ser desmentido pelo mesmo. Não obstante, ainda que de mero funcionário se tratasse, por via da relação de comissão que o próprio Réu reconhece que existia, conforme reza o n.º 1 do artigo 503.º do Código Civil: “Aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação rodoviária e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermediário de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”. Estabelece, assim, esta norma uma verdadeira presunção de culpa que recai sobre o comissário, isto é, quando o veículo é conduzido por comissário presume-se antes de mais que recai sobre ele a culpa no acidente, logo que será ele o responsável por terceiros lesados. Completando o n.º 3 a questão da responsabilidade ao prescrever “Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpada sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do n.º 1”.

43. Pelo que será lícito concluir que, no caso, quer o efetivo garagista, quer o seu funcionário e condutor do veículo, detêm legitimidade para serem demandados e responderem pelos danos causados a terceiros em consequência do acidente em discussão nos autos.

44. Importa ainda sublinhar que, o Réu, ainda que mero funcionário do garagista, era filho do mesmo, sendo que em 22/06/2023 constituiu empresa, com o mesmo objeto da oficina detida pelo seu pai, e a funcionar no mesmo local. Motivos pelos quais, julga a recorrente que detinha um conhecimento privilegiado da atividade e modo de funcionamento da oficina detida pelo seu pai.

45. Nessa medida, tinha conhecimento que não só a oficina não detinha seguro de garagista, como ele próprio também não detinha seguro de carta (factos que, inclusivamente, não contestou), o que sempre seria necessário no caso de conduzir veículo deixado à guarda da oficina e por conta da atividade desenvolvida por esta.

46. Portanto, ao conduzir o veículo seguro assumiu o risco de circulação do mesmo, tendo perfeita consciência que a responsabilidade pelos danos causados por aquele podia recair diretamente sobre si, até segundo o que resulta do disposto no artigo 483.º do Código Civil.

47. Conforme Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12.10.2010 (Proc. n.º 31/1997.P1, disponível in www.dgsi.pt): “Tendo o veículo causador dos danos sido entregue a garagista para reparação e ocorrendo o embate quando o veículo estava a ser experimentado na via pública, por um empregado do garagista no exercício das suas funções de mecânico por conta e ao serviço do garagista, a responsabilidade por esses danos não cabe ao proprietário do veículo nem à sua seguradora, mas, na falta de seguro do garagista e de seguro de carta do condutor e extinta que está a obrigação do Fundo de Garantia Automóvel, aos próprios garagistas e condutor, solidariamente perante o lesado. (…) em face das disposições dos artigos (…) 483.º, n.º 1 e 500.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, a responsabilidade pelos danos causados no veículo do autor cabe, solidariamente perante o autor, aos chamados E………., enquanto condutor do veículo causador dos danos, e G………., S.A., na qualidade de "garagista" onde o veículo tinha sido entregue para reparação, os quais respondem directamente perante o autor dada a inexistência de seguro de garagista e de seguro de carta”.

48. Destarte, vemos que a responsabilidade pelo acidente dos autos recai sobre o garagista e o condutor do veículo seguro, funcionário daquele, os quais são responsáveis solidariamente perante os lesados. Solidariedade essa que decorre precisamente da relação de comissão existente entre ambos.

49. Resulta do artigo 512.º do Código Civil as características da obrigação solidária:

“1. A obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles.

2. A obrigação não deixa de ser solidária pelo facto de os devedores estarem obrigados em termos diversos ou com diversas garantias, ou de ser diferente o conteúdo das prestações de cada um deles; igual diversidade se pode verificar quanto à obrigação do devedor relativamente a cada um dos credores solidários”.

50. Dá, assim, lugar a um litisconsórcio voluntário, pois pode o lesado (ou no caso, a seguradora que suportou os danos) exigir a totalidade da indemnização a qualquer um dos responsáveis, sem necessidade de demandar todos (vide artigo 32º. do CPC).

51. Pelo que, ao contrário do invocado no despacho em crise, com o pedido de intervenção realizado pela Autora não visou esta suprir qualquer ilegitimidade singular e chamar aos autos o único e efetivo responsável pelos danos. A Autora pugna pela legitimidade de ambos, condutor do veículo seguro e garagista, logo visou apenas chamar o co-responsável.

52. Note-se, aliás, que aquando do pedido de intervenção do sr. (…) não tinha decorrido ainda o prazo de prescrição que a Autora detinha para o efeito!

53. Estabelecido que está que:

- o garagista é responsável pelo acidente dos autos, por via da relação de comissão que existe com o condutor do veículo seguro;

- o garagista tem interesse em contradizer, nos termos do artigo 30.º do CPC, logo é parte legítima;

- a responsabilidade entre garagista e condutor é solidária e dá lugar a um litisconsórcio voluntário,

Logo,

- a Autora podia pedir a intervenção do garagista nos autos, nos termos do artigo 316.º, n.º 2, do CPC, o que fez logo que tomou conhecimento que quem ocupava tal posição era apenas o pai do Réu.

Ainda que assim não se entenda, sempre se diga que,

54. É certo que a Autora/Recorrente apenas chamou à colação na P.I. apresentada o artigo 6.º, n.º 3 e 27.º, n.º1, alínea f), do DL 291/2007, pois julgava que o Réu, além de ser o condutor do veículo seguro, também explorava a oficina onde o veículo seguro seria reparado, motivo pelo qual, também foi o Réu demandado na qualidade de garagista.

55. Mas não se pode negar que igualmente sustentou o seu pedido na responsabilidade civil extracontratual do condutor do veículo, aqui Réu.

56. É que estamos perante uma causa de pedir complexa, onde terá de se começar por aferir se a Autora liquidou a indemnização aos lesados por conta do acidente dos autos, a responsabilidade pelo acidente dos autos, a qualidade do condutor responsável, e só depois, considerando que o veículo está na direção efetiva do garagista, verificar se o mesmo detinha seguro de garagista, portanto, se poderíamos enquadrar o caso dos autos no referido artigo 27.º, n.º 1, alínea f), do DL 291/2007.

57. Todos eles requisitos cumulativos.

58. Mas tal não obsta a que o Tribunal (nomeadamente o de segunda instância) faça outro enquadramento jurídico dos factos, porque ao fazê-lo não decide com base em diversa causa de pedir, antes envereda por mera qualificação jurídica diversa, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC.

59. Na verdade, ao contrário do que o Tribunal recorrido defende, a causa de pedir permanece a mesma quando os mesmos factos essenciais integram a previsão de normas materiais diversas, mesmo que em situação de concorrência ou concurso de normas. Podendo, aliás, tais factos serem complementados por novos factos adquiridos com a instrução da causa pelo Tribunal. Não sendo a sua não alegação em articulado razão para precludir a sua aquisição posterior e, ademais, podem/devem os mesmos ser valorados em sede de formação da convicção (artigo 607.º, n.º 4, do CPC).

60. O Tribunal a quo podia/devia oficiosamente enquadrar a questão em normativo diverso do invocado pela Autora. O que não fez, simplesmente sustentando que a causa de pedir, conforme configurada pela Autora, se reduzia ao direito de regresso previsto no artigo 27.º do DL n.º 291/2007.

61. Mais uma vez, salvo o devido respeito, entende a Recorrente que o Tribunal a quo andou mal ao assim decidir, pois não só não está impedido, como deve proceder à qualificação jurídica que entenda adequada (desde que o faça no âmbito da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido), ainda que afastando-se do alegado pelas partes – cfr. artigo 5.º, n.º 3, do CPC: “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.”

62. Neste sentido, veja-se o Ac. da Relação de Lisboa, de 23/03/2023 (Proc. n.º 112076/21.6YIPRT.L1-7, in www.dgsi.pt).

63. Remédio Marques afirma que “a causa de pedir (factos que servem de fundamento à ação) e o pedido, a concreta pretensão, enquanto efeito jurídico pretendido pelo autor, formam o objeto do processo civil”.

64. Para Alberto dos Reis (em Código de Processo Civil Anotado, volume III, págs. 121/124), “Há que repelir antes do mais a ideia de que a causa petendi seja a norma da lei invocada pela parte. A acção identifica-se e individualiza-se, não pela norma abstracta da lei, mas pelos elementos de facto que converteram em concreto a vontade legal. Daí vem que a simples alteração do ponto de vista jurídico não implica alteração da causa de pedir (…). O Tribunal não conhece de puras abstrações, de meras categorias legais; conhece de factos reais, particulares e concretos e tais factos quando sejam susceptíveis de produzir efeitos jurídicos, é que constituem a causa de pedir”.

65. Ainda Anselmo de Castro (em Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, págs. 155/156), há muito que ensinava, bem a propósito do princípio do conhecimento oficioso do direito que traduz-se ele no dever que impende sobre o juiz de examinar a causa sobre todos os pontos de vista jurídico possíveis, movendo-se nesse domínio com toda a liberdade e sem adstrição às razões de direito invocadas pelas partes, não obstante lhes ser aconselhável a respetiva adução. Mais esclarecia que, o referido princípio era “válido quer no respeitante à submissão da matéria de facto à norma jurídica (aplicação normativa), quer no que toca à estatuição e consequências de uma tal subsunção (interpretação)”.

66. Revertendo estes ensinamentos ao caso sub judice, a Recorrente reconduziu o pedido da presente ação ao reembolso pelo Réu da quantia que desembolsou em consequência do acidente dos autos, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, desde a citação até integral e efetivo pagamento.

67. Ora, fosse qual fosse o enquadramento jurídico a dar à questão, o pedido da Autora sempre seria o mesmo: condenar o Réu no pagamento/restituição à Autora da quantia suportada!

68. No que toca à causa de pedir, consiste, em face do disposto no artigo 581.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, no “facto jurídico concreto de que emerge o direito que o autor se propõe fazer declarar”, que não o facto abstratamente descrito na lei!

69. Facto jurídico concreto ou no complexo de factos jurídicos concretos, realmente ocorridos, participantes, portanto, da relação material controvertida invocada pelo Autora na petição inicial, dos quais procede o efeito jurídico pretendido, a pretensão por si deduzida em juízo.

70. E os factos que sustentam o pedido da Autora, não há dúvidas, que foram alegados, como seja, entre outros, a ocorrência de acidente de viação, os veículos intervenientes e respetivos condutores, a qualidade destes, a conduta dos condutores ou dinâmica do acidente, o motivo pelo qual o veículo seguro se encontrava à guarda do Réu, a ausência de seguro de garagista, os danos provocados pelo acidente (qualitativa e quantitativamente) e ressarcimento dos mesmos pela Autora, etc..

71. De modo que, ainda que a Autora tenha enquadrado os factos no disposto no artigo 6.º, n.º 3 e 27.º, n.º 1, alínea f), do DL 291/2007, sempre poderia o Tribunal condenar o Réu e o garagista com base em normativos distintos.

72. Por sua vez, a Autora fundamentou devidamente o pedido de intervenção provocada, invocando a Autora que desconhecia que o Réu não era proprietário da oficina, o que veio apenas a deslindar com a contestação daquele. Nessa medida, mostrando-se que afinal assumia a figura de garagista apenas o pai do Réu, existe a referida responsabilidade solidária entre o garagista e o condutor do veículo, já que é sobre o garagista que recai a obrigação de celebrar um seguro obrigatório prevista no n.º 3 do artigo 6.º do DL 291/2007.

73. Pelo que se mostra legitimo chamar o garagista à presente ação, até para que se aplique ao mesmo os seus efeitos.

74. Por tudo o exposto, a não admissão da intervenção provocada do pai do Réu, o sr. (...), não só decorre de uma incorreta interpretação e aplicação do direito, como denota uma precipitação acerca da decisão de mérito.

75. Violou, assim, o Tribunal a quo a legislação aplicável aos presentes autos, e supra descrita, nomeadamente o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, 32.º, 316.º, n.º 2, todos do C.P.C., e ainda artigos 483.º, 500.º, 503.º e 512.º do C.C..

76. Devendo a decisão em crise ser anulada e substituída por outra que admita a solicitada intervenção principal de (…), na qualidade de co-demandado.»


*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
O recurso foi admitido e foram colhidos os vistos.

4. Questões a decidir
Considerando as conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil (de ora em diante CPC) a questão a decidir é unicamente a de saber se devia ter sido admitido o chamamento de (…).

II. FUNDAMENTOS

1. De facto

Os factos relevantes são os que constam do relatório que antecede.


2. Conhecimento da questão suscitada no recurso
Objeto do recurso é, como vimos, saber se devia ter sido admitida a intervenção principal de (…), requerida que foi pela Autora.

O artigo 316.º do CPC estatui sob a epígrafe “Intervenção provocada”, que:

“1 – Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.

2 - Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.

[…].”

Do assim preceituado ressalta que só pode intervir na ação, assumindo a posição de parte principal, um terceiro que, por referência ao objeto da lide, esteja numa situação de litisconsórcio em relação à parte a que se vai associar.

Ora, o objeto da presente lide, tal como delineado pela Autora na petição inicial, traduz-se no direito de regresso que assiste à Autora nos termos do artigo 27.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.

Como resulta claramente do teor deste preceito (“a empresa de seguros apenas tem direito de regresso…”), trata-se de norma de exceção, que permite à seguradora, uma vez satisfeita a indemnização, exercer o direito de regresso nas situações e contra os sujeitos ali elencados.

A Autora fundou a sua pretensão mais concretamente na alínea f) do aludido preceito, que prevê o direito de regresso contra o incumpridor da obrigação prevista no n.º 3 do artigo 6.º do mesmo diploma, ou seja, contra o incumpridor da obrigação que impende sobre os garagistas e afins de segurarem a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os veículos no âmbito da sua atividade profissional.

Significa isto que réu na ação proposta pela Autora apenas podia ser o garagista que houvesse incumprido a obrigação de segurar a responsabilidade civil decorrente da utilização do veículo sinistrado.

Ora, decorre dos articulados que aquele sobre quem impendia, à data do acidente de viação, a referida obrigação era o pai do réu primitivamente demandado e não este. Na ação era, portanto, o pai do Réu (…) a única parte com legitimidade passiva.

E, sendo assim, não houve preterição de um litisconsórcio que pudesse ser suprido. É que o litisconsórcio caracteriza-se pela pluralidade de partes. Mas na ação proposta pela Autora apenas podia figurar como parte passiva o garagista, ou seja, só o garagista é, do lado passivo, sujeito da relação controvertida, tal como foi configurada pela Autora.

Daí que na decisão recorrida o tribunal a quo refira, muito pertinentemente, que “o que os autos revelam é que a A. demandou como garagista alguém que o não era e, aceite que está pela A. esse lapso, não se poderá considerar haver qualquer litisconsórcio entre o R. (não garagista) e o verdadeiro garagista.

Do que se trataria antes era de sanar uma ilegitimidade evidente, chamando à ação o verdadeiro titular do interesse em contradizer a pretensão da A., à luz da relação jurídica com base na qual esta se apresentou a pleitear.

Ora, como é consabido, só a ilegitimidade plural (preterição de litisconsórcio) é suprível por via do incidente de intervenção. Pelo contrário, a ilegitimidade singular é insanável e constitui exceção dilatória que dá lugar à absolvição do réu da instância, não servindo o incidente de intervenção para sanar casos de ilegitimidade singular «pois, nessa hipótese, o incidente, em vez de permitir a intervenção na lide de um novo sujeito, associado a uma das partes, teria como consequência a substituição de sujeitos processuais, o que a lei não admite» (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-09-2020 (disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 559/20.2T8GMR.G1)”.

Assim o ensina igualmente Abrantes Geraldes[1], quando, a propósito da insanabilidade da ilegitimidade singular, refere: “Se A demanda B quando, afinal, o sujeito da relação material controvertida era C, parece natural que não possa remediar-se a falta do pressuposto processual de legitimidade singular, até porque, de qualquer modo, o processo deveria recuar praticamente ao seu início”.

Defende a Recorrente, porém, que a legitimidade do Réu e daquele que, entretanto, procurou fazer intervir nos autos, resultará do facto de ambos, respetivamente na qualidade de garagista e condutor do veículo sinistrado, responderem solidariamente pelos danos causados a terceiro em consequência do sinistro, já que se encontrariam numa relação comitente-comissário.

Acontece que, como adequadamente vem referido na decisão recorrida e aqui se transcreve, por merecer total concordância:

“A (nova) dedução do pedido contra o R. na qualidade de condutor do veículo, e com base numa suposta responsabilidade solidária com o garagista, implicaria a modificação da factualidade alegada como constitutiva do direito da A., e uma alteração material do pedido formulado, numa inadmissível convolação para relação jurídica diversa da controvertida (cfr. artigo 265.º, n.º 6, do Código de Processo Civil) que, sem acordo expresso entre A. e R. neste sentido (cfr. artigo 264.º, a contrario, do Código de Processo Civil), é vedada pelas normas processuais civis que visam garantir o princípio da estabilidade da instância.

[…]

Mas mais. Ainda que se admitisse ser possível esta alteração objetiva da instância, a norma que a A. invoca (quer na petição inicial, quer no requerimento de 08-07-2024), e que lhe atribui a posição jurídica que pretende ver jurisdicionalmente tutelada (o seu direito de regresso sobre terceiros, por indemnizações que satisfez ao abrigo do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório), não lhe dá o direito de reclamar qualquer pagamento ao condutor do veículo que não esteja numa das situações elencadas nas alíneas a) a e) e g) a i) do artigo 27.º do Decreto-lei n.º 291/2007, ainda que, perante o lesado (e não já perante a Seguradora que indemnizou os danos do lesado), este pudesse ser solidariamente responsável com o garagista.”

Dito de outro modo, ainda que entre o Réu primitivamente demandado e o interveniente que a Autora procurou chamar pudesse configurar-se a relação comitente-comissário, mencionada pelo Réu na contestação, a mesma não podia ser objeto da presente ação. O Autor formulou na petição inicial a pretensão de tutela jurisdicional que visava obter[2], tendo exposto as razões de facto e de direito em que fundamentou tal pretensão, consubstanciados no incumprimento da obrigação de segurar prevista no artigo 6.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 291/2007. Pretender agora uma condenação solidária do primitivo réu juntamente com quem efetivamente terá incorrido no referido incumprimento, sustentado, tudo, numa relação comissário-comitente entre os mesmos, altera o cerne da ação, não consubstanciando, portanto – e ao contrário do defendido pela Recorrente – uma mera diferente subsunção jurídica ou qualificação jurídica diversa.

Não se trata, como sustenta a Recorrente, de uma simples alteração do ponto de vista jurídico. Trata-se, verdadeiramente, de alterar os termos subjetivos e objetivos da ação.

Assim, não obstante a amplitude dos desvios à estabilidade da instância reconhecidos pelo legislador, a alteração dos termos da ação, tal como proposta pela Autora, configuraria verdadeiramente a convolação para relação jurídica diversa da controvertida, vedada pelo artigo 265.º, n.º 6, do CPC.

Por todo o exposto, importa confirmar a decisão recorrida.

3. Custas

Custas pela Recorrente, atento o decaimento (artigo 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC e tabela I-B do Regulamento das Custas Processuais).

III. DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 02 de outubro de 2025
Sónia Kietzmann Lopes (Relatora)

Maria Adelaide Domingos (1ª Adjunta)

José António Moita (2º Adjunto)

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[1] In “Temas da Reforma do Processo Civil”, II volume, Almedina, pág. 67.

[2] Na definição adiantada por Antunes Varela, J. Miguel Beleza e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 243.