DESPACHO DE PRONÚNCIA
ART. 310º N.º 1 CPP
NULIDADES POSTERIORES
Sumário

Texto Integral


Reclamante: AA (arguido);
Recorrido: Ministério Público;

****
I - Relatório

AA veio reclamar do despacho do Mmº Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Competência Genérica de Esposende, Juiz ..., datado de 20.09.2022, que não lhe admitiu o recurso por si interposto, por irrecorribilidade, cujo teor, na sua parte dispositiva, é o seguinte:
« A fls. 190 a 213, veio o arguido AA interpor recurso da decisão instrutória proferida nos presentes autos.
A decisão instrutória proferida nos presentes autos pronunciou o arguido AA nos termos vertidos da acusação pública deduzida contra aquele arguido, pelo que, nos termos do disposto no artigo 310.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, tal decisão é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais.
Pelo exposto, rejeita-se o recurso interposto pelo arguido AA, por inadmissibilidade legal.
Notifique».

Na perspectiva do reclamante o recurso deveria ter sido admitido, argumentando, para tanto e em síntese, que, o recurso por si interposto é recorrível por se tratar de um despacho posterior à decisão de pronúncia que indeferiu a irregularidade arguida com base na omissão de pronúncia ou a falta de fundamentação da decisão instrutória, em relação às questões levantadas pelo arguido em sede de requerimento de abertura da instrução.

Pede que seja dado provimento à reclamação, admitindo-se o recurso.

II - Fundamentação

As incidências fáctico-processuais a considerar são as constantes do Relatório I supra e ainda o seguinte:
- Com data de 24.03.2022, foi proferido despacho de pronúncia no qual se conheceu das questões suscitadas no requerimento de abertura de instrução e se decidiu o seguinte:
« Para julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular.
Pronunciar o arguido AA, pela prática de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelos artigos 153.º/1 e 155.º/1-a), do Código Penal, como lhe imputa o Ministério Público, dando-se aqui por reproduzida a acusação contra o mesmo deduzida pelo MP (fls. 107/110), nos termos do disposto no artigo 307.º/1 do CPP».
*
Apreciando:
Atento o disposto no artº 405º do Código de Processo Penal (CPP), do despacho que não admitir ou retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige, reclamação cujo exclusivo fim é o de impugnar as decisões que não admitem um recurso ou o retenham, estando arredado do respectivo âmbito a apreciação da bondade do despacho recorrido.

Assim, o verdadeiro objecto da reclamação consubstancia-se em saber se se mostram preenchidos os requisitos processuais para que seja recorrível a decisão em crise.
O recurso constitui um meio de impugnação de decisão judicial. Procura-se, através dele, eliminar os defeitos de que eventualmente aquela padeça, submetendo-a a nova apreciação por tribunal superior.
No âmbito do processo penal está consagrado o princípio da recorribilidade (art.º 399º), mas tal não significa que todas as decisões são recorríveis, existindo limites.
A garantia do acesso ao direito e aos tribunais contemplada no art.º 20º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) não implica a generalização do duplo grau de jurisdição, dispondo o legislador ordinário de ampla liberdade de conformação no estabelecimento de requisitos de admissibilidade dos recursos.
Ou seja, ainda que o direito ao recurso esteja expressamente incluído na parte final do n.º 1 do art. 32.º da CRP, não podendo o legislador ordinário abolir na globalidade o sistema de recursos, pode impor limites razoáveis à sua admissibilidade.
É isso que sucede, por exemplo, relativamente aos casos indicados no art.º 400º, n.º 1, do CPC, em que a faculdade de recurso está excluída por lei – veja-se por exemplo a sua alínea g).
Mas, em disposições dispersas pelo Cód. Proc. Penal, existem, além desses, outras situações em que o recurso não é admissível.
O legislador ordinário, ponderando os interesses em jogo e a necessária celeridade do processo, terá optado reflectidamente em limitar o recurso em relação a decisões proferidas em determinadas fases processuais.
É precisamente o caso de a decisão instrutória pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, a qual tornou irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, conforme dispõe o art.º 310º, n.º 1 do CPC, determinando a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
A ratio legis da irrecorribilidade da decisão instrutória configura-se assim com a dupla conformação dos factos vertidos na acusação e na pronúncia.
Neste sentido, veja-se a decisão da Reclamação do TRC, proc. 424/06.0, proferida em 09.02.2006, in dgsi.pt.

Acresce que o entendimento jurisprudencial plasmado no Assento n.º 6/2000, do STJ (que decidira que “A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais”), se mostra ultrapassado pelas alterações introduzidas pela Lei nº 48/2007, de 29.08, ao apontado artº 310º do CPP, ao optar deliberadamente o legislador pela irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos mesmos factos da acusação, mesmo quanto aprecie nulidades e outras questões prévias e incidentais – ressalvando a nulidade cominada no artº 309º, ex vi nº 3 do artº 310º, o que não se verifica no caso vertente.

Neste sentido a argumentação do reclamante é falaciosa e, salvo o devido respeito, pretende que ‘entre pela janela o que não cabe na porta’.
Com efeito, o artº 308º, nº 1, do CPP, dispõe que no despacho de pronúncia o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.
Assim, regra geral é este o momento em que o juiz de instrução deve pronunciar-se sobre as nulidades suscitadas durante a fase instrutória.
E a decisão sobre estas é irrecorrível, com a ressalva apenas da nulidade prevista no artº 309º, nº 1, do CPP, ex vi do citado artº 310º, nº 1, parte final, do CPP.
Para obstar a tal imposição legal de irrecorribilidade do despacho de pronúncia refere o reclamante o subterfúgio de que o recurso por si interposto se reporta a uma irregularidade da decisão instrutória – falta de fundamentação e omissão de pronúncia quanto a questões por si suscitadas relativas aos elementos objectivo e subjectivo do crime de ameaças e à consciência da ilicitude do mesmo – a qual foi desatendida.
Assim, o que reclamante visa é atacar a própria decisão instrutória, ainda que de forma indirecta, através de posterior requerimento em que invoca alegada irregularidade do despacho pronúncia.
Só que in casu o tribunal reclamado, no âmbito da decisão instrutória, não deixou de pronunciar-se sobre as questões levantadas pelo requerente da instrução, acabando por desatendê-las e pronunciar o arguido.
E motivou para tal a sua decisão.
Atente-se ainda que o julgador não tem de conhecer de razões ou argumentos, mas apenas apreciar questões.
Logo, conhecidas tais questões, atento o disposto no artº 310º, nº 1, do CPP, a decisão instrutória é irrecorrível.
E não é a circunstância de o reclamante, arguido, pretender vir agora repristinar esse factualismo - de que houve omissão e falta de fundamentação sobre os factos ou condutas ameaçadoras constituírem ou não crime e da haver ou não consciência de que o arguido sabia que estava a ameaçar com prática de um crime - que torna recorrível o despacho recorrido com o pretexto de que este determinou o indeferimento da invocada irregularidade da decisão instrutória.
Correcta ou incorrectamente, tais questões foram apreciadas e fundamentadas no âmbito da decisão instrutória.
Deste modo, por força do apontado artº 310º, nº 1, do CPP, sendo pronunciado o arguido pelos factos constantes da acusação do MºPº, é irrecorrível a decisão instrutória, mesmo nessa parte em que aprecia os pressupostos do crime em causa.
Em suma, a decisão instrutória corporiza a comprovação (ou não) judicial da acusação, sendo que a sua irrecorribilidade, quando o arguido é pronunciado pelos factos da acusação do MºPº, é coerente com a natureza da instrução, designadamente na parte relativa à apreciação das nulidades e outras questões prévias ou incidentais.
E a constitucionalidade desta disposição foi reiteradamente sujeita a fiscalização por parte do Tribunal Constitucional, o qual se decidiu sempre pela sua conformidade constitucional (cfr. Acórdãos do TC nºs 216/99, 387/99).
A isto acresce que essa decisão não forma caso julgado sobre as questões relacionadas com a responsabilidade penal do arguido (nomeadamente quanto ao preenchimento dos elementos-tipo do crime ou consciência da sua ilicitude), questões essas que o juiz de julgamento deve sempre apreciar – cfr. ainda o nº 2, do citado artº 310º.
No mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional nos acórdãos n.º 387/2008, n.º 95/2009, n.º 247/2009, nº 482/2014, enquanto considerou que a decisão de pronúncia que incida também sobre nulidades e questões prévias não constitui, sobre elas, caso julgado formal.
Com entendimento similar, vide, entre outros, Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, pág. 1305, o qual, consequentemente, defende que a irrecorribilidade da decisão instrutória prevista no art. 310.º, n.º1, do CPP abrange as decisões proferidas pelo Juiz de Instrução após a prolação da decisão instrutória, que conheçam de nulidades atinentes à mesma decisão instrutória que tiver pronunciado o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público.

Também pelas razões acima explanadas, não se descortina qualquer violação de preceitos constitucionais, mormente dos assinalados artºs 2º, 20º nº1 e 4, 32º nº1 e 4 e 205 nº1 da Constituição, na medida em que não ocorre sequer a interpretação que se pretende extrair das disposições conjugadas dos artºs 97º nº5, 123º nº1, 308º nº1 e 3, 310º nº1 e 399º do CPP, uma vez que, como ficou consignado, não se verifica o pressuposto de omissão de pronúncia ou falta de fundamentação da decisão instrutória no que toca ao conhecimento das questões afloradas pelo arguido no requerimento de abertura de instrução.

Por último, no que concerne à esgrimida questão prévia atinente à alegada circunstância de “o processo ter sido remetido e distribuído ao Juízo Local Criminal de Esposende, antes de ter expirado o prazo de recurso e, como tal, antes, que fosse admitido ou não admitido pelo Juiz de Instrução Criminal titular do processo respectivo o recurso interposto” (sic), deve a mesma ser suscitada junto da instância e procedimento próprios: o juiz de instrução ou o juiz de julgamento.
A presente reclamação destina-se apenas a impugnar o despacho de não admissão do recurso ou a sua retenção.

Porquanto se deixa aduzido, mantém-se o despacho reclamado.

III - Decisão

Pelos fundamentos expostos, desatende-se a reclamação apresentada.

Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em três UC’s.
G. 18.10.2022

O Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães,

António Júlio Costa Sobrinho