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REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO
PRÁTICA DE NOVO CRIME
SUPERVENIÊNCIA DE ANOMALIA PSÍQUICA GRAVE
PERIGOSIDADE
MODO DE EXECUÇÃO DA PRISÃO
Sumário
I – O Código de Processo Penal não contém norma expressa sobre a questão da incapacidade do arguido em virtude de anomalia psíquica, de participar com plena autonomia e esclarecimento no processo criminal; II – Não obstante, não há que recorrer no processo penal, ao conceito de capacidade judiciária previsto no artigo 15.º do Código de Processo Civil, por inexistir lacuna que deva ser colmatada nos termos do artigo 4.º do Código de Processo Penal; III - Não há, assim, consequentemente, que nomear um qualquer curador provisório do arguido para o processo sendo este sempre representado pelo seu Defensor sob pena de nulidade - artigo 64.º, n.º 1, d) do Código de Processo Penal; IV- Se durante o período da suspensão da execução da pena de prisão, o arguido que não foi declarado inimputável no processo aquando da sua condenação, tiver cometido um novo crime deverá ser aplicado o regime previsto nos artigos 56.º e 57.º do Código Penal só podendo ser declarada extinta a pena, se «decorrido o período da sua suspensão, não houver motivos que possam conduzir à sua revogação», mesmo que o mesmo padeça de anomalia psíquica grave no momento dessa avaliação; V – A superveniência de uma anomalia psíquica grave ao condenado, com alto grau de perigosidade, não constitui fundamento para a extinção da pena, devendo o tribunal ponderar, no caso de entender revogar a execução da pena de prisão, se deve ou não ser aplicado o disposto no artigo 105.º do Código Penal quanto ao cumprimento da pena. VI – Não está agora em causa a questão de saber se em relação aos factos pelos quais foi condenado o arguido, o mesmo deve ou não ser considerando inimputável, face ao trânsito em julgado da decisão condenatória, interessando sim saber se desde a prática dos factos, sobreveio ao agente, uma grave anomalia psíquica posterior com perigosidade para efeitos de eventual aplicação do disposto no artigo 105.º do Código Penal. Por outras palavras, não está em causa a inimputabilidade do arguido, mas o modo de execução da pena de prisão se a suspensão vier a ser revogada face à nova condenação; VII - Na ponderação da aplicação do regime previsto no artigo 105.º do Código Penal, não pode o Tribunal estar dependente de qualquer condicionamento de entidades administrativas, sob pena de se colocar em causa o próprio exercício das suas funções enquanto órgão de soberania constitucionalmente consagrado.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
A) Relatório:
1) No Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Barcelos, processo n.º 57/17.5GBBCL foi proferido Despacho, datado de 08/03/2025, que decidiu “nos termos do artigo 57.º, n.º 1, do Código Penal, declarar extinta a pena de prisão aplicada nos presentes autos a AA”.
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2) Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o Ministério Público o presente recurso, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
1. Recorre-se do despacho proferido em 8 de março de 2025 que, considerando decorrido o prazo da suspensão da execução da pena aplicada ao arguido, a declarou extinta nos termos do artigo 57º, nº 1, do Código Penal; 2. Isto, não obstante ter sido condenado, por acórdão de 6 de janeiro de 2023, transitado em julgado em 25 de janeiro de 2024, e por factos de 9 de dezembro de 2018, como autor de um crime de violação e de um outro de sequestro, numa pena única de 5 anos e 10 meses de prisão; 3. Visando a ponderação da eventual revogação da suspensão da pena de que beneficiava, foi determinada a audição presencial do arguido. Tendo-se suscitado dúvidas sobre a sua capacidade para estar em juízo e, ademais, em perceber o alcance da condenação, foi determinada a realização da pertinente perícia psiquiátrica; 4. E, realizada, concluiu a Ex.ma perita que o arguido apresentava então défices cognitivos que, embora ligeiros, impactavam significativamente áreas cognitivas chave do que resultaria a ausência de uma capacidade íntegra “para compreender o alcance e conteúdo do ato de julgamento e uma ausência de discernimento íntegro para compreender as finalidades e o sentido de uma pena”; concluindo que esses défices traduziam a ausência de critérios cognitivos mínimos, retirando-lhe a capacidade de entender o processo criminal e de assistir advogado na sua própria defesa; 5. Foram pedidos esclarecimentos adicionais à perícia, questionando-se, especificamente, se o arguido sofria de anomalia psíquica e, na afirmativa, qual, e, neste caso, se a verificada o tornava, na atualidade, incapaz de avaliar a ilicitude dos factos (sendo por isso inimputável) ou se, mantendo tal capacidade, a mesma se encontrava sensivelmente diminuída; e se havia risco de vir a cometer factos da mesma natureza e, na afirmativa, em que é que se fundava, concretamente, tal juízo de perigosidade; 6. Em relatório complementar, concluiu a Ex.ma Perita, quanto às primeiras duas questões: que “os elementos clínicos recolhidos de peças documentais constantes nos autos e dos registos clínicos prévios, a observação psiquiátrica nos dias 30/07/2024 e 7/08/2024 e avaliação neuropsicológica sumária realizada a 7/8/ 2024 são consonantes com um quadro de Declínio Cognitivo Ligeiro, de predomínio Frontal, codificado com F06,7, segundo a CID 10, enxertado numa atrofia multissistémica tipo parkinsónico”; 7. A Ex.ma Perita não esclareceu, podendo fazê-lo, se tal anomalia psíquica o tornava incapaz de avaliar a ilicitude dos factos (sendo por isso inimputável) ou se, tendo tal capacidade, ela se encontrava sensivelmente diminuída; 8. Sucede a questão de saber se o arguido tem ou não capacidade para estar em juízo e quais as consequências da sua eventual falta, apenas se poderia colocar, de modo assertivo, caso se concluísse que se mantém imputável; 9. E daí a subsequente promoção para que fosse realizada perícia complementar, em ordem a apurar se padecia, na atualidade, de anomalia psíquica com os efeitos previstos no artigo 91º (por força do artigo 105º, n.º 1), do Código Penal, e se havia ou não fundado receio de que viesse a cometer outros factos da mesma espécie; 10. Todavia, decidiu o M.isso considerar definitivamente assentes os factos constantes no relatório pericial de 4 de setembro de 2024 e no complementar de 25 de fevereiro de 2025 – assim a indeferindo tal promoção; 11. E, propondo-se aferir se o condenado tinha ou não capacidade processual, com a densidade que, entre outros, lhe aponta Pedro Soares de Albergaria” (in “Anomalia Psíquica e Direito - Colóquio Comemorativo dos 20 Anos da Entrada em Vigor da Lei de Saúde Mental ), concluiria “que o condenado é processualmente incapaz, atendendo à anomalia psíquica de que é portador, a qual o impossibilita de exercer a sua autodefesa; 12. E por isso que não era possível aplicar-lhe qualquer medida de segurança, desde logo porque tal violaria o disposto na parte final dos artigos 29º n.º 1; 30º n.º 2, e 32º n.º 3, da Constituição da República Portuguesa; 13. Ora, o M.isso Juiz não retirou qualquer consequência substantiva dessa consideração - configurando-a, por exemplo, como causa atípica excludente da responsabilização criminal do condenado, ou processual, como o seria a determinação do arquivamento dos autos enquanto consequência exclusiva dessa sua incapacidade processual -, decidindo, ao invés, declarar extintaa pena de prisão aplicada, por ter considerado que, entretanto, havia decorrido o decretado prazo de suspensão; 14. Reclama-se, do que não foi feito da referida perícia - aliás em desobediência ao que o M.isso Juiz havia ordenado e que depois deixou passar em claro; 15. Especificamente havia sido perguntado à Ex.ma Perita se o arguido sofria de anomalia psíquica e, na afirmativa, qual, e, neste caso, se a verificada o tornava, na atualidade, incapaz de avaliar a ilicitude dos factos (sendo por isso inimputável) ou se, mantendo tal capacidade, a mesma se encontrava sensivelmente diminuída, mais se lhe perguntando se havia risco de vir a cometer factos da mesma natureza e, na afirmativa, em que é que se fundava, concretamente, tal juízo de perigosidade; 16. Ora, respondendo que o arguido sofria de anomalia psíquica (consistente em declínio cognitivo ligeiro, de predomínio frontal) não respondeu ao segundo quesito que visava saber se essa eventual anomalia psíquica o tornava incapaz de avaliar a ilicitude dos factos (sendo por isso inimputável) ou se, tendo tal capacidade, ela se encontrava sensivelmente diminuída; 17. E isto, não obstante conhecer os atos praticados pelo arguido e a razão da sua condenação, bem como a data e os demais dados de contexto em que os havia sido praticado; 18. A perícia não cumpriu, destarte, o propósito que norteou a decisão de a realizar, circunstância que, se bem se avalia, vicia fatalmente a decisão de que se recorre; ficando assim por saber se padece ou não de anomalia psíquica que o torne, na atualidade, incapaz de avaliar a ilicitude dos factos (sendo por isso inimputável) ou se, mantendo tal capacidade, a mesma se encontrava sensivelmente diminuída, embora tenha, apesar de tudo, considerado que é alto o receio de que venha a cometer outros factos criminosos; 19. Este não ajuizamento, colide, com a asserção vertida no relatório pericial (que aliás continha um precipitado essencialmente coincidente com o juízo de inimputabilidade previsto no artigo 20º, n.º 1, do Código Penal) - através da qual se afirma que a anomalia psíquica divisada no condenado o impedia de compreender o alcance e conteúdo do ato de julgamento e uma ausência de discernimento íntegro para compreender as finalidades e o sentido de uma pena; 20. A questão reside em saber se se pode decidir, positiva ou negativamente, sobre a revogação da suspensão da pena aplicada sem antes se apurar se o condenado é ou não inimputável; 21. É que na afirmativa, sendo declarada a efetividade de pena, deve o tribunal ordenar o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis, nos termos do artigo 105º, n.º 1, do Código Penal, por referência ao seu artigo 91º, n.º 1; 22. Daí a relevância de saber se o condenado é ou não inimputável, e, sendo, se é ou não perigoso; 23. Por outro lado, e salvo o devido respeito, não pode, quanto à existência e alcance da figura da capacidade/incapacidade processual penal do arguido, colher o argumento retirado do artigo 32º, n.º 3, da Constituição da República; 24. É que a norma postula apenas que o arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os atos do processo e não que ele próprio tenha capacidade para compreender o processo penal, assumir a sua autodefesa ou auxiliar o advogado escolhido ou nomeado; 25. Aceita-se que o sentido material do preceito poderá abranger a possibilidade de o arguido ser capaz de participar ativamente na sua defesa; 26. Essa interpretação tem, todavia, seguramente, um limite material: não pode impedir o julgamento dos inimputáveis e, quando necessária, a aplicação de medidas de segurança, ainda que aqueles não compreendam as lógicas do processo penal e sejam, as mais das vezes, incapazes de assessorar os advogados na sua defesa; 27. A ser de outro modo, teríamos que os incapazes de avaliar a ilicitude dos seus factos e sem capacidade para entender o processo criminal e de assistir o advogado na sua própria defesa, não seriam penalmente perseguidos nem contidos e tratados, mesmo que perigosos ou muito perigosos; 28. Note-se, a latere, que nos arestos citados no despacho recorrido não estavam em causa situações posteriores à sentença condenatória que infligisse penas de prisão – situações em que o que está em causa são problemas essencialmente relativas à execução, cuja exigência e densidade defensiva é bem menor; 29. De resto, o sentido das decisões do TEDH, citadas no despacho recorrido e tiradas com base no artigo 6º da CEDH, visa apenas garantir que, em certos casos, a representação por defensor de arguido sem capacidade processual pode não ser suficiente para assegurar um “fair trial” e não que esta incapacidade processual implique, sempre, a impossibilidade de o responsabilizar; 30. De outra sorte, a doutrina e jurisprudência citadas, chegam aos precipitados em causa (incapacidade processual, incapacidade da autodefesa e auxílio ao advogado na defesa), enquanto figuras atípicas, sem consagração penal ou processual penal, obtendo-os por via analógica. 31. E assim, ao lado das demais causas de extinção da responsabilidade criminal, previstas no Título V, do Capítulo II do Código Penal, prefigura-se, por via analógica, uma outra diretamente resultante da incapacidade processual do arguido. 32. Mas juga-se, à vista do que dispõe o artigo do 10º do Código Civil, que não pode ser; 33. De todo o modo, e por aqui o essencial, é que o M.isso Juiz, concluindo, com base nos relatórios periciais, que o condenado era processualmente incapaz, não retirou do facto qualquer consequência. Ou seja, não decretou, com base nele, o arquivamento do processo ou a sua suspensão nem isentou, de outra forma, aquele do eventual cumprimento efetivo da pena; 34. E, no que concerne ao decurso integral do prazo de suspensão da pena e à determinação da sua extinção, como já se viu, o M.isso Juiz, considerou decorrido o prazo de suspensão da execução da pena de prisão aplicada e, por via disso, nos termos do artigo 57º, nº 1, do Código Penal, declarou extinta a pena de prisão que havia sido aplicada ao condenado; 35. Ora, como resulta do artigo 51º, n.º 2, do Código Penal, concluído o período da suspensão, a pendência de incidente por incumprimento dos deveres, regras de conduta ou doplano de reinserção, ou a pendência de processo por crime que possa determinar a sua revogação, evitam a extinção da pena pelo decurso do período de suspensão; 36. Sucede que, estando pendente processo que pode levar - e deveria levar - à revogação da pena de prisão suspensa de que o arguido beneficiava, não pode considerar-se decorrido o prazo de suspensão da execução - até porque a pena não prescreveu; 37. A decisão é assim, neste conspecto, ilegal, já que viola o disposto nos artigos 56º, n.º 1, al. b) e 57º, n.º 2, do Código Penal. 38. Por outro lado, para lá de se não mostrar, nas partes acimas indicadas, fundamentada - mormente quanto à decisão de não obter da perícia indicação quanto à eventual inimputabilidade do arguido nos termos do estatuído no artigo 97°, nº 5, do Código Processo Penal - viola, por erro de interpretação, o disposto no artigo 32º, n.º 3, da Constituição da República, bem como, e pela mesma razão, o artigo 6ª da CEDH; 39. E, bem assim, pode violar o que se dispõe nos artigos 20º, 105º, n.º 1, e 91º, n.º 1, do Código Penal, e no artigo 10º do Código Civil.
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3) Notificado do requerimento de interposição de recurso o arguido não respondeu.
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4) O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416.º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Senhor Procurador – Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado procedente.
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5) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não apresentou resposta.
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6) Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
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Cumpre apreciar e decidir.
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B) Fundamentação:
1. Âmbito do recurso e questões a decidir:
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, face ao disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”; são, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, nº 3, do mesmo diploma legal)[1].
No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelo Ministério Público, a questão a decidir é a de saber se em face da anomalia psíquica superveniente e da consequente incapacidade processual, deve ou não ser a pena de prisão suspensa em que foi condenado ser declarada extinta, apesar da existência de uma condenação por factos praticados durante o período da suspensão.
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2. O Despacho recorrido (transcrição parcial no que aqui releva):
Naquilo em que a mesma releva para o conhecimento do objeto do recurso, é o seguinte o teor do despacho impugnado:
“Cumpre decidir. 1. Antes de mais, importa atentar ao disposto no art. 163.º, n.º 1, do Código Penal: «O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador». Não resultando da posição esgrimida pelo Ministério Público manifesta divergência em relação ao juízo realizada pela Ex.mª Perita, e sem que eventual discordância em relação à perícia se mostra cientificamente fundamentada, consideramos definitivamente fixados os factos que resultam da aludida perícia e respectivos esclarecimentos. 2. Como questão preliminar à ponderação da eventual revogação da suspensão da pena aplicada nos presentes autos, em razão da comissão de novos crimes, importa aferir se o condenado tem capacidade processual. Seguindo de perto Pedro Soares de Albergaria” (in “Anomalia Psíquica e Direito – Colóquio Comemorativo dos 20 Anos da Entrada em Vigor da Lei de Saúde Mental”, coordenação de Maria João Antunes, edição do Instituto Jurídico da FDUC, 2020): «a capacidade processual, não concetualizada na nossa lei, nada tem que ver imediatamente com o facto criminoso, o qual só lhe importa em termos mediatos: enquanto razão de ser de instauração de processo-crime. Quer dizer, a capacidade processual é a aptidão do arguido para exercer pessoalmente a sua defesa independentemente da questão de se saber se no momento da prática do facto era ou não suscetível de um juízo de culpa. Em termos tais que a pessoa será processualmente incapaz quando, em razão de anomalia, não tenha condições para, no momento em que tenha de intervir no processo e ao longo dele, providenciar por uma defesa inteligente e inteligível” (negrito e sublinhados nossos). Por seu turno, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 06/11/2024, proferido no processo n.º 32/23.0PBCTB.C1, discernindo sobre a diferença entre a inimputabilidade e a incapacidade processual, explicita-se: «… se a inimputabilidade se refere ao momento da prática do facto, nos termos do art. 20º, n.º 1, do Código Penal, a incapacidade processual respeita ao momento da intervenção processual. // Dito de outra forma: a inimputabilidade é a falta de capacidade para «avaliar a ilicitude do facto e de se determinar por essa avaliação», sendo necessariamente referida ao passado (momento da prática do facto), enquanto a incapacidade judiciária “toma como referência já não o facto descrito como crime, mas os termos do processo em que se discute a responsabilidade pelo seu cometimento, devendo ser aferida a cada momento (ou, pelo menos, ao momento decisivo) em que, no processo, a defesa se exerce”», concluindo que: «Em suma, a nossa legislação penal e processual penal é totalmente omissa quanto à solução processual que caberá tomar em caso de incapacidade processual do arguido ocorrida posteriormente à prática dos factos» (negrito e sublinhados nossos). Conclui-se, assim, no predito acórdão que - face aos preceitos constitucionais (art. 32.º da CRP) e legais (art. 61.º, n.º 1, do Cód. Processo Penal), bem assim como dos instrumentos jurídicos internacionais a que o Estado Português se encontra vinculado (art. 6.º da CEDH) - não é possível suprir a aludida incapacidade judiciária do arguido com recurso às normas do processo civil…». Acrescenta-se no referido aresto que «…a pessoalidade do direito de defesa do arguido, e a correspondente refração no efetivo respeito pela correspondente dignidade, afasta de todo a hipótese de ser exercido por outrem, não sendo equiparável ao exercício de direitos civis: aqui está em causa a possibilidade de condenação em pena de natureza criminal, incluindo a sua liberdade física» (negrito e sublinhados nossos). Ainda, em complemento do expendido, refere-se no acórdão citado a evolução histórica do tratamento da incapacidade judiciária do arguido nos Códigos Penal de 1852 e de Processo Penal de 1929, acrescentando um argumento teleológico: «…quando o n.º 3 [do art. 32.º da CRP] prevê o direito do arguido a escolher um defensor, e não apenas um direito a assistência de defensor, a Lei Fundamental erige o arguido em verdadeiro sujeito do processo, com direito a organizar a sua própria defesa – sendo certo que se o arguido não exercer o seu direito de escolha do defensor, a tutela processual objetiva dos seus direitos será no plano técnico, e só nesse, garantida através da nomeação de defensor oficioso (art. 64º do Código de Processo Penal). // O que não dispensa a intervenção pessoal do arguido: é o arguido o titular do direito de defesa, não o defensor; é ao arguido, não ao defensor, “que cabe dirigir a sua defesa, em termos tais que se defesa técnica e defesa pessoal são entre si complementares, a primeira está ao serviço, é instrumental, ancilar, relativamente à segunda e, por decorrência, aquela não pode exaurir ou consumir esta”. Assim, “a lei prevê como suscetíveis de preencherem o núcleo da defesa pessoal do arguido um compacto conjunto de direitos a exercer pessoalmente por ele, ainda que coadjuvado ou aconselhado pelo defensor… que visa garantir, em conformidade com a feição acusatória do processo, uma efetiva intervenção, e intervenção conformadora, do arguido no que tange ao desfecho do processo e, assim, ao seu destino”. // Sucede que para exercer os direitos que lhe assiste, o arguido tem de ser capaz de entender e compreender as acusações que lhe são dirigidas, e interagir em conformidade, o que tudo é condição de satisfação da exigência de que a defesa assente na sua própria vontade» (negrito e sublinhado nossos). Conclui-se, assim, no dito aresto, citando também Pedro Soares de Albergaria, que «o critério para aferir da capacidade do arguido para estar em juízo só pode ser um: o de estarem ou não reunidas as condições de o arguido exercer pessoalmente a sua defesa. Da mesma forma que, como refração do direito constitucional à autodefesa, a quem é arguido é reconhecida, como princípio, a capacidade de praticar todos os atos processuais próprios dessa condição, sem que quem quer que seja o represente em coisa tão decisiva para o seu destino, também onde lhe faltem condições de saúde mental cuja verificação é pressuposto necessário da organização da própria defesa, nos termos sobreditos, terá de concluir-se que ele não pode ser submetido a julgamento.” E conclui da seguinte forma: “ter ou não capacidade para estar em juízo é ter ou não condições para se autodefender”. // … // Naturalmente que não basta que o arguido seja portador de uma qualquer anomalia psíquica, impondo-se concluir, em concreto, que tal anomalia, pela sua gravidade, afeta de forma sensível as capacidades intelectuais e de raciocínio do arguido, a ponto de lhe impossibilitar o exercício da autodefesa». Este entendimento, de resto, como assinalado no referido acórdão, vem sendo sufragado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, designadamente nos casos T. e V. vs. Reino Unido (1999), S. e C. vs. Reino Unido (2004) – onde se afirmou que a representação por defensor de arguido sem capacidade processual pode não ser suficiente para assegurar um “fair trial” à luz da CEDH, concluindo que um arguido, em razão da sua menoridade e também do seu estado mental não tem condições para “participar efetivamente” no processo, “em especial não tinham condições para cooperar em termos suficientes com os seus defensores, providenciando-lhes informação preordenada à sua defesa” e S.C. vs. Reino Unido, onde se pressupõe os direitos do arguido de estar presente e ouvir e acompanhar o processo, o que exige “que o arguido tenha uma compreensão ampla da natureza do processo e do que está em jogo para a sua pessoa, incluindo o significado de qualquer pena que lhe possa ser imposta” (o TEDH enunciou outros direitos do arguido, nomeadamente “a acompanhar o que é dito pelas testemunhas de acusação” e ainda a, “se representado, apontar ao advogado as declarações de que discorda, explicar-lhe a sua versão dos factos e dar-lhe conhecimento dos que devam ser apresentados em sua defesa”). No citado aresto, acolhe-se ainda o comentário de Paulo Pinto de Albuquerque: “Especiais cautelas justificam-se no julgamento de pessoas com anomalia psíquica (acórdão Vaudelle v. França, de 30.1.2001)…, de modo a garantir uma efetiva participação destas no julgamento. Participação efetiva para este efeito significa que o arguido tem uma compreensão do que se está a passar na audiência e das consequências do que nela é dito e pode interferir, fazendo valer a sua versão dos factos, se necessário com a assistência de um familiar, amigo, psicólogo ou técnico social”. No caso sub judice, e de acordo com a perícia médica realizada, resulta que o arguido AA não detém «… critérios cognitivos mínimos para que o examinando tenha capacidade de entender o processo criminal e de assistir o advogado na sua própria defesa», deixando-se claro que o mesmo não tem capacidade de estar por si só em juízo, posto que não tem capacidade de compreender o motivo de estar neste processo nem de entender e de ser influenciado pelas penas que possam vir a ser determinadas, nem de preparar a sua defesa (- acrescentou-se nos esclarecimentos que «… atendendo à natureza geralmente progressiva e inexorável dos processos demenciais, considerando no caso concreto o diagnóstico neurológico de atrofia multissistemica tipo parkinsónico (de natureza progressiva), consideramos que tal colide com a restauração da competência do examinando, porquanto se antevê agravamento progressivo da incapacidade cognitiva (e não uma recuperação)». Conclui-se, assim no relatório pericial, que a situação do arguido é de carácter definitivo (não transitório ou acidental). Ora, tendo-se apurado que o arguido é processualmente incapaz, atendendo à anomalia psíquica de que é portador, o que o impossibilita de exercer a sua autodefesa – única forma de cumprir os princípios da autodefesa, da dignidade do arguido e da integridade ou dignidade do próprio processo, de acordo com a Constituição da República Portuguesa e os instrumentos internacionais referidos, à luz dos quais devem ser interpretados e integrados os preceitos processuais penais – fica prejudicada, sequer, a possibilidade de lhe ser aplicada uma qualquer medida de segurança, desde logo por tal violar o princípio estabelecido na parte final do n.º 1 do artigo 29.º, n.º 2 do artigo 30.º e n.º 3 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa. A aplicação de uma medida de segurança, como resulta dos mencionados preceitos constitucionais, interpretados à luz das normas de direito internacional e a que o Estado Português se mostra vinculado, bem assim como da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), depende não só da possibilidade de defesa já mencionada mas, ainda, da constatação de que a aplicação de tal medida de segurança tem alguma eficácia terapêutica ou que, existindo um alto juízo de perigosidade, a contenção do visado não possa ocorrer em meio aberto (ou, pelo menos, em condições menos restritivas) e, por outro lado, aconteça em condições de segurança, não só para a comunidade, mas também para o próprio internando. Porém, aqui chegados, logo se constata que o arguido, além de se manter numa situação de indefesa (em razão da sua incapacidade processual), não pode (porque o Estado não garante a possibilidade de internamento em condições conformes com a dignidade da pessoa humana, que também é devida ao ora visado) ser sujeito a uma medida de segurança privativa da liberdade (tal como frisado na avaliação que de seguida se voltará a transcrever) – única cuja aplicação se justificaria, de sorte a aplacar o risco de perigosidade denotado. Isto mesmo decorre da Informação clinica dos Serviços Clínicos do Estabelecimento Prisional ... transcrita no relatório pericial: Refere-se nessa informação que, em relação ao condenado AA, «O meio prisional funciona, contudo, como factor de agravamento do estado clínico geral do doente e terá, certamente, um efeito pernicioso e potencialmente de risco do agravamento da sua doença parkinsónica. Face ao disposto e concluindo considero que: atendendo à doença vertente, às demais doenças crónicas e ao factor idade a modalidade que mais se ajusta ao cumprimento da pena será, certamente, a prisão domiciliária ou a institucionalização em unidade de saúde de cuidados continuados; porquanto é a que permite garantir condições de prestação de cuidados diferenciados permanentes, conforme a sua patologia exige, no sentido de retardar, o mais possível, a sua evolução inevitável (por ex. recorrendo a terapêuticas de estimulação cognitiva e motora e outras); as condições do meio prisional não dispõem, de todo, de condições para aprestação desse tipo de cuidados atendendo a que não há profissionais diferenciados para a realização desse trabalho alocados aos EPs nem recursos materiais para tal; sendo que o hospital de retaguarda, o Hospital Prisional de ... não dispõe da mínima capacidade de resposta para estas e outras necessidades até mais singelas…» (sublinhado e negrito nossos). Ora, sendo inviável a aplicação de uma medida de segurança de internamento e inexistindo, no nosso ordenamento, outra medida de segurança capaz de garantir, numa espécie de concordância prática, os cuidados de saúde que o condenado requer e a segurança da comunidade, a única solução que se nos afigura constitucionalmente conforme, no presente caso, será o de extinguir a pena (com a nota que, entretanto, já há mais de um ano que ocorreu o termo do período de suspensão) Por outro lado, como refere Pedro do Carmo, ainda que para a detecção da anomalia numa fase pré-sentencial (“Anomalia Psíquica e Processo Penal: Breve Retrato de uma Encruzilhada” (in Revista Julgar, n.º 50 – 2023): «no caso do arguido que padeça de anomalia psíquica irreversível que o tenha tornado incompetente para ser julgado, na medida em que não é expectável que, no futuro, tais circunstâncias se venham a alterar, a suspensão do processo não passará de um ato inútil, de um mero exercício de ficção, próprio de um justiça que privilegia a forma sobre a substância – e, se assim é, como nos parece ser, então, tomando de empréstimo a elucidativa síntese conclusiva o arquivamento do processo nos parece ser a solução “mais justa e adequada”, porventura a única que respeita a dignidade do arguido e a dignidade do processo». No mesmo sentido pronunciou-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/01/2021, do Desembargador Frederico Cebola (- o qual, malgrados os nossos esforços, não conseguimos consultar na íntegra, por impossibilidade dos serviços daquele Tribunal da Relação localizarem o dito aresto -), citado no recente acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Coimbra, de 06/11/2024, proferido no processo n.º 32/23.0PBCTB.C1, lendo-se na nota 30 que («… perante a situação de anomalia psíquica superveniente irreversível do arguido decidiu declarar extinta a pena aplicada, por considerar a solução “mais justa e adequada”»). No mais, e como se disse, já há mais de um ano – mercê das diligências entretanto realizadas e enquanto se aguardava pela decisão do Tribunal Colectivo que, finalmente, condenou o arguido – que decorreu o período de suspensão da pena de prisão. Nestes termos, decorrido o prazo de suspensão da execução da pena de prisão aplicada, e a despeito da ulterior condenação do arguido (e, na medida em que a posterior condenação não determinará, de forma automática, a revogação da suspensão), decido, nos termos do art. 57º, nº 1, do C. Penal, declarar extinta a pena de prisão aplicada nos presentes autos a AA. (…)”.
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3. Apreciação do recurso:
Pede o recorrente a revogação do despacho recorrido que declarou extinta a pena de prisão cuja execução tinha sido suspensa, ao abrigo do disposto no artigo 57.º, n.º 1 do Código Penal e a sua substituição por um outro despacho que determine, além do mais, “a complementação da perícia em ordem a aferir se é ou não inimputável e perigoso, determinando-se, neste caso, a revogação da suspensão da pena de que beneficiava e o seu ulterior internamento”.
Com interesse para a decisão importa ter em consideração as seguintes ocorrências processuais:
Por factos ocorridos entre o fim do ano de 2010 e fevereiro de 2017, foi o arguido AA condenado - por sentença transitada em julgado em fevereiro de 2018 -, como autor de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1 al. a) e 2, do Código Penal, além do mais, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
Entretanto, por acórdão de 6 de janeiro de 2023 transitado em julgado em 25 de janeiro de 2024, proferida no processo 1499/18.4JABRG, e por factos praticados em 9 de dezembro de 2018, foi arguido condenado como autor de um crime de violação, previsto e punido no artigo 164.º n.º 1, al. d), do Código Penal na pena de 5 anos de prisão, e como autor de um crime de sequestro, previso e punido no artigo 158.º, n.º 2, al. b), do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão. Em cúmulo jurídico foi-lhe aplicada a pena única de 5 anos e 10 meses de prisão que se encontra a cumprir.
Face ao cometimento deste novo crime no decurso da suspensão da pena infligida nestes autos, visando a ponderação da sua eventual revogação, foi, de conformidade com o disposto nos artigos 495º, n.º 2, e 498º, n.º 3, do Código de Processo Penal, determinada a audição presencial do arguido - o que viria a ocorrer em 30 de abril de 2024.
No decurso da sua audição suscitaram-se dúvidas sobre as capacidades mentais do arguido e reservas sobre a sua capacidade para estar em juízo e em perceber o alcance da condenação.
Foi, em consequência, determinada a realização da pertinente perícia psiquiátrica que se realizou em 4 de setembro de 2024, tendo a Ex.ma perita nomeada concluído que o arguido apresentava então défices cognitivos que, embora ligeiros, impactavam significativamente - pelo seu predomínio frontal -, áreas cognitivas chave do que resultaria a ausência de uma capacidade íntegra “para compreender o alcance e conteúdo do ato de julgamento e uma ausência de discernimento íntegro para compreender as finalidades e o sentido de uma pena”.
Mais concluiu que, “atendendo à natureza geralmente progressiva e inexorável dos processos demenciais, considerando no caso concreto o diagnóstico neurológico de atrofia multissistémica tipo parkinsónico (de natureza progressiva)”, tais condições colidiriam com a restauração da competência do examinando, já que seria de antever o agravamento progressivo da sua incapacidade cognitiva, e não o contrário.
Concluiu, em síntese, que esses défices traduziam a ausência de critérios cognitivos mínimos, impedindo por isso que o examinando tivesse a capacidade de entender o processo criminal e de assistir advogado na sua própria defesa.
Em razão das dúvidas que subsistiam, foram pedidos esclarecimentos adicionais à Ex.ma Perita, tendo-lhe sido perguntado se o arguido sofria de anomalia psíquica e, na afirmativa, qual, e, neste caso, se a verificada o tornava, na atualidade, incapaz de avaliar a ilicitude dos factos (sendo por isso inimputável) ou se, mantendo tal capacidade, a mesma se encontrava sensivelmente diminuída. Mais se lhe perguntou se havia risco de o arguido vir a cometer factos da mesma natureza e, na afirmativa, em que é que se fundava, concretamente, tal juízo de perigosidade.
Em relatório complementar, que ora consta de fls. 413 a 420 do processo físico, datado de 8 de fevereiro de 2025, concluiu a Ex.ma Perita, quanto às primeiras duas questões, que “os elementos clínicos recolhidos de peças documentais constantes nos autos e dos registos clínicos prévios, a observação psiquiátrica nos dias 30/07/2024 e 7/08/2024 e avaliação neuropsicológica sumária realizada a 7/8/ 2024 são consonantes com um quadro de Declínio Cognitivo Ligeiro, de predomínio Frontal, codificado com F06,7, segundo a CID 10, enxertado numa atrofia multissistémica tipo parkinsónico”.
O mesmo relatório termina ainda com a seguinte conclusão: “Para o caso em análise, numa avaliação final integrativa de risco em relação à violência futura que combina fatores de risco e fatores protetores (integração dos resultados do HCR 20 e do SAPROF) o parecer é de proteção baixa. Estes instrumentos permitem considerar o risco actual de violência como alto”.
Vejamos então.
Face ao teor do despacho recorrido verifica-se que o Tribunal recorrido começou por suscitar a questão da capacidade judiciária do arguido, tendo concluído, ancorando-se na perícia realizada nos autos, que este, “atendendo à anomalia psíquica de que é portador”, estava impossibilitado de exercer a sua autodefesa por não ter capacidade de estar por si só em juízo, uma vez que “não tem capacidade de compreender o motivo de estar neste processo nem de entender e de ser influenciado pelas penas que possam vir a ser determinadas, nem de preparar a sua defesa”; depois, face a essa incapacidade e “a despeito da ulterior condenação do arguido”, decidiu declarar extinta a pena de prisão aplicada nos presentes autos.
Como entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra, Acórdão de 22/01/2025 (processo n.º 309/22.2GBCLD.C1, consultado em jurisprudência.pt), entendimento que é aplicável ao caso dos autos, “o que está em causa é um conceito de capacidade jurídica que se prende exclusivamente com a capacidade para ser sujeito passivo do processo penal e que se desdobra em duas vertentes: a) A capacidade formal ou abstracta para ser arguido, que coincide com a possibilidade de imputação criminal e que obriga à exclusão dos menores de 16 anos de idade e dos portadores de anomalia psíquica conforme à previsão do art. 20º do Código Penal; e b) A capacidade concreta para esse mesmo efeito, que supõe que o arguido seja capaz de participar com plena autonomia e esclarecimento no processo criminal, conclusão que se alcança através da interpretação conjugada das normas que disciplinam o estatuto do arguido.
No caso dos autos, resultou da perícia psiquiátrica que o arguido apresenta défices cognitivos que, embora ligeiros, impactavam significativamente - pelo seu predomínio frontal -, áreas cognitivas chave do que resultaria a ausência de uma capacidade íntegra “para compreender o alcance e conteúdo do ato de julgamento e uma ausência de discernimento íntegro para compreender as finalidades e o sentido de uma pena”, sendo de antever um “agravamento progressivo da sua incapacidade cognitiva”. Concluiu-se na mesma perícia, que o arguido não terá a capacidade de entender o processo criminal e de assistir advogado na sua própria defesa e por ausência de critérios cognitivos mínimos, estava impedido o examinando de ter capacidade de entender o processo criminal e de assistir advogado na sua própria defesa.
Perante este quadro, entendeu o Tribunal recorrido que estando o arguido “processualmente incapaz” e impossibilitado de exercer a sua autodefesa, ficava prejudicada “a possibilidade de lhe ser aplicada uma qualquer medida de segurança, desde logo por tal violar o princípio estabelecido na parte final do n.º 1 do artigo 29.º, n.º 2 do artigo 30.º e n.º 3 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa”. Mais se entendeu na decisão recorrida que o arguido não pode ser sujeito a uma medida de segurança privativa da liberdade – “única cuja aplicação se justificaria, de sorte a aplacar o risco de perigosidade denotado” – porque o Estado“não garante a possibilidade de internamento em condições conformes com a dignidade da pessoa humana”.
Ora, não está em causa, nem isso é questionado pelo próprio recorrente, que resulta da perícia realizada nos autos, que o arguido é portador de uma anomalia psíquica, “não detendo critérios cognitivos mínimos para que o examinando tenha capacidade de entender o processo criminal e de assistir o advogado na sua própria defesa”, nem tendo capacidade de “compreender o motivo de estar neste processo nem de entender e de ser influenciado pelas penas que possam vir a ser determinadas, nem de preparar a sua defesa”.
Também é certo que de acordo com a sentença condenatória há muito transitada em julgado, esta anomalia não era contemporânea dos factos porque não se levantou em julgamento a questão da inimputabilidade do arguido. Pelo menos na altura do julgamento, o arguido teria condições para “entender o processo” e assistir o seu defensor sem quaisquer limitações.
Está, por isso, em causa a superveniência de uma anomalia psíquica que sobrevem ao agente muito depois da prática dos factos[2], levantando-se a questão de saber quais são as consequências para o processo da incapacidade superveniente do arguido que o mesmo apresenta.
Pela nossa parte há que dizer antes de mais que concordamos com o entendimento plasmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/01/2025 que aqui se segue de perto, quando se afirma que não se pode concluir sem mais que o incapaz, “não possa ser sujeito passivo do processo penal, tal como sucede com o inimputável. A lei afasta a possibilidade de aplicação de uma pena criminal ao agente de crime que seja considerado inimputável prevendo para os casos em que tal se justificar a aplicação de medidas de segurança; e distingue a situação dos imputáveis portadores de anomalia psíquica, que continuam a ser passíveis da aplicação de penas criminais ainda que estas possam, consoante os casos, ser cumpridas mediante internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis ou ser suspensas até à cessação do estado que determinou a suspensão. Trata-se, segundo Figueiredo Dias, de “um instituto de natureza especial que constitui uma medida de diversão da execução da pena sem que, todavia, ele perca por isso natureza penal (…) o regime previsto na lei para o internamento e para a suspensão da execução da pena traduz a introdução do princípio da necessidade da pena na fase da execução: a execução efectiva da pena privativa da liberdade ocorre somente quando tal se revelar necessário do ponto de vista das finalidades preventivas assinaladas à punição”.
Ora, se assim é, se o arguido apesar da sua incapacidade, pode, ainda assim, ser sujeito passivo do processo penal, o que sucede à pena em que o mesmo foi condenado?
Antes de mais, há que referir que concordamos com o entendimento plasmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/01/2025 supra citado de que “não há que acolher no processo penal o conceito de capacidade judiciária previsto no art. 15º do Código de Processo Civil, por inexistir lacuna que deva ser colmatada nos termos do art. 4º do Código de Processo Penal”. Não há assim, consequentemente, que nomear um qualquer curador provisório do arguido para o processo.
Não aplicando, e bem, o regime processual civil, o Tribunal recorrido, entendendo que não podendo o arguido, em razão da anomalia de que padecia, exercer plenamente a sua defesa, decidiu declarar extinta a pena, apesar da condenação do arguido pela prática de factos praticados durante o período da suspensão da respectiva execução. Ora esta solução vai ao arrepio do regime previsto nos artigos 56.º e 57.º do Código Penal. Na verdade, a pena suspensa na sua execução, só pode ser declarada extinta, se «decorrido o período da sua suspensão, não houver motivos que possam conduzir à sua revogação» - artigo 57.º, n.º 1 do Código Penal – ou seja, se o arguido durante o período da suspensão, não tiver infringido «grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social», ou se não tiver cometido «crime pelo qual tenha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas».
No caso dos autos, como vimos supra, o arguido cometeu crimes durante o período da suspensão da execução da pena de prisão pelo que se impunha avaliar se com essa sua conduta, demonstrou ou não que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas. Com base na incapacidade do arguido, o Tribunal sem levar a cabo aquela avaliação imposta por lei, declarou a pena extinta o que lhe estava vedado por lei, salvo o devido respeito por opinião contrária.
No fundo, a solução a que chegou o Tribunal recorrido vai buscar alguma inspiração ao regime legal previsto no anterior Código de Processo Penal, diploma que consagrava o incidente de alienação mental que previa que enquanto durasse a limitação das faculdades mentais do arguido, ficava suspensa execução da sentença. Claro está que sendo irreversível a patologia apresentada pelo arguido, como no caso dos autos, essa suspensão acabaria por determinar a extinção da pena pelo decurso do respetivo prazo prescricional.
Ora, como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que vimos citando, o legislador no Código de Processo Penal de 1987, tendo conhecimento do regime anterior, decidiu eliminar o incidente de alienação mental, dedicando um capitulo ao internamento de imputáveis portadores de anomalia psíquica nos artigos 104.º a 108.º.
De acordo com o regime ora em vigor, nos casos em que como acontece no caso dos autos, em que o arguido não foi declarado inimputável na sentença condenatória e em que a anomalia psíquica sobreveio ao agente depois da prática do crime, devia ser observado o disposto no artigo 105.º do Código Penal, sendo certo que tratando-se de uma pena de prisão cuja execução havia sido suspensa na sua execução, teria de previamente de se ponderar se a suspensão da execução da pena de prisão devia ou não ser revogada nos termos do disposto no artigo 56.º do Código Penal.
É certo que o arguido não tem capacidade para “entender o processo criminal e de assistir o advogado na sua própria defesa”, mas não obstante, não pode deixar de ser sujeito ao regime previsto nos artigos 56.º e 57.º do Código Penal. Salvo o devido respeito, entender que por causa da anomalia psíquica de que padece, não pode o arguido defender-se devendo a pena ser declarada extinta, é esvaziar por completo o regime legal previsto no artigo 104.º e nos artigos seguintes do Código de Processo Penal.
Note-se que é o próprio legislador que ao estabelecer o regime previsto no artigo 105.º do Código Penal, determina que o Tribunal possa ordenar o internamento do arguido quando este é portador de uma anomalia psíquica que se fosse contemporânea dos factos, levaria à sua declaração de inimputabilidade. Ou seja, o legislador não ignora certamente que em consequência da anomalia de que padece o arguido, este não se possa defender, mas mesmo assim, entende ser adequada a imposição do seu internamento num estabelecimento destinado a inimputáveis, uma vez que se mantém a necessidade da pena e a reafirmação da validade da norma.
Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/02/2024 citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra acima referenciado, “não cabe também ao Tribunal a quo reconhecer ao arguido qualquer especial direito não previsto na lei, de não ser julgado pelos factos que lhe são imputados por entretanto ter passado a padecer de uma anomalia psíquica”. Este entendimento vale para o caso dos autos que se encontra numa fase mais adiantada, não estando previsto na lei o direito do arguido de evitar as consequências da prática durante o período da suspensão de um novo crime e de uma nova condenação numa pena de prisão, efetiva desta vez.
A seguir o entendimento da primeira instância, não podendo o arguido por força de incapacidade de que padece, defender-se por si próprio em juízo, jamais seria admissível impor-lhe o internamento (compulsivo) num estabelecimento especialmente previsto para pessoas com anomalias psíquicas.
Acresce que o legislador penal ponderou as implicações da incapacidade dos arguidos portadores de anomalia psíquica, porque estabeleceu um regime de defesa ainda mais exigente, estabelecendo a obrigatoriedade de o arguido ser assistido por um defensor sob pena de nulidade, quando se suscitar a questão da sua imputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída» - cf. com o disposto no artigo 64.º, n.º 1, d) do Código de Processo Penal.
Como escreve a propósito Fernando Gama Lobo (in Código de Processo Penal anotado, Fevereiro de 2015, Almedina), “quando se suscitar a questão da sua imputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída, deve ser, obrigatoriamente, assistido por um defensor que irá exercer os direitos que a lei reconhece ao arguido, com exceção dos direitos que a lei reserva pessoalmente a este”; estão em causa, como no caso dos autos, “actos nos quais o arguido não está em condições físicas ou psicológicas de compreender os seus trâmites”. Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, a norma em causa, “está a coberto da credencial do artigo 14.º do pacto e do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, lidos à luz da jurisprudência do Comité dos Direitos Humanos e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”. A propósito escreve também o senhor Conselheiro Henriques Gaspar (in Código de Processo Penal, Almedina, 4.ª edição comentado), que a obrigatoriedade de assistência é total “nos casos de vulnerabilidade do arguido, motivada por circunstâncias pessoais-objectivas, resultantes de debilidade de cognição, por idade ou por motivos físicos ou psíquicos. A fragilidade que resulta objectiva e subjetivamente de tais circunstâncias justifica, no critério da lei, a reposição de equilíbrios no processo através da obrigatoriedade de assistência”.
De acordo com o disposto no artigo 63.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, «o defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido, salvo os que ela reservar pessoalmente a este».
Será certamente mais exigente o exercício das funções do Defensor nomeado ou constituído, exigindo-se porventura um especial cuidado na preparação da defesa do arguido e na intervenção no processo, apresentando provas que entender como necessárias ao exercício das suas funções, mas não deixará de ser assegurada ao arguido a sua defesa. Como escreve a Senhora procuradora-Geral Adjunta no parecer junto aos autos, apesar de tudo estará sempre “garantido o núcleo essência e intocável dos seus direitos fundamentais, agregados à defesa a exercer por defensor”.
Existem outros casos em que portadores de graves anomalias psíquicas, também sem “capacidade para entender o alcance do processo” de que estão a ser alvo e para se defenderem, são privados até da sua liberdade, como acontece nos casos dos internamentos compulsivos previsto na lei 35/2023 de 21de Julho. O mesmo se diga dos processos de internamento previstos no artigo 156.º e seguintes do Código da execução das penas e medidas privativas da liberdade (aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro), de execução das penas que pressupõem, naturalmente, a existência de uma sentença que declarou a inimputabilidade de um arguido e que pressupõe que também que este não é capaz de compreender o processo e de se defender por si próprio: também nestes casos, tem o Tribunal de execução das penas de nomear ao internando um defensor, caso não esteja já nomeado, sendo que a audição do mesmo durante o processo apenas será realizada se “este for considerado capaz”. Não sendo capaz é representado pelo seu defensor que é notificado, nomeadamente, para “alegar o que tiver por conveniente”, como acontece a revisão da situação do internando.
Como também refere a Senhora Procuradora no Parecer junto aos autos, “a justiça penal desempenha também um papel nada despiciendo na construção da segurança de todos nós (…) sobretudo se se assinalar à pena, como também parece resultar da constituição, um fim exclusivamente utilitário, ou seja, preventivo”.
Por outras palavras entendemos que a incapacidade de um arguido por força de uma anomalia psíquica irreversível e cuja perigosidade esteja inequivocamente demonstrada nos autos, não obsta a que o mesmo seja devidamente representado por defensor e que enfrente as consequências previstas na lei, no caso, o regime previsto nos artigos 56.º e 57.º do Código Penal.
Nas palavras do Senhor Desembargador Pedro Soares de Albergaria (cf. com o estudo citado na decisão da primeira instância, Revista Julgar, n.º 1, 2007), “a impossibilidade de o arguido ser condenado em reacção criminal de natureza penal conjugada com as necessidades de defesa social parecem justificar tergiversação com o princípio geral de que no arguido deve verificar-se uma concreta capacidade para estar em juízo”.
Como se escreveu no recurso do Ministério Público, uma interpretação literal do artigo 32.º, n.º 3 da Constituição da Republica Portuguesa, tem “um limite material: não pode impedir o julgamento dos inimputáveis e, quando necessária, a aplicação de medidas de segurança, ainda que aqueles não compreendam as lógicas do processo penal e sejam, as mais das vezes, incapazes de assessorar os advogados na sua defesa”; como se acrescenta na motivação do recurso, “a ser de outro modo, teríamos que os incapazes de avaliar a ilicitude dos seus factos e sem capacidade para entender o processo criminal e de assistir o advogado na sua própria defesa, não seriam penalmente perseguidos nem contidos e tratados, mesmo que perigosos ou muito perigosos”.
Num ponto concordamos com a primeira instância quando se afirma na decisão recorrida que “quanto a avaliação do carácter proibido dos actos que pratica ou sobre o determinar-se de acordo com essa avaliação, estas irão sempre depender do acto praticado e da data e contexto em que é praticado, não podendo, portanto, haver uma leitura única e universal”. Na verdade, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal - Universidade Católica, 5.ª edição actualizada, Lisboa 2022), a “inimputabilidade depende de um juízo sobre a capacidade de avaliação da ilicitude e de autodeterminação de acordo com essa avaliação, mas este juízo reporta-se ao momento histórico da prática do facto e a cada concreto facto típico realizado pelo agente, verificando-se em relação a cada facto a existência daquela capacidade de avaliação e autodeterminação; como acrescenta o mesmo autor, “o agente pode na mesma ocasião, cometer um facto em estado de inimputabilidade e outro facto em estado de imputabilidade”, citando a propósito o exemplo apresentado pelo professor Figueiredo Dias: furto de veículo cometido pelo agente depois da violação, sendo o agente inimputável em relação a este crime de violação e imputável em relação ao crime de furto.
Assim, não pode agora ser feito um juízo sobre a capacidade de avaliação da ilicitude de factos abstractos, genéricos e futuros: daí certamente a resposta da Senhora Perita que elaborou o relatório pericial junto aos autos, quando escreveu que “quanto a avaliação do carácter proibido dos actos que pratica ou sobre o determinar se de acordo com essa avaliação, estas irão sempre depender do acto praticado e da data e contexto em que é praticado, não podendo portanto haver uma leitura única e universal; quer isto dizer que a pronuncia pericial quanto a se cumpre ou não pressupostos de inimputabilidade e de só poderá ser emitida para um facto concreto ocorrido num determinado momento e não de forma genérica e abstracta de autodeterminação de acordo com essa avaliação”.
Assim, salvo o devido respeito, não está agora em causa a questão de saber se em relação aos factos pelos quais foi condenado o arguido, o mesmo deve ou não ser considerando inimputável, face ao trânsito em julgado da decisão condenatória, interessando sim saber se desde a prática dos factos, sobreveio ao agente, uma grave anomalia psíquica posterior com perigosidade para efeitos de eventual aplicação do disposto no artigo 105.º do Código Penal. Por outras palavras, não em causa a inimputabilidade do arguido, mas o modo de execução da pena se esta vier a ser revogada face à nova condenação[3].
Face ao que resulta já da perícia realizada nos autos (que não tinha de se pronunciar sobre a questão de saber se o arguido era ou não inimputável) e face ao que consta do respetivo relatório (que deu como verificada a existência de uma anomalia psíquica com perigosidade), não se mostra necessária qualquer perícia complementar como pedia o recorrente, improcedendo o recurso nesta parte (cf. a conclusão 18.ª, 21.º).
Em suma, estando o arguido devidamente representado por defensor, apresentam-se ao Tribunal recorrido, duas questões:
A primeira é a de saber se a suspensão da execução da execução da pena de prisão, deve ou não ser revogada nos termos do disposto no artigo 56.º, n.º 1, b) do Código Penal tendo em conta a prática de novos crimes durante o período da suspensão e a segunda, no caso de a resposta à anterior ser afirmativa, saber se face à anomalia psíquica com perigosidade superveniente desenvolvida, deve a pena ser cumprida ou não num estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena, nos termos previstos no artigo 105.º do Código Penal.
Uma nota final para dizer que o Tribunal não pode estar dependente de qualquer condicionamento de entidades administrativas, sob pena de se colocar em causa o exercício das suas funções enquanto órgão de soberania constitucionalmente consagrado.
Cabe ao Estado garantir a possibilidade de internamento do arguido, sendo o caso, em condições “conformes com a dignidade da pessoa humana”, que também é devida ao ora visado). Compreendemos as dúvidas manifestadas pelo estabelecimento prisional ..., mas a verdade é que às instituições administrativas apenas compete cumprir o que for determinado pelo Tribunal. Infelizmente as limitações do nosso sistema prisional são conhecidas, sabendo-se da existência de um elevado número de reclusos que padecem de problemas de saúde mental e que não estão integrados, como deviam, em estabelecimentos adequados ao seu estado ou em unidades de natureza hospitalar, mas isso não significa que o Tribunal se abstenha de aplicar a lei em toda a sua extensão.
Procede, pois, o recurso nos termos expostos.
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C) Decisão:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo recorrente e, consequentemente, decidem revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que considerando devidamente representado o arguido, decida sobre a eventual revogação da execução da pena de prisão nos termos do disposto no artigo 56.º, n.º 1, b) do Código Penal e, sendo o caso, pondere a eventual aplicação do disposto no artigo 105.º do Código Penal.
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Sem custas.
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Notifique.
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Guimarães, 16 de setembro de 2025 (o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários – artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
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Carlos da Cunha Coutinho (Relator) Fernando Chaves (1.º Adjunto) Pedro Cunha Lopes (2.º Adjunto).
[1] O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, n.º 7/95, de 19/10/1995, publicado no DR 1ª série, de 28/12/1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do STJ de 11/07/2019, consultados em www.dgsi.pt; de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03/02/1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28/04/1999, in Coletânea de Jurisprudência, acórdãos do STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193 [2]Aliás, nem mais recentemente, no processo n.º 1499/18.4JABRG, cuja decisão de 06/01/2023, transitou apenas há pouco mais de 18 meses, foi detectada qualquer anomalia psíquica. [3] A este propósito e sobre a superveniência de uma anomalia psíquica ao arguido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de proferido no processo n.º 184/12.5TELSB.L1 de 11/04/2025.