FRACÇÃO AUTÓNOMA
TÍTULO CONSTITUTIVO
DESTINO
ESCRITÓRIO
PROTECÇÃO DA CONFIANÇA
Sumário

1. A declaração constante do título constitutivo da propriedade horizontal, quanto ao destino das suas fracções autónomas, deve ser interpretada com base num critério económico e no significado corrente das expressões usadas, adoptando-se o princípio geral consagrado no art.º 236º do Código Civil.
2. Para tanto haverá que atender ao significado de expressões idênticas utilizadas nos instrumentos normativos que respeitam ao urbanismo e à edificação urbana.
3. Resultando dos referidos instrumentos normativos que toda a actividade de natureza industrial, a par de actividades comerciais que, pela sua própria natureza, se apresentassem como incompatíveis com a utilização habitacional das restantes fracções, já não estaria compreendida no destino de armazém dado à fracção situada na cave do edifício, não pode tal expressão ser entendida no seu sentido restrito e literal, antes tendo a potencialidade de abranger um tipo de utilização onde se integrasse a possibilidade de utilizar as divisões que compõem a fracção, em conjunto com o armazém, como é o caso da utilização como escritório.
4. Apesar de no título constitutivo da propriedade horizontal constar que a fracção está destinada a armazém, a forma como todos os condóminos (incluindo os AA.) se posicionaram relativamente à interpretação dada a essa estipulação, admitindo que pudesse ser igualmente utilizada como escritório pelo titular do estabelecimento de armazém, gerou em cada um dos subsequentes condóminos da fracção (incluindo os RR.) a expectativa de que tal utilização podia ter lugar.
5. Tal investimento de confiança na utilização da fracção como escritório sai reforçado pela circunstância de os restantes condóminos terem colocado, como condição para que no título constitutivo pudesse ser formalizada essa utilização de facto, tão só o recebimento de uma contrapartida monetária, que não se apresenta como “moeda de troca” de qualquer alteração na forma como se vêm processando as relações de interdependência e de vizinhança entre todos os condóminos, e no âmbito das quais a fracção veio sendo utilizada como escritório.
6. Assim, verifica-se da parte dos AA. o exercício abusivo do seu direito a impedir a utilização da fracção como escritório de advogados, porque o mesmo mais não representa que a prossecução de um interesse que exorbita manifestamente do fim próprio da limitação contida na al. c) do nº 2 do art.º 1422º do Código Civil.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

AA (1º A.), BB e cônjuge, CC (2º AA.), DD (3ª A.), EE Lda. (4ª A.), FF e cônjuge, GG (5º AA.), e HH e cônjuge, II (6º AA.), intentaram acção declarativa com processo comum contra JJ (1º R.) e cônjuge, LL (2ª R.), pedindo que:
a. seja determinada a imediata cessação da actividade de serviços desenvolvida na fracção A, propriedade dos RR., com o inerente encerramento do escritório de advogados ali instalado;
b. Sejam os RR. condenados a abster-se de utilizar a fracção de que são proprietários para qualquer outro fim que não seja o de armazém e casa de guarda;
c. Caso não cessem a referida actividade ou não se abstenham de utilizar a sua fracção para o fim indevido, nos termos dos pedidos a) e b), sejam os RR. condenados no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de valor não inferior a € 250,00 por cada dia de atraso;
d. Seja o 1º R. condenado no pagamento de indemnização por danos morais a favor dos AA., no valor de € 1.000,00 a cada um, num total de € 9.000,00.
Alegam, em síntese, que:
• São proprietários das fracções habitacionais B a G do prédio onde os RR. são proprietários da fracção A, esta destinada a armazém e casa do guarda;
• Em assembleia de condóminos de 22/10/2018 foi aprovado o regulamento do condomínio, do qual consta, para além do mais, que “para além de outras limitações impostas pelo título constitutivo ou pela lei, os condóminos estão proibidos de: a) dar à sua fracção um fim diverso daquele a que é destinada”;
• O anterior proprietário da fracção A solicitou autorização para a alteração do uso da mesma para escritório, tendo os condóminos anuído a tal alteração desde que fosse entregue ao condomínio a quantia de € 60.000,00, mas nunca tendo tal autorização sido formalmente concedida nem tendo tal pagamento tido lugar;
• Após a aquisição da fracção A pelos RR. o 1º R. comunicou à administração do condomínio que iria instalar na mesma um escritório de advogados, tendo-lhe sido respondido que não existia autorização para tanto e que se devia abster de dar tal uso à fracção A;
• Apesar de não terem obtido êxito as negociações tendentes à obtenção de autorização para a instalação do referido escritório de advogados, o 1º R. procedeu à sua instalação na fracção A, sendo o funcionamento do mesmo publicitado no site da Ordem dos Advogados;
• Para além disso o 1º R. acusou os AA. de tentativa de extorsão e de pretenderem tirar partido pessoal da situação, o que lhes causou preocupação, transtorno, angústia e humilhação, colocando em crise a honra, bom nome e consideração pessoal dos mesmos, para além de colocar em causa a imagem comercial e credibilidade da 4ª A.
Os RR. foram citados e apresentaram contestação onde invocam a ilegitimidade dos AA., por não estarem presentes em juízo todos os condóminos, mais alegando, em síntese, que:
• Na fracção A. já anteriormente esteve instalado um escritório, sem qualquer oposição dos AA.;
• Não há qualquer impedimento da Câmara Municipal de Lisboa a que funcione na fracção A um escritório de advocacia;
• Decorre do plano de urbanização onde se insere o prédio a proibição do uso da fracção A como armazém e o incentivo à alteração do seu uso para actividade do sector terciário;
• Aquilo que move os AA. é a obtenção de uma quantia pecuniária a troco da alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, estando-se perante o exercício abusivo do direito dos AA.
Concluem pela procedência da excepção dilatória da ilegitimidade, com a sua absolvição da instância, e pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.
Os AA. exerceram o contraditório quanto à matéria de excepção constante da contestação.
Pelos RR. foi apresentado articulado superveniente, tendo o mesmo sido liminarmente admitido e tendo os AA. exercido o contraditório quanto à matéria superveniente aí alegada.
Após audiência prévia foi proferido despacho saneador, aí sendo julgada improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade activa. Foi identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Após a realização da audiência final foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
Conforme os critérios e fundamentos normativos supra-referidos:
α) Condeno os Réus a cessarem a utilização da fracção A enquanto escritório de advogados do prédio urbano sito na Rua dos Lusíadas, (…), em Alcântara, Lisboa, (…) devendo abster-se de utilizarem a aludida fracção para outro fim que não o indicado no título constitutivo.
β) Condeno os Réus ao pagamento da quantia de 250,00 €, por dia, a título de sanção pecuniária compulsória, caso não cessem a referida utilização e / ou não se abstenham de utilizar a fracção para a aludida actividade.
γ) no mais, absolvo do(s) pedido(s) os Réus.
A responsabilidade por custas fica a cargo dos Autores e dos Réus, na proporção de 23,08 % e 76,92%, respectivamente”.
Os RR. recorrem desta sentença, sendo que na sua alegação invocam que as conclusões do recurso são aquelas que constam dos 96 pontos que aqui se reproduzem integralmente:
I. O presente recurso tem por objecto a sentença proferida nos autos em 03/10/2024, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando os Recorrentes i) a cessarem a utilização do Imóvel enquanto escritório de advogados; e ii) ao pagamento de sanção pecuniária compulsória caso não cessem a referida utilização.
II. Os Recorridos instauraram os presentes autos com vista à condenação dos Recorridos nos exactos termos em que o foram, com fundamento na violação do disposto no artigo 1419.º do Código Civil, mais concretamente, com fundamento na utilização da fracção para uso diverso daquele que lhe está atribuído sem a reunião da unanimidade dos demais condóminos quanto a tanto.
III. Os Recorridos, em sede de contestação, alegaram excepção peremptória impeditiva de abuso do direito que teve lugar em face da violação manifesta, pelos Recorridos, do princípio da boa-fé e do respeito pelos bons costumes e pelo fim económico ou social do direito.
IV. O Tribunal a quo julgou não verificados os requisitos integrantes do instituto do abuso de direito por virtude de não haver sido carreada prova suficiente, com nível de prova clara e preponderante, incorrendo em manifestos erros de julgamento quanto à matéria de facto e quanto à matéria de Direito.
V. E a análise crítica da prova produzida nos autos permitirá concluir que há fundamentos para alteração da decisão sobre a matéria de facto a esse respeito, no sentido da melhor identificação do nexo causal entre a conduta dos Recorrentes e a configuração do alegado abuso de direito, com base em factos complementares e concretizadores da mesma.
VI. A decisão sobre a matéria de facto é omissa quanto a factos essenciais que, face à prova produzida, deveriam ter sido dados como provados – ou, pelo menos, como fortemente indiciados.
VII. Ademais, constam dessa decisão enunciados de supostos factos que não encontram suporte na prova aduzida nos autos.
VIII. Importa colocar em evidência os patentes erros de apreciação incorridos pelo Tribunal a quo neste ponto, que por sua vez terão repercussões importantes sobre a impugnação da decisão sobre matéria de Direito, conforme se demonstrará de seguida.
IX. A conjugação dos depoimentos das Testemunhas AF e RA deixa evidente que, desde pelo menos o ano de 1988, é dado ao Imóvel uso terciário, isto é, de escritório.
X. Esse facto é reconhecido pelo Tribunal a quo em sede de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, mas não é, contudo, vertido para os factos provados.
XI. O uso dado ao Imóvel ao longo dos anos representa um facto que assume relevância autónoma no processo de formação da decisão dos Recorrentes de adquirir o imóvel, bem como, da sua imputação, em termos de causalidade, aos Recorridos.
XII. Contudo, tal facto não foi devidamente vertido nos factos provados, nomeadamente aproveitando as especificações feitas a esse respeito em sede de depoimentos testemunhais.
XIII. Com fundamento nos meios de prova acima referidos requer seja aditado à matéria assente que integra o facto n.º 5, ao abrigo do disposto no artigo 640.º n.º 1, alínea c), do CPC, passando o mesmo a figurar como segue:
AG Films, Lda. ocupou a fracção A do aludido prédio, desde 2016 até ao final do ano de 2020, utilizando a fracção para escritório e armazenamento de material, sendo que as restantes fracções – designadas pelas letras ‘B’,’C’, ‘D’, ‘E’, ‘F’ e ‘G’ correspondentes ao Rés do chão Direito, Rés do Chão Esquerdo, 1º Andar Direito, 1º Andar Esquerdo, 2º Andar Direito e 2º Esquerdo – pertencem aos Autores.
XIV. Resulta comprovado que os Recorridos sabiam e não poderiam ignorar que o Imóvel sempre teve uso terciário, além de armazém, na estreita medida em que residem no Prédio há pelo menos 5 anos e, muitos, há mais de 10 anos (vide depoimentos prestados pelos Recorridos NA, BB, AA e CC).
XV. Tal factualidade nunca mereceu objecção dos demais condóminos até ao final de 2020 conforme ficou demonstrado o que não poderia ser do desconhecimento de qualquer dos Recorridos e nem das Testemunhas conforme se depreende da conjugação dos trechos dos depoimentos de parte dos Recorridos AA, CC e BB e da Testemunha NA.
XVI. Os Recorridos sabem que i) o Imóvel sempre foi utilizado como escritório, ii) contando com pelo menos 5 (cinco) pessoas permanentes ao serviço; iii) entrada e saída de clientes durante, pelo menos, 20 (vinte) anos.
XVII. O Tribunal a quo aparenta supor, erradamente, que os Recorridos assim que souberam que ao Imóvel estaria a ser dada a finalidade de escritório automaticamente se insurgiram oferecendo objecção a essa conduta.
XVIII. O momento em que os Recorridos advertem a AG para cessar a actividade de escritório corresponde ao momento em que os Recorridos entenderam ser o ideal para fazer operar as necessárias obras ao Prédio a expensas do Condómino proprietário do Imóvel, nomeadamente, num primeiro momento da AG e, após a venda, dos Recorrentes (vide depoimentos .
XIX. Até então os Recorridos nunca suscitaram a necessidade de contrapartida pelo uso do Imóvel para escritório o que resultou provado e houvesse sido, em primeira instância, devidamente apreciado depoimento das Testemunhas AF e RA que disseram que nunca foram instados para tanto atenta a aceitação pacifica dos demais condóminos quanto a esse uso.
XX. Face ao exposto, e com fundamento nos meios de prova acima referidos, requer o aditamento à matéria assente dos seguintes factos, por provado, ao abrigo do disposto no artigo 640.º, n.º1 alínea c) do CPC:
Entre os anos de 1988 e 2020, enquanto a fracção dos Réus era propriedade das sociedades GF, Lda., OM, Limitada e AG, Lda. nunca os demais condóminos se opuseram ao uso da mesma para fins de escritório.
Os Autores opuseram-se, pela primeira vez, ao uso da fracção como escritório no final do ano de 2020 quando a AG solicitou a alteração formal do uso para fim terciário.
XXI. O Tribunal a quo dá como provado que no final do ano de 2019 a AG abordou a Administração do Condomínio com vista à alteração do uso do Imóvel para escritório sendo que, não obstante aqueles lhe haverem pedido a quantia de € 60.000,00, as negociações foram interrompidas após comunicação da AG Films relativa à desistência de terceiro quanto à aquisição da fracção, conforme enunciado nos factos provados 6, 7 e 8.
XXII. Nem da prova documental junta com os articulados, nem da prova produzida em sede de audiência de julgamento foram alcançadas quaisquer premissas que permitam extrair tais conclusões.
XXIII. No seu depoimento, que foi claro e conciso, a Testemunha RA esclareceu que primeiramente a alteração de uso que propôs ao condomínio foi para habitação.
XXIV. Mais clarificou a Testemunha RA que a alteração do uso para habitação nunca se veio a concretizar porque o valor pedido pelo Condomínio era manifestamente superior àquele que poderia suportar e que, acaso houvesse chegado a acordo, ponderaria fortemente manter a fracção.
XXV. O que, tudo, foi corroborado pelos depoimentos da Testemunha NA e dos Autores AA e CC.
XXVI. Nenhuma relação teve ou foi sequer mencionada quanto a desistência de terceiro ou, antes, a celebração de promessa de venda com terceiro.
XXVII. O que demonstra a total falta de fundamento do afirmado pelo Tribunal a quo em sede de motivação da decisão sobre os factos provados n.º 6, n.º 7 e n.º 8 o que sucede em flagrante e grave erro de motivação da decisão sobre a matéria de facto que desde já se invoca para os devidos efeitos.
XXVIII. Requer-se, por isso, nos termos do disposto no artigo 640.º, n.º 1 do CPC, que o enunciado sob os factos provados n.º 6 e n.º 8 sejam dados como não provados.
XXIX. Mais se requer, ao abrigo do artigo 640.º, n.º1 do CPC, seja a redacção do facto n.º 7 alterada para a seguinte:
Em sede de negociações, os condóminos exigiam, como conditio sine qua non para a alteração do uso da fracção, a entrega (pagamento) da quantia de 60.000,00 €.
XXX. Os Recorrentes procuraram sempre alcançar um consenso tendo em vista o encontro de vontades/necessidades suas e do Condomínio procurando sempre o contacto aberto e claro, a disponibilidade para suportar a maior parte do preço das obras de beneficiação do Prédio e, sobretudo, prestando a pertinente disponibilidade para encontrar empreiteiros e apresentar orçamentos que tornassem possível essa execução de trabalhos.
XXXI. Não obstante esses esforços, que resultam patentes da prova documental trazida aos autos, por ambas as partes, a verdade é que pelo lado dos Recorridos houve sempre uma total indisponibilidade e intransigência quanto ao modo de operar, isto é, ou havia o pagamento de uma quantia de € 60.000,00 ou não havia alteração do uso da fracção.
XXXII. Os Recorridos nunca conseguiram justificar com clareza o montante de € 60.000,00 que peticionava em troca da alteração do uso da fracção para terciário.
XXXIII. É, pois, manifesta a confusão e incerteza que transparece do depoimento dos Recorridos AA, CC e BB, em sede de depoimento de parte, quando inquirido sobre o modus de alcançar o tal valor de € 60.000,00
XXXIV. Os Recorridos, em momento algum, conseguiram prestar a ratio subjacente à quantia de € 60.000,00 que pediam, tudo porque nenhum orçamento foi aprovado nesse valor.
XXXV. Em causa está um Prédio com mais de 70 anos, que nunca recebeu quaisquer obras de manutenção e/ou beneficiação e que, conforme confirmado pelo Autor AA, nunca teve sequer fundo de reserva.
XXXVI. Por forma a manter uma boa relação de vizinhança com os Recorridos, os Recorrentes chegaram a manifestar a intenção de comparticipar em 50% do valor das obras necessárias de conservação que o prédio carece, acrescido do seu rateio na permilagem que lhe cabe.
XXXVII. O que deveria interessar a todos os proprietários das fracções do Prédio era o bom estado de conservação deste, o que não se verifica, estando este num estado lastimável tal, que a administração do condomínio do prédio até já foi intimada em 20/07/2021 para proceder a obras de conservação (vide ofício da Câmara Municipal de Lisboa que ficou junto com a contestação como documento n.º11).
XXXVIII. Resulta claro que a pretensão dos Recorridos não é outra senão a de obter uma vantagem pecuniária desajustada e infundada.
XXXIX. Os Recorridos chegaram mesmo a deliberar na acta n.º 1/2017, em que os Recorridos e restantes condóminos aprovaram, inclusivamente, a alteração do uso da fracção de comércio para habitação para o que pedia não mais do que um estudo de estabilidade de estrutura do edifício a suportar pelo proprietário da fracção (vide documento n.º 7 junto com a Contestação).
XL. Os Recorridos encontraram uma possibilidade mais fácil de lucrar com a mudança de uso do Imóvel passando de exigir um estudo de estabilidade para exigir a módica quantia de € 60.000,00.
XLI. Face ao exposto requer-se seja aditado à matéria assente os seguintes factos provados ao abrigo do disposto no artigo 640.º, n.º1, alínea c) do CPC:
Os Réus propuseram um acordo com o Condomínio mediante o pagamento de 50% das despesas tidas com as obras de beneficiação do Prédio acrescida dos 25% correspondentes à sua permilagem e em contrapartida o Condomínio autorizaria o uso da fracção para escritório.
XLII. E deverão igualmente considerar-se provados, e aditados ao leque dos factos não provados, os seguintes factos, ao abrigo do disposto no artigo 640.º, n.º 1 do CPC:
- O valor de € 60.000,00 peticionado pelos Autores aos Réus correspondia ao valor orçamentado para a realização de obras de beneficiação do Prédio.
- Por deliberação tomada na acta n.º 1/2017, em que os Recorridos e restantes condóminos aprovaram, inclusivamente, a alteração do uso da fracção dos Réus de comércio para habitação apenas mediante um estudo de estabilidade de estrutura do edifício a suportar pelo proprietário da fracção.
XLIII. À luz do enquadramento legal actual aplicável ao caso concreto os Recorrentes nem poderão usar o Imóvel para armazém e, naturalmente por absolutamente desenquadrado do contexto actual, para casa do guarda.
XLIV. Aquando da compra do Imóvel e por forma a garantir a legalidade, regularidade e viabilidade do destino que viesse a dar à fracção – mesmo ciente da necessidade de eventual alteração formal do uso – o Recorrente (…) diligenciou junto da Câmara Municipal de Lisboa, pela verificação de que não existe qualquer condicionalismo à instalação e funcionamento de um escritório de advogados no local.
XLV. Mesmo conhecendo que esta alteração nunca viria a causar qualquer incomodo aos Condóminos desde logo porque i) conforme ficou demonstrado estes aceitaram a utilização como escritório por, pelo menos, 20 anos; ii) a fracção tem uma entrada independente no n.º 40 e no acesso lateral, que em nada colide com a porta n.º 42 que dá acesso às restantes fracções do prédio.
XLVI. Os Autores e as Testemunhas confirmam nos seus depoimentos, sem reticências, que nunca sentiram qualquer incómodo com a existência de um escritório de advogado no Prédio e que não se cruzam com quaisquer pessoas que o frequentem a não ser na via pública.
XLVII. É o que resulta do depoimento da Testemunha NA e do Autor AA que também foram penitenciados pelo Tribunal a quo que não apreciou devidamente a prova.
XLVIII. O Tribunal a quo não releva, para efeitos do juízo de ponderação da proporcionalidade e justiça da conduta dos Recorridos o que vem vertido auto de vistoria (a que alude o facto provado n.º 2), que antecedeu a constituição da propriedade horizontal no prédio pode ler-se que as partes comuns do prédio são constituídas, pela “(...) escada geral dos andares e pelo vestíbulo de entrada principal, na porta n.º (…) do arruamento.”.
XLIX. Relativamente ao Imóvel em particular pode ler-se: “(…) é preenchida por uma ampla ocupação, destinada a um armazém, com acesso directo ao exterior pela porta n.º (…) da rua acima referida.” E acrescenta-se que “o armazém contém à retaguarda uma zona destinada à habitação do guarda do mesmo armazém, com acesso por uma passagem lateral, que comunica directamente com o logradouro posterior.”
L. A alteração formal do uso da fracção pretendida pelos Recorrentes vai ao encontro do Plano de Urbanização para Alcântara, conforme Aviso n.º 2026/2015, publicado em Diário da República n.º 37/2015, Série II de 2015‑02‑23, em transformação do sector secundário para terciário para o que importa, em especial, a norma do artigo artigo 19.º sob a epigrafe “Usos”.
LI. Na pendência dos autos, em 14/12/2022, foi emitida pela Direcção Municipal de Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa, em conformidade com a Lei e Regulamentos aplicáveis, o Alvará de Utilização Parcial N.ºe -REG/AAUT/2022/226, nos termos do qual para o n.º (…), Cave, do edifício sito em Rua dos Lusíadas, da freguesia de Alcântara descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º 86 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 542 da respectiva freguesia, está autorizado o uso terciário (escritório).
LII. É o próprio Plano de Urbanização de Alcântara, onde se insere o Prédio, que proíbe o uso de armazém e permite e incentiva a transformação do sector terciário.
LIII. Para que seja feito um juízo ponderado do uso lógico a dar à fracção importa atender ao facto de, originariamente, o espaço a que corresponde o Imóvel era uma cavalariça e que o destino constante da propriedade horizontal, de armazém e casa do guarda, não se coaduna com qualquer tipo de utilização a dar nos dias de hoje, o que justifica, per si, a sua alteração.
LIV. De boa-fé, os Recorrentes comunicaram ao Recorridos que iriam instalar na fracção um escritório de advogados – vide facto provado n.º 11.
LV. Os Recorridos responderam entendendo aqueles que o uso a dar à fracção só poderia ser armazém e casa do guarda– vide factos provados n.º 15 e n.º 16 – mesmo conhecendo os condicionalismos legais inerentes a esse uso, mormente, a proibição de uso como armazém
LVI. Os Recorrentes manifestaram interesse naquilo que já haviam equacionado inicialmente, em instalar no Imóvel um armazém de pneus para uma empresa familiar o que acabou igualmente por sucumbir uma vez que, apesar de alegarem que não apresentavam qualquer oposição a tanto, mantinham bens pessoais no único acesso passível de cargas e descargas.
LVII. Tal facto resulta provado da apreciação critica do depoimento prestado pela Testemunha JM, legal representante da empresa de pneus com quem os Recorrentes chegaram a celebrar contrato de arrendamento, que manifestou sem margem para dúvidas que a iminência de se ver impossibilitado de carregar e descarregar o material era causa bastante para impossibilitar o uso pretendido – armazém.
LVIII. Os Recorridos não podem limitar o direito de propriedade dos Recorrentes desta forma, direito esse que tem protecção constitucional como é do conhecimento de todos.
LIX. A todo este enredo acresce que Regulamento do Condomínio a que faz referência o facto provado n.º 4 viola frontalmente não só a propriedade horizontal como a própria lei porque pretende restringir a propriedade e o uso da fracção através da permissão do uso do logradouro, com necessária deslocação pelo acesso lateral que serve de entrada à casa do guarda, e que, por tais razões, não pode, em momento algum, ser aceite pelos Recorrentes.
LX. Não assiste razão aos Recorridos para se oporem à utilização da fracção como escritório por parte dos Recorrentes, tanto mais que outros proprietários, anteriores, fizeram uso dessa forma sem que lhes tenha sido feita oposição por quem quer que seja.
LXI. A realidade que está subjacente a este processo é que os Recorridos querem usar de um alegado direito para obter uma vantagem ilegítima, excedendo nitidamente a boa-fé e o fim social daquele.
LXII. Pense-se apenas que todos os anteriores proprietários do Imóvel exerceram ali a sua actividade sem qualquer constrangimento; o “problema” nasce quando um daqueles manifesta a intenção de alterar o uso da fracção para habitação, situação da qual adveio a questão do dinheiro…
LXIII. E deverão igualmente considerar-se provados, e aditados ao leque dos factos provados, os seguintes factos, ao abrigo do disposto no artigo 640.º, n.º 1 do CPC:
- Aos Autores nunca se revelou um transtorno ou incómodo a permanência do escritório de advogados dos Réus na fracção.
- Os Autores não se cruzam, em momento algum, com quaisquer pessoas que frequentem a fracção dos Réus por se tratar de entrada independente, sem acesso a partes comuns do Prédio.
- Os Autores conheciam que o Plano de Urbanização de Alcântara, conforme Aviso n.º 2026/2015, publicado em Diário da República n.º 37/2015, Série II de 2015-02-23, proíbe o uso de armazém e permite e incentiva a transformação do sector terciário.
- Os Autores tinham conhecimento da emissão do Alvará de Utilização Parcial N.ºe-REG/AAUT/2022/226 que autorizou o uso da fracção para escritório.
LXIV. Admitindo por mera hipótese, sem conceder, que a questão antecedente não proceda passemos a expor as razões de facto e de Direito que ilustram os manifestos erros de julgamento que inquinam a decisão recorrida e que ditarão a revogação da mesma.
LXV. O Tribunal a quo afirma, liminarmente, que é, no caso dos autos, não é produzida prova bastante da conduta abusiva por parte dos Recorridos nem quanto à frustração da confiança e convicção criadas pelos Recorrente em virtude da actividade que vinha a ser desenvolvida no Imóvel; nem quanto ao excesso da contrapartida que é pedida pelo Recorridos para conceder então na alteração formal do uso do Imóvel.
LXVI. O instituto de abuso do direito, tal com previsto no artigo 334.º do Código Civil tem um âmbito geral, transversal a todo o sistema jurídico, sendo por isso aplicável a toda e qualquer posição jurídica activa,
LXVII. O enquadramento jurídico do direito dos Recorrentes deve tomar por base o seguinte acervo de conclusões extraídas dos factos provados:
LXVIII. Durante, pelo menos, 20 anos, o Imóvel usado como escritório.
LXIX. Tal uso foi pacificamente aceite pelos condóminos que nunca exigiram dos sucessivos proprietários nem que cessassem a actividade, nem que prestassem qualquer contrapartida pela alteração do uso para o sector terciário.
LXX. Apenas notificados pela Câmara Municipal de Lisboa para realização de obras urgentes no Prédio e conhecendo que havia a intenção de instalar um escritório de advogados naquele espaço, os Recorridos exigiram o pagamento da quantia de € 60.000,00 mediante o pagamento da qual aceitariam a alteração formal do uso.
LXXI. Da conjugação do Plano de Urbanização de Alcântara e do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação resulta a expressa proibição da utilização da fracção como armazém o que é do conhecimento pleno dos Recorridos.
LXXII. Os Recorridos aceitam, expressa e inequivocamente a alteração formal do uso do Imóvel, apenas mediante o cumprimento da exigência de entrega da quantia de € 60.000,00.
LXXIII. Os Recorrentes propuseram comparticipar em 50% do valor das obras necessárias de conservação que o prédio carece, acrescido do seu rateio na permilagem que lhe cabe o que nunca foi aceite pelos Recorridos.
LXXIV. A ponderação conjugada das conclusões enunciadas permite concluir, em sede de enquadramento jurídico, que a actuação dos Recorridos além de pejada de má-fé incorre em manifesto abuso de direito.
LXXV. Os Recorridos sabem que, sem a alteração do uso, os Recorrentes ficam limitados à alteração do uso para habitação porque o uso actual - armazém e casa do guarda – se encontra totalmente esvaziado de viabilidade atentos os normativos legais invocados.
LXXVI. Com isso os Recorridos agem sem qualquer sentido de justiça, proporcionalidade e em expressa violação da génese da norma no artigo 1419.º do Código Civil.
LXXVII. O que sempre seria decidido não fosse o manifesto erro de julgamento em que incorre o Tribunal a quo mediante a apreciação da matéria de facto carreada para o processo e que não oferece dúvidas.
LXXVIII. A razão de ser da menção do destino a dar a fracção no título constitutivo vai ao encontro daquilo que é a sua natureza e composição no regime de compropriedade aliado àquelas que são as exigências do regime geral das edificações urbanas.
LXXIX. No que respeita a estas últimas, transportando para o caso dos autos, não só o Prédio é anterior ao ano de 1951 e, portanto, anterior à entrada em vigor daquele regime, não carecendo assim de autorização para licença de utilização, como a própria Câmara Municipal de Lisboa já se pronunciou favoravelmente ao uso para o sector terciário ou habitação, declinando qualquer outro.
LXXX. Relativamente à inserção do Imóvel num Prédio com outras fracções em propriedade horizontal é patente e manifesto que não está em causa qualquer tipo de circunstância relacionada com a segurança, conservação ou alteração do prédio.
LXXXI. Nem sequer está em causa qualquer perturbação, afectação ou alteração anormal à utilização que todos os proprietários das fracções do prédio lhes dão.
LXXXII. Ou seja, os fundamentos que levaram à criação da norma e o que aquela visou acautelar, não tem qualquer relação com aquilo que move os Recorridos e que já ficou patente em sede de impugnação de matéria de facto.
LXXXIII. Portanto, o real fundamento dos Recorridos para se oporem ao uso de escritório da fracção é o facto de os Recorrentes não lhes terem pago a quantia pecuniária exigida.
LXXXIV. E tal consubstancia abuso de direito nos termos e para os efeitos do artigo 334º do Código Civil, o facto dos Autores fazerem depender única e exclusivamente a alteração formal do uso da fracção para escritório do pagamento de uma quantia pecuniária, sem qualquer fundamento ético-social e jurídico inerente à norma do artigo 1419º do Código Civil.
LXXXV. Os Recorrentes não invocam o abuso de direito apenas porque lhe está a exigida uma contrapartida pela alteração do uso do Imóvel.
LXXXVI. Os Recorrentes invocam e ilustram, de facto, a manifesta má-fé que subjaz à conduta do Recorridos que, por diversas vezes, manifestam apenas aceitar a alteração do uso para escritório mediante o pagamento de quantia certa sem que a consigam justificar e sem sequer notarem qualquer incomodo ou mau estar com a manutenção de escritório de advogados no Imóvel e não se importaram com qual o destino a dar à fracção desde que as suas exigências inflexíveis sejam cumpridas.
LXXXVII. Mas fá-lo exclusivamente para ilustrar a actuação de má-fé dos Recorridos que preenche a excepção de abuso de direito invocada, e não para afastar as obrigações que decorrem dos artigos 1414.º e seguintes do Código Civil.
LXXXVIII. A jurisprudência afirma também, pacificamente, que é abusiva a oposição à alteração do uso de fracção que desde há muito tempo vem sendo usada com essa mesma finalidade, quando não represente actividade danosa para o Edifício.
LXXXIX. A má-fé dos Recorridos é notória quando consideradas as limitações que decorrem da lei ao uso do Imóvel e que, conforme ficou demonstrado, eram do estreito conhecimento dos Recorridos.
XC. A área em que se insere o Imóvel é qualificada como espaço consolidado que decorre expressamente plano de urbanização para Alcântara (doravante, PUA), conforme Aviso n.º 2026/2015, publicado em Diário da República n.º 37/2015, Série II de 2015-02-23,
XCI. Da leitura conjugada dos artigos 17.º e 19.º do PUA resulta que os Recorrentes a fracção dos Recorrente se encontra em espaço consolidado pelo que não é permitido o uso para logística, o mesmo que dizer, para armazém
XCII. Em 14/12/2022 foi emitido, pela Câmara Municipal de Lisboa ao abrigo do artigo 74.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (doravante, RJUE), Alvará de Utilização Parcial N.ºe-REG/AAUT/2022/226, nos termos do qual para Imóvel está autorizado o uso terciário (escritório) (vide documento n.º 1 junto com o Articulado Superveniente de 24/02/2023).
XCIII. Para todos os efeitos, na presente data, o uso formal que está adstrito ao Imóvel é para armazém e casa do guarda sendo certo que os Recorridos apenas admitem i) ou o uso para este efeito; ii) a alteração do uso para terciário mediante o pagamento da quantia de € 60.000,00.
XCIV. Qualquer utilização que os Recorrentes venham a dar ao imóvel para efeitos de armazém seria necessariamente inválida por contrária ao regime jurídico aplicável e que taxativo sendo certo que os Recorridos têm perfeito conhecimento disso.
XCV. Vale o mesmo que dizer que os Recorridos, conhecedores do enquadramento legal em causa e porque muitos deles são advogados de profissão, sempre conheceram que a alteração do uso só iria ocorrer se os Recorrentes cedessem à tal compensação que exigiam.
XCVI. A Sentença recorrida, salvo o devido respeito, incorre em manifesto erro de julgamento, ao considerar que era exigido um plus fáctico e probatório para colocar em crise os restantes elementos probatórios, na medida em que aprecia a matéria de facto produzida nos autos, de forma inteiramente deslocada, ora ignorando, ora diminuindo a importância da conduta dos Recorridos de manifesta má-fé, desproporcionalidade e contraria aos bons costumes, evidenciando uma leitura incorrecta da prova carreada para o processo.
Os AA. apresentaram alegação de resposta, aí sustentando a improcedência do recurso interposto pelos RR.
***
O objecto do recurso é balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, correspondendo as mesmas à indicação, de forma sintética, dos fundamentos pelos quais pede a alteração ou anulação da decisão.
Os 96 pontos acima reproduzidos não correspondem à referida indicação sintética, mas antes a sucessivas repetições da argumentação expendida anteriormente.
Todavia, é possível identificar o conjunto de questões que emerge da argumentação apresentada pelos RR., sem necessidade de lançar mão do disposto no nº 3 do art.º 639º do Código de Processo Civil (desde logo porque se antevê a incapacidade de síntese que se pretende).
Assim, as questões objecto de recurso prendem-se com:
• A alteração da matéria de facto;
• O exercício abusivo do direito dos AA.
***
Na sentença recorrida foi considerada como provada a seguinte matéria de facto (corrigem-se as referências processuais):
1. O prédio urbano sito na Rua dos Lusíadas, (…), em Alcântara, Lisboa encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa (…).
2. Em 24 de Abril de 1986 foi realizada vistoria ao prédio com vista à concessão de autorização para a passagem para o regime da propriedade horizontal, na qual se fez constar, além do mais, o seguinte:
(…)
Foi verificado que se trata de um prédio composto de cave, rés-do-chão e três andares, com um logradouro à retaguarda.
Tanto o rés-do-chão como os andares destinam-se a duas habitações em cada piso, somando oito habitações em comunicação com as partes comuns do prédio, constituídas pela escada geral dos andares e pelo vestíbulo de entrada principal, na porta n.º (…) do arruamento.
A cave é preenchida por uma ampla ocupação, destinada a um armazém, com acesso directo do exterior pela porta n.º (…) da rua acima referida.
Verificou-se ainda que o armazém contém à retaguarda uma zona destinada à habitação do guarda do mesmo armazém, com acesso por uma passagem lateral, que comunica directamente com o logradouro posterior.
Em face do que fica dito, emitiu a Comissão o parecer de que as utilizações vistoriadas constituem unidades independentes, suficientemente distintas e isoladas entre si, com uma saída própria para uma parte comum, ou para a via pública, de modo a formar fracções autónomas.
COMPOSIÇÃO:
I – FRACÇÕES AUTÓNOMAS:
1 ocupação na cave (armazém e casa do guarda com 3 divisões assoalhadas).
5 habitações com 6 divisões assoalhadas (…).
3 habitações com 7 divisões assoalhadas (…).
II – PARTES COMUNS:
As discriminadas no n.º 1 do artigo 1421.º do Código Civil”.
3. Por escritura pública (…), em 25 de Fevereiro de 1987, (…), declararam, além do mais, que:
(…)
(…)
Que o mencionado prédio reúne as condições estabelecidas na lei para nele ser instituído o regime da propriedade horizontal.
Que, assim, (...), e declaram que o mesmo prédio é constituído pelas fracções autónomas a seguir individualizadas pelas letras:
“A” – Cave, constituída por armazém e casa do guarda, com três divisões assoalhadas, (…) a que corresponde a permilagem de duzentos e cinquenta vírgula dois;
(…)
Que as indicadas fracções autónomas se destinam a habitação, com excepção da fracção autónoma individualizada pela letra “A”, que se destina a armazém; e todas elas constituem unidades prediais independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma escada comum e desta para a via pública, com excepção da fracção “A”, que tem saída própria e directa para a via pública pelo número (…).
Que todas as partes integrantes do prédio não individualizadas ficam em comum, nos termos da lei”.
4. Por Deliberação da Assembleia de Condóminos de 22 de Outubro de 2018 foi aprovado o Regulamento de Condomínio, no qual consta, entre outras, a seguinte menção:
Proibições Impostas aos Condóminos
Artigo 10.º
Para além de outras limitações impostas pelo título constitutivo ou pela lei, os condóminos estão proibidos de:
a) Dar à sua fracção um fim diverso daquele a que é destinada;
b) Destinar as suas fracções para usos contrário aos bons costumes;
c) Fazer ruídos, vibrações, cheiros, fumos que prejudiquem os outros condóminos;
d) Ocupar, por qualquer meio, as partes comuns, excepto se o título constitutivo o prever ou a assembleia de condóminos decidir em contrário, por deliberação por unanimidade;
e) Desrespeitar, na utilização da fracção, as disposições legais sobre higiene e salubridade e/ou as razoavelmente exigíveis;
f) Prejudicar, quer por falta de manutenção quer por alterações exteriores, a linha arquitectónica, o arranjo estético ou a segurança do edifício;
g) Praticar quaisquer actos que prejudiquem o condomínio ou os restantes condóminos;
h) Desrespeitarem as deliberações da assembleia de condóminos;
i) Ceder a fracção para alojamento local;
j) Quaisquer outros deveres consignados em regulamento do condomínio.
5. AG, Lda. ocupou a fracção A do aludido prédio, desde 2016 até ao final do ano de 2020, utilizando a fracção para armazenamento de material, sendo que as restantes fracções – designadas pelas letras B, C, D, E, F e G, correspondentes ao Rés do chão Direito, Rés do Chão Esquerdo, 1º Andar Direito, 1º Andar Esquerdo, 2º Andar Direito e 2º Esquerdo – pertencem aos AA. (alterado, nos termos adiante decididos)
6. No final do ano de 2019, AG, Lda. solicitou à Administração do Condomínio a alteração do uso da fracção para escritório, tendo em vista a celebração de acordo promessa de venda com terceiro. (alterado, nos termos adiante decididos)
7. Em sede de negociações, os condóminos referiram a possibilidade de alteração, mediante a entrega da quantia de € 60.000,00 por conta de futuras quotas e contribuições para despesas. (alterado, nos termos adiante decididos)
8. As negociações foram interrompidas, após comunicação de AG, Lda. relativa à desistência por parte do terceiro quanto à aquisição da fracção. (eliminado, nos termos adiante decididos)
9. Em 23 de Setembro de 2020, AG, Lda. solicitou novamente a alteração do uso da fracção, com vista à venda da fracção junto de terceiro, tendo a Administração do Condomínio, após consulta junto dos condóminos, informado da possibilidade de aprovação, sujeita aos mesmos termos e condições.
10. Subsequentemente, AG, Lda. informou que não seria necessário proceder a qualquer alteração.
11. No final do ano de 2020, a Administração do Condomínio teve conhecimento de que a referida sociedade estaria a utilizar a fracção como escritório, tendo sido remetido correio electrónico em 26 de Novembro de 2020 com o seguinte teor:

(alterado, nos termos adiante decididos)
12. Em 2 de Dezembro de 2020, os RR. adquiriram a fracção A [a aquisição, por compra, a favor dos RR. encontra-se inscrita mediante a AP. 1044 de 2020/12/02].
13. Em 13 de Dezembro de 2020, o 1º R. remeteu correio electrónico ao 1º A., no qual consta, entre outras, as seguintes menções:

14. Em 14 de Dezembro de 2020, o 1º A. remeteu correio electrónico ao 1º R., no qual consta, entre outras, as seguintes menções:

15. Na mesma data, em resposta o 1º R. remeteu correio electrónico ao 1º A., no qual consta, entre outras, as seguintes menções:

16. Em 17 de Dezembro de 2020, a 2ª A. remeteu correio electrónico ao 1º R., no qual consta, entre outras, as seguintes menções:

17. Na mesma data, o 1.º Réu, por correio electrónico remetido aos Administradores de Condomínio, comunicou, além do mais, que:




18. Em 21 de Dezembro de 2020, a 2ª A. remeteu correio electrónico ao 1º R., no qual consta, entre outras, as seguintes menções:


19. Na mesma data, o 1º R., por correio electrónico remetido aos Administradores de Condomínio e aos Condóminos, comunicou, além do mais, que:




20. Entre Janeiro e Fevereiro de 2021, os 2º AA. e o 1º R. discutiram a forma de concretização da eventual alteração do uso da fracção A.
21. O 2º A. disponibilizou ao 1º R. o orçamento solicitado por parte do Condomínio em 2017 à empresa (…). para a realização de obras de conservação, tendo este comunicado, em 27 de Janeiro de 2021, que:

22. Em 1 de Março de 2021, a 2ª A. remeteu correio electrónico aos restantes condóminos, no qual constam, entre outras, as seguintes menções:

23. A 2ª A. comunicou ao 1º R. que a proposta não tinha sido aceite pelos condóminos, tendo, em 4 de Março de 2021, remetido correio electrónico aos restantes condóminos, no qual constam, entre outras, as seguintes menções:


24. O 1º R. procedeu à instalação do escritório de advogados na fracção A, encontrando-se publicitado no site da Ordem dos Advogados a respectiva morada.
25. Durante os meses de Abril e Maio de 2021 foram encetados contactos com vista a alcançarem uma solução consensual, o que não foi possível.
26. Em 20 de Abril de 2021, por correio electrónico, o 1º R. comunicou aos AA., além do mais, que:

27. Em 22 de Abril de 2021, o 1º R. remeteu correio electrónico aos AA., no qual constam, entre outras, as seguintes menções:





28. Em 25 de Abril de 2021, o 1º R. remeteu correio electrónico à 2ª A., com conhecimento aos restantes AA., no qual constam, entre outras, as seguintes menções:




29. Em 10 de Maio de 2021, a Administração convocou a Assembleia Ordinária de Condóminos colocando na ordem de trabalhos um ponto sobre “Discussão e aprovação da autorização da alteração do uso da fracção A do condomínio”.
30. Em 26 de Maio de 2021, o 1º R. comunicou aos restantes condóminos que não iria comparecer na Assembleia, referindo, além do mais, que:



31. Em 27 de Maio de 2021, em sede de Assembleia, foi deliberado por maioria dos votos representativos de 658,10%, com abstenção do condómino da Fracção I, a não aprovação da autorização da alteração do uso da fracção designada pela letra A.
32. Em Dezembro de 2022, a Câmara Municipal de Lisboa, Divisão Municipal de Urbanismo, emitiu alvará de autorização de utilização em nome do 1º R., para uso terciário (escritório), com a área de 419m2, localizada na cave do prédio sito na Rua dos Lusíadas, n.º (…).
***
Na sentença recorrida ficou consignado que “não se lograram provar quaisquer outros factos” e bem ainda que “não foram considerados as conclusões, as alegações de direito e as circunstâncias fácticas irrelevantes para o presente juízo jurisdicional”.
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Da alteração da matéria de facto
Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 770) afirmam que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art. 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”.
E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.
Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se, em primeira linha, ao conjunto de factos constitutivos da causa de pedir e das excepções invocadas.
É que, face ao disposto no referido art.º 5º do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto apenas tem por objecto os factos essenciais alegados pelas partes, quer integrantes da causa de pedir, quer integrantes das excepções invocadas, bem como os factos instrumentais, complementares ou concretizadores que resultam da instrução da causa (para além dos factos notórios e daqueles que o tribunal tem conhecimento em consequência do exercício das suas funções).
Tal não significa, no entanto, que a decisão da matéria de facto (provada e não provada) deve comportar toda a matéria alegada pelas partes e bem ainda aquela que resulte da prova produzida, já que apenas a factualidade que assuma juridicidade relevante em razão das questões a conhecer é que deve ser objecto dessa decisão.
Isso mesmo enfatizam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 721), quando explicam que o juiz da causa deve optar “por uma descrição mais ou menos pormenorizada ou concretizada, de acordo com as necessidades do pleito, desde que seja assegurada uma descrição natural e inteligível da realidade que, para além de revelar o contexto jurídico em que se integra, permita a qualquer das partes a sua impugnação”. E mais explicam (pág. 722) que “o regime consagrado no CPC de 2013 propugna uma verdadeira concentração naquilo que é essencial, depreciando o acessório, sendo importante que o juiz consiga traduzir em linguagem normal a realidade apreendida, explicitando, depois, os motivos que o determinaram, com destaque para a explanação dos factos instrumentais que o levaram a extrair as ilações ou presunções judiciais”.
Assim, e como tal delimitação deve estar igualmente presente na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017, relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt, quando conclui que “o princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo”, e bem ainda que “nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir”), só há lugar à apreciação dos pontos indicados como impugnados na medida em que, não só correspondam a factos com efectivo interesse para a decisão do recurso, mas igualmente decorram do confronto entre o elenco de factos provados e não provados, retirados dos factos alegados pelas partes, assim se respeitando o disposto no referido art.º 5º do Código de Processo Civil.
Por outro lado, e a respeito da enunciação dos factos instrumentais, decorre do nº 4 do art.º 607º do Código de Processo Civil que os mesmos não carecem de ser discriminados no elenco de factos provados, mas apenas referidos na medida das ilações que forem tiradas dos mesmos, para a demonstração dos factos essenciais alegados pelas partes.
Isso mesmo explicam igualmente António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 718‑719), afirmando a necessidade de enunciação dos “factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as excepções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a acção ou a excepção proceda”, bem como a necessidade de “enunciação dos factos concretizadores da factualidade que se apresente mais difusa” (e sendo que “a enunciação dos factos complementares e concretizadores far-se-á desde que se revelem imprescindíveis para a procedência da acção ou da defesa, tendo em conta os diversos segmentos normativos relevantes para o caso”), mas afirmando igualmente que, quanto aos factos instrumentais, “atenta a função secundária que desempenham no processo, tendente a justificar simplesmente a prova dos factos essenciais, para além de, em regra, não integrarem os temas da prova, nem sequer deverão ser objecto de um juízo probatório específico”, já que “o seu relevo estará limitado à motivação da decisão sobre os restantes factos, designadamente quando a convicção sobre a sua prova resulte da assunção de presunções judiciais”.
Revertendo tais considerações para o caso concreto, pode-se desde logo afirmar que os RR. deram cumprimento ao ónus de especificação a que alude o art.º 640º do Código de Processo Civil, não só porque nas conclusões da alegação respectiva concretizam os pontos da decisão de facto que consideram incorrectamente julgados e qual a decisão que os mesmos devem merecer, mas igualmente porque na motivação especificam os meios de prova que conduzem ao resultado pretendido e, no que respeita à prova gravada, identificam as passagens das gravações que entendem conduzir às alterações pretendidas (correspondentes ao aditamento ao elenco dos factos provados dos pontos identificados em XX., XLI, XLII e LXIII, a par da alteração dos pontos 5 e 7, bem como à eliminação dos pontos 6 e 8 do elenco dos factos provados).
Assim, é em relação a estes pontos, e apenas em relação aos mesmos, que cumpre conhecer da impugnação da decisão de facto (e sem prejuízo da alteração oficiosa de outros pontos, para evitar contradições).
***
Relativamente à utilização da fracção A, pretendem os RR. que se altere o ponto 5 (aditando-se a sua utilização para escritório, no período temporal aí em causa) e que se adite à factualidade provada que essa mesma utilização (para escritório) já ocorria desde 1988, sendo do conhecimento dos demais condóminos, que a ela nunca se opuseram (até ao final de 2020).
A factualidade em questão foi alegada pelos RR. na contestação (art.º 31º a 37º).
Na sentença recorrida consta a seguinte motivação para dar como provado, tão só, que a fracção A foi utilizada como armazém:
Dos elementos probatórios produzidos apenas AF, na qualidade de anterior sócio da sociedade titular da fracção A [veja-se certidão junta em anexo ao requerimento de ref.ª Citius 30490091 de 11‑10‑2021, documento n.º 6], aludiu à circunstância de utilizar a fracção não só como armazém, mas também como gabinete / projectos, sendo que nunca foi advertido de que não o poderia fazer.
Contudo, tal depoimento apresenta-se insuficiente epistemicamente para corroborar não só a cognoscibilidade de tal situação, mas também uma aceitação expressa e / ou tácita [por actos concludentes nesse sentido] quanto à alegada utilização diversa.
Dos restantes elementos produzidos, inexiste qualquer referência a tal actividade, cognoscibilidade / ou aceitação, que pudessem fundar um comportamento contraditório e / ou qualquer expectativa junto dos Réus.
Explicite-se que a sociedade que ocupou subsequentemente a fracção, que, inclusive, a certa altura a utilizou como escritório, foi advertida para cessar tal utilização, vide, em correlação, depoimento de RA, na qualidade de sócio da AG, Lda., declarações de parte de AA, documento n.º 13, junto em anexo à petição inicial.
Exigir-se-ia um plus fáctico e probatório para colocar em crise os restantes elementos probatórios, que apresentam um sentido unívoco: inexistia qualquer aceitação [expressa ou tácita] de uso distinto da fracção A”.
Contrapõem os RR. que os depoimentos de AF e RA permitem afirmar a referida utilização da fracção A como escritório/gabinete de projectos, entre 1988 e 2016, e como escritório/sede da sociedade aí instalada, entre 2016 e até ser vendida aos RR.
Da certidão do registo predial relativa à fracção A, junta com a contestação como documento 6, resulta que até 2016 a proprietária da mesma foi a sociedade “OM”, relativamente à qual a testemunha AF se apresentou como sócio da “GF, Ld.ª”, sociedade que vendeu a fracção A à referida “OM” (em 1995) e passou a ter a qualidade de arrendatária (até 2016). Da mesma certidão resulta que após 2016 o proprietário da fracção A foi o Novo Banco, sendo locatária financeira da mesma a sociedade “AG”, relativamente à qual a testemunha RA se apresentou como sócio e gerente.
Do depoimento de cada uma das testemunhas em questão resulta que a fracção A foi utilizada por cada uma das sociedades comerciais em apreço para o exercício das respectivas actividades comerciais. Assim, e relativamente à utilização até 2016, o referido AF explicou que nessa fracção A esteve instalado um gabinete de elaboração de projectos, para além de ser aí que se fazia o serviço relativo a facturas, guias de transporte e arquivo, para além de se receberem aí clientes. Ou seja, trata-se da actividade própria de um escritório de uma sociedade comercial. Também a testemunha RA explicou, relativamente à “AG”, que a fracção A servia como “nosso escritório ou como nossa base, como a nossa sede”, mais explicando que a sociedade em questão se dedica à produção de filmes publicitários e que havia pessoal em permanência naquele local, que utilizava o equipamento (material informático, secretárias e cadeiras) aí instalado.
A credibilidade que as testemunhas em questão merecem, pela referida ligação às sociedades anteriormente instaladas na fracção A, determina a verosimilhança do que relataram, e que não é colocado em causa por qualquer outro meio de prova. Designadamente, e no que respeita à afirmação constante da mensagem de correio electrónico de 26/11/2020 (identificada no ponto 11), no sentido de a administração do condomínio ter verificado que “a cave do condomínio (fracção A) está a ser usada como escritório”, a suposta novidade dessa utilização é desmentida pela circunstância de existir uma situação de diálogo desde o final de 2019 entre a “AG” e os restantes condóminos, tendo por tema o tipo de utilização da fracção A. Dito de outra forma, tal mensagem de correio electrónico não traduz qualquer novidade na utilização da fracção A como escritório, mas apenas a novidade da oposição à referida utilização (como escritório), situação a que não será alheia a circunstância de estar para breve a transmissão da propriedade da fracção A, nos termos já anunciados pela “AG”, e que levam o 1º A., na intitulada qualidade de “Administração do Condomínio”, a declarar por escrito tal oposição, tendo em vista “marcar posição” perante a futura “entrada em cena” do novo proprietário. Em suma, tal mensagem de correio electrónico não tem qualquer eficácia para abalar a referida credibilidade das duas testemunhas identificadas.
Pelo que se deve dar como provado que a referida fracção A foi utilizada (também) como escritório desde o referido ano de 1988 e até 2020.
Do mesmo modo, o tipo de utilização em questão (ou seja a existência de funcionários das sociedades a fazer trabalho de escritório na fracção A, a par da entrada e saída de clientes), durante tão longo período temporal (mais de 20 anos) não podia passar despercebido aos restantes condóminos (onde se incluem os AA.). Dito de outra forma, qualquer cidadão, colocado na concreta posição dos restantes condóminos e agindo com a diligência normal, repararia na actividade exercida na fracção A, logrando identificar a utilização da mesma como escritório (e não apenas como armazém). O que significa, recorrendo a juízos de experiência comum, que os condóminos sabiam desse tipo de utilização e que nunca se opuseram a essa situação, já que inexiste notícia de qualquer oposição, durante tal lapso de tempo (de 1988 a 2020).
O que significa, desde logo, que é de alterar o ponto 5 dos factos provados, nos termos indicados pelos RR., do mesmo modo que há que aditar à factualidade provada a matéria elencada no primeiro dos dois pontos indicados em XX. E importa ainda alterar a primeira parte do referido ponto 11, eliminando do mesmo a referência ao conhecimento da utilização da fracção no “final do ano de 2020”, para não entrar em contradição com o acima referido, quanto à ausência de qualquer novidade no conhecimento dessa utilização.
Já relativamente ao segundo ponto indicado em XX, trata-se de um mero juízo conclusivo, formulado a partir da restante factualidade provada.
Com efeito, se está demonstrado que entre 1998 e 2020 a fracção A foi utilizada como escritório e nunca houve oposição a essa utilização pelos restantes condóminos, e se está demonstrado que em 26/11/2020 a administração do condomínio (na pessoa do 1º A.) remete à “AG” uma comunicação de correio electrónico em que lhe solicita “que faça cessar de imediato a utilização do espaço” como escritório (ponto 11 dos factos provados), afirmar que é nessa data (final de 2020) que os AA. se opõem, pela primeira vez, ao uso da fracção A como escritório, mais não é que concluir que tal oposição só surge (ou seja, surge pela primeira vez) com tal comunicação de correio electrónico. E como tal juízo conclusivo não tem qualquer relevo factual autónomo, o mesmo não deve integrar o elenco de factos provados.
Pelo que, nesta parte, importa alterar os ponto 5 e 11 e aditar um novo ponto (ponto 33), nos seguintes termos:
5. AG, Lda. ocupou a fracção A do aludido prédio, desde 2016 até ao final do ano de 2020, utilizando a fracção para escritório e armazenamento de material, sendo que as restantes fracções – designadas pelas letras B, C, D, E, F e G, correspondentes ao Rés do chão Direito, Rés do Chão Esquerdo, 1º Andar Direito, 1º Andar Esquerdo, 2º Andar Direito e 2º Esquerdo – pertencem aos AA.
11. Em 26 de Novembro de 2020 a Administração do Condomínio remeteu à AG Films, Lda. uma mensagem de correio electrónico com o seguinte teor:

33. Entre 1988 e 2020 nunca os demais condóminos se opuseram ao uso da fracção A para fins de escritório.
***
Relativamente à abordagem feita pela “AG” aos restantes condóminos, tendo em vista a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, de modo a que a fracção A passasse a ser destinada a escritório (e não a armazém, como consta da escritura de 25/2/1987), resulta da ordem de trabalhos da assembleia de condóminos realizada em 13/3/2017 a “discussão e decisão sobre o pedido de alteração do uso da fracção A, cave, para habitação”, pedido esse formulado pela referida “AG”.
Da conjugação dos depoimentos da referida testemunha RA com a testemunha NA (morador na fracção correspondente ao 3º direito do prédio em questão) resulta a confirmação de que a solicitação da “AG” foi no sentido de a fracção A passar a ser destinada a habitação, tendo sido a partir dessa solicitação que foi pedido, como contrapartida, um estudo de estabilidade do edifício e, depois, uma contrapartida monetária. Essa mesma solicitação inicial da “AG” foi confirmada pelo 1º A. e pela 2ª A., nas declarações que prestaram na audiência final (sessão de 5/3/2024), tendo os mesmos esclarecido, igualmente, que não se falou da venda da fracção A pela “AG”, não sendo nesse contexto que se discutiu a alteração do uso da fracção A e a correspondente contrapartida monetária.
Mais convergiu toda a prova em questão no sentido de a “AG” não ter concordado com o pagamento dos valores sucessivamente indicados pelos restantes condóminos, sendo por isso que nunca foi formalizada a alteração do uso da fracção A.
Ou seja, a prova em questão afasta a verificação integral da factualidade constante dos pontos 6 e 8, não só porque a alteração pretendida inicialmente pela “AG” respeitava à utilização habitacional, mas sobretudo porque, por um lado, não foi a existência de um terceiro interessado na aquisição da fracção A que determinou as propostas da “AG” e, por outro lado, porque o fim das negociações também não foi condicionado por qualquer desistência desse (inexistente) terceiro interessado.
Pelo que importa eliminar do elenco dos factos provados o ponto 8, mais fazendo constar do ponto 6, tão só, a seguinte factualidade:
6. No final do ano de 2019 a AG, Lda. solicitou aos restantes condóminos a alteração do uso da fracção A.
Já relativamente ao ponto 7, visam os RR. que se especifique que a contrapartida monetária ascendia a € 60.000,00, sendo o seu pagamento condição para a alteração do uso da fracção nos termos pretendidos pela “AG”.
Toda a prova já referida converge no sentido de ter sido esse o montante indicado pelos restantes condóminos à “AG”, mais explicando a referida testemunha RA que se tratava de uma quantia “fora de cogitação, era impossível esse valor”. Quanto à afectação do referido valor de € 60.000,00, é certo que a primeira contrapartida solicitada pelos restantes condóminos (em 2017) não era pecuniária, mas respeitava a um estudo da estabilidade do edifício (cujo pagamento havia de ser suportado pela “AG”). O que é o mesmo que afirmar que se tratava de contribuir para o “bolo comum” do condomínio. Mas do teor do documento 14 junto com a P.I. (correspondente a um projecto de acta de uma assembleia extraordinária de condóminos a realizar em Fevereiro de 2020) emerge que a aprovação do pedido da “AG” (efectuado no final de 2019) de alteração do uso da fracção teria como contrapartida o pagamento imediato de € 60.000,00, a depositar na conta do condomínio, “por conta de futuras quotas e outras contribuições para despesas do condomínio de todos os demais condóminos, exactamente os condóminos das fracções B a I”.
Ou seja, ainda que o valor em questão (€ 60.000,00) não se destinasse directamente aos restantes condóminos, mas ao condomínio, na prática correspondia a um pagamento da “AG” por conta dos valores devidos pelos mesmos ao condomínio, assim representando um incremento patrimonial dos mesmos. O que é o mesmo que dizer que se tratava de uma verba entregue aos restantes condóminos.
Importa assim alterar o ponto 7, nos seguintes termos:
7. Em sede de negociações os restantes condóminos propuseram à AG, Lda. que esta entregasse € 60.000,00 como condição para a aprovação da alteração do uso da fracção A.
***
No mais, os RR. sustentam que devem ser aditados aos factos provados os pontos que concretizam em XLI, XLII e LXIII.
Quanto ao primeiro ponto em questão, reporta-se ao teor de uma proposta de acordo feita pelos RR. aos restantes condóminos, com vista à obtenção de autorização para a alteração da utilização da fracção A que consta do título constitutivo da propriedade horizontal, sendo matéria que foi alegada pelos RR. no art.º 68º da contestação (ainda que com redacção ligeiramente diversa).
Consta já dos pontos 20 e 22 (não impugnados) que o 1º R. negociou com os restantes condóminos (mais concretamente, com os 2º AA.) qual seria a contrapartida para obter a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, no que respeita à utilização da fracção A., tendo-lhes transmitido que “estou disponível para assumir 50% dos custos das obras e respectivos encargos de licenciamento e operacionais, em função do orçamento que aprovarem, e devendo o remanescente ser objecto de rateio nos termos do regulamento e título”. Ou seja, o aditamento pretendido pelos RR. corresponde a factualidade que já consta do elenco dos factos provados. E como também consta do ponto 23 (não impugnado) que os condóminos não aceitaram tal proposta, não se vislumbra a necessidade de pretendida repetição factual, ainda que a coberto de uma redacção distinta.
Quanto ao segundo ponto em questão, visam os RR. que se dê como provado que o valor de € 60.000,00 pretendido pelos AA. correspondia ao valor orçamentado para a realização de obras de beneficiação do imóvel.
Em momento algum da sua contestação os RR. alegaram que os restantes condóminos (ou mesmo só os AA.) pretendiam realizar beneficiações no imóvel, e que haviam orçamentado as obras respectivas em € 60.000,00. Do mesmo modo, da prova produzida não emerge a afirmação de qualquer vontade de realizar beneficiações, mas apenas a necessidade de realizar obras de conservação do edifício, tendo presente a sua vetustez e (má) conservação. Ou seja, a matéria fáctica em questão, na perspectiva da realização de “obras de beneficiação”, apresenta-se como inovatória, não correspondendo a qualquer facto integrante da causa de pedir ou da excepção do abuso de direito alegada na contestação, do mesmo modo não emergindo da instrução como factualidade concretizadora ou complementar da factualidade essencial alegada.
Por outro lado, também não consta do elenco de factos provados que os AA. tenham pedido aos RR. € 60.000,00 (apenas consta como provado que propuseram à “AG” a entrega desse valor). Pelo que se apresenta como uma impossibilidade lógica afirmar conclusivamente (e é esse o sentido que os RR. visam com o aditamento em questão) que esse valor (não) peticionado correspondia ao valor orçamentado para beneficiações a realizar no edifício.
O que faz concluir que a matéria correspondente ao referido segundo ponto não deve ser aditada ao elenco de factos provados.
Quanto ao terceiro ponto, prende-se com o teor da deliberação tomada em assembleia de condóminos e exarada na acta 1/2017.
Constando já da factualidade provada o conteúdo das negociações entre a “AG” e os restantes condóminos, bem como o desfecho dessas negociações, e sendo que a alteração do uso de fracção A passava pela alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, e não apenas por uma aprovação condicionada à realização de um “estudo de estabilidade de estrutura do edifício”, torna-se patente que o teor da referida deliberação se apresenta como mero instrumento factual da factualidade integrante da excepção do abuso de direito, na parte relativa à abordagem feita pela “AG” aos restantes condóminos, tendo em vista a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. Aliás, isso mesmo resulta da fundamentação acima apresentada e que conduziu à alteração dos pontos 6 e 7 e à eliminação do ponto 8.
Pelo que, tratando-se de factualidade instrumental, não carece a mesma de ser elencada nos factos provados.
Quanto aos quarto e quinto pontos, relativos aos transtornos ou incómodos (ou falta deles) causados aos AA. pela instalação de um escritório de advogados na fracção A, é factualidade que não foi alegada pelos RR. na contestação como integrante da excepção do abuso de direito. E ainda que tal factualidade tenha surgido em sede de instrução (mais concretamente em resultado das declarações de parte e dos depoimentos das testemunhas inquiridas), a mesma não pode ser qualificada como factualidade complementar e/ou concretizadora da factualidade essencial e integrante da excepção peremptória em questão, para efeitos de ser levada ao elenco de factos provados. Acresce que a própria caracterização da fracção A, no seu confronto com as restantes fracções e com as partes comuns do edifício, nos termos que resulta do título constitutivo da propriedade horizontal (a escritura pública de 25/2/1987), permite concluir que a fracção A “tem saída própria e directa para a via pública pelo número (…)” da Rua dos Lusíadas, ao passo que as restantes fracções têm “saída própria para uma escada comum e desta para a via pública” (trata-se do nº (…) da mesma Rua dos Lusíadas). Ou seja, resulta já da factualidade apurada que a fracção A tem entrada directa e independente pela via pública e que, por isso, os restantes condóminos não se cruzam nas partes comuns do prédio com quem frequenta a fracção A.
Pelo que, também quanto a estes dois pontos, não há lugar à sua inclusão no elenco de factos provados.
Por último, pretendem os RR. que se dê como provado que os AA. conhecem o instrumento de gestão territorial que decorre do aviso 2062/2015, publicado na 2ª série (parte H) do Diário da República de 23/2/2015, conhecendo igualmente o alvará camarário que foi emitido em 2022.
Torna-se patente a irrelevância dos dois aditamentos pretendidos.
Com efeito, pela apresentação 5495, de 17/12/2009, mostra-se inscrito sobre o prédio onde se situa a fracção A o acto de aprovação do Documento Estratégico da Unidade de Intervenção 20 Alcântara, estando depois o identificado Plano de Urbanização de Alcântara, aprovado ao abrigo daquele anterior instrumento de gestão territorial, publicado em Diário da República.
Pelo que qualquer desconhecimento que os AA. quisessem invocar relativamente a tais instrumentos de gestão territorial apresentava-se como irrelevante, atenta a sua natureza de actos normativos, com a correspondente publicitação oficial.
Do mesmo modo, o conhecimento do alvará emitido em 2022 emerge da dinâmica processual, já que se trata de acto administrativo praticado após o termo dos articulados e que, por isso, foi dado a conhecer nos autos através de articulado superveniente. Acresce que a alegação de tal facto visa sustentar a “legalidade do uso que é feito pelos RR.” da fracção A (art.º 5º do referido articulado superveniente), não tendo qualquer relação com a factualidade alegada para sustentar o exercício abusivo do direito que os AA. fazem valer em juízo.
Ou seja, no âmbito da questão de direito a conhecer pelo presente recurso, que se reconduz ao referido abuso de direito, torna-se irrelevante a matéria factual em questão.
Pelo que também não há que aditar os dois referidos pontos ao elenco de factos provados.
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Em suma, na parcial procedência das conclusões do recurso dos RR., relativamente à impugnação da decisão de facto, há tão só lugar à referida alteração dos pontos 5 a 7 e 11, à referida eliminação do ponto 8, e ao aditamento do ponto 33, mantendo-se em tudo o mais a decisão de facto.
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Do abuso de direito
Foi a seguinte a fundamentação utilizada pelo tribunal recorrido, para concluir pela não verificação do abuso de direito dos AA.:
Inexiste controvérsia fáctica quanto ao uso dado à fracção, sendo que tal afectação é distinta da indicada no título, sem que se tenha verificado a aprovação dos restantes condóminos e identicamente inexiste controvérsia quanto à falta de autorização / concordância dos restantes condóminos [quanto ao regulamento do condomínio, explicite-se que a respectiva deliberação não foi impugnada; a impugnação judicial, enquanto meio de tutela jurídica relativa a deliberações que se reputem desconformes / inválidas, está sujeita a prazo de caducidade, de natureza substantiva, artigo 279.º, por remissão do artigo 296.º, ainda, artigo 1433.º do Código Civil, razão pela qual sempre quedaria prejudicado o direito de impugnação da deliberação que aprovou o aludido regulamento; de qualquer modo, a proibição imposta ao condómino resulta do próprio título, sendo este o prisma de discussão / análise].
Nessa exacta medida, o punctum crucis radica na apreciação da actuação abusiva, ou não, dos Autores, por exercício abusivo de um direito [“(…) é um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica – por não contrária à estrutura formal-definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde – e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício.”, cfr. CASTANHEIRA NEVES, Questão-de-facto — questão-de-direito ou o problema metodológico da jurisdicidade (Ensaio de uma reposição crítica) I — A crise (1967), página 524. Em síntese: (…) a contradição entre o cumprimento da estrutura formalmente definidora de um direito e a violação concreta do fundamento que material-normativamente constitui esse mesmo direito, cfr. ibidem.”]
Com correlativa apreciação de uma situação de venire (com a correlativa verificação dos respectivos pressupostos: um comportamento anterior do agente susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança, a imputabilidade das duas condutas [anterior e actual] ao agente, um investimento nessa confiança, a boa-fé da contraparte que confiou e nexo causal entre a referida situação e investimento que nela assentou – por todos, veja-se, MENEZES CORDEIRO, Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, in Ars Ivdicandi – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, vol. II, Coimbra Editora, ponto 9 comportamentos típicos abusivos e, ainda, BAPTISTA MACHADO, Tutela da confiança e venire contra factum proprium, Obra Dispersa, Braga, 1991, págs. 345 a 420, em especial página 416).
O efeito do abuso de direito é irrelevar do ponto de vista jurídico o efeito do (pretendido) comportamento abusivo [in radice, ipso iure, impede-se o resultado a que a conduta abusiva ia dirigida].
Note-se que actualmente é pacífica a consideração de que o abuso se reporta tanto à acção como à omissão ou abstenção de um comportamento, ou seja, a actuação ou exercício reportado abusivo respeita à faculdade (juridicamente relevante), qualquer que seja a sua manifestação.
Se se trata de uma acção, é negar o efeito da acção.
Se se trata de uma omissão, é produzir-se o efeito omitido / o efeito que se produziria se não fosse a omissão.
Ante a matéria de facto provada, exigir-se-ia um plus fáctico e probatório para a demonstração de tal conduta abusiva, para a demonstração do aludido factor indutor de confiança, efectiva criação de confiança, investimento e imputação ao agente.
A ausência de comportamento contraditório anterior ou contemporâneo às negociações, a mera circunstância de as negociações terem sido malogradas e / ou a intencionalidade fundante da voluntas expressa por parte dos condóminos não se apresentam suficientes para a tutela de uma situação de confiança [não estamos perante uma situação de frustração de confiança alheia, que implique o recurso ao abuso, enquanto forma da ordem jurídica reagir à injustiça de uma situação de facto que se produziria em virtude de uma comportamento inconsequente].
Ergo, sem necessidade de maiores considerandos, o efeito prático normativo visado [cessação de actividade / da utilização da fracção] é procedente”.
Contrapõem os RR. que a razão de ser da al. c) do nº 2 do art.º 1422º do Código Civil (ou seja, a proibição de dar a uma fracção autónoma uso diverso do fim a que é destinada) prende-se com a necessidade de salvaguardar a segurança, conservação ou alteração do edifício, bem como de obstar a qualquer perturbação, afectação ou alteração anormal à utilização que é dada das fracções do edifício pelos restantes condóminos. E como no caso concreto a utilização da fracção A para escritório (e não apenas para o fim de armazém a que foi destinada) não coloca em causa qualquer um destes valores (o que desde logo é reconhecido pelos instrumentos urbanísticos e pela correspondente actuação camarária, autorizando a utilização da fracção A como escritório), e dado que a oposição dos AA. a tal utilização radica apenas na vontade de obterem uma contrapartida patrimonial, deve então entender-se que essa oposição dos AA. está a ser exercida de forma abusiva, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 334º do Código Civil.
Recuperando o disposto no art.º 334º do Código Civil, daí emerge que é abusivo (ou ilegítimo) o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Para além da doutrina de Castanheira Neves já citada na sentença recorrida, pode‑se igualmente afirmar que “há abuso de direito quanto um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem” (Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, 1999, pág. 43).
Do mesmo modo, Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil anotado, volume I, 4ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 299) explicam que “para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade. Pelo que respeita, porém, ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei”. E mais à frente (pág. 300) regressam ao ensinamento de Castanheira Neves, explicando que “a nota típica do abuso de direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido”.
Por outro lado, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/12/2008 (relatado por Alberto Sobrinho e disponível em www.dgsi.pt) afirma-se que “o abuso de direito, pressupondo a existência de um direito subjectivo, existe quando o seu titular exorbita dos fins próprios desse direito ou do contexto em que é exercido. Mas esse excesso há-de ser claro e manifesto, clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, no dizer de Vaz Serra, sem se exigir todavia a consciência de se estarem a exceder os limites do direito, dado ter sido adoptada pelo Código Civil uma concepção objectivista do abuso de direito.
O abuso de direito existe quando o direito é exercido fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e com o fim de causar dano a outrem.
A teoria do abuso de direito, na formulação adoptada pela nossa lei, apresenta‑se como um verdadeiro limite intrínseco do exercício dos direitos subjectivos ou, nas palavras de Manuel Andrade, serve como válvula de segurança para os casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica contra a rígida estruturação das normas legais obstando a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar se as tivesse vislumbrado.
Uma das manifestações mais evidentes do abuso de direito é precisamente a proibição do venire contra factum proprium.
É que todas as relações jurídicas entre as pessoas implicam um princípio de confiança e de auto-vinculação, criando expectativas futuras. E é precisamente esta confiança vinculativa que proíbe que alguém exerça o seu direito em manifesta oposição a uma tomada de posição anterior em que a outra parte acreditou e aceitou. Mas esta situação de confiança tem de radicar num comportamento que de facto possa ser entendido como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada situação futura.
Ocorrendo uma situação de abuso de direito ou de venire contra factum proprium, ao titular que assim exerceu o seu direito é-lhe negado o efeito pretendido”.
Do mesmo modo, é afirmado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/11/2010 (relatado por Sebastião Póvoas e disponível em www.dgsi.pt) que o abuso de direito, “tal como resulta do seu “nomen juris”, pressupõe a existência de um direito radicado na esfera do titular, direito que, contudo, é exercido por forma ilegítima por exceder manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico (artigo 334.º do Código Civil).
Quer o preceito vigente (com redacção idêntica à do artigo 334.º do Anteprojecto do Código Civil [2.ª revisão ministerial], quer a primeira proposta – artigo 297.º - 1.ª revisão ministerial – “O exercício de um direito (…) através de factos que contrariem os princípios éticos fundamentais do sistema jurídico (…).”) têm ínsito o “qui jure sua utitur”, ou seja, que o abusador surja titular de um direito subjectivo, ou de parte dele.
E, então, ou o utiliza licitamente – dentro dos limites do direito objectivo – ou ultrapassa limites que a ética, a boa fé e o fim social não toleram.
Assim, são os casos de “venire contra factum proprium”, em que o exercício contradiz uma conduta antes presumida ou proclamada pelo agente (Cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2007 – 07 A1180, desta Conferência e de 30 de Março de 2006 – P.º 3921/05, 4.ª).
Aí, o ponto de partida é uma anterior conduta de um sujeito jurídico que “objectivamente considerada é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira.” (cf. Prof. Baptista Machado, apud “Obra Dispersa”, 1, 415 e ss).
A conduta pregressa terá criado na contraparte uma situação de confiança com base na qual esta tenha tomado disposições ou organizado planos que, gorados, lhe causarão danos.
Tem aqui ínsita a ideia de “dolus praesens”, a trair um investimento de confiança feito pela outra parte, originado por dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidas no tempo. (cf. o Prof. Menezes Cordeiro, “o primeiro – o ‘factum proprium’ – é, porém, contrariado pelo segundo”, apud, “Da Boa Fé no Direito Civil”, 45; e ROA – 58, 1998, 964)”.
Ou seja, e com revelo para a situação dos autos, importa atentar aos referidos limites que a ética, a boa fé e o fim social impõem ao direito que assiste a qualquer condómino a opor-se à utilização de uma fracção autónoma para fim diverso daquele a que é destinada, segundo o título constitutivo da propriedade horizontal.
Apresenta-se como pacífico que as limitações constantes do nº 2 do art.º 1422º do Código Civil (entre as quais se conta a proibição de qualquer condómino de dar à sua fracção uso distinto do fim a que é destinada) encontram a sua explicação, “não nas regras sobre a compropriedade, mas antes no facto de, estando as diversas fracções autónomas integradas na mesma unidade predial, como propriedades sobrepostas ou confinantes, haver entre elas e no respectivo uso especiais relações de interdependência e de vizinhança. A estreita comunhão em que vivem os condóminos, como co-utentes de um mesmo edifício, sujeita-os a limitações que a lei não impõe ao proprietário normal e que são reclamadas pela necessidades de conciliar os interesses de todos ou de proteger interesses de outra ordem” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, volume III, 2ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 425).
Os referidos autores explicam ainda (pág. 427) que as restrições de origem negocial, relativas ao destino das fracções autónomas, “fazem parte integrante do estatuto do condomínio, o que equivale a dizer que têm natureza real e, portanto, eficácia erga omnes, prevalecendo sobre qualquer negócio que com elas se não harmonize”.
Assim, quando o destino das fracções autónomas resulta de negócio jurídico (como no caso em que a propriedade horizontal é constituída por escritura pública com o conteúdo a que respeita o art.º 1418º do Código Civil, designadamente fazendo-se menção ao fim a que se destina cada fracção autónoma), torna-se necessário interpretar tal declaração negocial segundo o princípio geral consagrado no art.º 236º do Código Civil, tendo em vista alcançar os referidos interesses dos restantes condóminos que se visam salvaguardar através da determinação do fim em questão (e da correspondente limitação à utilização para fim distinto).
Como ficou expresso no acórdão de 30/1/2007 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Rui Vouga e disponível em www.dgsi.pt), “a declaração constante do título constitutivo da propriedade horizontal, quanto ao destino das suas fracções autónomas, deve ser interpretada com base num critério económico e no significado corrente das expressões usadas, adoptando-se a doutrina objectiva da interpretação e os respectivos critérios legais consagrados nos arts. 236º e 238º do Cód. Civil”.
Do mesmo modo, como ficou expresso no acórdão de 19/10/2010 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Anabela Calafate e disponível em www.dgsi.pt), “o critério de interpretação dos dizeres do título constitutivo da propriedade horizontal (…) deve assentar predominantemente no significado corrente das expressões nele usadas. Por isso, a declaração constante desse título relativa ao destino das fracções do prédio deve valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário (ou seja, o terceiro, candidato a condómino) possa dele deduzir”.
Por outro lado, e havendo que perscrutar o critério económico e o significado corrente das expressões utilizadas no título constitutivo da propriedade horizontal, quanto ao destino das fracções autónomas, haverá que atender ao significado de expressões idênticas utilizadas nos instrumentos normativos que respeitam ao urbanismo e à edificação urbana.
Assim, e desde logo no que respeita ao Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), dos seus art.º 77º e 78º constam as regras aplicáveis à construção de caves, tendo em vista o seu destino, aí se dispondo que “só é permitida a construção de caves destinadas a habitação em casos excepcionais, em que a orientação e o desafogo do local permitam assegurar-lhes boas condições de habitabilidade, devendo, neste caso, todos os compartimentos satisfazer às condições especificadas no presente Regulamento para os andares de habitação”, e bem ainda que “poderá autorizar-se a construção de caves que sirvam exclusivamente de arrecadação para uso dos inquilinos do próprio prédio ou de armazém ou arrecadação de estabelecimentos comerciais ou industriais existentes no mesmo prédio. Neste caso o pé-direito mínimo será de 2,20m e as caves deverão ser suficientemente arejadas e protegidas contra a humidade e não possuir qualquer comunicação directa com a parte do prédio destinada a habitação”.
Do mesmo modo, e no que respeita ao já referido Plano de Urbanização de Alcântara (aprovado em 2/12/2014 pela Assembleia Municipal de Lisboa ao abrigo do regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial constante do D.L. 380/99, de 22/9, entretanto revisto pelo D.L. 80/2015, de 14/5, e publicitado pelo Aviso 2026/2015, publicado no D.R. 2ª série, de 23/2/2015), do seu art.º 19º (relativo ao uso dos edifícios existentes nos espaços centrais e residenciais consolidados, como é o caso da Rua dos Lusíadas) consta que “não são permitidos os seguintes usos: a) Indústria, com excepção da indústria compatível; b) Logística, com excepção da micrologística”, constando igualmente que “é permitida a afectação de edifícios habitacionais a actividades terciárias, turísticas ou equipamento, desde que a afectação abranja a totalidade das fracções habitacionais ou quando se prevejam acessos independentes em prédios com frente igual ou superior a 12 metros”, e bem ainda que “as actividades não residenciais a instalar deverão ser compatíveis com a habitação, nomeadamente no que diz respeito à produção de ruído, fumos, cheiros ou resíduos, e à perturbação das condições de trânsito ou de estacionamento devido a operações de carga e descarga ou a incomportável tráfego de veículos pesados”.
Reconduzindo todas as considerações antecedentes ao caso concreto dos autos, torna-se necessário atentar, em primeiro lugar, que se está perante um edifício construído antes de 1951 (resulta da caderneta predial urbana junta aos autos a sua inscrição na matriz em 31/12/1937) e que só foi constituído em propriedade horizontal em 1987. O que significa que as expressões utilizadas na escritura respectiva (e na vistoria camarária que a antecedeu, destinada a certificar os requisitos para a constituição da propriedade horizontal) tenderam a conformar-se com o RGEU, designadamente no que respeita ao destino a dar à cave do edifício (individualizada como fracção A).
Ou seja, como o RGEU dispõe que a utilização de uma cave como armazém ou arrecadação se reporta à actividade de estabelecimentos comerciais ou industriais existentes no prédio, há que interpretar o título constitutivo da propriedade horizontal como significando que a fracção A se destinava a ser utilizada como armazém de um estabelecimento existente no edifício.
Mas sabendo-se que as restantes fracções do edifício foram destinadas a habitação e que inexiste qualquer estabelecimento (comercial ou industrial) instalado numa dessas fracções (ou mesmo em partes comuns do edifício), tal destinação da fracção A como armazém não poderia deixar de trazer implícita a possibilidade de se reportar igualmente ao estabelecimento a quem pertence esse armazém.
Repare-se que, tendo a vistoria apurado que a cave “é preenchida por uma ampla ocupação, destinada a um armazém”, contendo à retaguarda uma “zona destinada à habitação do guarda do mesmo armazém”, com três divisões assoalhadas e acesso ao exterior distinto do acesso do armazém, e não tendo sido individualizada tal “casa do guarda” como mais uma fracção autónoma, apesar da sua vocação habitacional, também não foi essa vocação levada ao título constitutivo, no que respeita ao destino a dar à fracção A, que ficou apenas referido que era o de armazém. O que equivale a afirmar que a mera referência a armazém não pode ser entendida no seu sentido restrito e literal, antes tendo a potencialidade de abranger um tipo de utilização onde se integrasse a possibilidade de utilizar as divisões da referida “habitação do guarda” (ou seja, não só as divisões assoalhadas mas a correspondente instalação sanitária e de cozinha, como é próprio de qualquer habitação) em conjunto com o armazém.
Dito de outra forma, qualquer destinatário das declarações negociais constantes da escritura de constituição da propriedade horizontal (o que é o mesmo que dizer, qualquer futuro condómino), colocado na posição concreta desses futuros condóminos, interpretaria tais declarações como significando que o destino da fracção A comportava a actividade de um estabelecimento que pudesse ser instalado na fracção A., e no âmbito do qual decorresse a utilização da fracção A como armazém, mas não excluindo toda a restante actividade desenvolvida por esse estabelecimento, na medida em que tivesse autorização camarária para tanto.
O que é o mesmo que dizer que toda a actividade de natureza industrial, a par de actividades comerciais que, pela sua própria natureza, se apresentassem como incompatíveis com a utilização habitacional das restantes fracções (designadamente por estar em causa a produção de ruído, fumos, cheiros ou resíduos, a perturbação do sossego e do descanso dos habitantes das fracções, ou a perturbação da circulação viária envolvente na sua dimensão residencial) já não estaria compreendida no destino a dar à fracção A.
Encontrado assim o referido critério económico e o significado corrente da escritura de 25/2/1987, no que respeita ao uso da fracção A, alcança-se igualmente que foi essa utilização que foi sendo dada à mesma até 2020.
Com efeito, está demonstrado que, para além da utilização da fracção A como armazém, a mesma foi igualmente utilizada como escritório, desde 1988 até 2020, e sem que os restantes condóminos hajam manifestado qualquer oposição a essa utilização. E está demonstrado que essa oposição só surge em 2020 porque a sociedade comercial que a utilizava como escritório e como armazém pretendeu que do título constitutivo da propriedade horizontal passasse a constar que a fracção A se destinava a escritório, uma vez que a pretendia vender. Todavia, os restantes condóminos só aceitavam essa alteração sob condição de lhes ser entregue a quantia de € 60.000,00.
Foi essa mesma oposição que os AA. vieram exercitar no âmbito da presente acção, pretendendo que os RR., compradores da fracção A. e que instalaram na mesma um escritório de advogados, cessem tal utilização, porque literalmente desconforme ao destino de armazém que ficou a constar da escritura de 25/2/1987.
Analisando a situação pelo ângulo oposto, a actuação dos AA. tem a aparência da conformidade com o teor da escritura de 25/2/1987, dado que resulta da al. c) do nº 2 do art.º 1422º do Código Civil que é especialmente vedado aos RR. dar à fracção A uso diverso do fim a que é destinada, e na medida em que na escritura em questão ficou a constar que todas as fracções se destinam a habitação, com excepção da fracção A, que se destina a armazém.
Assim, e para que o exercício do correspondente direito dos AA. a obter uma decisão judicial que condene os RR. a absterem-se de terem um escritório de advogados instalado na fracção A se apresente como ilegítimo (ou abusivo, se se preferir), torna-se necessário que se possa afirmar que exorbita do fim que lhe está ínsito, indo manifestamente além da razão de ser do mesmo.
Dito de outra forma, porque o que está em causa é o poder que assiste aos AA., enquanto condóminos, de impedir que os RR. instalem na fracção A um escritório de advogados, o exercício desse poder não deve ser admitido na medida em que se apure que tal exercício coloca em causa os princípios que presidiram à estipulação do uso da fracção A como armazém.
Numa outra formulação, trata-se de constatar que, apesar de no título constitutivo da propriedade horizontal constar que a fracção A está destinada a armazém, a forma como todos os condóminos (incluindo os AA.) se posicionaram relativamente à interpretação dada a essa estipulação, admitindo que pudesse ser igualmente utilizada como escritório pelo titular do estabelecimento de armazém, gerou em cada um dos subsequentes condóminos da fracção A (incluindo os RR.) a expectativa de que tal utilização podia ter lugar. Tal investimento de confiança na utilização da fracção A como escritório sai reforçado pela circunstância de os restantes condóminos terem colocado, como condição para que no título constitutivo pudesse ser formalizada essa utilização de facto, tão só o recebimento de uma contrapartida monetária.
Repare-se que, por si só, não se verifica qualquer impedimento a que os restantes condóminos (onde os AA. estão incluídos) aprovem a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal a troco de uma quantia em dinheiro, desde logo atenta a natureza negocial de tal título.
O que já escapa à finalidade ínsita à necessidade de obter a concordância de todos os condóminos para a alteração das “regras de convivência” constantes do título constitutivo da propriedade horizontal, (e que mais não é que a conciliação dos interesses de todos os condóminos, a par da protecção da essencialidade dos direitos de cada um, enquanto proprietário singular) é a circunstância de tal contrapartida monetária não se apresentar como sinalagma de uma qualquer compressão/diminuição dos direitos de cada um dos restantes condóminos, desde logo porque a situação futura (a existência de um escritório de advogados instalado na fracção A) não é substancialmente distinta da situação passada (a existência de um armazém e escritório instalado na fracção A), em termos de permitir afirmar tal compressão/diminuição.
Dito de forma mais simples, a contrapartida monetária visada representa um puro acréscimo patrimonial à custa do património do condómino da fracção A, não se apresentando como “moeda de troca” de qualquer alteração na forma como se vêm processando as relações de interdependência e de vizinhança entre todos os condóminos, e no âmbito das quais a fracção A veio sendo utilizada como escritório desde 1988, sem que os demais condóminos se tenham oposto a tal uso, como agora fazem os AA. (que se compreendem nesse universo dos demais condóminos).
Ou seja, a conduta anterior dos AA., quando colocados perante o título constitutivo da propriedade horizontal e perante a utilização da fracção A como escritório (para além de armazém), não manifestando qualquer oposição a que o destino que no título constitutivo é dado à fracção A pudesse incluir tal utilização como escritório, mostra-se apta a criar em cada um dos subsequentes condóminos (da fracção A) a convicção que não seria feita qualquer oposição a que aí estivesse instalado um escritório, designadamente um escritório de advogados que, pelas suas características concretas, respeita as condicionantes atrás referidas (a não produção de ruído, fumos, cheiros ou resíduos, a não perturbação do sossego e do descanso dos habitantes das fracções, ou a não perturbação da circulação viária envolvente na sua dimensão residencial).
Aliás, essa situação de confiança expressa-se na circunstância de a anterior sociedade, já no âmbito do processo negocial com vista à venda da fracção A aos RR., ter informado os restantes condóminos que não seria necessário proceder à alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, no sentido de passar a constar do mesmo a utilização da fracção A como escritório, depois de lhe ter sido pedida a referida contrapartida monetária (€ 60.000,00), quando é certo que também os RR. (mais correctamente, o 1º R.) tinham a intenção de utilizar a mesma como escritório (de advogados), tal como comunicaram à administração do condomínio, menos de 15 dias depois da compra da fracção A.
E como é tal situação de confiança que é frustrada pelos AA., quando anunciam (através da administração do condomínio) não ser “pelo menos, por agora, lícito afectar o espaço a fim diferente” (tal como tinham anunciado ao anterior proprietário, depois de já terem conhecimento da intenção de venda e a menos de 15 dias da concretização da mesma), sem outra razão que não fosse a obtenção de uma contrapartida monetária, é de concluir que se apresenta como ilegítimo o subsequente exercício do direito à obtenção de uma decisão judicial que condene os RR. a não utilizar a fracção como escritório de advogados, porque mais não representa que a prossecução de um interesse que exorbita manifestamente do fim próprio da limitação contida na al. c) do nº 2 do art.º 1422º do Código Civil.
Dito de forma mais simples, nos termos do disposto no art.º 334º do Código Civil há que considerar abusivo o exercício do direito dos AA., com a consequente impossibilidade de os AA. obterem o efeito pretendido com o exercício de tal direito. O que equivale a afirmar a procedência das conclusões do recurso, quanto a esta questão, sendo de revogar a sentença recorrida e havendo que concluir pela absolvição dos RR. dos pedidos formulados pelos AA., em razão da procedência desta excepção peremptória do abuso de direito.
***
DECISÃO
Em face do exposto julga-se procedente o recurso e revoga-se a sentença recorrida, que se substitui por esta outra decisão em que se absolvem os RR. dos pedidos.
As custas da acção e do recurso são suportadas pelos AA.

9 de Outubro de 2025
António Moreira
João Paulo Raposo
Teresa Bravo