PRISÃO PREVENTIVA
SUBSTITUIÇÃO
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
CASO JULGADO
Sumário

Sumário: (da responsabilidade da Relatora)
I. O despacho recorrido aplicou à recorrente a medida de coação de prisão preventiva e o caso julgado forma-se relativamente à tal decisão de aplicação dessa medida e não relativamente à observação feita da possibilidade eventual e condicionada da sua substituição por obrigação de permanência na habitação, observação essa não essencial à decisão de aplicação da medida de coação de prisão preventiva.
II. Tal observação consubstancia obiter dicta, ou seja, uma observação ou afirmação sobre facto hipotético que não faz parte da decisão tomada pelo tribunal.
III. Inexiste qualquer violação de caso julgado, posto que este respeita apenas à sujeição da recorrente à medida de coação de prisão preventiva e sempre com a ressalva que estamos no âmbito de medidas de natureza cautelar as quais são suscetíveis de revogação, alteração, suspensão, extinção de acordo com o previsto nos artigos 212º a 218º do Código de Processo Penal de molde a que o estatuto coativo respeite ao longo das fases processuais penais os princípios e a natureza provisória que as enforma.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1-RELATÓRIO:
Por despacho proferido nos autos de inquérito com o nº224/25.8JELSB foi decidido indeferir o requerimento formulado pela arguida AA de substituição da medida de coação de prisão preventiva por obrigação de permanência na habitação fiscalizada por meios de controlo à distância (vigilância eletrónica).
*
Inconformada recorreu a arguida do referido despacho extraindo da motivação do seu recurso as seguintes conclusões:
1.A recorrente foi submetida a interrogatório judicial porquanto fora detida, no Aeroporto de Lisboa, na posse de determinada quantidade de cocaína dissimulada na sua mala de mão.
2.A arguida não pretendia prestar declarações porquanto, como afirmou, sentia medo, muito medo de sofrer represálias, especialmente nas pessoas suas duas filhas, bem expressamente incluídas nas ameaças.
3.E tudo o mais que acabou por declarar e não cabe somente no último parágrafo do Auto de Interrogatório, com início às 14:14:18 horas e seu termo às 14:18:26 horas porquanto, durante esse tempo a arguida mostrou-se arrependida, intimidada, sincera, sendo possível até sair evidenciado que a mesma foi apenas um “foguete” nas mãos de verdadeiros experientes criminosos. O que, de resto, é frequente nestes casos.
4.E não será o facto de a ora recorrente ter afirmado alto e bom senso (e devidamente gravado nos ficheiros do auto) que iria ganhar a quantia de cinco mil euros que lhe retirará, de sopetão, o estatuto de também vítima dessa organização criminosa.
5. Com efeito, tal como também referiu a Eminentíssima Juíza de Instrução, a arguida/vítima, mostrou sinceridade e sobretudo aterrorizada pelas ameaças às suas filhas.
00:05:02
00:05:31
Temos como nós vimos à nossa frente uma jovem mulher de 26 anos idade, solteira, que tem já duas filhas de tenra idade, 2 de 10 anos, que dependem economicamente dela, está desempregada há dois anos sem receber subsidio de desemprego, rendimento social ou qualquer outro subsidio, foi aliciada pelos €5.000,00, que lhe foi dito que iria receber quando fizesse o transporte (...)
00:08:04
Vimos à nossa frente uma mulher trucidada pela dor, portanto tinha esse medo, toda esta situação que ela sabia que poderia viver e que está a viver que mesmo assim fez com que agisse, não é! Ela Falou em ter medo, ela foi contactada por indivíduos, é um direito que é dito, conta até no TIR que prestam e que é também obrigação do Juiz, tem direito ao silêncio e ela optou por não identificar as pessoas, mas ela foi clara quando disse que contactada mesmo em ... e cá para fazer esse transporte e que designadamente tocaram no ponto mais fraco da Sra. que é justamente as filhas, portanto Sr. Dr. Não há nada mais importante de que um filho, e que por um filho uma mãe vira uma Leoa, todos nós sabemos disso, de facto é o medo e sabendo de tudo isto, no entanto a Sra. aceitou fazer o transporte desta grande quantidade de cocaína, (...) foi uma Sra. que na sinceridade, na singeleza das palavras disse a difícil situação económica que estava a fez fazer aquilo, agir e fazer o transporte.
6.Como não poderia deixar de acontecer, quer o M°P° quer a Defesa da arguida alegaram no sentido das medidas de coacção.
7.Essencialmente o M°P° alegou no sentido de perigo de fuga, de continuação da actividade criminosa e de alarme social.
8.Por seu lado, a Defesa da arguida contrariou a existência desses mesmos perigos.
9.Findo o que a Meritíssima Juiz de Instrução, declarou oralmente a sua conclusão face ao debate que presenciou, discordando dos argumentos da Defesa quanto, pelo menos, à existência dos perigos atrás mencionados.
10.Tal discordância, todavia, somente quanto aos perigos a que alude o art° 204° do C.P.P. epigrafado de “Requisitos gerais, os quais constituem, apontam apenas e somente, os requisitos de qualquer medida de coacção (à excepção do TIR a que se refere o art 196°).
11.Donde que será pela INTENSIDADE dos perigos mencionados no art° 204° e no caso de se considerarem INADEQUADAS OU INSUFICIENTES as outras medidas previstas Capítulo I do Título II do C.P.P. é que poderá ser aplicada a prisão preventiva.
12.E terá sido, como exemplarmente foi realizado pela Meritíssima Juiz de Instrução, por aplicação deste princípio da subsidiariedade e excepcionalidade de prisão preventiva, que a mesma insigne magistrada oralmente deixou gravadas estas palavras:
00:11:04 até 00:11:57
Para fazer face a esses perigos que foram enumerados e ponderando essas medidas que existem, em relação à permanência na habitação nós não temos elementos, a Sra. arguida não forneceu esses elementos. Poderá haver condições para a mesma vir a ficar na habitação com fiscalização, se houver elementos ao Tribunal não choca apreciá-los, solicitar primeiramente o competente Relatório apreciar ouvindo o M° P° e se a arguida fizer requerimento nesse sentido, o Tribunal irá apreciar.
13.Isto é, APÓS as doutas considerações do M° P° e das alegações em contrário da Defesa, a Meritíssima Juiz, perante os factos eventualmente criminosos da arguida, considerou, casu” a possibilidade da substituição da prisão preventiva pela OPHVE. (dentro, aliás, da orientação do art° 213° n° 4 do C.P.P.).
14.Assim sendo, tendo sido auscultados os argumentos do M° P° e da Defesa, ainda assim a Insigne Magistrada judicial admitiu que lhe faltavam elementos de facto para o eventual OPHVE e admitiu que poderá haver condições para a arguida vir a ficar na habitação, com fiscalização.
15.No seguimento desse despacho oral e gravado no Auto, a Insigne Magistrada decidiu que se houver elementos ao Tribunal não choca aprecia-los, solicitando primeiramente o competente Relatório Social por parte da D.G.R.S.P.
16.Na literalidade destes actos, a arguida apresentou requerimento no sentido da realização do Relatório Social pela D.G.R.S.P., até com documentos de consentimento para a efectivação dessa medida pelas restantes ocupantes da residência indicada.
17.Aqui chegados, o que motiva o presente RECURSO é tão somente o facto de o douto Tribunal não ter dado cumprimento ao que tinha sugerido, através da decisão de nem sequer se pedir ao D.G.R.S.P. a realização do Relatório Social para medida de coacção.
18.Trata-se eventualmente de mero lapso, uma vez que, não o fazendo, estaríamos, isso sim, numa reversão de um próprio despacho transitado em Julgado, com usurpação dos poderes/deveres dos nossos Tribunais superiores e de acordo com o princípio “REBUS SIC STANTIBUS”.
19.Ao condicionar o eventual OPHVE, já depois de ter ouvido a Acusação e Defesa, à busca de elementos de facto (técnicos, psicológicos e sociais) que só a D.G.R.S.P. pode proporcionar com isenção e independência, a Meritíssima Juíza, “a quo” a que, deveria suspender a decisão até à chegada aos autos desses mesmos elementos.
Violaram-se as seguintes disposições Artigo 204 n° 1, art° 201, art° 193 n° 5 todos do CPP porquanto, ouvidos o M° P° e a Defesa do arguido e devidamente equacionados os perigos nos moldes do primeiro artigo citado, foi ADMITIDA, “in casu”, a possibilidade de substituição da prisão preventiva pela de OPHVE, subordinada ao conhecimento dos elementos de facto a serem colhidos pela D.G.R.S.P. através de Relatório Social, o qual tinha sido decidido realizar por despacho judicial transitado em julgado.
E, não obstante, surge mero e lacónico despacho judicial de que ora se recorre e nega o cumprimento do despacho anterior, em manifesta violação de “caso julgado e princípio “REBUS SIC STANTIBUS”.
Termina pugnando pela revogação do despacho recorrido com a consequente determinação da realização de relatório pela DGRSP para aferir da possibilidade de substituição da medida de prisão preventiva por obrigação de permanência na habitação sujeita a vigilância eletrónica.
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Admitido o recurso o Ministério Público apresentou resposta extraindo da mesma as seguintes conclusões:
i. As razões invocadas pela recorrente no presente recurso não têm, de todo, a virtualidade de demonstrar o incumprimento de um qualquer despacho anteriormente proferido pela Mma. JIC, porquanto o despacho judicial anterior não impôs a realização de relatório social nem garantiu qualquer substituição da medida de coação.
ii. Conforme entendimento reiterado na jurisprudência, a decisão que determina a prisão preventiva, embora não seja definitiva, mantém-se imodificável enquanto não se verifique uma alteração que atenue as circunstâncias que a sustentaram — ou seja, enquanto persistirem inalterados os pressupostos que legitimaram a sua imposição.
iii.Assim, aqui chegados, seria apenas através da verificação de facto novo relevante, apto a atenuar de forma significativa as exigências cautelares em que se alicerça a medida de coação decretada, que se poderia proceder à alteração da medida de coação de prisão preventiva, substituindo-a por medida de coação menos gravosa.
iv.Afastada a aplicação de medida de coação não privativa da liberdade e afastada, igualmente, a aplicação da OPHVE nos presentes autos, por se mostrarem inadequadas e insuficientes, surge, assim, como única medida de coação necessária, adequada e proporcional, com respeito pela sua natureza excecional, a prisão preventiva, como bem se avaliou e decidiu na decisão da Mma. JIC que aplicou a prisão preventiva.
v.Após, acrescentou a Mma. JIC o seguinte - conforme gravação junta aos autos:
vi.“Para fazer face a esses perigos que foram enumerados e ponderando as outras medidas que existem, em relação à permanência na habitação nós não temos elementos, a Sra. arguida não forneceu esses elementos. Poderá haver condições para a mesma vir a ficar na habitação com fiscalização, se houver elementos ao Tribunal não choca apreciá-los, solicitar em primeiro lugar o competente Relatório e apreciar ouvindo o MP arguida fizer requerimento nesse sentido, o Tribunal irá apreciar”.
vii.Das palavras da Mma. JIC retira-se facilmente que nem aplicou a OPHVE, nem - ao contrário do que afirma a recorrente - decidiu, por despacho, a realização de relatório social pela DGRSP.
viii.De facto, não obstante a Mma. Juíza de Instrução Criminal ter admitido, no despacho que decretou a prisão preventiva, a possibilidade de futura aplicação da obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, resulta evidente do mesmo despacho que a medida de coação efetivamente imposta foi a prisão preventiva, ficando qualquer eventual substituição condicionada ao cumprimento dos demais pressupostos legais.
ix.Posteriormente, veio a arguida solicitar a substituição da prisão preventiva por OPHVE, o que foi indeferido pelo Tribunal a quo, sendo contra este despacho que a recorrente se insurge e apresenta recurso, porquanto, no seu entendimento, a Mma. JIC devia ter determinado a elaboração do relatório social, de modo a aquilatar das condições para aplicação da OPHVE.
x.Ora, no despacho ora recorrido considerou-se, que, pese embora o papel da arguida se tenha cingido ao transporte do estupefaciente, a verdade é que agiu integrada numa rede de tráfico de droga internacional, com a qual possui contactos e ligações internacionais que lhe permitem evadir-se para o estrangeiro, caso seja colocada em liberdade. Ademais, tendo a arguida agido motivada por uma contrapartida económica, existe um sério risco que, permanecendo em liberdade, reitere a atividade criminosa, com vista à obtenção de vantagem económica.
xi.A decisão proferida por Sua Exa. a Mma. Juíza de Instrução Criminal fundamentou-se no entendimento de que nenhuma medida menos restritiva, designadamente a obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, seria suficiente para acautelar os perigos concretamente identificados, nomeadamente o perigo de fuga, o perigo de continuação da atividade criminosa e o perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.
xii.A elaboração do relatório social justificar-se-ia se o tribunal admitisse, com um mínimo de verosimilhança, a possibilidade de substituição da prisão preventiva pela OPHVE.
xiii.Ao concluir que nenhuma medida menos gravosa do que a prisão preventiva seria apta a assegurar os fins do processo penal, a Mma. Juíza não ordenou a realização do referido relatório social, na medida em que este se destinaria a apurar da viabilidade de uma medida que, no caso concreto, não é suficiente e adequada à luz das exigências cautelares do caso concreto.
xiv.Nesse sentido, a não realização do relatório social é uma mera consequência lógica do entendimento da Mma. JIC sobre a inadequação de qualquer outra medida coativa que não seja a prisão preventiva.
xv.Por tudo o exposto, tendo em linha de conta que só a prisão preventiva é capaz de fazer face aos perigos do caso concreto, andou bem a Mma. JIC a quo ao proferir a decisão recorrida, não podendo decidir senão a manutenção da prisão preventiva anteriormente aplicada.
Termina pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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Remetido o recurso a este Tribunal da Relação foi emitido pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto parecer aderindo os argumentos da resposta do Ministério Público da 1ª Instância.
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Uma vez que o parecer não aduz novos argumentos não houve (nem tinha de haver) cumprimento do disposto no artigo 417.º n.º 2 do Código Processo Penal.
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos e os autos foram submetidos a conferência.
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Cumpre, assim, apreciar e decidir.
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2-FUNDAMENTAÇÃO:
2.1- DO OBJETO DO RECURSO:
É consabido, em face do preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º nº 1 todos do Código de Processo Penal, que o objeto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, devendo, assim, a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por serem obstativas da apreciação do seu mérito, nomeadamente, nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase e previstas no Código de Processo Penal, vícios previstos nos artigos 379º e 410º nº2 ambos do referido diploma legal e mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.1
Destarte e com a ressalva das questões adjetivas referidas são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar2.
A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva3, “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Assim à luz do que a recorrente arguida invoca nas suas conclusões a questão a apreciar é se o despacho recorrido infringiu despacho prévio transitado em julgado.
2.2-APRECIAÇÃO DO RECURSO:
Importa proceder à concreta apreciação da questão suscitada pela recorrente e que se traduz em apreciar e decidir se o despacho recorrido infringiu despacho prévio transitado em julgado.
Da análise dos autos decorre que a recorrente AA foi, em ... de ... de 2025, sujeita a 1º interrogatório judicial de arguida detida por estar fortemente indiciada da prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º nº1 do D.L. nº15/93 de 22 de janeiro por referência à Tabela I-B anexa a tal diploma.
No auto do referido 1º interrogatório consta que a recorrente foi sujeita, para além do Termo de Identidade e Residência já prestado a medida de coação de prisão preventiva com a possibilidade de ser substituída por medida de coação de OPVHE, o que foi decretado com base nos artigos 191º a 196, 202º nº1 al.a), 204º nº 1 als.a) e c) todos do Código de Processo Penal.
No despacho consta além do mais: «Para fazer face a esses perigos que foram enumerados e ponderando essas medidas que existem, em relação à permanência na habitação nós não temos elementos, a Sra. arguida não forneceu esses elementos. Poderá haver condições para a mesma vir a ficar na habitação com fiscalização, se houver elementos ao Tribunal não choca apreciá-los, solicitar primeiramente o competente Relatório apreciar ouvindo o M°P° e se a arguida fizer requerimento nesse sentido, o Tribunal irá apreciar».
Em ... de ... de 2025 a recorrente requereu nos autos a sua colocação na medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica em morada concreta tendo anexado a tal requerimento declarações de consentimento por parte dos residentes na morada indicada.
Na sequência de tal requerimento o Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da requerida substituição.
Em ... de ... de 2025 foi proferido o despacho recorrido que têm o seguinte teor:
«Em sede de primeiro interrogatório judicial de arguida detida de AA, foi determinado que a mesma deveria aguardar os ulteriores termos do processo sujeita à medida
de coacção de prisão preventiva e que – caso a mesma assim o requeresse e verificados os demais pressupostos – a mesma poderia vir a ser substituída por obrigação de permanência na habitação sujeita a vigilância electrónica (“OPHVE”).
A arguida vem agora requerer a substituição da referida medida de coacção, juntando ainda declaração subscrita por familiares consentindo no cumprimento da OPHVE na respectiva residência.
O M.P. entende que referida substituição não satisfaz as exigências cautelares do caso promovendo o indeferimento do requerido.
Ora, considerou-se naquela decisão estarem presentes os perigos de fuga, de continuação da actividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.
Com efeito, ainda que a actuação da arguida possa ser enquadrada como aquilo que é comummente designado “correio de droga”, certo é que a mesma não deixou de colaborar com uma rede de tráfico internacional de estupefacientes, pelo que facilmente poderá ausentar-se para o estrangeiro se colocada em liberdade.
Por outro lado, tendo a arguida agido motivada pela compensação económica, a mesma poderia continuar a colaborar com a referida rede criminosa, ainda que em moldes diversos, mantendo elevado o alarme social gerado pelo ilícito em causa.
Se o que se pretende neste caso é impedir que a arguida se ausente para o estrangeiro, reitere comportamentos ou o alarme social decorrente do ilícito em causa, tal não poderia ser
atingido ao permitir-se que aquela ficasse em liberdade, uma vez que qualquer outra medida
de medida de coacção que não aquela a que a arguida se encontra sujeita, incluindo a OPHVE, não acautelaria tais perigos, uma vez que as concretas tarefas desenvolvidas por aquela dificilmente poderiam ser fiscalizadas pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais ou pelos órgãos de polícia criminal.
Pelo exposto, indefere-se.
Notifique.»
Delineadas as incidências processuais que se entendem relevantes impõe-se esclarecer que as medidas de coação e de garantia patrimoniais são meios processuais de limitação da liberdade pessoal ou patrimonial dos arguidos que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento penal em qualquer uma das suas fases.
Estruturando-se o processo penal português no princípio da presunção de inocência do arguido consagrado no artigo 32º nº2 da Constituição da República Portuguesa toda e qualquer limitação à liberdade antes do trânsito em julgado de uma decisão condenatória, tem, naturalmente, natureza excecional revestindo, por isso, as medidas de coação uma feição meramente cautelar, porquanto apenas podem ser aplicadas (com exceção do Termo de Identidade e Residência) se, em concreto, se verificarem, por si só ou conjugadamente, as circunstâncias expressamente descritas no artigo 204º do Código de Processo Penal: fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
Emanam de normas de constitucionais ou do direito internacional os demais princípios cuja observância é, também, exigida em matéria de aplicação de medidas de coação mormente princípios da legalidade, da necessidade, da adequação da proporcionalidade e da subsidiariedade.
O princípio da legalidade das medidas de coação em concretização de normas constitucionais e de direito internacional impõe que apenas possam ser aplicadas medidas previstas nos artigos 196º a 202º do Código de Processo ou noutra legislação avulsa, em suma, apenas as legalmente previstas.
Os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade presidem, como decorre do artigo 193º do Código de Processo Penal, à aplicação concreta da medida de coação, sendo que o princípio da necessidade verifica-se sempre que o fim que se visa atingir com a concreta medida de coação a aplicar não pode ser obtido por qualquer outro meio menos gravoso para os direitos do arguido.
Este princípio, também, preside à execução da medida de coação posto que exige o artigo 193º nº4 do Código de Processo Penal que a referida execução não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requerer.
De acordo com os princípios da adequação e da proporcionalidade consagrados no artigo 193º nº1 do Código de Processo Penas as medidas de coação a aplicar em concreto devem revelar-se adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Assim, a medida de coação a aplicar deve ser não só idónea a satisfazer as necessidades cautelares do caso concreto como na sua aplicação deve ser sopesada a gravidade do crime em causa e a sanção criminal que é previsível que venha ulteriormente a ser aplicada ao arguido.
O princípio da subsidiariedade exige que não seja aplicada medida mais grave do que aquela que, no caso concreto, seja idónea a debelar os perigos concretamente verificados e previstos do artigo 204º e tal princípio assume dimensão máxima no que tange às medidas de coação privativas da liberdade ( como decorre do artigo 193º nº2 do Código de Processo Penal) sendo tais medidas as de prisão preventiva e de obrigação de permanência na habitação consagradas respetivamente nos artigos 202º e 201º ambos do aludido diploma.
A medida de coação de prisão preventiva está prevista no artigo 202º do Código de Processo Penal, dependendo a sua aplicação da inadequação e insuficiência das demais medidas de coação previstas na lei processual penal, devendo ser aplicada apenas como ultima ratio.
Assim, ainda que ao caso deva ser aplicada medida de coação privativa da liberdade, sempre deverá ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação quando esta medida se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares que no caso se façam sentir como resulta do artigo 193º nº3 do Código de Processo Penal.
No caso vertente foi, indubitavelmente, aplicada a medida de coação de prisão preventiva à recorrente e tanto assim é que o requerimento que foi formulado pela mesma visava a substituição de tal medida de coação pela obrigação de permanência na habitação sujeita a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, vulgo, vigilância eletrónica.
Do despacho que sujeitou a recorrente a medida de coação de prisão preventiva não foi interposto recurso, mas as medidas de coação são suscetíveis de revogação, alteração, suspensão, extinção de acordo com o previsto nos artigos 212º a 218º do Código de Processo Penal de molde a que o estatuto coativo respeite ao longo das fases processuais penais os supra aludidos princípios e a natureza provisória e cautelar que as enforma.
Assim, não estava a recorrente, naturalmente, impedida de requerer a sua substituição nos termos em que o fez.
Todavia, o tribunal recorrido no despacho proferido não se vinculou à efetiva substituição da medida de coação de prisão preventiva por medida de coação de obrigação de permanência na habitação, ainda, que sujeita a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância. De igual modo não se vinculou à determinação da realização de um relatório social.
O despacho recorrido aplicou à recorrente a medida de coação de prisão preventiva e o caso julgado forma-se relativamente à tal decisão de aplicação dessa medida e não relativamente à observação feita da possibilidade eventual e condicionada da sua substituição por obrigação de permanência na habitação, observação essa não essencial à decisão de aplicação da medida de coação de prisão preventiva.
Tal observação consubstancia obiter dicta, ou seja, uma observação ou afirmação sobre facto hipotético que não faz parte da decisão tomada pelo tribunal.
Diferente seria se o despacho tivesse, desde logo, ordenado tal substituição e a realização das diligências a tanto necessárias, o que não ocorreu.
A realização de relatório social visa, sobretudo, aferir da existência de condições técnicas, logísticas e sociais para a implementação de vigilância eletrónica e, embora possa ser pedido como elemento auxiliar da decisão, a sua solicitação não deve ser feita se o tribunal entender que a medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que sujeita a vigilância eletrónica, não é idónea a acautelar os perigos concretamente dados como verificados nos autos: o perigo de fuga, o perigo de continuação da atividade criminosa e o perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, o que ocorreu, neste caso, como decorre do despacho recorrido.
Inexiste qualquer violação de caso julgado, posto que este respeita apenas à sujeição da recorrente à medida de coação de prisão preventiva e sempre com a ressalva que estamos no âmbito de medidas de natureza cautelar as quais, como já referido, são suscetíveis de revogação, alteração, suspensão, extinção de acordo com o previsto nos artigos 212º a 218º do Código de Processo Penal de molde a que o estatuto coativo respeite ao longo das fases processuais penais os supra aludidos princípios e a natureza provisória que as enforma.
Destarte não merece censura o despacho recorrido.
3- DECISÓRIO:
Nestes termos e, em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores desta 3ª Secção em não conceder provimento ao recurso interposto pela arguida AA e, consequentemente, manter na íntegra o despacho recorrido.
Custas a cargo da recorrente fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida – artigos 513º e 514º, ambos do Código de Processo Penal e tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
Notifique sendo a recorrente, ainda, do teor do parecer emitido neste Tribunal da Relação.
Nos termos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal exara-se que o presente Acórdão foi pela 1ª signatária elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários e sendo as suas assinaturas bem como a data certificadas supra.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 8 de outubro de 2025
Ana Rita Loja
João Bártolo
Alfredo Costa
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1. vide Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995.
2. – Artigos 403º, 412º e 417º do Código de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 proferido no processo 91/14.7YFLSB.S1 e de 30/06/2016 proferido no processo 370/13.0PEVFX.L1. S1.
3. Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335