DESPACHO DE PRONÚNCIA
ART. 310.º N.º 1 CPP
NULIDADES
FALTA DE ASSINATURA DA ACUSAÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário

Texto Integral


Reclamante: AA (arguido);
Recorridos: Ministério Público e assistente BB ;                      

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I - Relatório
           
AA veio reclamar do despacho do Mmº Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real – Juízo Local Criminal de Vila Real – Juiz ..., datado de 09.08.2021, que não lhe admitiu o recurso por si interposto, por irrecorribilidade, cujo teor é o seguinte:
«Nos presentes autos foi deduzida acusação particular pelo assistente BB contra o arguido AA, que requereu abertura de instrução.
Foi proferida decisão instrutória, pronunciando o arguido pelos factos constantes da acusação particular.
Vem agora o arguido apresentar recurso da decisão instrutória.
O artigo 310.º, do código de processo penal, dispõe:
«1 - A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas.
3 - É recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo anterior».

Em face deste normativo legal, é inadmissível o recurso interposto pelo arguido.

O arguido alega que o artigo 310.º, n.º 1, do código de processo penal, é inconstitucional, no sentido de não ser admissível recurso.
O tribunal constitucional já se pronunciou no sentido de declarar não inconstitucional a norma do artigo 310.º, n.º 1, do código de processo penal, no sentido de não ser admissível recurso da decisão instrutória – cfr. acórdão do tribunal constitucional n.º 30/2001, publicado no diário da república n.º 70/2001, séria II, de 23 de março de 2001.
Pelo exposto, não admito o recurso interposto pelo arguido, por ser inadmissível, nos termos do artigo 310.º, n.º 1, do código de processo penal.
E mais julgo não inconstitucional a norma do artigo 310.º, n.º 1, do código de processo penal».

Na perspectiva do reclamante o recurso deveria ter sido admitido, argumentando, para tanto e em síntese:
1-.A decisão proferida nos autos de instrução pronunciou-se sobre não falta de assinatura da acusação particular, por entretanto ter sido sanada a sua falta.
2- Tal falta de assinatura constitui uma nulidade que foi indeferida em sede de despacho de pronúncia.
3- A rejeição do recurso interposto da decisão instrutória, nomeadamente da parte que conheceu a invocada nulidade, com fundamento no artº 310º, nº 1, do CPP, é violadora dos preceitos constitucionais insertos nos artºs 20.º e 32.º, nº 1, ambos da CRP e do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva.

Pede que seja dado provimento à reclamação, admitindo-se o recurso.

II - Fundamentação

As incidências fáctico-processuais a considerar são as constantes do Relatório I supra e ainda o seguinte:
- Com data de 04.05.2021 foi proferida decisão instrutória na qual se decidiu, além do mais o seguinte:
“I nulidade da acusação particular
O arguido invoca a nulidade da acusação particular, dado que a mesma não contém assinatura.
Conforme dispõe o artigo 283.º, n.º 3, alínea g), do código de processo penal, a acusação tem que conter, sob pena de nulidade, assinatura.
Compulsada a acusação particular enviada por email pelo assistente, constata-se que a mesma não contém assinatura.
Nos termos do artigo 120.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, esta nulidade depende de arguição, até ao encerramento do debate instrutório.
No caso vertente, foi arguida a nulidade no requerimento de abertura de instrução, pelo que foi tempestivamente invocada a nulidade.
Com a junção de acusação particular devidamente assinada, essa nulidade ficou sanada.
Assim, improcede a invocada nulidade da acusação particular deduzida pelo assistente”.
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Decidindo:
Atento o disposto no artº 405º do Código de Processo Penal (CPP), do despacho que não admitir ou retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige, reclamação cujo exclusivo fim é o de impugnar as decisões que não admitem um recurso ou o retenham, estando arredado do respectivo âmbito a apreciação da bondade do despacho recorrido.

Assim, o verdadeiro objecto da reclamação consubstancia-se em saber se se mostram preenchidos os requisitos processuais para que seja recorrível a decisão em crise.
O recurso constitui um meio de impugnação de decisão judicial. Procura-se, através dele, eliminar os defeitos de que eventualmente aquela padeça, submetendo-a a nova apreciação por tribunal superior.
No âmbito do processo penal está consagrado o princípio da recorribilidade (art.º 399º), mas tal não significa que todas as decisões são recorríveis, existindo limites.
A garantia do acesso ao direito e aos tribunais contemplada no art.º 20º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) não implica a generalização do duplo grau de jurisdição, dispondo o legislador ordinário de ampla liberdade de conformação no estabelecimento de requisitos de admissibilidade dos recursos.
Ou seja, ainda que o direito ao recurso esteja expressamente incluído na parte final do n.º 1 do art. 32.º da CRP, não podendo o legislador ordinário abolir na globalidade o sistema de recursos, pode impor limites razoáveis à sua admissibilidade.
É isso que sucede, por exemplo, relativamente aos casos indicados no art.º 400º, n.º 1, do CPC, em que a faculdade de recurso está excluída por lei – veja-se por exemplo a sua alínea g).
Mas, em disposições dispersas pelo CPP existem, além desses, outras situações em que o recurso não é admissível.
O legislador ordinário, ponderando os interesses em jogo e a necessária celeridade do processo, terá optado reflectidamente em limitar o recurso em relação a decisões proferidas em determinadas fases processuais.
É precisamente o caso de a decisão instrutória pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, a qual tornou irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, conforme dispõe o art.º 310º, n.º 1 do CPP, determinando a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
A ratio legis da irrecorribilidade da decisão instrutória configura-se assim com a dupla conformação dos factos vertidos na acusação e na pronúncia.
Neste sentido, veja-se a decisão da Reclamação do TRC, proc. 424/06.0, proferida em 09.02.2006, in dgsi.pt.
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Porém, sendo este o princípio ou regra geral que emana do assinalado artº 310º - o da irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos mesmos factos da acusação, mesmo quanto aprecie nulidades e outras questões prévias e incidentais – ressalvando a nulidade cominada no artº 309º, ex vi nº 3 do artº 310º, o que não se verifica in casu. -            tem-se questionado a nível doutrinal e jurisprudencial a recorribilidade ou não da decisão instrutória quando indefira excepções que obstem ao conhecimento do mérito, designadamente a prescrição do procedimento criminal ou a excepção de caso julgado, por via de tal conhecimento poder configurar caso julgado formal, o que traduziria o cercear do direito ao recurso.
Ou seja, no caso de irrecorribilidade nestes casos, por força do citado artº 310º, deixaria de haver a possibilidade de um tribunal superior de recurso (o Tribunal da Relação) vir a apreciar a referida questão da excepção de caso julgado alegada pelo arguido e indeferida pelo juiz de instrução.
Não é esta a questão que a reclamação suscita - o arguido suscitou a nulidade relativa da falta de assinatura da acusação do assistente (artº 283º, nº 3, al. g), do CPP – entretanto sanada, segundo o despacho recorrido, a qual não é obstativa do conhecimento do mérito da acusação deduzida.
E o juiz de instrução reclamado, entendendo que não se trata dos mesmos factos, indeferiu a arguição de tal caso julgado, pronunciando o arguido/reclamante pelo crime de burla e submetendo-o a julgamento.
Assim, questão pertinente a resolver é a de saber se, à luz dos princípios do Estado de direito democrático e da segurança jurídica, deve considerar-se que forma caso julgado no processo (caso julgado formal) a decisão do juiz de instrução que aprecie a arguição de excepção de caso julgado invocada pelo arguido e a indefira, pronunciando-o, com submissão a julgamento.
Esta questão da formação de caso julgado pela decisão instrutória de pronúncia não é pacífica, nem na doutrina (vide a posição defendida por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª ed. Pág. 783-784, entendendo ser recorrível a decisão do juiz de instrução tomada sobre a excepção de caso julgado por o arguido não poder recolocar a questão na fase de julgamento por vias do caso julgado formado) nem na jurisprudência, desde logo ao nível do Tribunal Constitucional (veja-se as distintas posições plasmadas nos Acórdãos do TC nº 16/09 de 12.05,2009 e nº 482/14, de 25.06.2014).
No primeiro, pugnando-se pela não formação de caso julgado quanto à decisão do juiz de instrução (sobre a aplicação da lei nova – de ser o regime de recursos da decisão instrutória previsto pela Lei nova (redacção do artigo 310.º, n.º 1, do C.P.P., dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto) imediatamente aplicável aos processos pendentes), ao invés do segundo, no qual estava em causa a irrecorrível a decisão do juiz de instrução que se pronunciou sobre as  regras de competência material do Tribunal de Instrução Criminal.

Em suma, volvendo ao caso em análise, podendo configurar-se a formação de caso julgado pela decisão de pronúncia do juiz de instrução (na medida em que considera que os factos vertidos na acusação nestes autos não são os mesmos configurados no despacho de arquivamento), indeferindo a excepção de caso julgado invocada, não poderá deixar de se aceitar que essa decisão de conteúdo autónomo e obstativa do conhecimento do mérito da causa proferida pelo juiz de instrução tem a potencialidade de formação do mesmo caso julgado, não sendo reapreciável pelo juiz de julgamento.
Com efeito, como se sublinha no supracitado Acórdão do TC nº 482/14, “ Os vícios que o juiz de julgamento é chamado a controlar são aqueles que impedem o prosseguimento dos autos ("nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa de que possa desde logo conhecer" - artigo 311.º, n.º 1).
É uma apreciação que se projecta no futuro dos autos, não no seu passado.
Respeitando a mesma lógica, o artigo 338.º, n.º 1 do CPP, dispõe que, no início do julgamento, o tribunal conhece e decide «das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar» (destacado nosso)”.
E in casu poderá inclusive questionar-se (tal como se faz naquele aresto, ainda que sobre a competência material do tribunal ), se é aceitável, à luz da «interordenação constitucional dos tribunais e da sua competência» (v. Acórdão n.º 524/97; v. também o Acórdão n.º 1166/96) que se atribua a um tribunal com o mesmo grau hierárquico (ao juiz de julgamento face ao juiz de instrução) a competência para rever ou reapreciar (mantendo ou alterando) a decisão proferida por outro tribunal da mesma instância que negou a arguição da excepção de caso julgado, ou seja, que a questão decidida não obstava ao conhecimento do mérito da causa.
Saliente-se que é na sequência desta premissa que o juiz de instrução pronuncia o arguido por esses factos (não obstativos do mérito ca causa penal) e o submete a julgamento.
Prosseguindo, na esteira, aliás daquele assinalado Acórdão do TC nº 482/14, uma vez afastada a reapreciação pelo juiz de julgamento da decisão proferida pelo juiz de instrução que conhece da arguição da excepção de caso julgado (formando-se caso julgado formal, portanto), será, então, aceitável que essa decisão não seja sindicável por nenhuma outra instância, designadamente de grau superior?
Como se refere no Acórdão n.º 7/2014 (que aquele aresto cita) «A exigência constitucional de que o julgamento se faça "no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa" (artigo 32.º, n.º 2, da CRP), traz implícita a ideia de que a celeridade do processo penal, sendo um princípio de ordenação eficaz dos meios de realização do poder punitivo do Estado, encontra o seu limite referencial de adequação no sujeito (arguido) que por ele é visado. O que significa que as soluções que nela encontram justificação apenas são constitucionalmente aceitáveis se e na medida em que não afetem relevantemente os direitos do arguido, impedindo ou condicionando de forma desnecessária ou desproporcional o exercício do direito que lhe assiste em nuclearmente se defender da imputação de que praticou um crime».

Porquanto se deixa expendido, na medida em que o artº 310º, nº 1, do CPP, prevê a irrecorribilidade do despacho de pronúncia pelos factos da acusação pública que indefira questão atinente à excepção de caso julgado, obstativa do mérito da causa, como a que foi suscitada pelo arguido/reclamante, é aquela norma inconstitucional, porque violadora do artº 32º, nº 1, da CRP,
Razão pela qual vai atendida a reclamação.
Será, assim, de admitir o recurso, a subir de imediato, em separado e com efeito meramente devolutivo (artºs 406º, nº 2, 407º, nºs 1 e 2, al. i) e 408º, ‘a contrario’, todos do CPP).

III. Decisão

Pelos fundamentos expostos, atende-se a reclamação apresentada, devendo o Tribunal de 1ª instância proferir despacho de admissão de recurso, se não houver outros fundamentos que obstem a tal.
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Sem custas.
G. 24.04.2020


O Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães,


António Júlio Costa Sobrinho