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COMODATO
USO DETERMINADO
CONTRATO DE DURAÇÃO INDETERMINADA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário
I - Se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto, não tendo o comodato prazo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso e, não sendo convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida (cfr. artigo 1137º n.º 1 e 2 do Código Civil). II - Não pode considerar-se como determinado o uso de certa coisa, quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada, mas antes atos genéricos de execução continuada, se não se souber por quanto tempo vai durar, sendo que neste caso se deve haver como concedido por tempo indeterminado; o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável. III - Um contrato de comodato em que o tipo de uso da coisa não está temporalmente definido nem limitado, é de considerar como sendo um contrato de duração indeterminada, sujeito à regra da cessação ad nutum prevista n.º 2 do artigo 1137.º do Código Civil. IV - Para que a parte seja condenada como litigante de má-fé terá de concluir-se por uma atuação dolosa ou gravemente negligente da mesma, o que pressupõe que se encontra demonstrado nos autos, que a parte agiu de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a ação da justiça, litigando de modo desconforme ao respeito devido ao tribunal e às partes, e que o fez de forma consciente ou sendo-lhe exigível essa consciencialização.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
I. Relatório
AA e BB, intentaram a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra CC, pedindo que se declare que o prédio identificado na petição inicial é propriedade das Autoras, que seja o Réu condenado a restituir àquelas o terreno ora em apreço e que seja o Réu condenado no pagamento das indemnizações peticionadas na quantia total de €15.500,00, acrescida de juros vencidos e vincendos.
Alegam, para tanto e em síntese, que tendo-lhes sido doado o prédio identificado em 1., ficaram usufrutuários da mesma DD e o marido EE.
Mais alegam que tendo falecido EE em 2011, a usufrutuária DD, em 2019 e a pedido do Réu, emprestou-lhe o referido prédio temporariamente para aí depositar alguns materiais de construção provenientes da empresa daquele.
Alegam ainda que tendo falecido a usufrutuária, as Autoras pretenderam extinguir o comodato e recuperar a utilização do prédio e tendo interpelado o Réu para a restituição do prédio, o mesmo nunca aceitou.
Por último alegam que a utilização que o Réu fez do prédio afetou a capacidade agrícola do terreno, causando um prejuízo nunca inferior a €4.000,00, o Réu beneficiou da madeira resultante do abate das árvores numa quantia nunca inferior a €2.000,00 e deve, ainda, indemnizar as Autoras pelo não uso do imóvel no montante de €9.500,00.
O Réu, regularmente citado, apresentou contestação, alegando que, em março de 2019, celebrou com a usufrutuária um contrato de comodato por 10 anos, só tendo de o restituir em fevereiro de 2029 e não tendo ocorrido a extinção do referido contrato por morte da usufrutuária.
Mais impugna os alegados prejuízos, pois o terreno em causa nunca foi de cultivo, insere-se numa zona industrial e os materiais não alteram qualquer propriedade de solos ou águas.
Pugna, ainda, pela condenação das Autoras como litigantes de má-fé, no montante de €15.500,00, pois alteraram a verdade dos factos, uma vez que foram as próprias quem em 2020 venderam madeira resultante do abate das árvores existentes no prédio recebendo o valor global de €2.500,00. Mais aduz que o portão colocado foi pela Junta de Freguesia e encontra-se sempre aberto.
Foi realizada audiência prévia e foi proferido despacho saneador, bem como despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.
Veio a efetivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:
“Por tudo o expendido, julga-se a presente ação parcialmente procedente e, em consequência: a) declara-se que o prédio identificado em 1. é propriedade das autoras AA e BB e condena-se o réu CC a restitui-lo. b) condena-se o réu CC, a pagar às autoras AA e BB, os prejuízos por estas sofridos com a privação do prédio desde ../../2022, em montante a liquidar em execução de sentença, cujo limite máximo é o valor de €9.500,00 (nove mil e quinhentos euros), absolvendo-se do demais peticionado. Mais se absolvem as autoras do pedido de condenação como litigantes de má fé.
*
Custas a cargo das autoras e do réu, na proporção do decaimento, nos termos do disposto no artigo 527º, nº 1 do Código de Processo Civil.
*
Registe e notifique.”
Inconformado, o Réu apelou da sentença, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“A- Vem o presente recurso interposto da sentença proferida em 30 de janeiro de 2024, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de Guimarães – Juiz ..., tribunal a quo, que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência:
- Declarou o prédio identificado propriedade das autoras, sendo o réu condenado a restitui-lo;
- Condenou o réu a pagar às autoras os prejuízos com a privação do prédio desde ../../2022, em montante a liquidar em execução de sentença, cujo limite máximo é o valor de € 9.500,00 (nove mil e quinhentos euros);
- absolvendo-se o réu do demais peticionado.
B – Por sentença proferida em 30 de dezembro de 2024, ora recorrida, o tribunal a quo deu, então, como provados os seguintes factos:
1. Encontra-se inscrito a favor das Autoras o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o n.º ...52 do Distrito ..., Concelho ..., Freguesia ..., denominado “... a cultivo e com videiras em ramada, com a área de 10.000 m2 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., na Freguesia ... sob o n.º ...57, desde ../../1996.
2. O prédio supra identificado em 1., adveio ao domínio das autoras por escritura pública outorgada no Cartório Notarial ..., em 25/03/1996, pela qual DD, declarou doar àquelas e estas declararam aceitar o dito imóvel.
3. No mesmo documento de escritura pública, foi ainda constituído usufruto simultâneo e sucessivo a favor da doadora DD e do Marido EE, e por eles aceite.
4. Em ../../2011 faleceu na freguesia ..., Concelho ..., o usufrutuário EE.
5. O prédio rústico doado às autoras, encontrava-se cultivado com eucaliptos adultos de grande porte e arbustos.
6. Em 2019, CC, aqui réu e vizinho de uma das propriedades da usufrutuária – DD - solicitou-lhe que lhe emprestasse o terreno identificado em 1., para temporariamente, aí depositar algumas pedras, inertes e restos de materiais de construção, que obteve da sua empresa de terraplanagens e resultantes de obras por esta executadas e que queria aproveitar para si.
7. Como eram apenas alguns materiais e o empréstimo seria temporário e atentas as boas relações de vizinhança que mantinha com o réu, que para além de vizinho, era também presidente da junta, a usufrutuária acedeu ao pedido deste e durante o ano de 2019, cedeu-lhe verbalmente, a título gratuito e de forma temporária, o terreno identificado no artigo 1º.
8. O réu passou a usar o terreno, aí depositando diversos materiais provenientes de restos de construções e material constituído por pedras, areias e outros inertes.
9. Algum tempo depois, o réu procedeu ao derrube de alguns dos eucaliptos, terraplanou parcialmente o terreno, abriu um estradão que cobriu com brita para circulação de camiões, que passaram a entrar e sair do terreno.
10. Em ../../2020, faleceu na freguesia ..., Concelho ..., a usufrutuária DD.
11. Com o decurso do tempo e já após o óbito da usufrutuária, o réu passou a depositar grandes quantidades de pedra e areias, bem como a colocar máquinas no terreno, usando-o como se fosse um estaleiro de obras, sem o consentimento das autoras.
12. Após o óbito da usufrutuária, as autoras solicitaram ao réu para proceder à remoção dos objetos depositados no terreno, bem como para efetivar a restituição do terreno, no estado em que este se encontrava anteriormente ao acordo em causa.
13. Em 15/11/2022, a autora AA, enviou uma carta registada com aviso de receção ao réu, e em 10/01/2023, as autoras enviaram nova carta registada com aviso de receção ao réu, pedindo a restituição do terreno, por considerarem cessado o acordo de empréstimo.
14. Apesar das notificações das autoras até à presente data, o terreno não foi devolvido nem os materiais e objetos lá depositados foram removidos.
15. O prédio em causa acarretava à usufrutuária DD, despesas anuais de valor não concretamente apurado para proceder à limpeza do mato e vegetação.
16. O referido prédio nunca foi de cultivo.
17. O terreno em causa está inserido no Plano Diretor Municipal de ..., como “Espaço para atividades económicas”.
18. Entre junho e julho do ano de 2020, as autoras venderam a madeira resultante do abate das árvores a pessoa que tem como atividade profissional o abate e venda de madeira, recebendo o valor global de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) pelo produto dessa venda.
19. O portão que existe no terreno e que se encontra sempre aberto, foi colocado pela Junta de Freguesia ... em junho de 2017, decorrente de uma operação de cedência de terreno ao domínio público.
C – Na mesma sentença, o tribunal a quo, como não provados, os seguintes factos:
CA - Que o referido em 9. tivesse sido sem o consentimento da usufrutuária.
CB - Que os materiais depositados, a terraplanagem e a construção do estradão e coberto por brita, bem como a circulação de veículos pesados, a colocação do portão, acrescendo ao derrube das árvores, tenha alterado a finalidade do terreno rústico com apetência para a agricultura.
CC - Que tais atos prejudicaram e afetaram a capacidade agrícola do terreno, causando-lhe erosão e diminuindo as qualidades de cultivo do solo.
CD - Que o réu tenha beneficiado da madeira resultante do abate das árvores.
CE - Que o acordo referido em 6. tivesse sido celebrado pelo período de 10 anos.
D - O tribunal a quo deu como provados os factos descritos em 6. a 8, ou seja, que o réu solicitou à usufrutuária o empréstimo do terreno, temporariamente e a título gratuito.
D1 - Na formação da sua convicção, o tribunal a quo fundamenta o seguinte: “constata-se que também a data (2019) em que o prédio foi emprestado por DD, então usufrutuária, ao réu se encontra igualmente assente, pois tendo sido alegada pelas autoras veio a ser admitida pelo réu, logo em sede de contestação”.
D2 - Quanto aos termos do acordo, o tribunal a quo fundamenta o seguinte: “Quanto aos termos em que tal acordo de empréstimo ocorreu e vertidos no ponto 6. dos factos provados, tal deveu-se à análise do depoimento da testemunha FF, conjugado com as declarações de parte do réu CC, que quanto a estes factos convenceram o tribunal da veracidade dos mesmos, pela forma coerente, coincidente e espontânea. A testemunha FF, intitulando-se procurador da usufrutuária e sobrinho da mesma, referiu que foi o réu quem lhe solicitou autorização para colocar no terreno em causa as pedras e que procedia à limpeza do terreno.”
D3 - Por outro lado, o tribunal a quo deu como não provado que o acordo referido em 6. tivesse sido celebrado pelo período de 10 anos.
D4 - Para tanto, fundamenta que “Relativamente ao alegado período pelo qual o acordo havia sido celebrado entre o réu e a usufrutuária (alínea e) dos factos não provados), além do réu o ter referido, tal prazo também foi referido pela testemunha FF, pessoa que tratava dos assuntos da usufrutuária. Contudo, além da testemunha não ter esclarecido a razão dos 10 anos, a verdade é que referiu que a tia das autoras quando confrontada por estas por causa do dito empréstimo lhes disse que quando ela morresse depois “vocês resolvei”. O que aliás vai de encontro ao que havia sido referido pela autora AA, que quando confrontou a tia que a mesma lhe terá dito que quando ela falecesse elas ficariam com aquilo. Ora, sendo certo que faz mais sentido à luz das regras da experiência comum, esta versão, tendo em conta que a pessoa que tinha a posse do terreno, apenas do mesmo era usufrutuária, o próprio réu disse que o que lhe tinha sido permitido era enquanto a tia das autoras fosse viva, ainda que depois tenha dito que precisava do terreno por 10 anos, igualmente não esclarecendo a razão desse prazo. Assim sendo, considerou-se insuficiente a prova produzida para que se pudesse afirmar que o acordo havia sido celebrado por 10 anos, tendo assim sido tal facto remetido também ao elenco dos não provados.”
E - Portanto, quanto ao mesmo tema de prova, o tribunal a quo considerou os depoimentos do réu e da testemunha FF coerente, coincidente e espontânea, já quanto ao prazo estipulado para a duração do contrato de comodato, entendeu o tribunal a quo fundamenta que a testemunha FF não esclareceu “a razão dos 10 anos”.
EA - Ora, com o devido respeito, não se pode retirar das declarações dos contraentes, o Réu e a Testemunha FF que não fique explicada e esclarecida nos autos a razão da fixação do prazo de 10 anos.
EB - Desde logo, o Réu diz em depoimento ao tribunal a quo o seguinte: “Aquilo era preciso ser limpo porque já estava com o mato muito grande. Às vezes passava-se um ano ou dois sem limpar. Eu disse: em troca limpo o terreno anualmente e ponho aqui os materiais que eu puder. Pronto, e ele falou com a senhora e disse-me que sim. E eu disse: olha, eu vou limpar isto, mas não só por um ano ou dois, certo? E ele falou para a senhora e disse, enquanto eu for viva, pode ter. E eu disse, olhe, aí por 10 anos preciso disto, que é para eu ter um bocado de margem no que estou aqui a gastar e simplesmente foi isso” (00:04.50 – Réu CC).
EC - Questionado pelo tribunal a quo novamente, às perguntas “Mas o senhor é que disse que era por 10 anos, certo? A senhora disse que era enquanto fosse viva.”, o Ré responde:
“Não! Com o responsável , que é o procurador, ficou acordado que eu ficava os 10 anos, no mínimo, com aquilo” (00:05:40 – Réu CC).
ED - 20. Perguntado o Réu pelo tribunal “E porque é que o senhor precisava do terreno por 10 anos?”, este responde: “Porque a limpeza que eu fiz, na altura, meti lá uma máquina quatro dias só para limpar o terreno. Eu gastei… e todos os anos tenho que ter uma máquina dois ou três dias só para limpar aquilo. Aquilo são vinte mil metros quadrados”.
EE - Quanto a este mesmo ponto, ou seja “a razão do prazo de 10 anos”, a testemunha FF, Procurador da Usufrutuária do terreno, respondeu oo tribunal o seguinte: “”Esse acordo foi uma vez que o CC me chegou lá a minha casa, falou-me se podia lá deitar umas pedras e em troca limpava-me o terreno. Depois falemos, falou-me do prazo de anos e eu concordei. Para não estar a limpar o terreno, eu concordei” (00:21:20 Testemunha FF).
EF - Pergunta o tribunal: “A tia concordou? Do prazo e tudo?”, respondendo a testemunha:
“Sim” (00:22:20 Testemunha FF).
EG - Agente concordou 10 anos” (00.27.59 Testemunha FF).
EH - E mais esclareceu: “E eu não tinha mais preocupação com a limpeza, que era preciso limpar, que era bastante grande e eu gastava bastante dinheiro e a proposta também agradou, porque eu assim não me preocupava mais porque eu também tinha a minha vida”(00.28.25 Testemunha FF).
EI - Voltado a ser questionado “Em termos de prazos, quem é que falou de prazos? Ele ia ficar lá quanto tempo?”, a testemunha responde “Agente falou um contrato de dez anos e eu agradou-me a proposta porque na altura só pensei logo… Falei com a minha tia e para mim foi uma ótima ideia, quanto mais dinheiro eu poupasse, ao fim ia receber mais um bocadinho.” (00.37:22 Testemunha FF).
EJ - E o tribunal volta a insistir na pergunta: “Mas porquê o prazo de 10 anos?”, ao que responde: “Para não me preocupar mais com o terreno, com a limpeza, e para mim foi um alívio”.
EK - Portanto, em todas as perguntas formuladas pelo tribunal aos dois contraentes, estes foram coerentes e mantiveram as suas versões sobre as razões de fixarem um prazo certo de 10 anos para o contrato de comodato, para a usufrutuária era bom não ter preocupações, despesas e responsabilidades com a limpeza do terreno e para o réu esse empréstimo só lhe seria razoável por tal prazo, por forma a assegurar que as despesas de limpeza e manutenção do terreno também não lhe iriam constituis um gasto superior à serventia do uso do terreno.
F - Portanto, as partes do acordo, no exercício do princípio da liberdade contratual e da boa-fé negocial (desde logo pré-contratual), fixaram livremente os termos do acordo, com o que lhes era mutuamente conveniente.
G - Assim, a livre apreciação da prova não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador.
H - Tendo os dois contraentes (não se colocando em causa a legitimidades para celebrarem tal contrato) afirmado que estabeleceram o prazo de 10 anos, desconsiderar os seus depoimentos por “não explicarem a razão de tal prazo” constitui erro manifesto na valoração dos seus depoimentos,
I - Indo o tribunal a quo além do que o legislador exigiu para a celebração do contrato de comodato.
J - Sendo o contrato de comodato um “contrato gratuito, pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, coma obrigação de a restituir – cfr. Art.º 1129º do Código Civil e não exigindo a lei que o mesmo tenha forma escrita, não sendo colocado em causa qualquer vício do mesmo pelo tribunal a quo (nem de forma, nem de legitimidade), vale o que os contraentes dizem sobre os termos do contrato.
JJ - Já que as autoras não alegaram nem provaram que o contrato de comodato celebrado sem prazo certo, cabendo a estas o ónus da prova.
JJJ - Assim, considerando a prova do réu insuficiente, tal insuficiência deveria ser valorada sob o princípio in dúbio pro réu, já que as autoras alegam que o facto constitutivo do seu direito se baseia na inexistência de fixação do prazo do contrato.
JJJJ - Devendo ser considerada por provada a fixação do prazo certo, admitida por ambos os contraentes, toda a fundamentação de direito, será também ela diferente, impondo-se a manutenção do contrato de comodato.
K - Ademais, resulta provado na sentença recorrida que o uso destinado à coisa é, no caso, “o depósito de algumas pedras e restos de materiais de construção”.
KK - Não resultando também da sentença recorrida que tal uso tenha terminado, pelo que não ocorre nenhuma das causas de extinção do contrato de comodato, nem ao abrigo do art.º 1137º do Código Civil, nem por resolução (art.º 1140º do Código Civil), nem por caducidade (art.º 1141º do Código Civil).
KKK - Posto isto, impugna-se a matéria de facto supra referenciada, devendo a mesma ser apreciada, nos pontos dos termos do contrato, quanto aos depoimentos do réu e da testemunha FF, partes no contrato de comodado objeto do litígio.
KKKK - Devendo, por isso, ser apreciada a prova testemunhal e não existindo prova documental quanto a este, ser assim, alterada a factualidade provada, considerando-se o contrato de comodado vigente e, por conseguinte, alterada a fundamentação de direito da sentença recorrida e, bem assim, desconsidera-se qualquer indemnização devida pelo uso do prédio às autoras.
L - O tribunal a quo não fundamentou a decisão com fundamentos opostos com a decisão, designadamente quando funda a sua convicção com base nos depoimentos do réu e da testemunha FF e, que considera coerentes e , ao mesmo tempo, entende que os mesmos não souberam esclarecer as razões para a fixação de prazo certo do comodato, utilizando-se quanto à mesma matéria das regras da experiência comum,
LL - O que torna a decisão obscura e ininteligível – cfr. Art.º 615º, n.º 1, al. c),
LLL - Sendo, por isso NULA.
M - O tribunal a quo deu como provado que as autoras formularam pedidos cuja falta de fundamento não deveriam ignorar (ausência de propriedades agrícolas do terreno) e alteraram a verdade dos factos (venda da madeira que as próprias venderam), com a finalidade de conseguir um objetivo ilegal (o pagamento das quantias peticionadas ao réu).
MM- Assim, a fundamentação da sentença no que respeita à inexistência de litigância de má fé por parte das autoras, “tanto mais que a sua pretensão foi, ainda, que parcialmente, procedente”, parece-nos que faz uma errada subsunção dos factos ao direito,
MM - Devendo, por isso, as autoras serem condenadas em litigância de má, conforme peticionado, por se ter revelado e cabalmente demonstrado que tais pedidos eram infundados e injustos e que as autoras dolosamente, deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar.
MMM -Agindo contra factum próprio, ao imputarem ao réu a venda da medeira por aquelas vendida.
N- Sob pena de violação dos artigos 615º n.º 1 al. c), 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, deve o presente recurso proceder e revogar-se a douta sentença ora em recurso e prolatada nova decisão, com as alterações da matéria de facto enunciadas nas presentes alegações e, em consequência, ser o réu absolvido dos pedidos, bem como as autoras condenadas em litigância de má fé, ordenando a procedência do recurso, assim se fazendo a devida e costumada JUSTIÇA!”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II. Delimitação do Objeto do Recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, são as seguintes:
1 - Saber se a sentença é nula;
2 - Saber se houve erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 6) a 8) dos factos provados e ponto e) dos factos não provados;
3 - Saber se houve erro na subsunção jurídica dos factos;
4 - Saber se as Autoras litigaram de má-fé.
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III. Fundamentação
3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:
1. Encontra-se inscrito a favor das Autoras o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o n.º ...52 do Distrito ..., Concelho ..., Freguesia ..., denominado “... a cultivo e com videiras em ramada, com a área de 10.000 m2 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., na Freguesia ... sob o n.º ...57, desde ../../1996. 2. O prédio supra identificado em 1., adveio ao domínio das autoras por escritura pública outorgada no Cartório Notarial ..., em 25/03/1996, pela qual DD, declarou doar àquelas e estas declararam aceitar o dito imóvel.
3. No mesmo documento de escritura pública, foi ainda constituído usufruto simultâneo e sucessivo a favor da doadora DD e do Marido EE, e por eles aceite.
4. Em ../../2011 faleceu na freguesia ..., Concelho ..., o usufrutuário EE.
5. O prédio rústico doado às autoras, encontrava-se cultivado com eucaliptos adultos de grande porte e arbustos.
6. Em 2019, CC, aqui réu e vizinho de uma das propriedades da usufrutuária – DD - solicitou-lhe que lhe emprestasse o terreno identificado em 1., para temporariamente, aí depositar algumas pedras, inertes e restos de materiais de construção, que obteve da sua empresa de terraplanagens e resultantes de obras por esta executadas e que queria aproveitar para si.
7. Como eram apenas alguns materiais e o empréstimo seria temporário e atentas as boas relações de vizinhança que mantinha com o réu, que para além de vizinho, era também presidente da junta, a usufrutuária acedeu ao pedido deste e durante o ano de 2019, cedeu-lhe verbalmente, a título gratuito e de forma temporária, o terreno identificado no artigo 1º.
8. O réu passou a usar o terreno, aí depositando diversos materiais provenientes de restos de construções e material constituído por pedras, areias e outros inertes.
9. Algum tempo depois, o réu procedeu ao derrube de alguns dos eucaliptos, terraplanou parcialmente o terreno, abriu um estradão que cobriu com brita para circulação de camiões, que passaram a entrar e sair do terreno.
10. Em ../../2020, faleceu na freguesia ..., Concelho ..., a usufrutuária DD.
11. Com o decurso do tempo e já após o óbito da usufrutuária, o réu passou a depositar grandes quantidades de pedra e areias, bem como a colocar máquinas no terreno, usando-o como se fosse um estaleiro de obras, sem o consentimento das autoras.
12. Após o óbito da usufrutuária, as autoras solicitaram ao réu para proceder à remoção dos objetos depositados no terreno, bem como para efetivar a restituição do terreno, no estado em que este se encontrava anteriormente ao acordo em causa.
13. Em 15/11/2022, a autora AA, enviou uma carta registada com aviso de receção ao réu, e em 10/01/2023, as autoras enviaram nova carta registada com aviso de receção ao réu, pedindo a restituição do terreno, por considerarem cessado o acordo de empréstimo.
14. Apesar das notificações das autoras até à presente data, o terreno não foi devolvido nem os materiais e objetos lá depositados foram removidos.
15. O prédio em causa acarretava à usufrutuária DD, despesas anuais de valor não concretamente apurado para proceder à limpeza do mato e vegetação.
16. O referido prédio nunca foi de cultivo.
17. O terreno em causa está inserido no Plano Diretor Municipal de ..., como “Espaço para atividades económicas”.
18. Entre junho e julho do ano de 2020, as autoras venderam a madeira resultante do abate das árvores a pessoa que tem como atividade profissional o abate e venda de madeira, recebendo o valor global de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) pelo produto dessa venda.
19. O portão que existe no terreno e que se encontra sempre aberto, foi colocado pela Junta de Freguesia ... em junho de 2017, decorrente de uma operação de cedência de terreno ao domínio público.
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:
a) Que o referido em 9. tivesse sido sem o consentimento da usufrutuária.
b) Que os materiais depositados, a terraplanagem e a construção do estradão e coberto por brita, bem como a circulação de veículos pesados, a colocação do portão, acrescendo ao derrube das árvores, tenha alterado a finalidade do terreno rústico com apetência para a agricultura.
c) Que tais atos prejudicaram e afetaram a capacidade agrícola do terreno, causandolhe erosão e diminuindo as qualidades de cultivo do solo.
d) Que o réu tenha beneficiado da madeira resultante do abate das árvores.
e) Que o acordo referido em 6. tivesse sido celebrado pelo período de 10 anos.
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3.2. Da nulidade da sentença
Vem o Recorrente invocar a nulidade da sentença recorrida por entender que é obscura e ininteligível.
Dispõe o n.º 1 do artigo 615º do CPC que:
“1 - É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.
No que agora aqui releva, importa decidir se se verifica a nulidade do acórdão nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do referido artigo 615º, a qual pressupõe que os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A este propósito pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/02/2022 (Processo n.º 3504/19.8T8LRS.L1.S1, Relatora Conselheira Rosa Tching) considerando que “[n]o que concerne à causa de nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do citado art. 615º, vem a doutrina e a jurisprudência entendendo, sem controvérsia, que a oposição entre os fundamentos e a decisão constitui um vício da estrutura da decisão. Dito de outro modo e na expressão do Acórdão do STJ, de 02.06.2016 (proc nº 781/11.6TBMTJ.L1.S1), «radica na desarmonia lógica entre amotivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso». Ou seja, refere-se a um vício lógico na construção da sentença: o juiz raciocina de modo a dar a entender que vai atingir certa conclusão lógica (fundamentos), mas depois emite uma conclusão (decisão) diversa da esperada”.
Ora, analisando a sentença recorrida afigura-se-nos manifestamente que não padece de qualquer obscuridade ou ininteligibilidade que gere a sua nulidade.
Questão distinta é a da fundamentação se apresentar como deficiente, obscura ou contraditória, caso em que haverá lugar à aplicação do disposto no artigo 662º do CPC; porém, o chamado erro de julgamento não se confunde com nenhuma das nulidades taxativamente previstas no referido artigo 615º.
Como se afirma no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/03/2021 (Processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, Relatora Conselheira Leonor Cruz Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt): “I. Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual -nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma- ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma”.
O alegado pelo Recorrente relativamente à motivação do Tribunal a quo, podendo configurar um alegado erro de julgamento, que oportunamente iremos apreciar, não constitui qualquer nulidade da sentença.
Improcede, por isso, desde já e nesta parte, o recurso.
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3.4. Da modificabilidade da decisão de facto
Conforme preceitua o n.º 1 do artigo 662º do CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do CPC, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
No caso concreto mostram-se cumpridos pelo Recorrente os ónus impostos pelo artigo 640º n.º 1 do CPC.
Vejamos. O Recorrente sustenta que houve erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 6) a 8) dos factos provados e ao ponto e) dos factos não provados, os quais têm a seguinte redação:
“6. Em 2019, CC, aqui réu e vizinho de uma das propriedades da usufrutuária – DD - solicitou-lhe que lhe emprestasse o terreno identificado em 1., para temporariamente, aí depositar algumas pedras, inertes e restos de materiais de construção, que obteve da sua empresa de terraplanagens e resultantes de obras por esta executadas e que queria aproveitar para si. 7. Como eram apenas alguns materiais e o empréstimo seria temporário e atentas as boas relações de vizinhança que mantinha com o réu, que para além de vizinho, era também presidente da junta, a usufrutuária acedeu ao pedido deste e durante o ano de 2019, cedeu-lhe verbalmente, a título gratuito e de forma temporária, o terreno identificado no artigo 1º. 8. O réu passou a usar o terreno, aí depositando diversos materiais provenientes de restos de construções e material constituído por pedras, areias e outros inertes. e) Que o acordo referido em 6. tivesse sido celebrado pelo período de 10 anos”.
Analisemos então os motivos da discordância do Recorrente, começando por referir que, relativamente ao ponto 8), o Recorrente verdadeiramente não coloca em causa a factualidade constante do mesmo.
O que está em causa, e o Recorrente pretende seja dado como provado, é que o acordo do empréstimo do terreno foi celebrado pelo prazo de dez anos, e não temporariamente, eliminando-se o ponto e) dos factos não provados.
Na verdade, o que sustenta o Recorrente é que quanto ao mesmo tema de prova, o Tribunal a quo considerou os depoimentos do Réu e da testemunha FF coerente, coincidente e espontânea e já quanto ao prazo estipulado para a duração do contrato de comodato, entendeu que a testemunha não esclareceu “a razão dos 10 anos”; entende ainda que não se pode retirar das declarações dos contraentes, o Réu e a Testemunha FF, que não fique explicada e esclarecida nos autos a razão da fixação do prazo de 10 anos, sendo que as partes do acordo, no exercício do princípio da liberdade contratual e da boa-fé negocial, fixaram livremente os termos do acordo e tendo ambos afirmado que estabeleceram o prazo de 10 anos, desconsiderar os seus depoimentos por “não explicarem a razão de tal prazo” constitui erro manifesto na valoração dos seus depoimentos.
Da motivação da sentença recorrida consta o seguinte: “(…) Quanto aos termos em que tal acordo de empréstimo ocorreu e vertidos no ponto 6. dos factos provados, tal deveu-se à análise do depoimento da testemunha FF, conjugado com as declarações de parte do réu CC, que quanto a estes factos convenceram o tribunal da veracidade dos mesmos, pela forma coerente, coincidente e espontânea. A testemunha FF, intitulando-se procurador da usufrutuária e sobrinho da mesma, referiu que foi o réu quem lhe solicitou autorização para colocar no terreno em causa as pedras e que procedia à limpeza do terreno. Relativamente à data em que tal acordo ocorreu e apesar de ter resultado da audiência final duas versões sobre a mesma, a verdade é que a data de 2019 já resultava admitida por acordo em sede de articulados, pelo que foi a mesma remetida ao elenco dos provados, tal como referido. Quanto ao uso que é feito da parcela em causa (pontos. 7., 8. e 11. dos factos provados), tal resultou dos depoimentos das testemunhas GG e HH, que se referiram à colocação de materiais referentes a obras, tais como saibro, pedra e paralelo, sendo que o próprio réu, em sede de declarações de parte confirmou o depósito de tais materiais no prédio das autoras. As testemunhas referiram-se ao terreno em causa como um estaleiro (II e JJ), sublinhando a testemunha GG a entrada e saída de camiões do réu do local. (…) Relativamente aos factos remetidos ao elenco dos não provados, deveu-se à total ausência de prova ou prova insuficiente que os permitisse infirmar. (…) Relativamente ao alegado período pelo qual o acordo havia sido celebrado entre o réu e a usufrutuária (alínea e) dos factos não provados), além do réu o ter referido, tal prazo também foi referido pela testemunha FF, pessoa que tratava dos assuntos da usufrutuária. Contudo, além da testemunha não ter esclarecido a razão dos 10 anos, a verdade é que referiu que a tia das autoras quando confrontada por estas por causa do dito empréstimo lhes disse que quando ela morresse depois “vocês resolvei”. O que aliás vai de encontro ao que havia sido referido pela autora AA, que quando confrontou a tia que a mesma lhe terá dito que quando ela falecesse elas ficariam com aquilo. Ora, sendo certo que faz mais sentido à luz das regras da experiência comum, esta versão, tendo em conta que a pessoa que tinha a posse do terreno, apenas do mesmo era usufrutuária, o próprio réu disse que o que lhe tinha sido permitido era enquanto a tia das autoras fosse viva, ainda que depois tenha dito que precisava do terreno por 10 anos, igualmente não esclarecendo a razão desse prazo. Assim sendo, considerou-se insuficiente a prova produzida para que se pudesse afirmar que o acordo havia sido celebrado por 10 anos, tendo assim sido tal facto remetido também ao elenco dos não provados”.
Constata-se, por isso, que o Tribunal a quo, na análise a que procedeu, equacionou a prova testemunhal produzida, designadamente as declarações da testemunha ora indicada pelo Recorrente, FF, bem como as declarações prestadas pelo Réu/Recorrente, mas também prestadas pela Autora AA (que chegou a confrontar a falecida tia com a ocupação que o Réu estava a fazer do terreno) e fê-lo de forma crítica e fundamentada, esclarecendo através de raciocínio lógico a forma como formou a sua convicção, especificando os fundamentos decisivos para a formação da mesma e justificando os motivos da sua decisão, designadamente esclarecendo porque não julgou provada a versão do Réu relativamente ao alegado prazo de dez anos.
E, adiantando desde já a nossa posição, não vemos que os factos contidos nos pontos impugnados pelo Recorrente, pudessem ter sido julgados de outra forma; na verdade, ouvidas integralmente as declarações da referida testemunhas, do Réu, mas também da Autora AA, e analisadas as mesmas, desde logo no confronto entre si, mas também à luz das regras da experiência comum, considerando que o acordo invocado foi celebrado com a falecida tia das Autoras que era apenas usufrutuária, não podemos deixar de concordar com a apreciação e análise critica efetuada pelo Tribunal a quo.
Vejamos.
Se efetivamente a testemunha FF referiu o prazo de dez anos, adiantando que concordou para não ter de ser ele a limpar o terreno, mas também porque se menos dinheiro gastasse mais ficaria depois para ele, a verdade é que referiu também que não correu conforme esperado pois a tia faleceu cerca de um ano depois (conforme decorre dos factos apurados o acordo concretizou-se durante o ano de 2019 e a usufrutuária faleceu em ../../2020); e confirmou a conversa entre a Autora AA e a falecida tia, quando aquela a foi confrontar com a ocupação do terreno, também relatada por esta Autora nas suas declarações, esclarecendo que a falecida tia disse que “ um dia que eu morra depois vós resolveis”; segundo esclareceu a Autora AA, a tia teria dito que não se preocupasse, que o Réu tinha pedido para colocar os materiais mas que quando ela falecesse o terreno estava “disposto a vós”, a ela e à irmã, que o Réu saía.
De salientar que o próprio Réu nas declarações que prestou esclareceu que a falecida usufrutuária disse que “enquanto fosse viva” podia lá colocar os materiais; é certo que referiu precisar de 10 anos para ter margem do que estava a gastar, mas referiu também que no mínimo seriam 10 anos, mas se a usufrutuária fosse viva ficava lá mais tempo.
O que se depreende da conjugação das referidas declarações, considerando que o alegado acordo foi celebrado com a falecida usufrutuária (ainda que por intermédio da testemunha FF), é que na sua base e quanto à sua duração estava a referência ao tempo de vida da usufrutuária, o que se nos afigura em sintonia com as regras de experiência comum, tal como salientado pelo Tribunal a quo, e de onde decorre o seu caráter temporário e não a fixação de um concreto prazo de dez anos. Veja-se ainda que o próprio Réu afirmou ter dito às Autoras que quando elas vendessem ele saía (uma vez que não conseguiram chegar a acordo quanto ao valor para ser o Réu a comprar) e ainda que aceitava pagar uma renda pela ocupação do terreno.
Assim, e conforme já adiantamos, não vemos a existência de erro de julgamento quando o Tribunal a quo considera “insuficiente a prova produzida para que se pudesse afirmar que o acordo havia sido celebrado por 10 anos”.
De todo o exposto decorre não resultar fundamento para alterar os factos impugnados, pelo que se mantêm inalterada a matéria de facto fixada pela 1ª instância.
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3.3. Reapreciação da decisão de mérito da ação
Mantendo-se inalterado o quadro factual julgado provado pelo Tribunal a quo, importa agora apreciar se deve manter-se a decisão jurídica da causa, começando por analisar os demais fundamentos constantes da apelação.
Importa começar por referir que não vem questionada no presente recurso a qualificação jurídica do acordo celebrado entre a usufrutuária do prédio e o Réu, aceitando este estar em causa um contrato de comodato tal como configurado pelo Tribunal a quo.
O que se encontra em litígio é, essencialmente, saber se ao Réu é lícito recusar a entrega do prédio às Autoras com fundamento na manutenção do contrato de comodato.
Vejamos.
Nos termos do artigo 1129º do Código Civil, comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir.
Decorre do preceituado no artigo 1135º do Código Civil que é obrigação do comodatário, entre outras, a de restituir a coisa findo o contrato [alínea h)].
A questão que aqui se coloca prende-se exatamente com a obrigação de restituição.
Quanto a esta, estabelece o artigo 1137º do Código Civil que se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação (n.º 1) e que se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida (n.º 2).
Pelo Tribunal a quo foi entendido que, não tendo sido convencionado prazo e tendo o Réu sido interpelado pelas Autoras para proceder à entrega do terreno, estava obrigado a restitui-lo, uma vez que, findo o contrato de comodato, designadamente por não ter prazo e ter sido solicitada a sua restituição, o Réu passou a ter na sua posse o prédio sem qualquer título.
É contra este entendimento que se insurge o Recorrente sustentando que resulta da matéria de facto provada que foi convencionado o uso da coisa, devendo considerar-se o comodato vigente, inexistindo fundamento legal para a restituição, e não sendo devida qualquer indemnização.
Vejamos se lhe assiste razão.
Na verdade, se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto, não tendo o comodato prazo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso e, não sendo convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida (cfr. artigo 1137º n.º 1 e 2 do Código Civil).
De referir ainda que vem sendo entendido que num contrato de comodato em que o tipo de uso da coisa não está temporalmente definido nem limitado, é de considerar também como sendo um contrato de duração indeterminada, sujeito à regra da cessação ad nutum prevista n.º 2 do artigo 1137º do Código Civil.
Neste sentido se pronuncia o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/11/2020 (Processo n.º 3233/18.0T8FAR.E1.S1, Relator Maria da Graça Trigo, disponível para consulta em www.dgsi.pt): “(…) Em razão dessa nota de temporalidade, assumida como traço essencial do comodato, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido que o «uso determinado», a que se alude no art. 1137º, do CC, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada mas antes atos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, caso em que se deve haver como concedido por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável. [nota 3: Cf., neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 13.5.2003, revista n.º 1323/03, Relator: Silva Salazar; de 27.5.2008, revista n.º 1071/08, Relator: Alberto Sobrinho; 31-03-2009; de 31.3.2009, revista n.º 359/09, Relator: Pereira da Silva; de 16.11.2010, revista n.º 7232/04.0TCLRS.L1.S1, Relator: Alves Velho, disponíveis in www.dgsi.pt.].”
Ora, no caso dos autos ficou demonstrado que em 2019 o Réu, vizinho de uma das propriedades da usufrutuária DD, solicitou-lhe que lhe emprestasse o terreno para temporariamente aí depositar algumas pedras, inertes e restos de materiais de construção, que obteve da sua empresa de terraplanagens e resultantes de obras por esta executadas e que queria aproveitar para si.
Como eram apenas alguns materiais e o empréstimo seria temporário e atentas as boas relações de vizinhança que mantinha com o Réu, que para além de vizinho, era também presidente da junta, a usufrutuária acedeu ao pedido e durante o ano de 2019, cedeu-lhe verbalmente, a título gratuito e de forma temporária, o terreno que o Réu passou a usar, aí depositando diversos materiais provenientes de restos de construções e material constituído por pedras, areias e outros inertes.
Assim, e tal como se conclui na sentença recorrida, não foi convencionado prazo certo no comodato.
Quanto ao uso do terreno resultou provado que se destinava a depositar algumas pedras, inertes e restos de materiais de construção, de forma temporária.
Assim, não estando o tipo de uso da coisa temporalmente definido nem limitado, é de considerar, conforme já referimos, como estando em causa um contrato de duração indeterminada, sujeito da mesma forma à regra da cessação ad nutum prevista n.º 2 do artigo 1137º do Código Civil, sendo o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.
Na verdade, não deve considerar-se como determinado o uso de certa coisa, quando o uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada, mas antes atos genéricos de execução continuada, se não se souber por quanto tempo vai durar, e neste caso, como ocorre no caso dos autos, deve ter-se o comodato como concedido por tempo indeterminado.
Por isso, tendo o Réu sido interpelado pelas Autoras para proceder à restituição do terreno, estava efetivamente obrigado a restitui-lo em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 1137º do Código Civil, não se mostrando legitima a recusa da sua restituição baseada no contrato de comodato.
Do exposto decorre não merecer censura o decidido pelo Tribunal a quo que condenou o Réu a restituir o prédio identificado no ponto 1) dos factos provados e a pagar às Autoras os prejuízos por estas sofridos com a privação do prédio desde ../../2022, improcedendo também nesta parte o recurso.
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3.5. Da Litigância de Má-Fé
Sustenta o Recorrente que as Autoras peticionaram o pagamento de prejuízos causados pelo réu, designadamente pela perda de capacidade agrícola do prédio (€4.000,00), bem como pelo pretenso benefício da madeira resultante do abate das árvores, numa quantia não inferior a €2.000,00 e que o Tribunal a quo deu como provado que as Autoras formularam pedidos cuja falta de fundamento não deveriam ignorar (ausência de propriedades agrícolas do terreno) e alteraram a verdade dos factos (venda da madeira que as próprias venderam), com a finalidade de conseguir um objetivo ilegal (o pagamento das quantias peticionadas ao Réu), devendo, por isso, as Autoras serem condenadas em litigância de má, conforme peticionado, por se ter revelado e cabalmente demonstrado que tais pedidos eram infundados e injustos e que as Autoras dolosamente, deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar, agindo contra factum próprio, ao imputarem ao Réu a venda da madeira por aquelas vendida.
Vejamos então se lhe assiste razão.
Conforme resulta do preceituado no artigo 8º do CPC impende sobre as partes o dever de agir de boa fé, isto é, de pautar a sua atuação processual segundo regras de conduta conformes com a boa fé, abstendo-se de formular pedidos injustos, de articular factos contrários à verdade e de requerer diligências meramente dilatórias.
A preocupação no combate aos comportamentos processuais desvaliosos e entorpecedores da realização da justiça não é recente, consagrando já o direito romano institutos destinados a sancioná-los, sendo que igual preocupação se encontra também patente desde as Ordenações Afonsinas, visando-se com tais mecanismos “sancionar apenas a ilicitude decorrente da violação de posições e deveres processuais, o também chamado ilícito processual, gerador de uma “responsabilidade de cunho próprio”, assente em deveres de lealdade, colaboração e probidade das partes, distinta portanto da responsabilidade civil” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/06/2016, Processo n.º 1116/11.3TBVVD.G2.S1, Relator Conselheiro António Joaquim Piçarra, disponível em www.dgsi.pt).
O instituto da má fé processual visa exatamente sancionar a parte que não paute a sua atuação processual segundo regras de conduta conformes com a boa fé.
Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 3ª edição, Coimbra Editora, p. 262) distinguia a este propósito quatro tipos de lide: a lide cautelosa (quando a parte esgota todos os meios para se assegurar de que tem razão e apesar disso vê inviabilizada a sua pretensão ou oposição), a lide imprudente (quando a parte comete imprudência leve ou levíssima), a lide temerária (quando a parte, embora convencida que tem razão, incorre em culpa grave ou erro grosseiro, indo a juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas que devia empregar para desfazer o seu erro, comprometendo a sua pretensão) e a lide dolosa (quando a parte, apesar de ciente de que não tem razão, litiga e deduz pretensão, ou oposição conscientemente infundada).
A opção do legislador consagrada no artigo 465º do Código de Processo Civil de 1939 fora no sentido de sancionar apenas a lide dolosa e já não a lide temerária (v. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, p. 261 a 263, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, p. 343, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume II, 2001, p. 194).
Com a revisão do Código de Processo Civil operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, o quadro normativo em matéria de litigância de má fé passou a ser mais exigente e o instituto passou a abranger, também, a negligência grave, consagrando-se expressamente “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, o “dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por ação ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjetivos” (Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Atualmente, ao sancionar-se a litigância com negligência grave proíbe-se assim, para além da lide dolosa, a lide temerária, a qual pressupõe culpa grave ou erro grosseiro; conforme refere Lebre de Freitas (ob. cit. p. 194) a lide diz-se temerária quando as regras de conduta conformes com a boa fé são violadas com culpa grave ou erro grosseiro e dolosa quando a violação é intencional ou consciente, sendo a “litigância temerária mais do que a litigância imprudente que se verifica quando a parte excede os limites da prudência normal, atuando culposamente, mas apenas com culpa leve”.
E de acordo com o n.º 2 do atual artigo 542º do Código de Processo Civil tendo uma, ou ambas as partes, litigado de má-fé, será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária.
Nos termos do nº 2 da referida disposição legal, “diz-se litigante de má-fé quem com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”
Cumpre ainda referir que é corrente distinguir a má fé material ou substancial e a má fé processual ou instrumental, tendo a primeira a ver com o mérito da causa (em que “a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual”) e a segunda com a conduta processual, “qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo. Assim, só a parte vencida pode incorrer em má fé substancial, mas ambas as partes podem atuar com má-fé instrumental, podendo, portanto, o vencedor da ação ser condenado como litigante de má-fé” (Lebre de Freitas, ob. cit. p. 196 e 197).
Atentando na previsão do n.º 2 do referido artigo 542º, as alíneas a) e b) reportam-se à má fé material ou substancial e as alíneas c) e d) à má fé instrumental.
Seja qual for a vertente em causa (má-fé material ou instrumental), a condenação por litigância de má-fé pressupõe sempre a existência de dolo ou de negligência grave e essa avaliação da atuação da parte terá de ser sempre casuística, analisando as circunstâncias concretas em que aquela se revela.
Para a condenação como litigante de má-fé terá de concluir-se por uma atuação dolosa ou gravemente negligente da parte, o que pressupõe sempre que se encontra demonstrado nos autos que a parte agiu de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a ação da justiça, litigando de modo desconforme ao respeito devido ao tribunal e às partes, e que o fez de forma consciente ou sendo-lhe exigível essa consciencialização.
No caso em apreço o Tribunal a quo considerou que os autos não indiciam litigância de má-fé por parte das Autoras, tanto mais que a sua pretensão foi, ainda que parcialmente, procedente.
Analisando a conduta das Autoras temos de concordar com o que consta da sentença recorrida e concluir que o seu comportamento processual não é censurável de forma a serem condenadas como litigantes de má-fé, não encerrando a sua conduta, não obstante não terem logrado demonstrar a totalidade dos factos por si alegados, nem tendo sido totalmente procedente a sua pretensão indemnizatória, um comportamento desvalioso, merecedor de sancionamento como litigantes de má-fé, tal como decidido pelo Tribunal a quo.
Impõe-se, pois, concluir pela improcedência do recurso, sendo o Recorrente responsável pelas custas em face do seu integral decaimento (artigo 527º do CPC).
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SUMÁRIO (artigo 663º n.º 7 do Código do Processo Civil):
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Guimarães, 2 de outubro de 2025 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária
Raquel Baptista Tavares (Relatora) José Cravo (1º Adjunto) Maria dos Anjos Melo (2ª Adjunta)