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MANOBRA PERIGOSA
NEGLIGÊNCIA
ATROPELAMENTO
Sumário
Sumário: (da responsabilidade do Relator) I. As circunstâncias a considerar na ponderação da negligência são apreciadas não como se o arguido fosse um super-homem, mas de acordo com a normalidade da vida em sociedade, em face da percepção dinâmica que foi possível verificar e das possibilidades decorrente do tempo dos acontecimentos, que se desconhece com rigor. II. Estando um camião de recolha do lixo a efectuar uma manobra de marcha atrás a cerca de 5 km/h, com indicações de um colaborador, o desaparecimento momentâneo deste, que, por motivos não apurados, se virou de repente de costas para o camião, e foi embatido pelo mesmo, não implica necessariamente uma violação do dever de cuidado pelo condutor desse camião.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
No âmbito dos autos n.º 140/22.5PTOER do Juízo Local Criminal de ... – Juiz 3 – após julgamento, foi proferida Sentença que decidiu: “Absolver o arguido AA da prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de homicídio negligente”.
Inconformada com esta decisão interpôs recurso a assistenteBB, tendo formulado, após a motivação, as seguintes conclusões: “36. A Assistente, ora Recorrente, não pode concordar com a decisão que absolve o arguido da prática do crime de homicídio negligente. 37. Com o devido respeito, é entendimento da Recorrente que o Tribunal a quo não analisou devidamente a prova produzida em audiência de julgamento. 38. Conforme resulta da matéria de facto provada o veículo conduzido pelo Recorrido arguido embateu com o rodado traseiro esquerdo da viatura no corpo do CC. 39. O Recorrido encontrava-se a fazer uma manobra de marcha atrás. 40. Essa manobra era auxiliada pelo CC, pai da Recorrente, que ia dando indicações ao arguido, “visualizadas por este com recurso aos espelhos retrovisores” sublinhado e negrito nosso - ponto 7 da matéria de facto provada. 41. Mas a verdade é que o Recorrido não imobiliza a viatura quando deixa de ver o Ofendido, conforme resulta aliás, das suas declarações no ficheiro nº de 11:26 a 17:00: 42. Também a única testemunha que presenciou o acidente, DD refere expressamente que ao aperceber-se do perigo da manobra buzinou insistentemente, mas o Ofendido continuou a manobra de marcha atrás. 43. Conforme resulta do seu depoimento constante do ficheiro nº de 03:00 a 04.10: 44. De facto, esta testemunha volta a frisar no seu depoimento que buzinou várias vezes, sendo que o Ofendido não imobilizou a viatura. 45. Também a testemunha EE refere expressamente que nas ações de formações dadas pela entidade patronal, em caso de o condutor deixar de visualizar o auxiliar da manobra através dos espelhos retrovisores deve parar imediatamente a viatura, cfr. seu depoimento de (TEST) Ficheiro ..-..-.. de 13:20 até 17:41 (final). 46. Assim, e com base nas declarações do Recorrido e dos depoimentos das testemunhas DD e EE deve ser dada como provada a matéria das alíneas a) a d) da matéria de facto não provada. 47. Portanto, a manobra de marcha-atrás, só se pode efetuar depois de se verificar que não há perigo para peões ou outras viaturas. 48. O motorista ao deixar de visualizar o auxiliar da manobra tinha, de acordo com o dever geral de prudência a que estava obrigado, de imobilizar a viatura. 49. E, se o tivesse feito, não teria ocorrido o embate que culminou com a morte do pai da Recorrente. 50. O dever geral de prudência impunha que o Recorrido parasse imediatamente a manobra de marcha atrás quando deixou de visualizar o Ofendido só podendo retomá-la quando voltasse a visualizar de novo o seu Colega. 51. Assim, o Recorrido omitiu um dever geral de cuidado que impede sobre qualquer condutor, dever esse agravado dadas as funções que exerce e o tipo de viatura que conduzia. 52. E, com a violação desse dever de cuidado produziu-se o resultado morte na pessoa do pai da Recorrente. 53. O CC saiu do ângulo de visão do arguido, ora Recorrido. 54. Ora, o Recorrido deveria de imediato ter imobilizado a viatura, quando o Ofendido se virou e ficou fora do seu ângulo de visão pelos espelhos retrovisores. 55. Se o Recorrido deixou de ver o colega, não podia em segurança realizar a manobra de marcha atrás. 56. Ao ter continuado a manobra, o Recorrido colocou em causa a segurança do seu Colega e violou os arts. 35º, nº 1, 46º. nº 1 e 3º, nº 2, do CE. 57. Se o Recorrido tivesse imobilizado a viatura, o embate não ocorria, pelo que, a Sentença recorrida violou os artigos 35º, nº 1 e 46º, nº 1 e 3º, nº 2 todos do Código da Estrada. 58. Deve assim a Sentença recorrida ser revogada e ser o Recorrido condenado pela prática do crime de homicídio a título de negligência, p.p. no artigo 137º, nº 1 do CP”.
Também interpuseram recurso (separadamente, mas com o mesmo texto) as assistentes FF e GG, tendo formulado, após a motivação, as seguintes conclusões:
“I. O presente recurso tem como objeto a impugnação da matéria de facto e da matéria de direito (do Acórdão recorrido) da decisão da absolvição do arguido AA, designadamente, quanto aos seguintes pontos: ➢ Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; ➢ Insuficiência da Prova para a Decisão de Facto proferida (absolvição). II. O Tribunal a quo, dar como não provado os seguintes pontos da acusação: a) AA agiu de forma livre e voluntária conduzindo o veículo pesado nas descritas condições, isto é, sem os cuidados a que estava obrigado, omitindo as cautelas aconselháveis pelo dever geral de previdência, que podia e devia ter observado. b) Com a conduta descrita AA agiu com total inobservância das precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidados impostos pelas regras de condução estradal essenciais para uma circulação rodoviária segura, o que podia e devia ter feito e que era capaz de adoptar. c) AA não previu, como podia e devia, a possibilidade de embate da viatura por si conduzida em CC, provocando-lhe a morte. d) AA agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. III. Nessa senda, o Tribunal a quo, decidiu absolver o arguido AA pela prática um crime de homicídio por negligencia, previsto e punido pelos artigos 137.º, n.º 1, 15.º b) e 69.º, n.º 1, al. a) todos do Código Penal IV. Na indicação do exame critico ficaram por analisar as seguintes questões: - Porque se colocou o ofendido de costas e na traseira do camião? - Porque não parou o arguido se deixou de ver o ofendido? - Ouviu o buzinar? - Percebeu que o buzinar se dirigia a si? - Teve tempo para fazer essa paragem? - Para se aperceber que o ofendido já não estava na lateral traseira? V. Perante a incapaz indicação do exame critico da prova que serviram de base para formar a convicção do Tribunal a sentença deve ser considerada, nessa medida, nula nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 374.º e alínea a) do artigo 379.º todos do CPP, com todas as suas consequências legais. VI. A recorrente/assistente, impugna, amplamente, os pontos a), b), c) e d) da Matéria de Facto dada como não provada, indicando os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impunham decisão diversa. VII. Na formação da sua convicção, o Tribunal recorrido, apenas atendeu às declarações do Arguido/Condutor do Camião que em suma é incapaz de esclarecer o acidente que levou ao falecimento do seu colega CC. VIII. O depoimento prestado pelo arguido, em confronto com os demais elementos probatórios, era insuficiente para não se dar como provado que este obedeceu aos deveres de cuidados a que estava obrigado, assegurando as cautelas aconselháveis pelo dever geral de previdência, que podia e devia ter observado para evitar o atropelamento mortal do colega. IX. O arguido, optou por prestar declarações esclarecendo a dinâmica dos factos pelos quais vinha acusado de uma forma confusa e pouco precisa, não conseguiu explicar o atropelamento colocando toda a responsabilidade na vítima. X. Salientou que eram 08:20, levava os livros abertos, estava a baixa velocidade, que tudo aconteceu de uma forma rápida, mas, ainda assim, não ouviu o falecido gritar, nem ninguém a buzinar. XI. Das declarações do agente HH ressaltou que estavam no local mais dois agentes, que apesar da alegada violência manifestada pelo Recorrente nem chegaram a sair da viatura o que contraria as regras da experiência comum. XII. A testemunha DD, num depoimento claro, desprendido e conciso, esclareceu que: “Basicamente, era um 8h20, mais ou menos, volta dessa hora. Estava a sair para ir trabalhar. Na altura, trabalhava na ….em .... E, literalmente, estou a pegar a marcha do carro, passo ali a rua para sair do estacionamento e vejo um senhor da câmara já fazer-me sinal para virar o carro, para virar o carro para o lado, para desviar. Conforme estou a desviar o carro, olho para o senhor, está o senhor assim com o braço no ar e já vejo a carrinha acertar por parte de trás do senhor e o senhor cair à frente. Entretanto, comecei logo a apitar, para tentar parar o carro, a carrinha neste caso, mas…”. XIII. Para a prova da factualidade dada como não provada o Tribunal Recorrido formou a sua convicção, fundamentalmente, no depoimento do arguido, colocando certezas na responsabilidade pelo atropelamento no ofendido/falecido e duvidas no comportamento negligente do arguido XIV. Das declarações da testemunha DD (única testemunha ocular do acidente) ressaltou que este buzinou 4 ou 5 vezes, antes do atropelamento mortal como forma de avisar o condutor do camião, eram 08h20 da manhã, o condutor levava as janelas abertas e o volume do rádio estava baixo. XV. Ora, tendo em conta que cada buzinadela poderá ter demorado 2 segundos (5 vezes) temos uma janela temporal de 10 segundos (no mínimo) para o condutor conseguir parar um camião que seguia a 5 km a hora. XVI. Portanto, se o arguido não ouviu os sinais sonoros (buzina) nas condições que descreveu, seria impossível ter ouvido eventuais gritos do falecido. XVII. De salientar que, o ofendido, à data com 43 anos de idade, foi abalroado pelo camião e posteriormente atropelado pelo rodado. XVIII. Existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto se houver omissão de pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitam a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento com a segurança necessária para proferir-se uma decisão justa. XIX. Face à prova produzida e da constante nos autos, levariam o Tribunal recorrido a dar os pontos a), b), c) e d) como provados, devendo o arguido ser condenado pelo crime que lhe é imputado”.
O Ministério Público em 1.ª instância respondeu a estes recursos, com a apresentação das seguintes conclusões: “1- que são do objecto do recurso (cfr. art. 403º e 412º, n.º 1 in fine do Código de Processo Penal e jurisprudência dominante a pacífica), cumpre apreciar. 2- A Sentença recorrida absolveu o arguido AA pela prática de um crime de homicídio negligente ocorrido na sequência de um acidente de viação, entendendo os Assistentes que o arguido devia ter sido condenado pela prática do referido crime. 3- O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando o tribunal não se pronuncia sobre factos relevantes para a decisão, alegados pela acusação, pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda quando o tribunal não investigou factos essenciais para a decisão que deviam ter sido apurados em julgamento, como para a escolha da medida da pena. 4- A sentença proferida pronunciou-se sobre todos os factos trazidos aos autos e formou a sua convicção quanto aos factos provados e não provados com base na análise crítica e conjugada da prova documental, testemunhal e por declarações do arguido, não incorrendo em qualquer erro. 5- Não se discute o que causou a morte do ofendido, sabendo-se que a mesma ocorreu devido ao embate provocado pelo camião conduzido pelo arguido; no entanto, considerou a douta sentença que não era previsível para o arguido que o ofendido se colocasse na traseira de um veículo que já estava em andamento. Salientou, ainda, que o ofendido sabia, por força da sua profissão, que o arguido não tinha visibilidade para a traseira do camião. 6- Assim, entendeu a douta sentença, de modo lógico e fundamentado, que o ofendido se colocou numa posição de fragilidade, voluntariamente e sem qualquer motivo, agravando ainda esse risco ao colocar-se de costas para o camião, sem avisar o arguido, não havendo qualquer violação do dever de cuidado por parte do arguido, impondo-se a sua absolvição. 7- O erro de julgamento em matéria de facto reconduz-se, em suma, à errada percepção ou interpretação que o julgador teve ou fez da prova produzida em julgamento, exigindo-se, objetivamente, face aos elementos constantes nos autos, outra decisão sobre a verificação (ou não) de um determinado facto, o que não se confunde com uma diferente convicção também sustentável nos mesmos meios de prova. 8- A sindicância do recorrente à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida não configura erro patente ou notório se o entendimento feito pelo tribunal se traduzir numa leitura possível, aceitável, ou razoável da prova produzida, atendendo ao princípio da livre apreciação da prova. 9- Cremos, pois, que o tribunal recorrido valorou correctamente a prova produzida em julgamento, conjugada com a prova documental junta aos autos. 10- Dispõe o artigo 127º do Código de Processo Penal: “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. 11- A sentença recorrida assenta, pois, na livre convicção do julgador, a qual está, em nosso entender, correcta e suficientemente fundamentada. 12- Termos em que a douta sentença não padece de qualquer vício ou nulidade e não enferma de falta de fundamentação, fazendo uma correcta indicação das provas valoradas e dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão”.
O arguidoAA também respondeu aos recursos das assistentes GG e BB (em separado, mas como o mesmo texto), com a apresentação das seguintes conclusões: “a) A douta sentença recorrida, que com a devida vénia aqui se dá por reproduzida, faz uma correta apreciação e fundamentação quer da matéria de facto quer da matéria de direito, não merecendo qualquer tipo de censura; b) O sinistro em causa deveu-se exclusivamente a culpa da vítima que se colocou nas traseiras da viatura que conduzia o arguido, assim violando as normas do Código da Estrada p.p. nos artigo 99.º e 101.º; c) Ao arguido não era expectável prever o comportamento contravencional da vítima que violou o princípio da confiança, para mais trabalhando na área da recolha de resíduos sólidos e fazendo parte da equipa do arguido há já algum tempo e, por isso, sendo-lhe devido um acrescido dever de conhecimento quanto às regras de segurança; d) Assim, deve manter-se a matéria de facto dada como não provada, não padecendo a sentença recorrida de qualquer erro de direito, que se baseou corretamente na prova carreada aos autos, apreciando corretamente de direito, devendo manter-se a decisão de absolvição do mesmo. e) A título subsidiário e para o caso de algumas das pretensões da Recorrida precederem, requer-se, nos termos do art.º 636.º, n.º 2 CPC, ex-vi do art.º 4.º CPP, a alteração da matéria de facto quanto ao ponto 9, para a seguinte redação: 9)Nessa altura, CC, sem avisar o arguido, deslocou-se para trás do camião de recolha de lixo conduzido por AA, colocando-se de costa para o mesmo, a fim de dar indicações a DD para seguir por outra via. f) Tal alteração tem por base o depoimento da testemunha DD, gravado nos minutos 14:20-14:36, Duração: 00:15:12, de dia: .../.../2025, que refere que não viu o Ofendido fazer qualquer sinalética ao arguido, mas somente para si, para o auxiliar. Termos em que refutadas integralmente as motivações da Recorrente, deve julgar-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida”.
Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da manutenção da posição assumida em 1.ª instância, pelo que não foi necessário o cumprimento do disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Feito o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos remetidos à conferência - cfr. art 419.º n.º 3, c), do Código de Processo Penal.
II. Fundamentação.
A Decisão Recorrida.
Na sentença recorrida o tribunal considerou os seguintes factos, provados e não provados: ”1) AA é motorista de pesados (camião), fazendo a recolha do lixo no .... 2) No dia ... de ... de 2022, pelas 08H40, AA encontrava-se no exercício das suas funções – conduzindo o camião de recolha do lixo com a matrícula AB-..-UN - na ..., em ..., acompanhado do seu colega de profissão CC. 3) Nesta data/hora, o tempo encontrava-se seco, a visibilidade no local era boa, não existia encadeamento e a via apresentava-se em bom estado de circulação. 4) A ... configura-se como uma recta, comporta duas vias de trânsito, uma em cada sentido, separadas através da marca M2 (linha descontínua), ladeada por parqueamento e passeios em calçada de ambos os lados. 5) Na data/hora referida em 1), a ... apresentava veículos estacionados na longo da via (em segunda fila), em ambos os lados da via, o que dificultava o fluir do trânsito, impedindo a circulação em simultâneo, nas duas vias de trânsito existentes, de dois veículos na referida artéria. 6) Por este motivo, e a fim de alcançar o ponto de recolha de lixo situado na ..., AA circulava, no sentido sul/norte, efectuando a manobra de marcha atrás, sendo auxiliado pelo seu colega CC, que lhe ia dando indicações para o efeito. 7) Para o efeito, CC colocou-se apeado na parte lateral traseira do veículo pesado de mercadorias – camião de recolha do lixo – conduzido por AA, posicionado de frente para a viatura referida, enquanto ia dando indicações, visualizadas por este com recurso aos espelhos retrovisores. 8) Entretanto, surgiu, na mesma via, a viatura conduzida por DD. 9) Nessa altura, CC virou-se, colocando-se de costa para o camião de recolha de lixo conduzido por AA, a fim de dar indicações a DD para seguir por outra via. 10) O arguido não conseguiu parar atempadamente a sua viatura, nem desviar a trajetória e embateu com o rodado traseiro esquerdo da viatura no corpo de CC, passando por cima deste. 11) Como consequência directa e necessária do embate, CC sofreu lesões traumáticas crânio-meningoencefálicas, abdómino-pélvicas e dos membros inferiores, que constituíram causa necessária e adequada da sua morte. 12) O arguido encontra-se no estado civil de casado. 13) O arguido aufere o salário mínimo nacional. 14) O arguido tem o 10.º ano de escolaridade. 15) O arguido não tem antecedentes criminais. Não se provou que:
a. AA agiu de forma livre e voluntária conduzindo o veículo pesado nas descritas condições, isto é, sem os cuidados a que estava obrigado, omitindo as cautelas aconselháveis pelo dever geral de previdência, que podia e devia ter observado.
b. Com a conduta descrita AA agiu com total inobservância das precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidados impostos pelas regras de condução estradal essenciais para uma circulação rodoviária segura, o que podia e devia ter feito e que era capaz de adoptar.
c. AA não previu, como podia e devia, a possibilidade de embate da viatura por si conduzida em CC, provocando-lhe a morte.
d. AA agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei”.
Foi a seguinte a fundamentação apresentada na sentença quanto aos factos: “Para dar como provados ou não provados os factos, o Tribunal pesou toda a prova produzida e examinada em julgamento, da forma, que, abaixo, se demonstra. Não põe em causa o arguido os factos dados como provados. Aliás, o arguido confirma que no dia, hora, local e modo assinalados, se deu o sinistro, que veio a determinar a morte de CC, ofendido. O arguido lamenta o sucedido, refere que deixou de conduzir camiões depois dos factos, mas é incapaz de explicar como o acidente se deu, pois que faziam aquela manobra em concreto inúmeras vezes, não compreendendo a razão pela qual CC foi colhido na traseira do camião. É indiscutível que CC se colocou, primeiro, na lateral traseira direita do camião para auxiliar a manobra de marcha atrás do condutor, o arguido. E fê-lo porque, apesar da existência de espelhos, estes não permitem ver a parte de trás do camião: note-se que a parte traseira é distinta da lateral traseira. Confirmou o arguido que via CC na lateral traseira pelos espelhos. Sabemos também, pelas declarações do arguido, que era uma equipa que trabalhava junta há algum tempo e que faziam aquele trajecto três vezes por semana, pelo que tanto arguido como ofendido conheciam bem quer as características difíceis da via - com carros estacionados em segunda fila – como que o condutor não tinha visibilidade para a traseira do camião, razão pela qual era necessário auxílio na manobra de marcha atrás. De acordo com DD, única testemunha, que circulava noutro veículo no momento, CC fez-lhe sinal para se desviar; conjugando as declarações desta testemunha com as do arguido, sabemos que, nesse momento, a manobra de marcha atrás já se tinha iniciado. Refere esta testemunha que viu o ofendido colocar-se na traseira e de costas voltadas para o camião. Também nos relata esta testemunha que a manobra de marcha atrás estava a ser feita muito devagar. Confirma, por fim, que presenciando o embate do camião no ofendido, buzinou três ou quatro vezes com intenção de que o arguido parasse a manobra, mas em vão. As questões que se apresentam são mais que muitas. Porque se colocou o ofendido de costas e na traseira do camião? Porque não parou o arguido se deixou de ver o ofendido? Ouviu o buzinar? Percebeu que o buzinar se dirigia a si? Teve tempo para fazer essa paragem? Para se aperceber que o ofendido já não estava na lateral traseira? Não há dúvida que o arguido já havia iniciado uma manobra de marcha atrás, num veículo de grandes dimensões, e confiava no auxílio do ofendido. M esmo que se entenda que deveria ter parado o veículo no exacto momento em que deixa de ver o ofendido, não sabemos qual o lapso temporal que tinha para o fazer, se o veículo o permitia, mesmo a ser conduzido a uma baixa velocidade e, na verdade, não sabemos se parar teria surtido qualquer efeito, pois que não há prova se o ofendido tentou alertar o arguido ou se se lançou num ímpeto subido para a traseira do camião para auxiliar a manobra do veículo de DD. O que é certo é que o ofendido, a dado momento, estava a auxiliar dois veículos a fazer a manobra. E, quiçá, desviando a sua atenção para ajudar DD, colocou-se irreflectidamente na traseira do camião; e só podemos concluir pela falta de reflexão, pois que sabia, porque todos sabiam, que o condutor não tinha visibilidade na traseira e que a marcha atrás já havia sido iniciada. Foi o embate do camião conduzido pelo arguido que provocou a morte do ofendido, mas, e adiantando, não estamos convictos que o arguido tenha dado causa ao acidente. Note-se que o arguido não iniciou a marcha atrás sem cuidado com quem está na sua traseira. O arguido sabia do especial dever de cuidado que devia ter e, justamente por isso, o ofendido o auxiliava na manobra. Não consideramos que era previsível - no sentido em que o arguido deveria ter presente essa possibilidade - que o ofendido se colocasse na traseira de um veículo já em movimento. Qualquer outro peão que se colocasse na traseira do veículo e a culpa seria, evidentemente do arguido, pois que ninguém é obrigado a saber que o condutor tem pouca ou nenhuma visibilidade para a traseira. Mas o ofendido sabia-o, por força da sua profissão. E lá se colocou, sem o alertar e apesar de saber que não só não o via, como já havia iniciado a marcha. Bem sabemos que a marcha atrás é uma manobra excepcional, que deve ser feita lentamente, sem embaraço para o trânsito e com cautelas acrescidas, mas cremos que o arguido cumpriu todos esses requisitos. Não podemos concordar que só porque o ofendido deixou de ser visível – e estamos a falar, possivelmente, de fracções de segundos – que o condutor de imediato pare o veículo: isso implicaria que a manobra é toda feita apenas a olhar para o ofendido, e não é isso que ocorre nem na manobra de marcha atrás, nem no normal acto de condução. Sobretudo na marcha atrás, impõe-se que, além de observar as circunstâncias concretas da via, se mantenha o controlo do veículo, a sua direcção, se olhe para o volante e para todos os espelhos. Acresce que, além destes actos, o ofendido estava presente para auxiliar a manobra – e no fundo impedir, justamente o que aconteceu, ou seja, que alguém se colocasse na traseira do veículo e o condutor não visse –. Também o acto de condução do arguido ocorria com essa confiança acrescida que a traseira está segura pelo ofendido, mas acautelada com a manobra lenta e, como explicou o arguido, caso ocorresse algum problema na traseira, o ofendido avisasse. Não cremos, nem no caso concreto, nem no acto normal de marcha atrás de um camião, que o foco do arguido estivesse a todos os microssegundos apenas sobre o ofendido, nem poderia estar, sendo que não há prova de que não foi numa dessas fracções de segundo que o ofendido se colocou na traseira, não avisou o arguido e sofreu o embate fatal. Os peões são utilizadores vulneráveis da via pública e os condutores devem estar particularmente atentos à sua movimentação na estrada, mesmo que, por vezes, possa ser errática. Mas, no fundo, a pergunta que se sobrepõe às demais que fizemos é: era previsível este resultado? Se, por exemplo, o arguido decide conduzir em excesso de velocidade e embate no ofendido, parece evidente que o resultado morte é previsível face ao excesso de velocidade que acontecia. Mas se o arguido aceita a ajuda do ofendido numa manobra de marcha-atrás, o embate e resultado morte era previsível? Há que ter, certamente, algumas cautelas com quem o auxilia na manobra. Mas cremos que, no caso em concreto, não se provou que as mesmas não ocorreram e que o resultado morte era previsível. Aliás, o embate só ocorre porque o ofendido, sabendo que uma manobra de marcha atrás está em curso, escolheu, deliberadamente e sem aviso, mudar de posição e colocar-se na traseira do veículo. Em suma, cremos que o ofendido colocou-se nesta posição de fragilidade, voluntariamente e sem qualquer motivo. Ainda que se tivesse colocado na traseira do camião, mas se tivesse mantido virado de frente, não temos dúvidas de que veria a aproximação e fosse capaz de se desviar e evitar o acidente. Além de ser um risco colocar-se na traseira, agravou esse risco ao colocar-se de costas. A acrescer a estes dois riscos, contribuiu com um terceiro, ao entender, num dado momento, auxiliar simultaneamente as manobras de dois veículos. Por fim, não avisou o arguido de nenhum destes factores: que se ia colocar na traseira, de costas, e ia desviar parte da sua atenção para outro veículo. Se o tivesse feito, o arguido certamente teria parado. Não vemos como não seja absolutamente causal a actuação do ofendido. Assim, cremos que não houve qualquer violação do dever de cuidado por parte do arguido, pelo que se impõe a sua absolvição. Quanto às condições sócio-económicas do arguido, fez-se fé nas declarações do próprio; no que respeita aos antecedentes criminais do arguido, atendeu-se ao seu Certificado de Registo Criminal”.
* Objecto do recurso.
Conforme dispõe o art. 412.º nº1 do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é delimitado pelasconclusões formuladas pelo recorrente na respetiva motivação, nas quais o mesmo sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido por si formulado, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente se verifiquem, designadamente as referidas no disposto no art. 410.º, n.º2,º do Código de Processo Penal.
De acordo com o disposto no art. 412.º, n.º2, do Código de Processo Penal, versando matéria de direito, “as conclusões indicam ainda: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada”.
E, por obediência ao estipulado no n.º 3 do mesmo art. 412.º do Código de Processo Penal, pretendendo o recorrente impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, “o recorrente deve especificar, nas conclusões:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas”.
Para este efeito obriga do n.º 4 do mesmo artigo que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Note-se, portanto, que o recorrente que queira ver reapreciados determinados pontos da matéria de facto tem que dar cumprimento a um duplo ónus, a saber:
- Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorrectamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência ou mera referência a diversos números da sentença, onde constam diversos acontecimentos e aspectos de facto;
- Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe. Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal).
Com este enquadramento, as assistentes pretenderam ver apreciadas as seguintes questões:
A) Nulidade da sentença por falta de exame critico da prova, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 374.º e alínea a) do artigo 379.º todos do Código de Processo Penal;
B) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
C) Impugnação dos factos não provados e insuficiência da prova para a decisão de facto proferida;
D) Violação dos deveres de cuidado pelo arguido de acordo com o disposto nos arts. 35º, nº 1, 46º. nº 1 e 3º, nº 2, do (Código da Estrada) CE.
A. Nulidade da sentença por falta de exame critico da prova, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 374.º e alínea a) do artigo 379.º todos do Código de Processo Penal
As assistentes invocaram a nulidade da sentença por entenderem que ali não foi feito um adequado exame crítico da prova.
De acordo com o disposto no art. 379.º, com referência ao art. 374.º, n.º2, a), ambos do Código de Processo Penal, a sentença é nula, nomeadamente, quando não contenha a sua fundamentação, ou seja, “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Ora, conforme é fácil retirar do texto da sentença recorrida, para explicar o seu juízo quanto aos factos, o tribunal recorrido analisou todas as prova produzidas e transmitiu de forma simples e perceptível o critério da decisão tomada, aqui incluindo os factos provados e não provados.
É, de resto, tal critério que permitiu às assistentes discordar do teor dos factos não provados e que permite a este Tribunal, se seguida, avaliar da coerência do decidido.
Não existe, portanto, uma ausência de explicação ou fundamentação sobre os factos que integram o objecto do processo.
Em particular quanto às questões enunciadas na fundamentação como não tendo resposta, o tribunal apresentou-as, de forma transparente, como possibilidades sobre as quais não foi possível obter um apuramento rigoroso, depois de realizado o julgamento, tendo sido produzida toda a prova disponível.
Nessa situação nada ficou por apreciar ou fundamentar, estando devidamente explicada a decisão tomada em 1.ª instância e a posição do tribunal recorrido relativamente ao que permaneceu duvidoso, apesar das diligências probatórias realizadas.
Pelo que não se verifica a nulidade da sentença invocada.
B) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Invocaram ainda as assistentes a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada na sentença recorrida, apresentando esta questão em confusão com a da nulidade da sentença.
Ora, de acordo com o disposto no art. 410.º, n.º2, a), do Código de Processo Penal, um recurso pode ter como fundamento a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, desde que esse vício resulte do texto da decisão recorrida, ou da sua conjugação com as regras da experiência comum.
Essa insuficiência traduz uma falta de factos que permitam o juízo jurídico efectuado na sentença, de modo consequente.
Por um lado, o tribunal recorrido pronunciou-se sobre todos os factos objecto da acusação (para onde remeteu a pronúncia); por outro lado, da falta de prova de alguns factos, ajuizou o tribunal recorrido que não se encontravam preenchidos os elementos de qualquer incriminação, o que é logicamente coerente.
Por isso, não tendo as recorrentes densificado esta sua arguição, não é possível reconhecer alguma ausência de factos que permitam integrar a absolvição do arguido.
Assim, improcede a insuficiência da matéria de facto provada.
C) Impugnação dos factos não provados e insuficiência da prova para a decisão de facto proferida
Conforme foi já exposto, o recurso alargado quanto à matéria de facto (que as recorrentes pretenderam) exige a especificação nas conclusões dos excertos factuais, devidamente delimitados, cuja impugnação é pretendida, acompanhado das referências probatórias que, quanto a cada ponto, sustentam especificamente posição diversa da assumida pelo tribunal recorrido, fazendo a ligação e justificação entre eles, por forma a que este Tribunal da Relação possa dirigir a sua apreciação de forma criteriosa.
As recorrentes não apresentam tal impugnação de forma rigorosa, confundindo matéria de facto com matéria de direito, com a declarada finalidade de impugnação de todos os factos provados.
Neste objectivo genérico não é detalhado cada um dos excertos factuais com relação a cada elemento da prova produzida que impunha decisão diversa.
Contudo, atento o carácter sintético das conclusões formuladas, é possível delimitar e compreender a impugnação pretendida pelas recorrentes em dois pontos essenciais, em relação aos quais é discutida a prova:
- o arguido, ao conduzir a viatura podia ou devia ter-se apercebido da perigosidade da sua manobra porque existiram buzinadelas por parte da testemunha DD;
- o arguido devia ter parado a viatura quando deixou de ter visibilidade do falecido CC (quando este saiu do seu ângulo de visão).
Note-se que, rigorosamente, o juízo impugnado, segundo o qual, a condução foi feita com violação de deveres de cuidado que no caso se impunham, aparece na matéria de facto porque assim vinha descrito na acusação (como é habitual ocorrer). Mas são aqueles pontos que verdadeiramente constituem o objecto da impugnação.
As assistentes defendem que, por via da procedência dos mesmos, se devia alterar a matéria de facto. Mas, apesar da referência a todos os factos provados, não resulta de nenhum dos recursos a pretensão de a conduta do arguido tenha sido com consciência da possibilidade ou com qualquer tipo de intenção de obter o resultado da morte de CC (o que também consta dos factos não provados).
Quanto às buzinadelas afirmadas pela testemunha DD, ao contrário do que é exposto nas conclusões da assistente BB, mas está correctamente dito na sentença recorrida e nas conclusões das assistentes FF e GG, as mesmas não ocorreram previamente ao embate da viatura, mas na sequência deste embate.
E, em termos práticos, de realidade, não é verdadeiramente autonomizável em termos de tempo o embate do atropelamento imediato consequente, nas circunstâncias verificadas.
Ainda assim, note-se, como o fez o tribunal recorrido, que o veículo daquela testemunha não conseguia passar enquanto o carro do lixo ali estava, pelo que, mesmo que o arguido tivesse ouvido aqueles sinais sonoros (e o barulho associado a tais viaturas permite compreender a possibilidade da ausência dessa audição, conforme declarado pelo arguido), sempre seria de duvidar que o motivo desses sons era um protesto ou a ocorrência de algum problema.
Pelo que o depoimento da testemunha DD (que, estranhamente, nada soube explicar quanto ao motivo do falecido ter-se virado de frente para ele) em nada impõe uma conclusão diversa sobre a violação de deveres de cuidado pelo arguido, no caso concreto.
Quanto ao segundo ponto, é fácil ceder à tentação de realizarmos um juízo genérico e formal, no sentido de que o arguido devia ter imobilizado a viatura logo que deixou de ver o falecido, que lhe dava indicações.
Conforme impunham as instruções genéricas em vigor sobre os procedimentos a adoptar com o tipo de viatura em causa, tal como afirmadas pela testemunha EE.
Sobre este aspecto, o tribunal recorrido explicou, com pertinência, após referência ao trabalho duradouro em equipa entre o falecido e o arguido, bem como ao facto de a condução se fazer a cerca de 5 Km/h, que “Também o acto de condução do arguido ocorria com essa confiança acrescida que a traseira está segura pelo ofendido, mas acautelada com a manobra lenta e, como explicou o arguido, caso ocorresse algum problema na traseira, o ofendido avisasse. Não cremos, nem no caso concreto, nem no acto normal de marcha atrás de um camião, que o foco do arguido estivesse a todos os microssegundos apenas sobre o ofendido, nem poderia estar, sendo que não há prova de que não foi numa dessas fracções de segundo que o ofendido se colocou na traseira, não avisou o arguido e sofreu o embate fatal”.
Estas circunstâncias, apreciadas não como se o arguido fosse um super-homem, mas de acordo com a normalidade da vida em sociedade, em face da percepção dinâmica que foi possível verificar e das possibilidades decorrente do tempo dos acontecimentos, que se desconhece com rigor, não impõem decisão diversa da que consta da decisão recorrida1.
Não se sabe quanto tempo durou a falta de visibilidade do arguido quanto à pessoa do falecido ou se isso foi algo muito rápido, estando a marcha atrás já em curso.
Aliás, se o ocorrido tivesse sido algo tão claramente previsível, fica por compreender por que motivo a testemunha DD apenas decidiu buzinar depois do efectivo embate no falecido.
Tendo, por isso, que improceder o recurso neste aspecto.
D) Violação dos deveres de cuidado pelo arguido de acordo com o disposto nos arts. 35º, nº 1, 46º. nº 1 e 3º, nº 2, do (Código da Estrada) CE.
No quadro factual estabelecido, a mera referência ao disposto no art. 35.º do CE, de acordo com o qual, deve ser acautelada a perigosidade de algumas manobras, entre elas a marcha atrás, ou ao disposto no art. 46.º do CE, que impõe a proibição de realização de marcha atrás nas situações em que se verifique falta de visibilidade, não possui sentido útil além do que foi analisado.
A manobra que estava a ser feita pelo arguido e pelo ofendido encontrava-se dentro dos procedimentos específicos e excepcionais para as concretas viaturas, estando a visibilidade assegurada pela colaboração com o falecido.
Não se percebendo o carácter imediato ou não da falta de visibilidade do arguido e da inusitada alteração posicional do falecido – cuja conduta também fica por compreender integralmente (especificamente em termos de motivação) – não é possível aceitar que tenha existido, em concreto, uma violação dos deveres de cuidado por parte do arguido.
Não se discute que o arguido tivesse os deveres de cuidado enunciados, mas não se pode aceitar, sem dúvidas, em concreto, que o seu incumprimento tenha ocorrido dentro do que lhe era possível e exigível. Pois essa é a medida da determinação de um comportamento negligente, nos termos do disposto no art. 15.º do Código Penal, que não se verifica.
Em conclusão, deve ser mantida a decisão recorrida.
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Decisão
Face ao exposto acordam os Juízes Desembargadores da 3ª. Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em considerar não provido o recurso apresentado pelas assistentes, mantendo integralmente a decisão recorrida.
Custas pelas assistentes, que se fixam em 4 UC por cada uma delas, atento o disposto no art. 515.º, n.º1, b), do Código de Processo Penal, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem.
Lisboa, 08 de Outubro de 2025,
(elaborado pelo 1.º signatário e revisto)
João Bártolo
Francisco Henriques
Cristina Almeida e Sousa
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1. “O tipo de ilícito negligente consiste na violação do cuidado a que o agente está obrigado de acordo com o conhecimento e as capacidades do homem médio pertencente à categoria social e profissional do agente” como refere Paulo Pinto de Albuquerque no seu “Comentário do Código Penal”, UCE, 2008, p. 93, ponto 1.