CONTRA-ORDENAÇÃO ESTRADAL
CASSAÇÃO DA CARTA
RECORRIBILIDADE
Sumário

Texto Integral


Reclamante: AA (arguido);
Recorrido: Ministério Público;

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I - Relatório

AA vem reclamar do despacho da Srª. Juíza do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Competência Genérica de Cabeceiras de Basto, que não lhe admitiu o recurso por si interposto, por inadmissibilidade, cujo teor é o seguinte:
«Req (ref.ª ...56):
Veio o arguido recorrer para o Tribunal Superior da decisão da 1.ª Instância que manteve integralmente a decisão administrativa de cassação do seu título de condução.

Cabe apreciar da sua admissibilidade.
«O procedimento para cassação da carta de condução, conforme expressamente o refere a lei, é um procedimento administrativo autónomo (cf. artigo 148.º, § 10.º CE), aberto só após o trânsito das decisões das quais resulta a perda de pontos na carta de condução.
(…) a cassação da carta de condução uma decisão administrativa autónoma, decorrente da perda dos pontos de os condutores partem quando obtêm a licença de condução. Sendo ademais óbvio não constituir uma sanção acessória, por como tal não estar prevista em lei anterior, nomeadamente nas normas sancionatórias dos comportamentos que dão origem à perda de pontos. Nem poderia logicamente haver uma «sanção acessória» sem que houvesse uma principal de que aquela dependesse! Mas qual seria ela? Parecendo-nos, em remate, incontroverso que não poderia haver uma «sanção acessória» do jaez que o reclamante arvora, sem como tal estar prevista na lei. Pois uma qualquer (!) «sanção acessória» não prevista em lei prévia sempre seria inconstitucional, por violação do princípio da legalidade das penas - artigo 29.º, § 3.º da Constituição).» (cfr. Ac. Relação de Évora, 07.11.2023, Proc. n.º 124/22.3T8SSB.E1, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
«Foram as referidas condenações em penas acessórias de proibição de conduzir que desencadearam a perda de pontos para efeitos de uma possível cassação do título de condução a que alude a alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do CE. Neste quadro, a cassação da carta de condução surge, portanto, não como uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes como uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas de inibição de conduzir.
Essa cassação decorre de um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o termo da concessão da autorização administrativa para conduzir. O mesmo juízo acarreta a proibição de concessão de novo título de condução por um período de dois anos após a efetivação da cassação, decorrente do n.º 11 do artigo 148.º do CE.» (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 260/2020, de 15mai2020, Cons. Maria de Fátima Mata-Mouros, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

Isto posto, verificamos que a decisão proferida por este tribunal não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas pelo art.º 73.º n.º1 do RGCO, o qual prescreve que «1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:

a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.»

Por conseguinte, ao abrigo do disposto nos art.ºs 73.º do RGCO, 186.º do CE, art.º 400.º nº1 al. g) e 414.º n.º1 do CPP, não se admite o recurso interposto pelo arguido.
Mais se condena o arguido nas custas devidas pela presente instância recursiva (art.º 94.º n.º3 do RGCO) (sem prejuízo de isenção ou dispensa de que beneficie).
Notifique e dn.».

Segundo o reclamante, o recurso deveria ter sido admitido, apresentando, para tanto e resumidamente, além de outros (violação do direito ao recurso, violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, violação do princípio da proporcionalidade, violação do princípio da separação de poderes, falta de fundamentação. necessidade de melhoria na aplicação do direito, nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 73º, nº2 do RGCO), o argumento de que a cassação da carta de condução constitui uma verdadeira sanção acessória e, como tal, a decisão judicial que confirmou a decisão administrativa que a aplicou é recorrível ao abrigo do disposto no artº 73º, nº1, al. b), do Dec-Lei nº 433/82, de 27.10 (RGCO), no sentido de este último admitir também recurso das sentenças proferidas pelos tribunais judiciais em processos de cassação da carta de condução.
Pede que o recurso seja admitido.

Fundamentação:

As incidências fáctico-processuais a considerar são as constantes do Relatório I supra e ainda o seguinte:
- Por decisão judicial de 12.07.2024, o tribunal a quo negou provimento ao recurso da decisão administrativa, mantendo esta na íntegra, a qual determinou a cassação do título de condução do reclamante.
- O teor do requerimento de reclamação.
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O fundamento da presente reclamação alicerça-se, em última análise, no argumento de que o requerimento de interposição de recurso deveria ter sido admitido, nos termos do artº 73º, nº 1, al. b), do Dec.Lei nº 433/82, de 27.10 (RGCO), considerando que a cassação da carta de condução configura uma verdadeira sanção acessória, ante a confirmação de cassação da carta de condução do reclamante.

Vejamos:
Prescreve o citado artº 73º, do mencionado diploma, sob a epígrafe ‘Decisões judiciais que admitem recurso ’que:
1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
(…)

No despacho reclamado esgrime-se que a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que conhece da impugnação judicial da decisão administrativa que ordenou a cassação da carta de condução de que era titular o recorrente não é passível de ser impugnada por via recursiva para o Tribunal da Relação, por não se estar face a qualquer uma das situações taxativamente previstas nos nºs 1 do art. 73º, do RGCO, ao consignar que a cassação da carta de
condução não integra uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas de inibição de conduzir.
Salvo o devido respeito, não se sufraga tal entendimento, perfilhando-se antes os fundamentos plasmados no Acórdão de 20.02.2024 do TRE, proc. Nº 1063/23.6T8OLH.E1, in www.dgsi.pt.
Desde logo, como neste aresto se salienta, remetendo-nos para os acórdãos aí citados, a jurisprudência encontra-se dividida quanto a tal temática - admissibilidade ou não de recurso para o Tribunal da Relação de tal decisão, ou seja, decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que conhece da impugnação judicial da decisão administrativa que ordenou a cassação da carta de condução.
Os defensores da tese da irrecorribilidade arvoram, essencialmente, o argumento de que a cassação da carta de condução, prevista no artº 148º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, não é uma sanção acessória.
Daí que, como defendem, a decisão do tribunal, proferida em sede de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que decretou aquela cassação, confirmando-a, não é recorrível para o Tribunal da Relação por não constar literalmente do elenco das decisões judiciais que admitem recurso para a relação, previsto no artº 73º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, aplicável ex vi do artº 132º do CE.
Todavia, tal como pugnado no Acórdão n.º 425/2019, de 10/07/2019, do Tribunal Constitucional (o qual se pronunciou sobre esta questão, decidindo no sentido da recorribilidade), apesar de o Regime Geral das Contraordenações não referir expressamente que a decisão judicial que confirma a decisão administrativa que decretou a cassação do título de condução é recorrível para o Tribunal da Relação - tal recorribilidade «constitui a única interpretação teleologicamente sustentável dos preceitos legais aplicáveis no caso.
Veja-se que, conforme notado supra, a cassação do título de condução encontra-se umbilicalmente ligada a condenações anteriores [in casu, condenações por infracções rodoviárias múltiplas], no âmbito das quais são, obrigatoriamente, impostas sanções acessórias de inibição de conduzir (ou, no âmbito do processo penal, injunções ou penas acessórias), sendo o decretamento da cassação do título de condução a “sanção final”, resultado do somatório de todas elas, ou, mais rigorosamente - e em face do sistema atual - da subtração dos pontos correspondente a cada uma delas.
Não há dúvida, pois, de que a letra do preceito constante do artigo 73.º, n.º 1, al. b) do Regime Geral da Contraordenações ficou aquém do espírito da lei, situação a que não será seguramente estranho o facto de nos encontramos perante um regime que remonta ao ano de 1982 – Decreto-Lei n.º 733/82, de 27 de outubro – e o Código da Estrada, que introduziu a figura da cassação, ter sido aprovado doze anos mais tarde.
Trata-se, portanto, de um caso em que se impõe «[a]larga[r] ou estende[r] então o texto, dando-lhe um alcance conforme ao pensamento legislativo, isto é, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei. Não se tratará de uma lacuna da lei, porque os casos não diretamente abrangidos pela letra são indubitavelmente abrangidos pelo espírito da lei» (cf. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Coimbra, 2000, pág. 185 e 186).
Veja-se que a interpretação extensiva se limita a clarificar o pensamento legislativo de determinada norma, em situações de redações excessivamente restritas, e não a aplicá-la a casos que ela não antecipou, como sucede, por exemplo, no processo analógico.
Na realidade, a única interpretação possível do referido normativo é, precisamente, aquela que permite o recurso para o Tribunal da Relação da decisão de primeira instância que confirma a decisão administrativa que decreta a cassação do título de condução, a qual consubstancia, sem qualquer dúvida, a medida mais severa prevista em todo o Código da Estrada. Com efeito, mal se compreenderia que se admitisse recurso de uma decisão judicial que confirma a condenação de uma sanção acessória de inibição de condução pelo período de um mês e não se admitisse o recurso de uma decisão judicial que confirma a cassação do título de condução, determinando a perda definitiva do título de condução de que o infrator é titular, bem como a interdição, pelo período de 2 anos, da faculdade de obtenção de novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria.
Na realidade, só esta interpretação – imposta, não por um argumento de identidade de razão, mas a fortiori – se apresenta congruente com o espírito do sistema, correspondendo à única solução concordante com a teleologia subjacente à previsão do recurso, para o Tribunal da Relação, da «condenação do arguido» que «abran[ja] sanções acessórias», independentemente do valor da coima; isto é, com o facto, incontornável, de tais sanções consubstanciarem uma restrição de direitos fundamentais (cf. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contraordenações Anotações ao Regime Geral, Viseu, Vislis Editores, 3ª edição, janeiro de 2006, p. 476).
Esta é, também, a única interpretação conforme com a Constituição – designadamente com o princípio da tutela jurisdicional efetiva –, que constitui um dos critérios fundamentais ao nível da determinação do sentido da letra da lei. Com efeito, «se uma interpretação, que não contradiz os princípios da Constituição, é possível segundo os demais critérios de interpretação, há de preferir-se a qualquer outra em que a disposição viesse a ser inconstitucional. A disposição é então, nesta interpretação, válida. Disto decorre, então, que entre várias interpretações possíveis segundo os demais critérios sempre obtém preferência aquela que melhor concorde com os princípios da Constituição. “Conforme à Constituição” é, portanto, um critério de interpretação» (Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, 2.ª edição, 19, pág. 411).
(...)».
É, assim, recorrível a decisão judicial, à luz do disposto no artº 73º, nº 1, al. b), do RGCO pelos distintos fundamentos acima expostos, ficando prejudicado o conhecimento dos demais suscitados.

Porquanto se deixa aduzido, atende-se a reclamação.

III. Decisão

Pelos fundamentos expostos, atende-se a reclamação apresentada, devendo tribunal de 1ª instância admitir o requerimento de interposição de recurso nos termos e para os efeitos consignados no artº 73º, nº 1, do RGCO.

Sem custas.
Guimarães, 08 de Outubro de 2024.


O Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães,

António Júlio Costa Sobrinho