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JUSTO IMPEDIMENTO
REQUISITOS
MOMENTO DA PRÁTICA DO ACTO
Sumário
Sumário: (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil) - O conceito de justo impedimento desdobra-se em dois requisitos: - que o evento não seja imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários; - que determine a impossibilidade de praticar em tempo o acto (art. 140 nº 1 do CPC); - Não sofre contestação, e a jurisprudência tem vindo a admitir, que é possível invocar a ocorrência de um facto não imputável à parte, como justo impedimento, dentro do período dos três dias úteis de multa, previsto no art. 139º, nº 5 do CPC; - Também é certo, pois resulta da citada disposição legal, que a parte deve invocar a ocorrência do justo impedimento logo que este cesse; - No entanto, para além de alegar o justo impedimento a requerente deve praticar o acto processual em falta simultaneamente.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I - Relatório
M, A, e S Intentaram a presente acção declarativa de condenação contra:
- Hospital da Luz, S.A., NIPC 507485637, e
- Companhia de Seguros Fidelidade, S.A., NIPC 500918880,
pedindo, a final, a condenação solidária das Rés a indemnizar os Autores, no montante global de €357.183,63, acrescido de juros de mora contados desde a data de citação até integral pagamento.
O 1º Réu, Hospital da Luz, S.A., foi citado no dia 24/7/2024 (email dos CTT junto aos autos a 23/9/2024, ref. 40478525).
Por requerimento apresentado a 14/10/2024, veio a Ilustre Mandatária do 1º Réu invocar justo impedimento para a apresentação tempestiva da contestação, defendendo que o prazo de defesa do 1o Réu terminou no dia 30/09/2024 e que o acto, independentemente de justo impedimento, poderia ser praticado até 3/10/2024, correspondente ao 3º dia útil seguinte ao termo do prazo, mediante o prévio pagamento da multa devida. Sucede que durante o dia 1/10/2024 e a madrugada do dia seguinte, a Requerente que estava há cerca de uma semana com sintomas sugestivos de gripe, foi acometida de fortes dores lombares, febre persistente, tonturas e náuseas que a levaram a recorrer na manhã do dia seguinte (2/10/2024) ao Serviço de Urgência do Hospital da Luz …. Acabou a Requerente por ficar internada desde o dia 2/10 até ao dia 11/10/2024 para diagnóstico de doença aguda e urgente (Pielonefrite por infecção bacteriana) e tratamento com antibiótico intravenoso que se prolongou durante 10 dias. Durante o período em que esteve hospitalizada, a Requerente viu-se absolutamente impossibilitada para o exercício da sua actividade profissional, designadamente para concluir e apresentar a defesa da 1ª Ré até ao dia 3/10/2024. Mais alega que a procuração forense da 1ª Ré que confere poderes à Requerente é singular e a Requerente não tinha condições para proceder ao substabelecimento do mandato noutro Colega. Sustenta que a “doença aguda e urgente” com necessidade de internamento hospitalar foi um evento súbito e imprevisível, não imputável à Requerente que os sofreu e muito menos ao 1º Réu, por ser alheio à sua vontade, desculpável e não envolver culpa ou negligência séria do 1º Réu ou da sua mandatária, pelo que configura justo impedimento nos termos do art. 140º, nº 1 do CPC. Por fim, alega que o impedimento cessou com a alta hospitalar da Requerente na sexta-feira, dia 11/10/2024, tendo apresentado o requerimento em análise no dia útil seguinte à cessação do impedimento.
Requer, assim, que se considere provado o justo impedimento para apresentação atempada da Contestação da 1ª Ré nos presentes autos, deferindo a sua apresentação posterior assim que se mostrou cessado o justo impedimento.
Com o referido requerimento, juntou uma declaração de internamento e um atestado médico, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
No dia 15/10/2024, o 1º Réu juntou a sua contestação, com a liquidação da multa prevista no art. 139º, nº 5, c) do CPC, correspondente ao 3º dia útil – ref. citius 40734905.
Notificados, os Autores defenderam que não se verifica o justo impedimento, impugnando os factos alegados pela Requerente e os documentos juntos, pedindo a junção aos autos do processo clínico referente à doença da Requerente, ao seu tratamento e internamento no período referido. Concluem que o requerimento de justo impedimento foi apresentado intempestivamente, tal como a própria contestação que, assim, deve ser julgada extemporânea.
Por despacho proferido a 19/3/25 foi considerado verificado o justo impedimento e atempadamente praticado o acto de apresentação da contestação do 1º Réu.
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Inconformados com a referida decisão, os Autores interpuseram recurso, terminando com as seguintes conclusões: “A) O presente recurso incide sobre o despacho de 19.03.2025, que julgou verificado o justo impedimento invocado pela Mandatária do Réu Hospital da Luz, e, em consequência admitiu a sua contestação. B) A referida decisão enferma de erro de facto e de Direito, pelo que deverá ser revogada na íntegra. C) No que respeita à factualidade considerada provada pelo tribunal a quo, dos autos resulta inequivocamente que o Réu Hospital da Luz foi citado em 24.07.2024 e o termo do prazo para contestar terminou no dia 30.09.2024. D) O Réu apenas apresentou a sua contestação no dia 15.10.2024 com base na invocação de justo impedimento da sua Mandatária por, alegadamente, ter ficado doente e carecido de internamento hospitalar desde o dia 02.10.2024 até ao dia 11.10.2024. E) Para prova do justo impedimento a mandatária do Réu limita-se a juntar documentos particulares e simples emitidos pelo próprio Réu ou por seus funcionários. F) Os Autores impugnaram os factos e documentos alegados e juntos pelo Réu para demonstrar o invocado justo impedimento. G) Os Recorrentes requereram ainda a junção aos autos do processo clínico relativo invocada doença, tratamento e internamento da Requerente. H) O Réu e a sua mandatária não juntaram qualquer prova idónea, certificada ou autêntica da situação de justo impedimento invocada pela mandatária do Réu. I) A Mandatária do Réu, Dra. S é advogada e funcionária do Réu há 12 anos, tendo atualmente a categoria de diretora do Grupo Luz Saúde (cfr. Doc. 1 do requerimento dos Autores de 13.11.2024). J) De acordo com o documento junto pelo Réu em 22.11.2024, o departamento jurídico do Réu é constituído por mais de uma dezena de advogados. K) O despacho recorrido considerou erradamente como provado o facto de: “4. A ilustre advogada do R. Dr.ª S, por motivo de saúde urgente e inadiável, foi internada no Hospital da Luz de … no dia 02.10.2024 onde permaneceu internada até ao dia 11.10.2024. – cfr. Doc. junto com o req.º de 14.10”. L) Em primeiro lugar, a expressão motivo de saúde urgente e inadiável é um juízo conclusivo ou consubstancia matéria de Direito, pelo que não pode constar do elenco de factos considerados pelo Tribunal. M) Ademais, o tribunal a quo não poderia considerar este facto como provado, com base no documento junto com o req.º de 14.10, que o tribunal a quo nem sequer identifica qual é. N) Conforme acima referido, os ora Recorrentes impugnaram expressamente os factos e documentos alegados / juntos pela mandatária do Réu em 14.10.2024, por requerimento de 23.10.2024, nomeadamente a suposta declaração médica junta como Doc. 1. O) De facto, a mandatária do Réu não demonstrou o alegado diagnóstico da doença aguda e urgente (Pielonefrite por infeção bacteriana) e tratamento com antibiótico intravenoso durante 10 dias, o que para a Requerente é manifestamente fácil demonstrar, uma vez que aparentemente terá ficado internada no Hospital da Luz. P) Também não demonstrou que estivesse impedida ou impossibilitada de substabelecer, pois que dos 10 dias de internamento no Hospital da Luz alegados não resulta que esse absoluto impedimento. Q) Quanto à questão de a procuração forense conferir poderes apenas à Requerente também se impugnou que tal fosse motivo justificativo considerando que estamos no início deste processo e se tratava da primeira intervenção do Réu nestes autos, pelo que haveria certamente outros colegas que poderiam assegurar a prática do ato tempestivamente e considerando ainda que a contestação estava em fase final. R) Os documentos juntos pela Requerente para prova do justo impedimento são cópias simples de documentos particulares, contendo meras declarações aparentemente emitidas pelos Serviços Administrativos e por um médico do próprio Réu, Hospital da Luz, pelo que não servem de prova adequada a demonstrar o justo impedimento invocado. S) Assim, em face da mencionada impugnação e do ónus de prova que incumbe à parte que invoca o justo impedimento, cabia inequivocamente ao Réu e à sua mandatária demonstrar que efetivamente esteve doente, foi medicada e internada durante o período alegado, não sendo minimamente suficiente juntar documentos particulares elaborados e subscritos pelo próprio Réu ou por um dos seus funcionários. T) É óbvio que o Réu tem um interesse direto e pessoal na causa, pelo que meras declarações simples não servem como prova idónea do justo impedimento da sua mandatária, devendo ter juntado o processo clínico completo em causa. U) Pelo que o facto 4. da decisão recorrida tem de ser alterado para não provado. V) Errou o tribunal a quo ao concluir que efetivamente a situação invocada foi imprevisível, urgente e inadiável, não imputável à parte ou à sua mandatária e que os impediam em absoluto da prática o ato em tempo. W) Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou as regras de distribuição do ónus da prova a cargo do Réu e da sua mandatária e cometeu um erro de apreciação da prova e de julgamento quanto aos factos em discussão em volta do justo impedimento invocado pelo Réu e a sua mandatária. X) Sem prejuízo do exposto e sempre sem conceder, não ficou também demonstrado que inexistiu culpa na prática tardia do ato, não bastando a mera alegação de impedimento de exercício de deveres profissionais, tornando-se ainda necessário provar que esse facto era absolutamente impeditivo de tomar as providências necessárias à prática atempada do ato, se necessário procedendo ao substabelecimento. Y) O que nem o Réu nem a sua mandatária fizeram. Z) Ademais, constata-se o Réu deixou decorrer todo o prazo de defesa – 2 meses e 7 dias - e deixou para a última a submissão da sua contestação, aparentemente já em 2º dia de multa. AA) Este motivo é por si só suficiente para se verificar uma situação de incúria e negligência, que nos parece justificar a não verificação de um impedimento absoluto do Réu ou da sua mandatária para a prática atempada do ato de apresentação da contestação. BB) Conforme resulta da invocação do próprio Réu, a contestação estava em fase final, pelo que nada impedia a Mandatária de substabelecer noutro colega para terminar esta tarefa. CC) Sobretudo quando estamos a considerar que se trata do Hospital da Luz, integrante do grupo da seguradora Fidelidade, também aqui demandada. DD) Ademais, é a própria mandatária Requerente que alega que “que estava há cerca de uma semana com sintomas sugestivos de gripe, suportáveis com analgésicos e antipiréticos”, tendo por referência a semana anterior ao dia 01.10.2024 (cfr. requerimento de 14.10.2024, parágrafo 6), pelo que é óbvio que não se tratou de uma situação urgente, imprevisível e inadiável. EE) Aqui deve assinalar-se que mal andou o tribunal a quo ao considerar que se tratou de “uma situação de doença súbita que determinou o internamento hospitalar, considera-se que se tratou de um evento imprevisível, estranho à vontade da ilustre mandatária e que a impediu de praticar o ato atempadamente.” FF) A mandatária do Réu foi imprudente e incauta e arriscou de forma negligente a preparação e submissão da defesa do Réu, devendo, assim que se começou a sentir doente, ter passado o assunto a um colega, mediante substabelecimento ou pedir ajuda a alguém do seu departamento jurídico. GG) A parte poderia também constituir novo mandatário, o que estava ao seu perfeito alcance seja dentro do seu departamento jurídico seja externalizando esse serviço a um advogado externo. HH) De acordo com a alegação da própria Requerente, o invocado impedimento - internamento hospitalar – não demonstra que a Requerente esteve absolutamente impedida de tomar as providências necessárias à prática atempada do ato de submissão da contestação do Réu. II) Acresce ainda que é demandada e co-Ré neste processo a seguradora Fidelidade, integrante do grupo de sociedades do Réu Hospital da Luz – grupo Fidelidade Saúde, o que constitui um facto público e notório. JJ) A co-Ré Fidelidade apresentou a sua contestação no dia 24.09.2024, representada pela Dra. M, pelo que esta poderia ser uma alternativa do Réu e da Requerente em recorrer à advogada da Fidelidade que conhecia o caso. KK) Assim, não se verificou qualquer facto absolutamente impeditivo da prática do ato pelo Réu representado pela sua mandatária e que apenas por culpa de ambos a contestação foi apresentada fora de prazo. LL) Aliás, a jurisprudência dos nossos tribunais tem tido uma evolução no sentido de apertar o crivo pelo qual se deve considerar verificado o justo impedimento, para que apenas sejam consideradas situações de justo impedimento aquelas devidamente comprovadas e que objetivamente impossibilitem de forma absoluta e determinante a prática do ato atempadamente. MM) Não bastam situações de mera dificuldade ou de dificuldade acrescida – como nos parece ser o caso dos autos invocado – e indemonstrado – pela mandatária do Réu (ver acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20 de abril de 2018, processo nº 3188/2017, do Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 22 de junho de 2017, processo nº 285/14, do Tribunal da Relação do Porto, de 11.03.2025, processo nº 6465/24.8T8PRT-B.P1, do Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 9 de março de 2010, processo nº 1651/02.4TAOER-A.L1-5. NN) Em face do exposto, não está verificada a situação de justo impedimento invocada, pelo que a contestação do Réu não pode ser admitida, por extemporaneidade. OO) Acresce ainda que a invocação do justo impedimento é extemporânea, nos termos do disposto no artigo 140º, nº 2, do CPC PP) Também neste segmento decisório, o tribunal incorre em erro de julgamento. Com efeito, este entendimento não tem qualquer espelho na letra e nom espírito da lei, nem na nossa mais firme jurisprudência. QQ) Efetivamente, é jurisprudência consolidada relativamente à interpretação e aplicação do artigo 140º, nº 2, do CPC, que o justo impedimento tem de ser alegado no preciso momento em que a parte se apresenta a praticar o ato fora de prazo. RR) Daqui se retira que ambos têm de ser feitos em simultâneo, ou seja, o justo impedimento e a apresentação do ato fora de prazo tem de ser realizados logo que a situação de justo impedimento cesse. SS) Desta norma não resulta que exista a previsão de multa para a prática do ato ou da invocação da situação de justo impedimento, uma vez que já estamos no âmbito de uma situação absolutamente excecional e depois do prazo para contestar terminar (veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de junho de 2024, Processo 23154/19.8T8PRT-E.P1.S1, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 9 de Fevereiro de 2023, Processo 119497/21.2YIPRT.E1). TT) Ou seja, daqui se conclui que a mandatária do Réu deveria ter apresentado a contestação e invocado o justo impedimento no momento em que ele cessou, ou seja, entre o dia 11.04.2024 e o dia 14.04.2024, quando invocou o justo impedimento, sem o que a sua contestação é extemporânea. UU) Aliás, note-se que o justo impedimento terá cessado no dia 11.10 – facto que permanece por demonstrar -, pelo que o Réu deveria ter invocado o justo impedimento e apresentado a sua contestação no dia 14.10 – dia útil seguinte à alegada cessação da situação de justo impedimento. VV) Não se compreende pois, porque é que a mandatária do Réu invoca o justo impedimento no dia 14.10 e só apresenta a sua contestação no dia seguinte, 15.10, nem sendo aplicável o disposto no artigo 139º, nº 5, al. c) do CPC. WW) Pelo que também aqui, andou mal o tribunal a quo ao decidir que a invocação do justo impedimento foi tempestiva e também por este motivo deve ser revogada e decisão recorrida. XX) Em face de todo o exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso de apelação por não estar verificado o justo impedimento invocado e, em consequência, a decisão recorrida deve ser integralmente revogada e substituída por outra que determine a inadmissibilidade da apresentação da contestação do Réu Hospital da Luz, por extemporaneidade. Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve ser dado provimento à presente Apelação, determinando-se a revogação integral da decisão contida no Despacho recorrido, com a consequente inadmissibilidade da contestação do Réu Hospital da Luz, com todas as devidas consequências legais. Pois só farão V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, a costumada e sã Justiça!”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
* II - Objecto do recurso
O objecto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (arts. 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Face teor das alegações e conclusões importa verificar:
- se o ponto 4 dos factos provados deve ser considerado não provado;
- se no caso dos autos não se verifica uma situação enquadrável no conceito de justo impedimento;
- se é extemporânea a apresentação do requerimento em que o 1º Réu alega o justo impedimento e se é também extemporânea a apresentação da contestação.
* III – Fundamentação de Facto
A primeira instância considerou a seguinte factualidade:
“1. O R. Hospital da Luz, S.A. foi citado em 24.07.2024, pelo que o prazo de apresentação da contestação terminaria no dia 30.09.2024; 2. A 14/10/2024 a ilustre mandatária da R. requer a verificação do justo impedimento. 3. A 15.10.2024 (apenas constante do sistema citius a 16.10.02024) a Ré apresentou contestação. 4. A ilustre advogada do R. Dr.ª S, por motivo de saúde urgente e inadiável, foi internada no Hospital da Luz de … no dia 02.10.2024 onde permaneceu internada até ao dia 11.10.2024. – cfr. Doc. junto com o req.º de 14.10”.
Serão, ainda, tidos em conta os factos que constam do relatório.
* IV – Fundamentação de Direito
Da impugnação da Matéria de Facto.
Defendem os recorrentes que o ponto 4 dos factos considerados provados deve passar a constar dos factos não provados, defendendo que o tribunal a quo não poderia considerar tais factos como provados com base no documento junto com o “req.º de 14.10”, que o tribunal nem sequer identifica. Além do mais, os recorrentes impugnaram expressamente os factos e documentos juntos pela mandatária do Réu em 14/10/2024, nomeadamente a suposta declaração médica junta.
Existem requisitos específicos para a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, os quais, se não observados, conduzem à sua rejeição.
Assim, o artigo 640º do Código de Processo Civil, impõe ao recorrente o ónus de:
a) especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
É hoje indiscutível a inadmissibilidade de recursos que se insurgem em abstracto contra a decisão da matéria de facto: o recorrente tem que especificar os exactos pontos que foram, no seu entender, erroneamente decididos e indicar também com precisão o que entende que se deve dar como provado.
Impõe-se que nas conclusões o recorrente indique concretamente os pontos da matéria de facto que impugna, apresentando a sua pretensão de forma inequívoca, de forma a que se possa, com clareza, separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da reivindicação da alteração da matéria de facto.
O recorrente, além de ter que assinalar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, tem também que especificar os meios de prova constantes do processo que determinam decisão diversa quanto a cada um dos factos, evitando-se que sejam apresentados recursos inconsequentes, não motivados, com meras expressões de discordância, sem fundamentação que possa ser perceptível, apreciada e analisada.
Quanto a cada um dos factos que pretende que se obtenha diferente decisão da tomada na sentença, tem o recorrente que, com detalhe, indicar os meios de prova deficientemente valorados e ponderar criticamente os mesmos.
Entendemos que o recurso interposto pelos recorrentes relativo à impugnação da matéria de facto cumpre o ónus imposto pelo art. 640º do CPC, pelo que passaremos à sua análise.
Apreciando.
Na decisão em crise, consta do ponto 4 dos factos dados como assentes, que:
“A ilustre advogada do R. Dr.ª S, por motivo de saúde urgente e inadiável, foi internada no Hospital da Luz de … no dia 02.10.2024 onde permaneceu internada até ao dia 11.10.2024. – cfr. Doc. junto com o req.º de 14.10”.
A motivação do tribunal assentou, como se pode ver, no documento junto com o requerimento de 14/10.
Como foi referido supra, no requerimento apresentado pela Ilustre Mandatária do 1º Réu no dia 14/10/2024, em que alega o justo impedimento para a prática de acto (contestação), foram juntos dois documentos: uma declaração de internamento e um atestado médico, cujo teor se deu por reproduzido.
Vejamos o que dizem cada um dos referidos documentos.
O primeiro é uma “Declaração de Internamento” passada pelo Hospital da Luz, e da mesma consta: “Para os devidos efeitos declara-se que S, nascida(o) a …, com o cartão de cidadão (…), esteve internada(o) no Hospital da Luz …, desde o dia 02-10.2024 – até dia 11-10-2024”.
O segundo documento é uma “Declaração Médica”, com o seguinte teor: “A…, médico, portador da cédula (…), declara para os devidos efeitos que a Sra. S, portadora do CC (…), por motivo de saúde urgente e inadiável, foi internada no Hospital da Luz de … no dia 02 de Outubro de 2024, onde permaneceu internada até ao dia 11 de Outubro de 2024”.
Os recorrentes defendem que impugnaram expressamente os factos e documentos supra referidos, que são meras cópias de documentos particulares, emitidas pelos serviços administrativos e por um médico do próprio Réu, pelo que não deviam servir para a fundamentação do facto impugnado.
Ora, estando em causa documentos particulares, estabelece o art. 374º nº 1 do CC que “a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando este declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras”. Quanto à sua força probatória dispõe o art. 376º que “o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações nele atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento” (nº 1), sendo que “os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante” (nº 2).
A parte contra a qual o documento particular é apresentado pode impugnar a veracidade da letra ou da assinatura ou declarar que não sabe se aquelas são verdadeiras, não lhe sendo imputadas, caso em que cabe à parte que o ofereceu fazer prova da veracidade da subscrição pela pessoa a cuja autoria é atribuído. A impugnação da genuinidade de documento particular faz-se nos termos previstos no artigo 445º do CPC mediante declaração da parte contra o qual é oferecido, não carecendo de qualquer decisão judicial subsequente.
Não ficando estabelecida a genuinidade do documento particular, porque impugnado e não demonstrada a sua veracidade pelo apresentante, o mesmo constitui apenas um meio de prova livremente apreciado pelo julgador, ficando arredada a sua força probatória plena.
No entanto, era lícito ao julgador valorar livremente os documentos em questão decidindo segundo a sua prudente convicção e, se não ordenou a junção aos autos do processo clínico da mesma, conforme havia sido requerido pelos Autores, foi porque não se lhe afigurou qualquer motivo para não dar credibilidade aos documentos juntos.
Quanto a nós, independentemente de um dos documentos ter sido emitido pelos serviços administrativos do Réu e outro “por um médico do próprio Réu”, tal não lhes retira a credibilidade que também mereceram ao tribunal da primeira instância.
Tudo para dizer que não merece censura a convicção formada com base na livre apreciação do tribunal a quo, quanto ao ponto 4 dos factos provados que acaba por reproduzir o que resulta dos dois documentos juntos.
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto.
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Os Autores defendem que a situação dos autos não é enquadrável no conceito de justo impedimento.
O conceito de justo impedimento desdobra-se, actualmente, em dois requisitos:
- que o evento não seja imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários;
- que determine a impossibilidade de praticar em tempo o acto (art. 140 nº 1 do CPC).
Verifica-se um tal impedimento quando a pessoa que devia praticar o acto foi colocada na impossibilidade de o fazer, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto que lhe não é imputável.
Se o evento é imputável a culpa, imprevidência ou negligência da parte ou do mandatário, se a parte ou o mandatário contribuiu, por qualquer modo para que aquele se produzisse, aquele evento é-lhe imputável e, por isso, está-lhe vedado o recurso ao justo impedimento. Se, não obstante o facto, a parte e o seu representante ou mandatário, poderiam, dentro do prazo legal, ter praticado o acto, incorreram em negligência e não podem, por isso, invocar o justo impedimento.
O justo impedimento, que legitima a prática do acto depois de decorrido o prazo respectivo tem sido interpretado pelos tribunais de modo muito cauteloso a fim de contrariar o uso abusivo, prejudicial aos interesses da segurança e da celeridade.
De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem sido entendido que limitando-se o atestado médico a mencionar que o paciente se encontra incapacitado por motivo de doença por um período determinado de tempo, desde o dia X a Y, tal declaração não atesta factos, não viabilizando que o tribunal se possa pronunciar reconhecendo que houve justo impedimento (neste sentido, cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 13/7/21, proc. 4044/18; de 13/5/25, proc. 8111/16; de 22/10/2015, proc. 2736/11, citado in Abrantes Geraldes, Paulo Pimento e Luis Filipe Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed. pág. 184).
É certo que no caso dos autos, o atestado médico em causa apenas refere que a Requerente “por motivo de saúde urgente e inadiável, foi internada no Hospital da Luz de … no dia 02 de Outubro de 2024, onde permaneceu internada até ao dia 11 de Outubro de 2024”, não concretizando qual a doença que afectou a Srª Ilustre Mandatária do Réu. Todavia, resulta dos factos que a referida doença determinou um internamento que teve a duração de 9 dias. Pensamos que nestas circunstâncias não era expectável, como defende o Réu, que estando a requerente internada pudesse ou devesse tomar as providências necessárias à prática atempada do acto. Como se refere, com toda a pertinência na decisão recorrida, “Afigura-se que uma situação de internamento hospitalar, pela sua imprevisibilidade, tem de considerar-se uma situação excepcional, que excede o limite das previsões normais. Mais se entende não ser exigível a um advogado, que se vê internado de urgência, que tenha a diligência de encarregar outrem de se inteirar do trabalho que vinha fazendo e apresentar uma peça processual de contestação no próprio dia, ou no dia seguinte. Da mesma forma, tem que se considerar que a imprevisibilidade de um internamente de urgência afasta qualquer culpa da parte, não lhe sendo imputável”.
Entendemos, assim, que a Requerente logrou demonstrar que a falta de prática do acto no devido tempo ocorreu de caso fortuito ou de força maior impeditivo, que não lhe é imputável, nem à parte que representa.
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Cumpre, por fim, apreciar se é extemporânea a apresentação do requerimento em que o 1º Réu alega o justo impedimento e se é também extemporânea a apresentação da contestação.
Além dos requisitos enunciados no nº 1 do art. 140º do CPC, a que já fizemos referência, acresce um outro: o de requerer a prática extemporânea do acto mediante a alegação e prova do justo impedimento, mas logo que cesse a causa impeditiva (art. 140 nº 2 do CPC).
Com efeito, segundo o art. 140º, nº 2 do CPC, “A parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respectiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admite o requerente a praticar o ato fora do prazo se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou”.
No caso dos autos, a Requerente, Ilustre Mandatária do 1º Réu, permaneceu internada até ao dia 11/10/2024 (sexta feira). Apresentou um requerimento em que alega a existência de “justo impedimento” no 1º dia útil seguinte à cessação do seu impedimento, ou seja, no dia 14/10/2024, que coincidiu com uma segunda feira.
Todavia, como resulta claramente do Relatório, a contestação apenas foi apresentada no dia seguinte, ou seja, no dia 15/10/2024.
Tendo o 1º Réu sido citado no dia 24/7/2024, o prazo para apresentar a contestação terminava no dia 30/9/2024. De acordo com o art. 139º do CPC, independentemente do justo impedimento, a Réu ainda poderia apresentar a contestação até ao dia 3/10/2024, pagando a multa prevista no nº 5, al. c).
A Requerente defende que tendo sido internada no dia 2/10/2024, o requerimento em que alega o justo impedimento foi apresentado no segundo dia útil e a contestação no terceiro dia útil conforme permitido pelo citado art. 139º, nº 5 do CPC.
Esta foi também a tese seguida na primeira instância, referindo, a dado passo, o seguinte: “verifica-se que se eliminarmos o período em que a requerente esteve impedida (de 02.10 a 11.10), o acto - a apresentação da contestação- foi praticado no terceiro dia útil após o decurso do prazo peremptório de defesa (1º dia- 01.10; 2º dia- 14.10 e o 3º dia -15.10), pelo que se entende que, não obstante ter sido praticado depois da invocação do justo impedimento, está, ainda em prazo, tanto mais que foi paga a multa prevista no art.º 139º, n.º 5 al. c) do Código de Processo Civil”.
Não perfilhamos este entendimento.
Não sofre contestação, e a jurisprudência tem vindo a admitir, que é possível invocar a ocorrência de um facto não imputável à parte, como justo impedimento, dentro do período dos três dias úteis de multa, previsto no art. 139º, nº 5 do CPC (neste sentido, cfr. Ac. da RP de 10/2/11, p. 947/10; do STJ de 25/10/12, p.1627/04; Ac. da RL de 28/5/13, p. 2294/08; Ac. da RG de 31/10/18, p. 49/18; do STJ de 23/2/21, p. 671/19, todos acessíveis in www.dgsi.pt).
Também é certo, pois resulta da citada disposição legal, que a parte deve invocar a ocorrência do justo impedimento logo que este cesse. Como refere Marco Carvalho Gonçalves in Prazos Processuais, pág. 247, “Este requisito deve ser interpretado cum grano salis. Com efeito, a parte deve invocar a ocorrência do impedimento logo que o mesmo termine. No entanto, estando em causa a prática de um ato no processo, o justo impedimento pode ser invocado no primeiro dia útil subsequente àquele em que cessou o justo impedimento”. Tendo em conta o que já referimos supra, a requerente respeitou este requisito, tendo alegado o justo impedimento no 1º dia útil após a cessação do seu internamento.
No entanto, para além de alegar o justo impedimento nos moldes em que o fez (no 1º dia útil à cessação do impedimento, oferecendo, de imediato, a prova da sua ocorrência), a requerente devia ter praticado o acto processual em falta, a contestação, simultaneamente. Ou seja, para além de alegar e provar o justo impedimento, o que aconteceu no dia 14/10/24, a Requerente deveria ter apresentado a contestação nesse mesmo dia. “Vale isto por dizer que não basta à parte alegar e provar a ocorrência de um justo impedimento, devendo, igualmente, praticar, de imediato, o ato processual em falta” (Marco Carvalho Gonçalves, ob. cit., pág. 248, e jurisprudência ali citada: Ac. da RP de 28/10/21, p. 2349/20; Ac. da RE de 12/5/22, p. 103/21 e, ainda, Ac. RL de 26/2/20, p. 198/19; Ac. do STJ de 4/6/24, p. 23154/19; e de Ac. do STJ de 4/6/24, p. 23154/19, todos os Acs. disponíveis em www.dgsi.pt).
Não foi isto que aconteceu no caso dos autos. A Ilustre Mandatária do 1º Réu optou por alegar a situação de justo impedimento no dia 14/10/24 (que considerou ser o 2º dia útil para a prática do acto nos termos do art. 139º, nº 5 do CPC), e apresentou a contestação no dia seguinte, ou seja, no dia 15/10/2024 (que entendeu ser o 3º dia útil nos termos do art. 139º, nº 5 do CPC, pagando a respectiva multa).
Como se afirma no Ac. da RE de 2/12/2009, p. 360/08, “o efeito do justo impedimento, tal como foi concebido e está consagrado na norma citada, não é nem o de impedir o início do curso de prazo peremptório, nem o de interromper tal prazo, quando em curso, no momento em que ocorre o facto que se deva considerar como justo impedimento, inutilizando o tempo já decorrido, mas tão somente o de suspender o termo de um prazo peremptório, deferindo-o para o dia imediato aquele que tenha sido o último de duração do impedimento. Ou seja, através do justo impedimento não se pode pretender, como faz o recorrente, a concessão de novo prazo para a prática do acto. No normativo em causa, apenas se concede ao requerente, a possibilidade de praticar o acto no momento (dia) imediatamente posterior, ao fim da cessação do impedimento. Assim a parte que invoque, em seu benefício, o instituto do justo impedimento, tem, simultaneamente, de proceder à prática do acto, indicando os fundamentos factuais e apresentando as provas respectivas, a fim do julgador, após audição da parte contrária, aferir das circunstâncias em que tal ocorreu e da existência, ou não, de culpa da parte ou do respectivo mandatário, na prática tardia do acto” (no mesmo sentido, vg., Ac. da RC de 18/7/06, p. 1887/06 e Ac. da RE de 21/5/2009, p. 786/05, todos os acórdãos citados acessíveis in www.dgsi.pt).
Concluindo, a apresentação da contestação no dia 15/10/2024 foi extemporânea, pelo que não deverá ser atendida, ao contrário do decidido em primeira instância.
O recurso deve, pois, proceder.
* V - Decisão:
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente e, revogando-se a decisão recorrida, declara-se improcedente o incidente de justo impedimento, com a consequente não admissão da contestação apresentada pelo 1º Réu.
Custas pelo recorrido.
Lisboa, 9/10/2025 (o presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações/transcrições” efectuadas que o sigam)
Carla Figueiredo
Rui Poças
Ana Paula Olivença