OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CONTRA-ORDENAÇÃO
LICENÇA
ERRO SOBRE A ILICITUDE
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Sumário

Sumário: (da responsabilidade do Relator)
I. A 2.ª instância conhece, em regra, apenas de matéria de direito, funcionando como tribunal de revista, sem reabertura da matéria de facto salvo vícios oficiosos do art. 410.º, n.º 2, CPP.
II. Distingue-se “questão” de “argumento”, sendo a nulidade reservada à falta de decisão sobre ponto essencial com potencial efeito útil, não abrangendo o silêncio sobre argumentos ou documentos quando a questão foi apreciada.
III. Regimes autónomos e cumuláveis, regulando, respectivamente, condições e licenciamento municipal do “recinto” (incluindo bares com música ao vivo) e a actividade de organização de espectáculos artísticos com comunicação à IGAC; a comunicação prévia não substitui a licença de utilização de recinto.
IV. A tipologia legal do art. 3.º do DL n.º 309/2002 assenta no uso efectivo como recinto de diversão/espectáculo, independentemente da acessoriedade económica ou natureza artística da actuação, exigindo verificação de segurança, lotação e condições técnicas.
V. Inexistindo conflito normativo entre competências municipais e culturais, a confiança apenas releva com acto concreto e favorável da autoridade competente; o erro é aferido pela sua evitabilidade segundo a diligência exigível ao operador.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
1.1. Nos autos de recurso de contra-ordenação n.º 776/23.7Y4LSB, vindos do Juízo Local Criminal de Lisboa — Juiz 10, foi proferida sentença em ...-...-2024 que, mantendo a decisão administrativa da Câmara Municipal de Lisboa, condenou a arguida “...” pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelos arts. 17.º e 21.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 309/2002, na redacção do DL n.º 268/2009, na coima de €6001.
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1.2. Inconformado com o assim decidido, a arguida interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
“(…)
1. Há de ser reconhecida a nulidade por omissão de pronúncia com fundamento no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP uma vez que a sentença recorrida deixou de pronunciar-se sobre questões que deveria ter apreciado, nomeadamente quanto às duas provas essenciais para um julgamento justo e quanto à violação do dever de boa-fé por parte da administração pública.
2. Há de ser reconhecido o erro de julgamento em matéria de direito porque a Recorrente não se enquadra na definição de recinto de diversão provisória, ainda que em caráter de continuidade, prevista no artigo 7-A do Decreto-Lei 309/2002. A música temática ao vivo é uma atividade acessória e integrada na atividade principal de restauração, realizada de forma regular e não ocasional. Assim, não é exigível a licença de utilização de recinto prevista para recintos de diversão provisória.
3. Há de ser reconhecido o erro de julgamento em matéria de direito porque a atividade de música ao vivo está legalmente enquadrada pelo artigo 2.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 23/2014, de 14 de fevereiro, que regula o regime de acesso e exercício da atividade de organização de espetáculos de natureza artística. Este diploma exige apenas o registo como promotor e a mera comunicação prévia à Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC), conforme o Artigo 5.º, n.º 1. Não é prevista a necessidade de licença de utilização de recinto para espetáculos de natureza artística em estabelecimentos de restauração.
4. Há de ser reconhecido o erro de julgamento em matéria de direito porque a atuação da Câmara Municipal de Lisboa viola o dever de boa-fé previsto no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e no artigo 10.º do Código do Procedimento Administrativo. A classificação divergente da atividade por parte de diferentes entidades públicas (Câmara Municipal de Oeiras, IGAC e DGAE) causa insegurança jurídica e conflitualidade de deveres à Recorrente, não lhe sendo exigível conduta diversa, especialmente por ter sido condenada pela prática de contraordenação pelas duas entidades, uma por promover espetáculos de natureza artística e outra por promover espetáculo de natureza não artística, sendo as duas condenações referentes à música temática ao vivo no estabelecimento.
(…)”
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1.3. O Ministério Público respondeu, pugnando pela manutenção da decisão, sustentando, quanto à invocada nulidade, que a omissão de pronúncia incide sobre “questões” e não sobre “argumentos”, e, quanto ao mérito, que a factualidade provada integra a utilização de recinto para diversão/espectáculo em carácter de continuidade, sujeita a licença municipal nos termos do DL n.º 309/2002, não sendo afastada pelo regime do DL n.º 23/2014; mais assinala histórico de autuações, tornando inexigível a exclusão da culpa por erro.
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1.4. Nesta Relação, foi emitido parecer do Ministério Público (art. 416.º, n.º 1, CPP), que aderiu à resposta do MP em 1.ª instância e promoveu julgamento em conferência (art. 419.º, n.º 3, CPP) e improcedência do recurso.
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1.5. Foi observado o disposto no nº 2 do art.º 417º do C.P.P..
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1.6. Não foi deduzida resposta ao parecer.
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1.7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.º 419º, nº 3, al. c), do CPP, cumprindo agora decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Como resulta do disposto nos artigos 66.º e 75.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10 (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17/10, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14/9, pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17/12 e pela Lei n.º 109/2001, de 24/12), em matéria de recurso de decisões relativas a processos por contra-ordenações, a 2.ª instância funciona como tribunal de revista e como última instância.
Com efeito, o n.º 1 do mencionado artigo 75.º estabelece que “se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá de matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões”.
Assim, está efectivamente limitado o poder de cognição deste tribunal à matéria de direito, funcionando o Tribunal da Relação como Tribunal de revista ampliada, ou seja, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, por força do disposto nos artigos 41.º, n.º 1 e 74.º, n.º 4 do R.G.C.O., já que os preceitos reguladores do processo criminal constituem direito subsidiário do processo contra-ordenacional.
Considerando o teor das conclusões do recurso, as questões a decidir são as seguintes:
i) nulidade por omissão de pronúncia;
ii) erro de julgamento de direito quanto ao diploma aplicável (DL n.º 309/2002 vs. DL n.º 23/2014);
iii) violação do dever de boa-fé/venire e eventual reflexo na ilicitude/culpa/medida da coima.
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2.2. A sentença tem o seguinte conteúdo no que tange aos factos provados/não provados e motivação da decisão de facto, nos seguintes termos: (transcrição)
(…)
Factos provados:
Dos elementos constantes dos autos, resultam provados os seguintes factos, com interesse para a boa decisão da causa:
1. No dia ... de ... de 2021, pelas 19:50 horas, na Av. …., em Lisboa, a arguida mantinha o estabelecimento de restauração e bebidas, denominado de “...”, por si explorado, em funcionamento e aberto ao público com esplanada coberta, com as luzes acesas, musica ligadas e com as 2 portas abertas.
2. O estabelecimento tem capacidade para 24 clientes.
3. No local permaneciam 27 clientes na esplanada coberta que consumiam produtos diversos ali disponibilizados.
4. E assistiam ao espetáculo de musica ao vivo, de natureza não artística que decorria no interior do estabelecimento.
5. No interior do estabelecimento decorria um espetáculo de musica ao vivo de natureza não artística, preconizado por três indivíduos que cantavam e tocavam música auxiliados por 4 colunas com amplificadores no interior do estabelecimento.
6. O som da música era audível no exterior do estabelecimento, provocando incomodidade a residentes e terceiros.
7. No local identificado em 1. é frequente a realização de espetáculos com música gravada ao vivo.
8. A arguida tem por actividades económicas, segundo consulta efetuada online no SICAE: - por principal a actividade de Restaurantes tipo tradicional com o CAE n.º 56101.
9. No local, actuava em representação, por conta e no interesse da sociedade arguida, o gerente AA
10. No dia referido em 1) a arguida não era detentora de licença de utilização para recintos de espetáculos e divertimentos públicos e respectivo alvará a emitir pela Câmara Municipal de Lisboa para o estabelecimento identificado em 1..
11. A arguida, enquanto entidade exploradora de um estabelecimento comercial de restauração e bebidas com espaço de dança, onde se realizam espetáculos de natureza não artística, sem se encontrar munida da correspondente licença de utilização de recinto, representou a realização do facto típico, uma vez que, apesar de ter conhecimento que seria necessário obter a mencionada autorização para o exercício daquela actividade naquele local, manteve o espaço em pleno funcionamento sem a competente licença de utilização de recinto.
12. Agiu assim nas circunstâncias descritas, com conhecimento da necessidade de obtenção da referida licença de utilização de recinto, e mesmo assim continuou a actividade sem possuir licença de recinto para aquele espaço, pois podia e devia ter actuado de outro modo procedendo de acordo com as regras estabelecidas, optando por não o fazer, em nada a demovendo a realização das várias autuações e processos de contraordenação em curso.
13. E continuou sem diligenciar pela obtenção da necessária licença de recinto, cujo impulso se encontra única e exclusivamente na sua dependência.
Mais se provou que:
14. A sociedade arguida tem antecedentes contraordenacionais, tendo sido já condenada:
a) no processo de contra ordenação n.º ...-...-2021, pela prática em ........2020 e em ........2021, de duas contraordenações p. e p. pelos Artigos 17º e 21, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 309/2002, de 16 de dezembro, na redação dada pelo Decreto-Lei nº 268/2009, de 29 de setembro, em Admoestação;
b) no processo de contraordenação n.º 3-39473-2021, pela prática em ........2021 de uma contraordenação p. e p. pelos Artigos 17º e 21, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 309/2002, de 16 de dezembro, na redação dada pelo Decreto-Lei nº 268/2009, de 29 de setembro, na coima de € 600,00.
Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.

Consigna-se que não foram reconduzidas aos factos provados, nem aos não provados, as afirmações de cariz jurídico ou meramente conclusivo que integram a decisão administrativa e a impugnação judicial, por não possuírem relevância jurídico-contra-ordenacional ou pertinência para aferição dos pressupostos da responsabilidade contra-ordenacional.
***
Motivação:
O tribunal formou a sua convicção, quanto aos factos provados de 1. a 13., antes do mais, com base nos documentos juntos aos autos, mormente atentando o auto de notícia de fls. 1 a 2, o talão do estabelecimento comercial da sociedade arguida de fls. 3, a reportagem fotográfica de fls. 4 e 10, na decisão da autoridade administrativa de fls. 50 a 55/v, na impugnação judicial de fls. 65 e ss, tudo conjugado com as declarações prestadas pelo legal representante da sociedade arguida e com o depoimento da testemunha BB, tendo ainda o tribunal recorrido às regras da experiência comum, as quais nos reconduzem por padrões de habitualidade, normalidade, racionalidade e lógica, nos moldes que ficarão particularizados.
Senão vejamos:
A testemunha BB, agente da PSP que efectuou a fiscalização que motivou os presentes autos, corroborou as circunstâncias de tempo, modo e lugar onde os factos ocorreram e afirmou de forma consentânea, clara e coerente, que existiu a denúncia da existência de um espetaculo de música ao vivo e o som era amplificado.
Frisou que se dirigiu ao local no dia ........2021, cerca das 19h50, sendo que a sua presença foi devido a uma denuncia devido a ruído elevado. Que foi questionado o proprietário pela licença de recinto de espetáculo de musica ao vivo, sendo que o mesmo disse que não tinha.
Mais salientou que estavam três pessoas a actuar e o ruído era audível e ruidoso. Era um evento artístico.
Frisou que se tratava de um estabelecimento de restauração e estavam 27 pessoas na área da esplanada e existiam duas portas para fazer a circulação de ar.
Confrontado com as fotografias de fls. 4, confirma que as mesmas foram tiradas no dia da fiscalização.
O legal representante da sociedade arguida prestou declarações, afirmando que tem um estabelecimento de restauração “...”, na Av. ..., sendo que no dia ........2021, pelas 19h50 houve uma fiscalização quando estava a existir um concerto de música ao vivo de voz e violão.
Frisou que o estabelecimento tem capacidade para 24 clientes internos e 64 externos (esplanada), sendo que não se recorda quantos estavam na esplanada no dia da fiscalização.
Afirmou que a música era audível no exterior do restaurante.
Mais salientou que costuma ter este tipo de espetáculos no seu estabelecimento.
Considera que tem licença para este tipo de espetáculos, pois basta licença da SPA autores, a mera comunicação à Câmara que era submetida previamente com data, hora e pagamento de taxa e licença da IGAP.
Pois bem, da conjugação de toda a prova supra mencionada o Tribunal não teve margem para qualquer dúvida de que a arguida no dia dos factos não era detentora de licença de utilização para recintos de espetáculos e divertimentos públicos e respectivo alvará a emitido pela Câmara Municipal de Lisboa para poder ter o espetáculo de musica ao vivo de natureza não artística, preconizado pelos três indivíduos que cantavam e tocavam música auxiliados por 4 colunas com amplificadores no interior do estabelecimento que decorria no dia ........2021, pelas 19h50.
E não pode vir o legal representante alegar que considerava que tinha licença para este tipo de espetáculos, pois achava que bastava a licença da SPA autores, a mera comunicação à Câmara que era submetida previamente com data, hora e pagamento de taxa e licença da IGAP e que esses documentos ele tinha.
Ora, não pode este Tribunal olvidar que o legal representante da arguida já tinha sido alvo de duas outras fiscalizações exactamente pelos mesmos factos, em ........2020 e em ........2021, pelo que já nessas datas ficou a saber que era exigida uma outra licença, pelo que não pode vir agora alegar que desconhecia que não necessitava desta licença.
Assim, cai completamente por terra esta versão trazida pelo legal representante da sociedade arguida Assim, dúvidas não restam que o legal representante da arguida bem sabia que necessitava da licença de utilização para recintos de espetáculos e divertimentos públicos e respectivo alvará a emitido pela Câmara Municipal de Lisboa para poder ter o espetáculo de musica ao vivo de natureza não artística como aquele que estava a ter lugar no dia da fiscalização.
Assim, e face à prova produzida e supra mencionada, o Tribunal não podia deixar de dar como provados os factos constantes da decisão administrativa.
Por outro lado, sempre se dirá que os meios de prova que se descriminaram foram todos conjugados, confrontados e entrecruzados, procurando-se encontrar os pontos de confluência e de coerência dos mesmos, sendo os factos provados e não provados o resultado da sua ponderação global.
Quanto aos antecedentes contraordenacionais valorou o Tribunal o tero da prova documental junta aos autos em ........2024.
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III – APRECIANDO E DECIDINDO
3.1. nulidade por omissão de pronúncia
A CRP impõe que as decisões sejam fundamentadas (art. 205.º, n.º 1) e assegura tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º). O dever de pronúncia é a materialização processual desses comandos: o tribunal deve dar uma resposta útil às questões submetidas (e às de conhecimento oficioso). A ratio do art. 379.º, n.º 1, al. c), CPP não é sancionar decisões sucintas ou parcimoniosas, mas sanar erros de “lacuna decisória”: quando uma questão — i.e., um problema jurídico-factual com potencial para alterar o resultado — não foi decidida. Por isso mesmo, é nulidade a ausência de decisão sobre um ponto essencial; já a insuficiência do exame crítico, a contradição ou a ininteligibilidade da motivação enquadram-se no art. 374.º, n.º 2, conjugado com os vícios do art. 410.º, n.º 2, ambos do CPP. Esta teleologia previne um desvio: transformar a nulidade por omissão de pronúncia numa exigência de “resposta atomística” a todos os argumentos, o que a CRP não impõe e as regras de economia processual desaconselham.
“Questão” é o núcleo de decisão que a lei exige que seja decidido: p. ex., prescrição do procedimento, nulidade da prova, qualificação jurídico-penal, existência de causa de exclusão da ilicitude/culpa, admissibilidade de um meio impugnatório, conhecimento de uma impugnação de facto estruturada nos termos do art. 412.º, nºs 3–6. “Argumento” é a razão, autoridade, peça ou exemplo invocado para conduzir à solução da questão. A distinção é funcional: a omissão de pronúncia só existe quando a “questão” fica por decidir; o silêncio sobre um “argumento” não gera nulidade se a questão foi apreciada e decidida.
A argumentação da recorrente colide frontalmente com esta dogmática, por confundir tais planos.
A recorrente invoca, como “omissão”, a falta de referência explícita a documentos/orientações administrativas e a actos sancionatórios externos. Mesmo que se admitisse que tais elementos mereciam apreciação, essa exigência vive no terreno da fundamentação (CPP, art. 374.º, n.º 2) e do exame crítico (CPP, art. 127.º), não no da omissão de pronúncia. A lei pretende que a decisão exponha factos provados/não provados, meios de prova essenciais e raciocínio; não exige um glossário exaustivo de todas as autoridades citadas pelas partes. Onde há decisão da questão, mas parcimónia argumentativa, o remédio é a sindicância por insuficiência/erro notório/contradição (CPP, art. 410.º, n.º 2), não a anulação por falta de decisão. A confusão conceptual proposta pela recorrente implicaria uma “hipertrofia” do art. 379.º do CPP, transformando-o em válvula universal de descontentamento, com inequívoco efeito desorganizador da tramitação e da estabilidade das decisões.
A alegação de omissão exige, pois, que a recorrente identifique uma “questão” autonomizada nas conclusões e demonstre que faltou qualquer decisão sobre ela. Ora, quando a sentença decide o regime aplicável, aprecia o erro/boa-fé com base em factos provados e confirma a medida da coima, deu as respostas necessárias às questões colocadas. A economia decisória também releva: estando resolvida a questão principal (v.g., aplicabilidade de certo regime jurídico), torna-se inútil discutir argumentos subsidiários que não teriam potencial para alterar o resultado. Daí que a ausência de resposta a cada derivação retórica não consubstancie omissão, antes sendo legítima gestão da relevância decisória.
A recorrente erige a omissão na consideração de documentos e actos de entidades administrativas em “omissão de pronúncia”. Tal argumentação não pode proceder, porquanto: i) a pronúncia jurisdicional versa questões jurídico-processuais do caso; ii) actos/pareceres externos só são relevantes na medida em que densifiquem factos ou normas aplicáveis; iii) uma vez decidida a questão — p. ex., qualificação normativa de uma actividade e regime que a rege — o tribunal não incorre em nulidade por não comentar, um a um, todos os pareceres ou decisões de outras autoridades. A autoridade administrativa ao qualificar uma actividade de certa forma não vincula o juiz em diferente processo, nem converte a sua não transcrição na sentença num vácuo decisório. Pretender o contrário seria introduzir um “dever de apreciação” estranho ao CPP. Se a recorrente entende que tais peças eram essenciais, deve demonstrar a sua relevância para a “questão” (não meramente como argumento) — o que não logrou fazer.
Outra linha argumentativa da recorrente é a de que o tribunal a quo teria omitido pronúncia sobre boa-fé/venire e erro desculpável. A análise textual da sentença evidencia o contrário: quando avalia o histórico de autuações, pondera a previsibilidade normativa e conclui pela evitabilidade do erro, está a decidir a questão — rejeitando-a. Não há omissão porque há decisão, ainda que desfavorável. A boa-fé administrativa não derroga automaticamente regimes cumulativos, nem converte divergências interadministrativas em causas de exclusão da culpa (RGCO, art. 9.º). Para haver omissão, seria necessário que a sentença não tivesse dito nada sobre o pedido de reconhecimento de erro ou sobre a invocação de confiança; bastará, porém, um raciocínio que, com base em factos provados, conclua pela sua improcedência para excluir a nulidade. A via adequada para criticar essa conclusão seria atacar a valoração de factos (impugnação do art. 412.º, nºs 3–6, que já vimos estar vedada à natureza do processo contra-ordenacional); nunca o 379.º, n.º 1, al. c) do CPP.
A recorrente não demonstra o requisito essencial: que a omissão, a existir, recaia sobre uma questão com efeito útil. Mesmo admitindo que faltasse um comentário a certo documento, isso não altera que a questão da qualificação normativa tenha sido decidida, com consequências no dispositivo. A nulidade exige prova de “ausência absoluta” de decisão sobre um ponto que, se apreciado, poderia conduzir a desfecho diverso. Onde há decisão, por mais concisa que seja, o desvio conceptual para o 379.º do CPP é indevido. Em termos probatórios, a aferição da omissão é feita “pelo texto da decisão” (CPP, art. 410.º, n.º 2, por paralelismo metodológico).
Em conclusão: i) a omissão de pronúncia é um vício de “falta de decisão” sobre uma questão; ii) argumentos, documentos ou actos externos não transformam o silêncio sobre si mesmos em nulidade se a questão foi decidida; iii) o dever de fundamentação assegura a racionalidade mínima, mas não impõe negação atomística; iv) os alegados temas de boa-fé/erro foram apreciados e rejeitados com base em elementos probatórios, objecto de decisão, o que exclui a omissão. Em consequência, a argumentação da recorrente é julgada improcedente.
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3.2. erro de julgamento de direito quanto ao diploma aplicável (DL n.º 309/2002 vs. DL n.º 23/2014)
O DL n.º 23/2014 regula o acesso e exercício da actividade de promotor/organizador e a realização de espectáculos de natureza artística” (música, teatro, dança, etc.), com foco na liberdade de criação, circulação cultural e racionalização procedimental perante a IGAC (v.g., comunicação prévia do art. 5.º). Trata-se de regulação de actividade cultural e de tutela do público na dimensão informativa e de conformidade cultural/logística mínima. Em contraste, o DL n.º 309/2002, densificado pelo DL n.º 268/2009, incide sobre os recintos de espectáculos e de diversão, disciplinando a aptidão física, condições de segurança, meios de evacuação, resistência ao fogo, lotação, instalações técnicas e a licença de utilização municipal para o uso específico. A separação de planos é estrutural: um diploma versa o que se faz (actividade artística) e o outro onde e em que condições físicas e urbanísticas se faz (recinto e uso do imóvel).
Ou seja, os diplomas operam em planos distintos e cumuláveis. O DL n.º 23/2014 regula o acesso e exercício da actividade de organização de espectáculos de natureza artística. O DL n.º 309/2002 disciplina os recintos de diversão e os recintos destinados a espectáculos de natureza não artística e as respectivas condições de segurança/uso, sustentando-os num processo de licenciamento municipal. O seu art. 3.º é textual: «Para os efeitos do presente diploma, são considerados como recintos de diversão e recintos destinados a espectáculos de natureza não artística os locais, públicos ou privados, construídos ou adaptados para o efeito, na sequência de um processo de licenciamento municipal, designadamente: a) Bares com música ao vivo; b) Discotecas e similares; c) Feiras populares; d) Salões de baile; e) Salões de festas; f) Salas de jogos eléctricos; g) Salas de jogos manuais; h) Parques temáticos
Esta enumeração — “designadamente” — tipifica o recinto pelo uso do espaço, não pela estética do repertório. Um bar com música ao vivo integra, de raiz, o âmbito do DL n.º 309/2002, exigindo licença municipal; a comunicação prévia do DL n.º 23/2014 não substitui a licença de utilização do recinto. Ausente cláusula de prevalência/derrogação, impõe-se a cumulação: comunicação à IGAC, quando aplicável, e licenciamento municipal do recinto quando o uso efectivo do espaço o exige. A sentença, ao reconduzir a actividade a recinto carecido de licença municipal, não incorreu em erro de direito.
A invocada acessoriedade económica não neutraliza o art. 3.º do DL n.º 309/2002. O legislador não qualifica pelo objecto principal do estabelecimento, mas pelo uso efectivo do espaço como recinto de diversão construído ou adaptado na sequência de um processo de licenciamento municipal, incluindo expressamente bares com música ao vivo. Sempre que um restaurante promova, com carácter de continuidade, música ao vivo amplificada perante público, ocorre adaptação funcional que reconduz o espaço à tipologia legal do art. 3.º, exigindo licença municipal de utilização e verificação de condições técnicas (lotação, evacuação, instalações, meios de 1.ª intervenção). A qualificação “artística” é irrelevante neste plano; o DL n.º 309/2002 tipifica o recinto e não a estética do espectáculo. A factualidade provada demonstra música ao vivo, público superior à capacidade, amplificação sonora audível no exterior e inexistência de licença de recinto, corroborada por antecedentes contra-ordenacionais — quadro que justifica plenamente a subsunção efectuada.
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3.3. violação do dever de boa-fé/venire e eventual reflexo na ilicitude/culpa/medida da coima.
A recorrente constrói um cenário de conflitualidade de deveres: a IGAC e a DGAE qualificariam a música ao vivo como artística, bastando comunicação prévia, enquanto a CML exigiria licença de recinto para actividades não artísticas, violando a boa-fé e gerando erro inevitável. Do ponto de vista jurídico, não há contradição normativa. IGAC e Município exercem competências em planos distintos e cumuláveis: a comunicação prévia cultural não dispensa a verificação municipal de segurança/uso; e a exigência de licença municipal não ordena não comunicar à IGAC. Inexistindo comandos mutuamente excludentes, não há conflito de deveres; há cumulação de ónus legítima. As “orientações” da DGAE — guias práticos e informação sectorial — carecem de força derrogatória; não são títulos substitutivos de licença municipal. A confiança tutelável exige acto concreto e favorável da entidade competente pelo título que depois seria denegado em termos contraditórios, o que não se verifica in casu. A este propósito, a própria argumentação da recorrente, tal como consta da motivação e nas suas conclusões, assenta em pressupostos e entendimentos genéricos, não em acto municipal favorável específico; daí que não se configure venire contra factum proprium nem protecção da confiança oponível à CML.
No plano do erro sobre a ilicitude (RGCO, art. 9.º), o padrão é o da inevitabilidade aferida à luz da diligência exigível a um operador económico que altera materialmente o uso do espaço. O histórico de autuações e a continuidade da actividade sem licença tornam, no mínimo, evitável qualquer erro, esvaziando a invocação de inexigibilidade. A sentença valorou expressamente os antecedentes contra-ordenacionais e o prosseguimento consciente da actividade sem título, o que compromete a argumentação de erro inevitável e reforça a culpa da recorrente. Também por aqui improcede a arguição de boa-fé/erro desculpável.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, manter integralmente a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, sendo a taxa de justiça de 4 UCS.
Notifique.
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Lisboa, 08 de outubro de 2025
Alfredo Costa
Cristina Isabel Henriques
Mário Pedro M.A. Seixas Meireles

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.
(escrita de acordo com a anterior grafia)
______________________________________________________
1. a) Condeno a sociedade arguida ...» pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 17.º, 21.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 309/2002, de 16 de dezembro, da redacção dada pela Decreto-Lei n.º 268/2009, de 29 de Setembro, na coima de € 600,00 (seiscentos euros) mantendo-se na íntegra a decisão administrativa;