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CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
Sumário
Sumário: (Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – artº 663º nº 7 do Código de Processo Civil) I - O instituto do caso julgado deve analisar-se numa dupla perspectiva: como excepção de caso julgado e como força de caso julgado: (a) a excepção de caso julgado tem como finalidade evitar a repetição de causas, encontrando-se os seus requisitos taxativamente enumerados no artº 581º do CPC: identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir; (b) a autoridade de caso julgado pressupõe a decisão de certa questão que não pode voltar a ser discutida, não sendo necessário que actue a coexistência das três identidades referidas no artº 581º CPC. II - A força da autoridade de caso julgado abrange as questões directamente objecto do julgado e as que constituem antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado: a sentença impõe-se “nos precisos limites e termos em que julga”, como estabelece o artº 621º CPC. III - Esta expressão legal significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz da ou das causas de pedir e das excepções invocadas pelas partes, bem como do pedido ou pedidos formulados. IV - Por isso o respeito pela autoridade do caso julgado importa a análise do âmbito e dos limites da decisão e obriga à interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente dos fundamentos que constituam premissas necessárias da parte dispositiva do julgado, porquanto a decisão consiste na conclusão dos pressupostos lógicos que a ela conduzem. V - O princípio da preclusão decorrente da exigência da concentração dos meios de alegação diz respeito tão só aos factos essenciais da causa de pedir e as razões de direito, isto no tocante à acção (cfr. artº 5º nº 1, 1ª parte, e artº 552º nº1 al. d), e das excepções, no que toca à defesa (cfr. artº 5º nº 1, 2ª parte, e artº 573º nº 1 do CPC).
Texto Integral
Acordam as Juízes na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
VMBN, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma única de processo comum,
contra
FM e mulher MDAFM,
alegando, em síntese, que viveu em união de facto com MFFM, filha dos RR., união da qual nasceu um filho. Nesse contexto vivencial os RR. e DSA, por escritura pública outorgada em 05/04/2013, doaram ao Autor o prédio rústico composto de terreno de horta, com a área de 3.200m2, denominado “M..” ou “M…”, sito nos limites do lugar de …, freguesia de …, concelho de …, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de …, sob o número … e inscrito na matriz da dita freguesia sob o artigo …, secção N; prédio no qual o A. edificou uma moradia para habitação, suportando os custos decorrentes das obras e executando directamente, com o seu esforço pessoal, muitos dos trabalhos de construção civil para erigir a moradia, tendo todos os trabalhos sido executados sob sua direcção e acompanhamento. Para o efeito o A. usou os proventos que auferiu num ano de trabalho em Angola, bem como as suas demais poupanças e todos os seus recursos financeiros, que constituíam bens próprios, tendo o investimento financeiro global do Autor na construção da moradia sido de € 90.000,00, a que acresce o seu esforço pessoal, físico, que deverá ser valorizado em montante não inferior a € 25.000,00; mais alegando que a construção da moradia tem um custo estimado de € 124.730,00.
A construção da moradia foi concluída em Agosto de 2015, data em que o Autor e a filha dos RR passaram a habitá-la, tendo ambos vindo a casar em 04/04/2018.
Os Réus e a outra doadora, DSA, aquando da doação, atribuíram ao imóvel o valor de € 7.400,75, o qual se deve concluir corresponder ao valor do prédio sem a edificação hoje existente, pelo que a construção da moradia valorizou o prédio em, pelo menos, € 124.730,00.
O Autor, desde o início da construção da moradia, em 2014, sempre agiu de boa-fé, pois fê-lo convicto de que era proprietário do prédio por o mesmo lhe ter sido doado pelos Réus e por DSA.
Acontece que em 29/08/2020, os Réus intentaram contra o Autor uma acção - que correu termos no Juiz 2 do Juízo Central Cível de … sob o nº 11152/20.3… - na qual, em suma, peticionaram (i) se decretasse a caducidade da doação feita ao ora Autor, tendo em consideração que a mesma fora feita apenas tendo em conta o casamento daquele com a filha dos ora RR., o qual entretanto se dissolveu; (ii) fosse reconhecido aos ali AA. e aqui RR. o direito de propriedade exclusiva sobre o imóvel; e (iii) fosse decretada a realização de novo registo de aquisição tendo por sujeito activo os ali AA. ora RR. e por sujeito passivo o R. aqui A., e como causa a caducidade da doação, com a consequente extinção subjectiva do direito na esfera jurídica do R. e ora A.; acção que foi julgada procedente e consequentemente condenou o aqui A. a reconhecer a caducidade da doação e a reconhecer o direito de propriedade dos ora RR. sobre o imóvel e determinou as inerentes consequências registais.
Após, os Réus, por carta registada com aviso de recepção datada de 20/10/2022, instaram o Autor a restituir-lhes o imóvel no estado em que se encontra, o qual constitui a casa de habitação do Autor e adveio à sua posse de boa-fé.
Ora, perante a descrita factualidade, o Autor entende que é credor dos Réus por quantia não inferior a €115.000,00 relativamente à construção da moradia erigida no prédio rústico que regressou à esfera patrimonial daqueles, e que lhe assiste o direito de retenção sobre o prédio enquanto não for por eles integralmente ressarcido.
E com tais fundamentos, concluiu pedindo a condenação dos Réus:
i) a pagar ao Autor a quantia de € 115.000,00 a título de enriquecimento sem causa, acrescida de juros de mora à taxa legal para as obrigações civis a contar desde a citação até efectivo e integral pagamento;
ii) a reconhecerem a existência na esfera jurídica do Autor de um direito de retenção sobre o prédio rústico identificado nos autos, incluindo a moradia unifamiliar de tipologia T3 edificada no mesmo, até efectivo e integral pagamento da referida quantia de € 115.000,00 e acrescidos juros de mora.
Os Réus apresentaram contestação na qual, entre o mais, invocaram a excepção da autoridade do caso julgado e o efeito preclusivo do direito.
O Autor respondeu à matéria de excepção, ao abrigo dos princípios da adequação formal e do contraditório.
*
Foi entendido não haver lugar à realização da audiência prévia, em conformidade com o disposto no artº 592º nº 1 al. b) do CPC, por se prefigurar a procedência de excepção dilatória já debatida nos articulados, e foi então proferido saneador-sentença que julgou verificada a excepção da autoridade do caso julgado e, em consequência, absolveu os Réus da instância.
É dessa decisão que o A. vem interpor o presente recurso, pugnando pela revogação do saneador-sentença e pelo prosseguimento dos autos.
Das suas alegações extraiu o Recorrente as seguintes
Conclusões
«I. A preclusão (na perspetiva do principio da concentração da defesa) é definida como a exclusão, e a consequente inadmissibilidade, da prática de um acto processual depois do prazo peremptório fixado, pela lei ou pelo juiz, para a sua realização.
II. Na data em que o aqui Recorrente foi citado para a ação n.º 11152/20.3…, apenas se discutida a questão referente à propriedade do imóvel, inexistindo, ainda, o crédito em causa na presente ação.
III. A força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.
IV. A decisão de mérito a proferir na presente ação, de acordo com a causa de pedir e pedido deduzido pelo Recorrente, não constitui antecedente lógico necessário à parte dispositiva do julgado na ação n.º 11152/20.3…, nem, tão pouco, tem qualquer efeito sobre o caráter definitivo decorrente do trânsito em julgado da sentença ali proferida, de modo a questionar essa autoridade ou de modo a colocá-la numa situação de incerteza, pelas mesmas partes.
V. Na presente ação está em um direito de crédito a favor do Recorrente, a título de enriquecimento sem causa, decorrente do reconhecimento do direito de propriedade dos Recorridos, declarado na ação n.º 11152/20.3….
VI. Na data em que o aqui Recorrente foi citado para a ação n.º 11152/20.3… não se discutia ou poderia discutir o direito de crédito em causa na presente ação, porquanto este direito apenas nasceu na sequência da prolação daquela sentença.
VII. O objeto da presente ação não é dependente do objeto da ação n.º 11152/20.3….
VIII. O objeto da presente ação não é contraditório com o objeto da ação n.º 11152/20.3….
IX. O objeto da presente ação não é igual ao objeto da ação n.º 11152/20.3….
X. As duas ações são, processual e substantivamente, diversas, não existindo, in casu, justificação na finalidade primordial do caso julgado, que opera através quer de uma proibição de contradição de uma decisão anterior, quer de uma proibição de repetição desta decisão.
XI. Perante o objeto das duas ações, pode deve concluir que a decisão de mérito que venha a ser proferida na presente ação não contradiz o direito de propriedade declarado na ação n.º 11152/20.3…, nem tão pouco a decisão de mérito a proferir na presente ação importa a repetição da decisão anterior, pelo que não se verifica in casu a exceção do caso julgado ou a autoridade do caso julgado, por não se verificar uma situação de preclusão extraprocessual.
Nestes termos e no mais de Direito, que V. Exa. doutamente suprirá, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência o saneador-sentença ser revogado, ordenando que os autos prossigam os demais tramites processuais, designadamente os previstos nos art.s 596.º e seguintes do Código de Processo Civil, assim se fazendo a costuma JUSTIÇA!»
Os RR. contra-alegaram defendendo a confirmação da decisão, alinhando as seguintes
Conclusões
«i) O Autor/Recorrente fixou o efeito suspensivo ao presente Recurso de Apelação, alegando para o efeito, que a imóvel em causa nos presentes autos constitui a sua habitação. Contudo, não o fez nas suas Conclusões Recurso;
ii) e os presentes autos reconduzem-se a um eventual direito de crédito que aquele pretende ver reconhecido, bem como a um direito de retenção sobre o mencionado imóvel enquanto não lhe for pago pelos Réus/Recorridos, a quantia de €115.000,00 acrescida de juros moratórios, calculados à taxa legal (4%) deste a citação até integral pagamento;
iii) No que tange ao douto Despacho Saneador/Sentença, este não merece reparo;
iv) O ora Autor/Recorrente intentou contra os ora Réus/Recorridos, uma ação judicial que correu termos no Juízo Central Cível de…, Juiz 2, com o processo n.º 11152/20.3…, figurando ali, aquele como Réu, e estes como Autores, tendo sido proferida sentença transitada em julgado em 02/09/2022.
v) A referida sentença julgou a ação procedente nos seguintes termos: «A) Declara-se a caducidade da doação feita ao Réu (aqui Autor) através do escritura outorgada no Cartório Notarial de … em 05/04/2013, exaradas as folhas 13 do livro 318, do Notário …, e respeitante ao prédio rústico composto de terreno de horta, com área de 3.200 m2, denominado “M…” ou “M…”, sito nos limites de …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de …, sob o n.º de … da freguesia de … inscrito na matriz da dita freguesia, no artigo … da secção N; e, consequentemente; B) Reconhece-se, aos autores, o direito de propriedade sobre o imóvel supra identificado, mais se determinando C) a realização do registo de aquisição da propriedade, tendo por sujeito ativo os Autores, por sujeito passivo o Réu e com causa a caducidade da doação. Mais se decide julgar improcedente o pedido reconvencional deduzido, dele se absolvendo os Autores/Reconvindos».
vi) Atenta a decisão desfavorável, o aqui Autor/Recorrente intentou a presente ação judicial;
vii) Que teve como inevitável desfecho, o Despacho Saneador/Sentença ora posto em crise;
viii) A decisão desfavorável encontra-se ancorada na figura jurídica da autoridade do caso julgado, porquanto o Autor/Recorrente na presente ação, veio elencar factos, que insofismavelmente, poderia ter invocado no primeiro processo e invocando os mesmos factos que invocou naquele processo, peticionando agora a condenação dos Réus pelo valor da construção por enriquecimento sem causa e não concentrando todos os meios de defesa de que dispunha na primeira ação, omitindo na primeira ação a invocação do enriquecimento sem causa e pedido de condenação do valor da construção, a título de pedido subsidiário, caso o pedido reconvencional de transmissão da propriedade por cessação imobiliária industrial fosse julgado improcedente.
ix) E, porque, simultaneamente, o pedido reconvencional formulado pelo Réu/Reconvinte fundou-se no instituto da acessão industrial imobiliária (art.1340º CC), o que só por si, obrigou a que este fizesse prova do quantum que tinha incorporado no terreno, com o intuito de comprovar que o valor dessa incorporação era superior ao valor daquele, de modo a garantir a sua aquisição.
x) O pedido reconvencional foi objeto de análise crítica da prova produzida naqueles autos.
xi) Destarte, o crédito que o Autor/Recorrente agora pretende ver reconhecido, já havia sido apreciado e discutido na ação anterior, precisamente, por força do instituto da acessão industrial imobiliária que aquele ali invocou.
xii) O caso julgado constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso (art.577º/i CPC) que, a verificar-se, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa (art.576º/2 CPC).
xiii) O caso julgado material produz os seus efeitos, mediante uma dupla vertente, que se complementam, ainda que distintas. Numa primeira, de natureza negativa, por via da exceção do caso julgado, no sentido de impedir o tribunal de reapreciar a relação ou a situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada em julgado.
xiv) E ainda, numa segunda álea, de natureza positiva, por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas, i.e., a autoridade do caso julgado tem como escopo, evitar a prolação de decisões judiciais posteriores que sejam juridicamente incompatíveis com a primeira.
xv) Os efeitos do caso julgado material projetam-se no processo subsequente, necessariamente, como exceção de caso julgado, em que a existência da decisão anterior constitui um impedimento à decisão de idêntico objeto posterior, xvi) ou como autoridade de caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão do distinto objeto posterior, ou seja, a função positiva do caso julgado material, opera por via da autoridade do caso julgado, que pressupõe que a decisão de determinada questão – proferida em ação anterior e que se inscreve, quanto ao seu objeto da segunda – não possa voltar a ser discutida com definição diversa da mesma relação ou situação da segunda.
xvii) Deste modo não padece de qualquer vício o douto Despacho Saneador/Sentença, devendo ser negado provimento ao Recurso com todas as consequências legais.
Nestes termos e nos melhores direito que V. Exas entendam dever suprir, deve ser negado provimento ao Recurso apresentado, confirmando-se a douta decisão ora posta em crise.»
*-*
Colhidos os vistos, importa apreciar e decidir.
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Nos termos dos artºs 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil são as conclusões que definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam, exercendo as mesmas função equivalente à do pedido (neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil” 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117), certo que esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica quanto à qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Assim, a questão a decidir consiste em saber se a sentença proferida em anterior acção intentada pelos aqui RR. contra o ora A. obsta à apreciação e decisão da presente acção interposta pelo A. contra aqueles, por imposição da autoridade do caso julgado em reflexo do efeito da preclusão.
* II – FUNDAMENTAÇÃO
A) DE FACTO
Na sentença sob recurso foram considerados os seguintes
FACTOS PROVADOS:
«1. Na presente ação nº 911/23.5…, o Autor, VMBN, pede a condenação dos Réus, FM e MDAFM:
i. a pagar-lhe a quantia de 115.000,00 € (cento e quinze mil euros), a título de enriquecimento sem causa, acrescida de juros de mora à taxa legal de para as obrigações civis, que atualmente está fixada em 4% ao ano, a contar desde a data de citação dos Réus para a presente ação, até efetivo e integral pagamento;
ii. a reconhecerem a existência na esfera jurídica do Autor de um direito de retenção (garantia) sobre o prédio rústico composto de terreno de horta, com a área de 3.200 m2, denominado "M…" ou "M…'', sito nos limites de …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº de … da freguesia de … e inscrito na matriz da dita freguesia, no artigo … da secção N, incluindo a moradia unifamiliar de tipologia T3, edificada no mesmo, até efetivo e integral pagamento da quantia referida anteriormente, no valor de 115.000,00 € (cento e quinze mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal de para as obrigações civis, que atualmente está fixada em 4% ao ano, a contar desde a data de citação dos Réus para a presente ação, até efetivo e integral pagamento.
2. Os aqui Réus, FM e MDAFM, instauram contra o aqui Autor, VMBN, uma ação declarativa, que correu termos no juízo central cível de …, sob o nº 11152/20.3…, no juiz 2, tendo sido proferida sentença transitada em julgado em 02/09/2022.
3. A ação referida em 2 foi instaurada pelos aqui Réus em 29 de agosto de 2020, na qual peticionaram, de acordo com o art. 1791º do Código Civil, que o Tribunal decretasse:
i) a caducidade da doação feita ao R, através de escritura feita no Cartório Notarial de … em 05/04/2013, exarada a folhas 13 do livro 318, do Notário …, e respeitante ao prédio identificado no artigo 1º desta Petição, tendo em consideração que a mesma, apenas foi·feita ao R tendo em conta o seu casamento com a filha dos AA, que agora se dissolveu;
ii) que fosse reconhecido aos AA o direito de propriedade exclusiva sob o imóvel sito nos limites do lugar de …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº …da freguesia de …, inscrito na matriz da União das freguesias de …, no artigo …da secção N, acima identificado no artigo 1º desta Petição;
iii) fosse decretada a realização de novo registo de aquisição, tendo por sujeito ativo os AA, por sujeito passivo o R., e como causa a caducidade da Doação, com a consequente extinção subjetiva do direito na esfera jurídica do R.
4. Na ação referida em 2, o aqui A. assumiu a posição de R./Reconvinte, tendo apresentado a sua contestação e deduzido Reconvenção nos termos sintetizados na sentença proferida no mesmo processo e que aqui se transcreve: «O Réu veio contestar a ação pedindo a sua improcedência e consequente absolvição do pedido; impugnando parte dos factos e alegando, além do demais, que a doação foi feita a si, Réu, exclusivamente, porque seria este, a expensas suas e até pela sua própria mão, a construir aquela que seria a sua habitação; ou seja, o único a investir o seu ganho e as suas poupanças na construção da moradia; aliás, como veio efetivamente a suceder. Além disso, o Réu deduziu pedido reconvencional: deve declarar-se transmitido para o Réu, por acessão industrial imobiliária, o direito de propriedade sobre o prédio rústico composto de terreno de horta, com a área de 3.200m2, denominado “M…” ou “M…”, sito nos limites do lugar de …, freguesia de …, concelho de …, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de …, sob o número …e inscrito na matriz da dita freguesia sob o artigo …, secção N, pagando aos Aurores a quantia de €7. 400,75 correspondente ao valor que o terreno tinha antes da construção da moradia. Para tanto, o Réu/Reconvinte alega, em suma, que: • no terreno que lhe foi doado, construiu de raiz a moradia unifamiliar que aí se mostra erigida; sendo que todos os trabalhos executados na construção da moradia foram efetuados sob sua direcção e acompanhamento; e a expensas suas; e todos os materiais utilizados desde o início da obra até à sua conclusão foram pagos com o dinheiro do réu e com os seus bens próprios; tendo, o Réu, participado na execução de grande parte dos trabalhos; • a construção da moradia valorizou o terreno; e desde o início, o Réu agiu convicto de que era o proprietário do terreno, por este lhe ter sido doado; termos em que • caso seja declarada a caducidade da doação, a propriedade do terreno deve ser transmitida para o Réu por acessão industrial imobiliária».
5. A sentença referida em 2 julgou a ação procedente nos seguintes termos: «A) Declara-se a caducidade da doação feita ao Réu (aqui Autor) através de escritura outorgada no Cartório Notarial de … em 05/04/2013, exarada a folhas 13 do livro 318, do Notário …, e respeitante ao prédio rústico composto de terreno de horta, com a área de 3.200 m2, denominado "M…" ou "M…'', sito nos limites de …, freguesia de…, concelho de …, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº de … da freguesia de … e inscrito na matriz da dita freguesia, no artigo … da secção N; e, consequentemente; B) Reconhece-se, aos Autores, o direito de propriedade sobre o imóvel supra identificado, mais se determinando C) a realização de registo de aquisição da propriedade, tendo por sujeito ativo os Autores, por sujeito passivo o Réu e como causa a caducidade da doação. Mais se decide julgar improcedente o pedido reconvencional deduzido, dele se absolvendo os Autores/Reconvindos».
Não foram consignados FACTOS NÃO PROVADOS.
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B) DE DIREITO
Como enunciado, a questão que se coloca é a de saber se a sentença proferida em anterior acção intentada pelos aqui RR. contra o ora A. obsta à apreciação e decisão da presente acção interposta pelo A. contra aqueles, por imposição da autoridade do caso julgado em reflexo do efeito da preclusão extraprocessual.
É sabido que o instituto do caso julgado deve analisar-se numa dupla perspectiva: como excepção de caso julgado e como força de caso julgado:
- A excepção de caso julgado tem como finalidade evitar a repetição de causas, encontrando-se os seus requisitos taxativamente enumerados no artº 581º do CPC: identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.
- A autoridade de caso julgado pressupõe a decisão de certa questão que não pode voltar a ser discutida, não sendo necessário que actue a coexistência das três identidades referidas no artº 581º CPC.
A estes dois conceitos e ao seu âmbito de aplicação se refere o Professor Miguel Teixeira de Sousa, do seguinte modo: "A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior : a excepção de caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (...). Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente" (cfr. o referido autor no estudo “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material” in Boletim do Ministério da Justiça nº 325, páginas 171, 176 e 179).
Já os ensinamentos do Professor Manuel de Andrade deixavam antever esta dupla perspectiva do caso julgado e o seu acolhimento pela jurisprudência, quando a propósito do então artº 498º do CPC escreveu: "O que a lei quer significar é que uma sentença pode servir como fundamento de excepção de caso julgado quando o objecto da nova acção, coincidindo no todo ou em parte com o da anterior, já está total ou parcialmente definido pela mesma sentença (...). Esta interpretação permite chegar a resultados práticos bastante parecidos com aqueles a que tende uma certa teoria jurisprudencial, distinguindo entre a excepção de caso julgado e a simples invocação pelo Réu da autoridade de caso julgado que corresponda a uma sentença anterior, e julgando dispensáveis, quanto a esta 2ª figura, as três identidades do artigo 498º” (in “Noções Elementares do Processo Civil”, 1979, págs. 320 e 321).
E na verdade esta delimitação doutrinal da incidência do caso julgado material - autoridade do caso julgado e excepção do caso julgado - foi desenvolvida pela doutrina e pela jurisprudência no sentido de que autoridade de caso julgado de sentença que transitou e excepção de caso julgado são efeitos distintos da mesma realidade jurídica, tendo a excepção de caso julgado por fim evitar a repetição de causas, sendo os seus requisitos os fixados no artº 581º do CPC; já a autoridade de caso julgado funciona independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude aquele preceito legal, tendo subjacente que determinada relação ou situação jurídica já julgada fica definida e não pode voltar a ser discutida.
Desde há muito que a doutrina e a jurisprudência nos vêm, reiteradamente, esclarecendo que a força e autoridade do caso julgado que se formou com uma anterior decisão transitada em julgado assenta na necessidade de evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir essa decisão anterior que já definiu, em dados termos, uma determinada relação ou situação jurídica, porque uma tal eventualidade contribuiria para abalar o prestígio dos Tribunais (que certamente ficaria comprometido com a possibilidade de produzir decisões contraditórias sobre a mesma concreta realidade) e não garantiria o mínimo de certeza e segurança jurídicas relativamente à definição de uma determinada relação jurídica, até para a tornar exequível (cfr. por todos Prof. Alberto dos Réis, “Código de Processo Civil” anotado, Volume III, 4ª Edição Reimpressão, págs. 94-96).
O Prof. Manuel de Andrade já ensinava (in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, pág. 305) que o caso julgado material “consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação)”.
Dito de outro modo, a força da autoridade de caso julgado abrange as questões directamente objecto do julgado e as que constituem antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado : a sentença impõe-se “nos precisos limites e termos em que julga”, como estabelece o artº 621º CPC.
Esta expressão legal significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz da ou das causas de pedir e das excepções invocadas pelas partes, bem como do pedido ou pedidos formulados.
Por isso o respeito pela autoridade do caso julgado, importando a análise do âmbito e dos limites da decisão (limites e termos em que a sentença julga – cfr. artº 621º do CPC), obriga à interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente dos fundamentos que constituam premissas necessárias da parte dispositiva do julgado, porquanto a decisão consiste, afinal, na conclusão dos pressupostos lógicos que a ela conduzem.
Efectivamente, como refere o Prof. Teixeira de Sousa In “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág. 579. no trecho reproduzido no Acórdão do STJ citado na sentença sob recurso, “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.
Já a preclusão, usando de novo os ensinamentos do Prof. Teixeira de Sousa in “Preclusão e caso julgado” No Blog do IPPC [in https://blogippc.blogspot.pt/], Paper 199 de 03/05/2016, em versão alterada de um seu paper anterior.
, “(…) pode ser definida como a inadmissibilidade da prática de um acto processual pela parte depois do prazo peremptório fixado, pela lei ou pelo juiz, para a sua realização.”.
Estabelecendo a correlatividade entre o ónus de concentração e da preclusão, diz o mesmo autor no mesmo artigo que “(…) A correlatividade entre o ónus de concentração e a preclusão significa que, sempre que seja imposto um ónus de concentração, se verifica a preclusão de um facto não alegado, mas também exprime que a preclusão só pode ocorrer se e quando houver um ónus de concentração. Apenas a alegação do facto que a parte tem o ónus de cumular com outras alegações pode ficar precludida. Se não for imposto à parte nenhum ónus de concentração, então a parte pode escolher o facto que pretende alegar para obter um determinado efeito e, caso não o consiga obter, pode alegar posteriormente um facto distinto para procurar conseguir com base nele aquele efeito. (…)”.
E analisando as relações entre a preclusão e o caso julgado, afirma “(…) é possível concluir que o caso julgado apenas impede a alteração da decisão transitada com base num fundamento precludido. Em contrapartida, em relação a um fundamento que não se encontra precludido, o caso julgado não realiza nenhuma função de estabilização. Muito pelo contrário: o caso julgado pode ser modificado ou até destruído por um fundamento não precludido.”
Na verdade, o princípio da preclusão, na vertente que nos ocupa, decorre da exigência da concentração dos meios de alegação, que tão só diz respeito aos factos essenciais da causa de pedir e as razões de direito, isto no tocante à acção (cfr. artº 5º nº 1, 1ª parte, e artº 552º nº1 al. d), e das excepções, no que toca à defesa (cfr. artº 5º nº 1, 2ª parte, e artº 573º nº 1 do CPC).
Observando este enquadramento, vejamos a situação que temos em presença.
A anterior acção, intentada pelos ora RR. contra o ora A., teve como essencial fundamento que a doação do prédio fora feita ao aqui Autor tendo em conta o casamento deste com a filha daqueles, o qual entretanto se dissolveu; daí decorrendo os pedidos de declaração da caducidade de tal doação e, inerentemente, do reconhecimento àqueles do direito de propriedade exclusiva sobre o imóvel, e decretamento da realização de novo registo de aquisição a seu favor tendo por sujeito passivo o R. aqui A., e como causa a caducidade da doação, com a consequente extinção subjectiva do direito na esfera jurídica do R. e ora A..
Nessa acção o R., aqui A., impugnou os factos sustentadores da pretensão dos ali AA. e reconveio, caso fosse declarada a caducidade da doação, pedindo o reconhecimento da aquisição, a seu favor, do direito de propriedade sobre o imóvel por acessão industrial imobiliária, pagando aos Autores a quantia de € 7.400,75 correspondente ao valor que o terreno tinha antes da construção da moradia; alegando, em suma, que no terreno doado construiu de raiz a moradia unifamiliar que aí se mostra erigida, a expensas suas com capitais e bens próprios seus; sendo que todos os trabalhos executados na construção da moradia foram efectuados sob sua direcção e acompanhamento, tendo ele participado directamente na execução de grande parte dos trabalhos, tendo sempre agido convicto de que era o proprietário do terreno por este lhe ter sido doado; a construção da moradia valorizou o terreno que antes da edificação tinha o valor de € 7.400,75.
Na presente acção o A. pede a condenação dos Réus:
i) a pagar ao Autor a quantia de € 115.000,00 a título de enriquecimento sem causa, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento;
ii) a reconhecerem a existência na esfera jurídica do Autor de um direito de retenção sobre o prédio rústico identificado nos autos, incluindo a moradia unifamiliar edificada no mesmo, até efectivo e integral pagamento da referida quantia de € 115.000,00 e acrescidos juros de mora,
com fundamento em que no prédio rústico que lhe foi doado pelos RR. e por DSA, o Autor, convicto de que era proprietário do prédio por o mesmo lhe ter sido doado por aqueles, procedeu à construção de uma moradia em que despendeu a quantia global de € 90.000,00 de capitais exclusivamente seus, a que acresce o seu esforço pessoal, físico, relativo aos trabalhos por ele pessoalmente executados, que valoriza em montante não inferior a € 25.000,00.
Perante a declaração de caducidade daquela doação e reingresso do prédio à esfera patrimonial dos doadores, o Autor reclama-se credor dos Réus por quantia não inferior a €115.000,00 relativamente à construção da moradia erigida no prédio rústico que regressou à esfera jurídica daqueles, e pretende que lhe seja reconhecido o direito de retenção sobre o prédio enquanto não for integralmente ressarcido pelos Réus.
Como se vê, no anterior processo, quer a acção quer a reconvenção tiveram por objecto o direito de propriedade sobre o imóvel, e concretamente no que respeita à reconvenção a sua aquisição originária pelo ali R. e ora A..
Foi sobre essa questão que recaiu a apreciação do Tribunal, tendo nesse processo ficado definido que o direito de propriedade pertence aos ora RR..
Já na presente acção é colocado à apreciação do Tribunal o reconhecimento de um direito de crédito do A. sobre aqueles e o reconhecimento de um direito de garantia (retenção até pagamento).
A anterior sentença não se pronunciou e nada decidiu acerca do direito de crédito que agora vem reclamado.
E muito embora os factos que vêm alegados na presente acção tenham servido de sustento à reconvenção naquela outra acção, eles foram ali invocados e apreciados sob o prisma da verificação, ou não, dos requisitos da acessão industrial imobiliária, no sentido de averiguar, como não poderia deixar de ser face ao regime consagrado no artº 1340º CCivil, se a obra trouxe ao prédio valor acrescentado, isto é se a obra levou à totalidade do prédio valor maior, igual ou até menor do que o valor que o prédio tinha antes da incorporação, o que em nada é confundível com o apuramento do montante do crédito correspondente à despesa realizada com a edificação e que o ora A. reclama por enriquecimento sem causa dos RR..
Por outro lado, não se vislumbra que o ali R. e aqui A. tenha violado qualquer ónus de alegação que sobre si impendesse, conducente à aplicação dos efeitos da preclusão.
É que, como se diz na própria sentença recorrida, no caso dos RR. – posição que o ora A. ocupava naqueloutro processo – a preclusão decorre na violação do princípio da concentração dos meios de defesa, o que nos remete para a figura das excepções (como, aliás, decorre da explanação constante da sentença sob recurso), que consistem em causas impeditivas, modificativas ou extintivas do direito contra si pretendido fazer valer.
Ora, a invocação do crédito que o aqui A. ora reclama não tinha no contexto do anterior processo a virtualidade de impedir, modificar ou extinguir o direito que os RR. ali Autores pretenderam exercer, a ver declarada a caducidade da doação e reintegrado na sua esfera patrimonial o direito de propriedade sobre o imóvel.
É certo que o ora A. poderia ali ter reclamado o seu crédito em sede reconvencional, subsidiariamente ao pedido reconvencional que formulou de reconhecimento do direito de propriedade a seu favor por acessão industrial imobiliária.
Mas nada lhe impunha que o fizesse. É que, não esqueçamos, a reconvenção não consiste num meio de defesa, sendo, outrossim, uma contra acção do Réu relativamente ao A., que aquele pode autonomamente deduzir em acção própria.
Portanto, aqui chegados, não resta se não concluir que a sentença proferida no processo nº 11152/20.3… não se impõe a esta acção com autoridade de caso julgado, nem ocorre a preclusão do direito de invocação pelo A. do crédito que nesta acção reclama, o que conduz à procedência do presente recurso, impondo a decisão de improcedência dessa excepção aduzida pelos RR e a determinação do prosseguimento dos autos. III - DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se improcedente a excepção da autoridade do caso julgado em reflexo do efeito da preclusão, determinando-se o prosseguimento dos autos.
Custas pela parte vencida a final.
Notifique.
Lisboa, 09/10/2025
Amélia Puna Loupo
Ana Paula Olivença
Teresa Sandiães