Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
INCÊNDIO
PERDA DO IMÓVEL
SOCIEDADE COMERCIAL
LIQUIDAÇÃO
SUBSTITUIÇÃO
Sumário
I\ O art. 1044 do CC consagra uma presunção de culpa correspondente à do art. 799/1 do CC, pelo que é ao arrendatário que cabe provar que a perda, total ou parcial, do imóvel, devido a incêndio, lhe não é imputável. E não o fazendo responde pelas consequências do mesmo perante o senhorio. II\ A indemnização do valor da reparação pode trazer um enriquecimento ao senhorio (grosso modo: por colocar o velho em estado de novo) a compensar com a indemnização, mas não se provou nada que indique que tal enriquecimento seja superior aos 20% já descontados pela sentença recorrida. III\ É manifesta a improcedência de um recurso, quando o autor pretende o aumento da condenação de um fiador, deixando transitar a condenação da arrendatária num valor inferior; isto por força da acessoriedade da fiança. IV\ Uma sociedade, depois de registada a liquidação, é substituída pela “generalidade dos sócios” (o que é diferente de ser representada por essa generalidade).
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
A 15/03/2021, AAintentou contra (1) Generali – Companhia de Seguros, S.A., (2) Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., (3) BB e (4) Tempo de diversão – Unipessoal, Lda, uma acção comum, fazendo, depois de um convite ao aperfeiçoamento da petição e de um articulado superveniente, os seguintes pedidos (ampliados fase à primeira petição, que ocupam 10 páginas) que se traduzem, no que ainda importa e em síntese, em que a 1.ª ré seja condenada a (a) pagar-lhe 180.619,35€ (= 146.845€ + IVA) necessários para proceder à reparação dos danos sofridos numa fracção do autor, ou a proceder a essa reparação, (b) a pagar-lhe todas as rendas de 6500€ mensais que deixou de auferir por não poder arrendar a fracção desde a citação até ao pagamento da indemnização pedida em (a) ou até que a fracção se encontre no mesmo estado e condições em que se encontrava imediatamente antes da ocorrência do incêndio; e (c) uma quantia nunca inferior a 8.000€, a título de indemnização por danos não patrimoniais; ou, subsidiariamente, que seja a 2.ª ré a condenada, nos mesmos termos; e assim sucessivamente quanto ao 3.º réu e depois quanto à 4.ª ré. Alega para o efeito, em síntese, quanto à 1.ª ré, um contrato de seguro celebrado com ela cobrindo o risco do incêndio que provocou os danos cuja indemnização pede e, quanto aos outros réus, o facto de 4.ª ré ser arrendatária da fracção e ser obrigada a restitui-la no estado em que a recebeu já que entretanto a 4.ª resolveu o contrato de arrendamento, o facto de o 3.º réu ser fiador da 4.ª ré e o facto de a 2.ª ré ser seguradora da responsabilidade civil da 4.ª ré.
Os réus contestaram. O 3.º réu e a 4.º ré impugnaram - numa contestação com 95 páginas e 445 artigos, tendo a PI 27 páginas -, a maior parte dos factos e os documentos apresentados e excepcionaram uma infinidade de razões para não deverem ser condenados e, para, eventualmente, o dever ser a 2.ª ré em vez da 4.ª ré devido ao seguro. E ainda reconvieram e pediram a condenação do autor como litigante de má-fé. Terminaram com 5 páginas de pedidos. O autor replicou, impugnando os factos alegados pelos réus e os efeitos de direito que eles pretendem retirar dos factos. E depois, a convite do tribunal, apresentou resposta às excepções deduzidas pelos réus, impugnando os factos base das mesmas. Ainda arguiu a litigância de má fé do 3.º e da 4.ª ré.
Como se disse acima, o autor apresentou a 19/04/2022, a convite do tribunal, uma nova petição, com reformulação dos pedidos (antes todos os pedidos eram deduzidos contra todos os réus ao mesmo tempo) e ampliação do valor do 1.º pedido (a), a que todos os réus se opuseram, dizendo a 1.ª ré, entre o mais, que “o autor alterou o pedido, separando os pedidos de condenação dos vários réus, por repetição e com um critério de subsidiariedade cujo fundamento a ré não consegue alcançar.”
Por despacho de 06/10/2022, a ampliação do pedido não foi admitida.
No despacho saneador de 30/11/2022 foi julgada procedente a excepção da ilegitimidade da 2.ª ré e esta ré foi absolvida da instância. A reconvenção não foi admitida.
Naquele mesmo dia (30/11/2022), o autor apresentou um articulado superveniente com ampliação do pedido da petição aperfeiçoada.
A 15/12/2022, o autor recorreu para o TRL quanto à não admissão da ampliação do pedido de 19/04/2022 e quanto à absolvição da instância da 2.ª ré de 30/11/2022.
Por acórdão de 09/03/2023, o TRL admitiu a ampliação do pedido de 19/04/2022 e confirmou a absolvição da instância da 2.ª ré.
A 26/05/2023, foi admitida a ampliação do pedido de 30/11/2022.
A 11/09/2023, um alegado mandatário da ré informou os autos que em Maio de 2023 procedeu-se ao encerramento e dissolução da sociedade, conforme acta que junta sob doc.1, o que foi objecto do devido registo comercial, sob ap. 4/20230528, conforme certidão permanente que junta sob doc.2. E acrescentou: dispõe a este respeito o art. 162/1 do CSC que “As acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163.º, n.ºs 2, 4 e 5, e 164.º, n.ºs 2 e 5.” Especifica, ainda, o nº 2 que, nestes casos, a instância não se suspende, nem se mostra necessário habilitação. É, de resto, este o entendimento que tem sido acolhido pelos tribunais superiores (ver acórdãos do TRL de 11/07/2019, proc. 9148/10.2YIPRT-C.L1-2, e de 11/02/2021, proc. 2538/15.6T8PDL-B.L1-2). Atento o teor da certidão permanente é possível constatar que aquando da dissolução da 4.ª ré a sua única sócia e gerente era CC. Pelo que, não pode deixar de se considerar que esta, assume, de ora em diante, a qualidade processual de ré, enquanto representante da extinta 4.ª ré. Pelo que, requer que seja deferida a substituição da 4.ª ré por CC, assumindo, de ora em diante, a qualidade de ré.
A 14/12/2023, a foi proferido o seguinte despacho, que se transcreve na parte que importa:
Dissolução da 4.ª ré:
Antes de mais, deverá o mandatário [da 4.ª ré] juntar procuração que o habilite a intervir nos autos representando CC.
Por despacho de 05/02/2024, foi decidido o seguinte:
Considerando a extinção da 4.ª ré, a sua representação cabe nos termos do disposto no art.162 do CSC e de acordo com a certidão do registo junta aos autos a CC.
*
Considerando que o mandatário [da 4.ª ré] não juntou procuração, os requerimentos que este fez em representação da sociedade e da sua representante não serão considerados, uma vez que quanto à primeira os seus poderes de representação cessaram.
*
Nada obsta ao prosseguimento dos autos, sendo que o julgamento se mantém. A representante da ré deverá ser ouvida e convocada como parte para prestar o seu depoimento e não como testemunha.
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença com a seguinte decisão que se passa a transcrever:
[…] decide julgar a presente acção parcialmente procedente por provada e, consequentemente:
- absolver a 1.ª ré de todos os pedidos (principais e subsidiários) contra esta formulados;
- declarar extinta a instância por inutilidade em relação aos pedidos principais formulados contra a 4.ª ré [estes pedidos não foram transcritos acima por isso mesmo, isto é, por terem sido julgados extintos, nada tendo a ver com todos os pedidos transcritos - TRL];
- conhecer dos pedidos subsidiários formulados contra as ré TD e réu BB e, consequentemente, condenar este, solidariamente, a pagar ao autor 40.848€, acrescidos de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento;
- absolver estes réus de todos os restantes pedidos.
Custas pelo autor e réus TD e BB, na proporção do decaimento que se fixa em 4/5 para o autor e 1/5 para os réus [esta parte da decisão foi acrescentada depois da reclamação contra a omissão - TRL]. O autor recorre desta sentença – para que este TRL altere o valor da condenação de que o 3.º réu foi objecto, condenando-o agora a pagar (a) 146.845€ mais IVA à taxa legal, o que perfaz 180.619,35€, acrescidos de juros, à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento; e (b) 6.500€ mensais e sucessivos desde a citação e até à data do pagamento efectivo dos 180.619,35€ - impugnando a decisão da matéria de facto e depois concluindo, com base nos factos que pretende alterar e aditar, que a condenação do 3.º réu devia ter sido maior.
O 3.º e, aparentemente, a 4.ª ré também recorreram da sentença, também impugnando a decisão da matéria de facto e pondo em causa a sua condenação; reclamaram ao mesmo tempo contra a omissão de condenação em custas.
Já neste TRL o alegado mandatário da 4.ª ré foi notificado para apresentar, em 10 dias, procuração a sua favor passada pela liquidatária da sociedade (CC), em representação da “generalidade dos sócios”, com ratificação do processado, sob pena de o recurso interposto em nome da 4.ª ré não ser conhecido na parte que lhe diz respeito. No prazo em causa nada foi junto, pelo que o recurso, do 3.º réu e da 4.ª ré, na parte que diz respeito a esta, não pode ser conhecido, já que se tem de considerar sem efeito o acto praticado por tal mandatário nessa parte (art. 48/2 do CPC). Daí que, se passa a falar, daqui para a frente, na parte referente ao recurso dos réus, só do recurso do 3.º réu.
*
Registe-se que o autor interpôs o recurso como se fosse uma contestação, sem notificar o 3.º réu e a 4.ª ré.
Entretanto a sentença foi rectificada por ter sido omissa quanto a custas e o autor apresentou novas alegações do recurso, exactamente iguais quanto às antigas, apenas com o acrescento de uma conclusão respeitante à, segundo ele, indevida condenação do autor nas custas porque o pedido devia ser considerado procedente nos termos do recurso, e desta vez notificou todos os réus.
O 3.º réu e a 4.ª ré não contra-alegaram.
*
O autor não contra-alegou no recurso dos réus apesar de lhe ter sido devidamente notificado.
* Questões que importa decidir: se deve ser alterada a decisão da matéria de facto; se a condenação do 3.º réu deve ser aumentada; se o 3.º réu não devia ter sido condenado.
* Dos factos(não se transcrevem os factos relativos à 1.ª ré, ao seguro celebrado com a 1.ª ré e aos outros pedidos contra a 4.ª – factos c\, d\, aa\, bb\, cc\, ee\, ff\, gg\, hh\ e ii\ -, por 1.ª ré ter sido absolvida já com trânsito em julgado e os outros pedidos com a 4.ª ré ter sido julgados extintos com trânsito em julgado; o facto dd\ tem uma rasura resultante do decidido na impugnação da matéria de facto, mais à frente).
a\ O autor é o proprietário da fracção autónoma designada pela letra A - destinada a estabelecimento comercial (loja) que corresponde ao rés-do-chão esquerdo e cave e tem como número de polícia o n.º x, da Rua C, em Lisboa - do edifício constituído em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob a ficha n.º 00/19851011-A, freguesia y e actualmente inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 000 da freguesia w. Para o edifício foi emitida a licença de utilização n.º 000, pela Câmara Municipal de Lisboa em 1967.
b\ A fracção chegou à propriedade do autor através de escritura pública de doação a seu favor efectuada por sua mãe tendo tal título sido registado na CRP através da ap. 0000 de 2015/12/28.
e\ Em 23/06/2010, a então proprietária da fracção realizou com a Provapalco – Actividades Hoteleiras, Lda., contrato de arrendamento para comércio, com fiança, com início em 01/07/2010 e termo a 30/06/2020, que consta de fl. 24, cujo o teor se dá por integralmente reproduzido, tendo sido outorgantes do mesmo, a referida proprietária, na qualidade de senhoria, e CC, na qualidade de gerente com poderes para o acto da Provapalco, e BB, na qualidade de fiador solidário e principal pagador.
f\ Em 30/01/2015 a Provapalco trespassou o negócio (onde se incluiu a fracção arrendada) à 4.ª ré.
g\ O contrato de arrendamento, com fiança, mencionado em e\ foi revogado por acordo das partes em 11/07/2019, com efeitos reportados a 30/06/2019.
h\ No dia 11/07/2019, o autor celebrou com a 4.ª ré contrato de arrendamento para comércio, com fiança, reportando-se o seu início a 01/07/2019 e termo em 30/06/2029, nos termos que constam de fl. 34 destes autos, cujo o teor se dá por integralmente reproduzido, no qual foram outorgantes ele, na qualidade de senhorio, e CC, na qualidade de gerente com poderes para o acto da 4.ª ré e BB, na qualidade de fiador solidário e principal pagador.
i\ A renda convencionada nos primeiros 12 meses de vigência do referido contrato foi de 6.000€ mensais e a partir daí a renda convencionada foi de 6.500€ mensais (cláusula 13ª), tendo o arrendamento sido celebrado por 10 anos (cláusula 12ª), ficando a inquilina autorizada a proceder a obras de adaptação do locado à sua actividade comercial, sendo que, realizadas as obras, passam de imediato a fazer parte integrante da fracção, não podendo a inquilina reclamar qualquer indemnização (cláusula 10ª)
j\ A anterior inquilina Provapalco realizou obras no arrendado tendo em vista aí desenvolver a actividade de bar nocturno com espaço de dança, o que de resto fez durante vários anos.
k\ A fracção arrendada está devidamente licenciada e autorizada pela Câmara Municipal de Lisboa, pelo menos desde 21/06/2013, sendo objecto do Alvará de Licença de Recinto n.º 000/UT/2013, tendo como denominação de estabelecimento P, com lotação para 95 pessoas, para bar nocturno.
l\ As obras realizadas na fracção, de que resultou a licença referida em k\ foram todas realizadas pela Provapalco.
m\ Depois de 21/06/2013, apenas foram efectuadas no locado obras de manutenção ou conservação.
n\ Quando o autor se tornou tomador do seguro em 30/06/2016, após a doação de sua mãe, a 1.ª ré procedeu à actualização da apólice em apreço, alterando menções, nomeadamente valor da cobertura base.
o\ Naquela ocasião, o autor informou a 1.ª ré que a fracção objecto da apólice em apreço se encontrava arrendada fazendo-se constar como a actividade desenvolvida: “Pubs”.
p\ No dia 17/05/2020 ocorreu um incêndio na fracção o que o autor participou à 1.ª ré.
q\ Após a análise do processo (Proc. n.º 202000000, da 1.ª ré) a 1.ª ré propôs pagar (em 02/10/2020) ao autor, 1.995€ como indemnização pelos estragos ocorridos na fracção objecto de sinistro (incêndio) e para reparação dos mesmos, que o autor não aceitou.
r\ Decorrente do sinistro (incêndio) a fracção ficou, no seu interior, com os estragos seguintes:
- Todos os tectos em pladur queimados / destruídos e respectiva estrutura metálica igualmente queimada / destruída;
- Todas as paredes da fracção ficaram negras e com rachas nalguns locais, a precisarem de limpeza, recuperação e pintura;
- Toda a “parte” eléctrica (electricidade) destruída e obsoleta, porque queimada em toda a extensão da fracção, designadamente quadros eléctricos, fios eléctricos, tomadas eléctricas, armaduras de iluminação, circuitos de tomadas e diferenciais, enfiamentos, disjuntores focos de iluminação, sistema eléctrico de luzes e iluminação próprias de um bar / pub.
- Parte do chão da fracção a precisar de ser reparado uma vez que está rachado, nalgumas partes e com mazelas e riscos;
- Em estado sujo.
s\ Para remoção de escombros será necessário um valor de 2.370€ (valor apurado em 2020).
t\ No que respeita a paredes, tectos e chão, importará um valor de desmontagem de tectos e paredes em pladur de 1.700€, um valor de reparação de tectos de 11.400€, de reparação de paredes de 17.390€, de revestimento de pavimento de 4.300€, de soalho de 240€, de substituição de portas de 2.040€, da porta de entrada de 1.520€ e de reparação da instalação eléctrica de 10.100€, tudo num montante de 48.690€.
u\ Por carta registada datada de 30/10/2020 mas que o autor só recebeu em 03/11/2020, a 4.ª ré procedeu à resolução unilateral do contrato de arrendamento para comércio, com fiança e fez juntar à sua missiva as chaves do locado.
v\ A 4.ª ré obrigou-se nos termos do contrato de arrendamento para comércio, com fiança, na sua cláusula 6.ª, a: a\ conservar em bom estado, as canalizações de água, esgotos, bombas elevatórias, bombas trituradoras; luz e respectivos acessórios, pagando à sua conta as reparações relativas a danificação e manutenção; b) manter em bom estado as paredes, soalhos e vidros; c\ a inquilina obriga-se a fazer todos os seguros que à actividade diga respeito, nomeadamente incêndio e responsabilidade civil.
w\ e também, nos termos da cláusula 7.ª: “Todas as obras indispensáveis à conservação e limpeza dos interiores do arrendado ficam a cargo da inquilina.”
x\ O 3.º réu, no contrato de arrendamento para comercio, com fiança, constituiu-se, a título pessoal, e solidariamente, com a plenitude e nos termos legais, fiador solidário e principal pagador de todas e quaisquer obrigações da arrendatária, resultante do susodito contrato e durante toda a subsistência do mesmo, o que o autor aceitou.
y\ Desde o incêndio, não foram efectuadas quaisquer reparações na fracção.
z\ Todos estes acontecimentos e factos incomodaram e preocuparam o autor.
dd\ O incêndio teve início em acto voluntário de pessoa não identificada, com acesso ao interior do estabelecimento, que terá derramado gasóleo e provocado combustão, não teve origem em qualquer anomalia eléctrica e ocorreu enquanto o estabelecimento se encontrava encerrado no âmbito da execução das medidas governamentais de combate à pandemia causada pela doença SARS-Cov-19, encontrando-se este sem corrente eléctrica.
jj\ Quando foi celebrado o contrato de arredamento com a Provapalco, a fracção estava sem chão, electricidade e casas de banho, era um imóvel que se encontrava inutilizado, com materiais degradados e isolamentos acústicos deteriorados, repleto de baratas, provenientes do ineficaz sistema de esgotos, pelo que a arrendatária procedeu a uma intervenção profunda de construção civil ao nível das infra-estruturas (água e esgotos, electricidade, iluminação, detecção e extinção de incêndio, ar condicionado, etc.), bem como de toda a envolvente (paredes, pisos e tectos).
kk\ Foi ainda criado um isolamento acústico em toda a periferia das paredes e tecto do Piso 0, de modo a que o ruído aéreo não afectasse a vizinhança, comprovado pela posterior avaliação acústica favorável, e quanto a acabamentos os pisos foram nivelados e ladrilhados a moisaico cerâmico e foram colocados portas e armários, bem como instalações sanitárias completamente novas e uma plataforma elevatória.
ll\ Foram também pela 4.ª ré executadas paredes e tectos em gesso cartonado com interior plenamente isolado acusticamente, e a entrada do estabelecimento com nova caixilharia e vidros espelhados.
mm\ os espaços “Bares e Discotecas”, à data da propositura da acção, encontravam-se encerrados, sendo-lhes vedado o funcionamento e abertura ao público, desde Março de 2020.
* Da impugnação da decisão da matéria de facto O 3.º réu impugna esta decisão com a seguinte fundamentação:
2\ Para efeitos de enquadramento factual, deu o tribunal como assente em particular o seguinte conspecto fáctico: dd\ […]
3\ Mal andou o tribunal, ao decidir que, por força e em virtude do facto provado dd\ a ré, embora afastando a sua responsabilidade, não cumpriu o ónus de prova que lhe recaia de afastar a responsabilidade de terceiros a quem tenha permitido a utilização dela [da fracção - TRL].
4\ A prova junta ao processo e produzida ao longo do mesmo – em particular os depoimentos das testemunhas PS e CC, conjugados com o relatório pericial -, é bastante no sentido de afastar qualquer responsabilidade da ré e de terceiros a quem esta tenha permitido a sua utilização e assim se ter por verificado o cumprimento do ónus da prova pela ré. Vejamos,
5\ Ainda que se admita que o incêndio tenha tido início em acto voluntário de pessoa não identificada,
6\ Do depoimento da testemunha PS, que confirmou a autoria do relatório pericial, permite-se, a final, concluir, a este respeito, que o acesso ao espaço comercial teria de ter sido por quem detivesse acesso – com uma chave – ao mesmo: “Para além das conclusões, no que ao incêndio reporta, será de salientar a não existência de sinais de arrombamento na fechadura da porta de acesso principal que delimitava o acesso ao espaço, para além das marcas de arrombamento, contemporâneas com acção de abertura da mesma por parte das equipas de Bombeiros, conforme o corroborado pelo testemunho policial, não sendo visíveis quaisquer outras marcas/indicadores, o que nos permitiu liminarmente excluir, o seu arrombamento prévio aos factos acima expendidos. Relativamente à probabilidade de arrombamento prévio ao incêndio do canhão da fechadura (tipo chave “por pontos”), o mesmo não apresentava indícios de qualquer acção mecânica resultante de acção similar.”
7\ Não obstante parte de a informação estar vertida no relatório pericial elaborado pela testemunha PS, certo é que este expressou no seu depoimento um conjunto de factos, como se de verdades insofismáveis se tratassem, que impõem uma reposição da verdade e reponderação do tribunal, porque existem documentos que demonstram precisamente o contrário.
8\ Relatou e concluiu a testemunha, em sede de relatório pericial, de que os únicos acessos ao estabelecimento comercial em causa nos presentes autos, seriam a porta principal de entrada e um alçapão que se encontrava em pleno salão principal:
Depoimento da Testemunha PS
Mandatário das RR.
[00:12:59] Relativamente à questão, do relatório de peritagem, foi também concluído com algum grau de certeza a questão do acesso. Constataram que havia um arrombamento da porta da parte dos bombeiros, comprovado pelos próprios agentes da PSP, de alguma forma também pelos bombeiros e não foi posto em causa. Como e em que circunstâncias há esse grau de certeza atendendo até ao número de pessoa que identificaram serem titulares da chave que consta do relato, como foi possível determinar que eventualmente não haveria sinais seguros ou marcas ou no limite abrir uma hipótese, um campo de hipótese, de existirem sinais ou de arrombamento ou de acesso de terceiros em momento prévio...
PS [00:13:48] Isso consta dos autos das autoridades. Portanto, quando nós fazemos a elaboração do relatório, e mais uma vez as respostas do perito patrimonial, faz o (...) O que consta e o que obtive das diligencias que fiz e tendo, penso e vou ver muito sincero, Meritíssima, não tenho agora em mente, mas eu penso que sim, que esteja num relatório dos bombeiros a própria indicação ou no relatório da PSP deve estar. Quando existe um arrombamento para fazer o combate ao incêndio em que a porta estava fechada. Automaticamente, a porta estando fechada, existe sempre uma autorização prévia das autoridades junto dos bombeiros para fazer o acesso ao estabelecimento e fazer o combate ao incêndio.”
Mandatário dos réus: [00:14:45] “Sim, sim, ou seja, eu não coloco em causa ... o que está a dizer, está provado e tem razão, ou seja ... Houve uma ordem por parte da PSP aos bombeiros para que arrombassem a porta para entrar (...) mas a questão é, é afirmado no relatório, é concluído no relatório de que as marcas de arrombamento na porta são compatíveis com a acção de arrombamento da parte dos bombeiros, mas já não é considerado como sequer uma hipótese que eventualmente a porta não teria sido de objecto de uma qualquer abertura por parte de quem quer que fosse de momento anterior.”
PS [00:15:20] “Mas antes disso os próprios, os próprios agentes que estiveram no local mesmo aqueles que fizeram essa diligência é que perceberam se existe um arrombamento prévio ou não. Até porque depois isso tem de constar no respectivo auto e se existir arrombamento significa que houve um acto deliberado ou, digamos assim, um acto de vandalismo que acederam ao interior e que provocaram aquele dano, eu posso-lhe dar inúmeros casos que não vêm para aqui chamados situações que nós sabemos,... que são comunicadas nos órgãos de comunicação social. O que é que acontece nessa situação? Ok, as autoridades chegaram ao local, a porta está (...).”
Tribunal [00:15:58] “Se houvesse algum vestígio de arrombamento prévio, os bombeiros e a PSP, mesmo que a porta estivesse fechada, percebiam e consignariam isso no relatório?”
PS [00:16:09] “Claro.”
Mandatário dos réus [00:16:20] “Repare, no relatório, também... não tanto dos bombeiros, mais no da PSP, está dito que há um conjunto de circunstâncias que se conseguiram apurar relativamente à causa, aos danos, e à razão do dano, há um conjunto de circunstâncias que efectivamente vocês foram... Eu percebo a razão de ciência...”
PS [00:16:45] “Com todo o respeito pelas autoridades, com todo o respeito pelas autoridades, cada pessoa tem a sua mais valência de cariz profissional. Um agente da PSP, com todo o respeito pelas autoridades, um agente da PSP não tem mais valência para perceber a avaliação de um foco do incêndio. (...). Comecei a trabalhar em incêndios desde os 22. Posso-lhe dizer taxativamente que esta é a realidade. Ao indicar e até a abordagem deles no auto, referem que é um alegado curto-circuito. Portanto, se nós formos ver tecnicamente em todos os incêndios, 99,999% os agentes da PSP que chegam lá é curto-circuito (...). Eles calhem de dizer algo e pode ser. Por isso, foi a razão pela qual nós, peritos avaliadores, sentimos a necessidade de termos perante uma análise ao local (...).”
Mandatário dos réus [00:17:57] “A questão, lá está... Por um lado, há um aceitar da fé pública, que decorre de um auto da PSP onde diz que “coincide de fortes indícios que o fogo provinha...” - e estou a ler textualmente o auto - “provinha do interior do local com o meu consentimento para o efeito partiu-se o seu vidro e houve necessidade.“ Se houvesse um arrombamento, se houvesse isto, tinha de consignar, por outro lado o que ficou consignado e depois verificou-se que isso não correspondia à verdade. Relativamente ao dano propriamente dito... Foi também refeita a sua nota no relatório pericial relativamente a quem era portador das chaves, essa informação veio como?
PS [00:18:56] Através da oposição do relatório para a empresa (...).
9\ E, neste sentido, não tendo sido encontrados quaisquer vestígios de arrombamento, em qualquer um destes acessos, mostra-se crível, lógico e credível concluir que o acesso ao estabelecimento só poderia ter sido efectuado por quem tivesse uma chave de acesso.
10\ Todavia, é possível constatar, na planta de emergência, elaborado pelo Eng. DD, aceite e carimbado pela Autoridade Nacional de Protecção Civil – sem a qual o estabelecimento não seria licenciado -, a existência de duas portas de emergência no estabelecimento comercial em que ocorreu o sinistro.
11\ Esta porta de emergência, que se situava ao lado da porta principal, na fachada do estabelecimento, era absolutamente necessária, para o próprio estabelecimento ser licenciado.
12\ Com efeito, a testemunha PS errou na análise do que verteu no seu relatório pericial e no seu depoimento – a par do relatório da empresa AMP e da própria Polícia Judiciária – pois não referiram em qualquer documento a existência de portas de emergência – de simples e fácil acesso – como outrossim, concluiu, quanto ao alegado acesso, que não houve qualquer arrombamento e, por esse motivo, teria de ter sido por alguém que fosse detentor de chave…
13\ Quando, em boa verdade, alguém - sem permissão de utilização do locado – pode facilmente ter acedido por esta porta, quer para entrar, quer para sair, sem ter de arrombar ou danificar a fechadura da porta principal… Tendo, da mesma forma, pleno acesso ao interior do estabelecimento.
14\ Levando a crer que a sua actuação se mostra não crível e no expresso intuito de alcançar um fundamento de exclusão da assunção de responsabilidade por parte da seguradora.
15\ Por sua vez, do depoimento da testemunha CC resultou que os terceiros com quem a ré partilhou a chave do locado ao longo dos dez anos – em que, reitere-se, nada aconteceu - apenas a utilizavam para fins específicos, previamente determinados e com o assentimento da ré.
Depoimento da testemunha CC
HC [00:11:24] “(...) Na verdade, desde 2011, que eu coloquei a caixilharia toda nova na loja, eu nunca mudei a fechadura, portanto, quem tem, tem as pessoas todas que eu informei na altura quando prestei o meu depoimento na polícia judiciária. Mais as para trás ... o caixilheiro, uma ou outra empresa de limpeza porque nós mudamos para aí umas três ou quatro vezes de empresa de limpeza (...)”.
Tribunal [00:11:50] “Não estou a falar ao longo do tempo. Estou a falar nesse momento, tinha a Senhora, já disse aqui duas pessoas que eram da sua confiança, o Sr. M e a D. A, mais...”.
HC [00:11:51] “Tinha eu, (...) [o Sr. M e a Sra. A] exactamente (...), tinha o moço encarregado das compras, o Sr. D, tinha a emprega de limpeza, (...)”.
Tribunal [00:12:00] “Então, mas este Senhor encarregado das compras... presumo que a casa estava fechada...”
HC [00:12:22] “Não, nessa altura não havia compras para receber, mas tinha a chave, quer dizer as chaves continuaram nas mãos das pessoas, eu não fui por causa disso (...)”.
Tribunal [00:12:40] “Também lá não foi a empregada da limpeza, mas tinha a chave...?”
HC [00:12:45] “Não, não, não. Tinha. Também teve a chave o Sr. ..., há um estabelecimento ao lado de onde era o P, também muitas vezes o meu colega M ia abrir a casa e às vezes para vir o DJ deixava a chave lá no senhor, o DJ vinha, pegava na chave e abria o estabelecimento, portanto (...)”.
Tribunal [00:12:56] “Mas isso era situações pontuais, era isso?”
HC [00:12:57] “Sim, exactamente.”
16\ O que é certo é que, in casu, apesar de não resultar provada a identidade do agente do facto originador do sinistro de incêndio, a 4.ª ré fez prova bastante de que não terá sido provocado por si nem por terceiros da sua confiança.
17\ É certo que algumas pessoas da confiança da ré, designadamente M, a responsável A, o funcionário responsável pelos stocks, o responsável pela segurança e a pessoa/empresa de limpeza, eram detentoras da chave do locado.
18\ Mas apenas o eram em razão do seu trabalho, da prestação de serviços concretos e acordados com a ré.
19\ Vários destes serviços foram prestados ao longos dos dez anos de funcionamento do estabelecimento comercial.
20\ No entanto, à data e em virtude do encerramento do locado e da situação de emergência - facto notório - que se vivia no País e que impedia, inclusivamente, quaisquer deslocações, tais serviços não foram levados a cabo.
21\ Não decorre de qualquer omissão dos deveres de vigilância da ré, já que ao longo de dez anos nunca qualquer situação referente a falta de segurança havia surgido.
22\ Os sistemas de segurança, os planos de incêndio e vigilância, os alarmes sempre estiveram prontos e aptos a assegurar potenciais situações.
23\ Em razão da verdade, e como o próprio tribunal a quo concebeu, trata-se aqui de um estabelecimento comercial explorado durante quase 10 anos, sempre cuidado e tratado com zelo devidos, como se demonstrou evidente pelas várias obras, instalações e restantes benfeitorias realizadas pelos locatários.
24\ Ora, o que não se pôde retirar da análise conjunta da prova – dos depoimentos das testemunhas supra e dos relatórios periciais junto aos autos – é que o incêndio tenha sido provocado por alguém da confiança do arrendatário com acesso ao interior do estabelecimento, que terá derramado gasóleo e provocado combustão ou que a ré não tenha feito prova contrária. Destarte,
25\ Em cumprimento do artigo 640 do CPC, atendendo ao depoimento das aqui testemunhas PS e CC conjugado com o relatório pericial da PJ e da seguradora, deve ser alterado o facto dd\.
26\ Ficando a constar o seguinte: “o Incêndio teve início em acto voluntário de pessoa não identificada, que terá derramado gasóleo e provocado combustão, não teve origem em qualquer anomalia eléctrica e ocorreu enquanto o estabelecimento se encontrava encerrado no âmbito da execução das medidas governamentais de combate à pandemia causada pela doença SARS-Cov-19, encontrando-se este sem corrente eléctrica.”
27\ Ademais, conjugados os excertos de gravação do depoimento da testemunha CC, tal como transcritos supra nos artigos 37 e 38, resultou provado, ainda, que algumas pessoas da confiança da ré, designadamente M, a responsável A, o funcionário responsável pelos stocks, o responsável pela segurança e a pessoa/empresa de limpeza, eram detentoras da chave do locado, em razão da prestação de serviços concretos e acordados.
28\ Estes serviços foram prestados ao longos dos dez anos de funcionamento do estabelecimento comercial.
29\ Não tendo, contudo, sido prestados à data, em virtude do encerramento do locado e da situação de emergência - facto notório - que se vivia no País e que impedia, inclusivamente, quaisquer deslocações.
30\ Pelo que se impõe, ainda, o aditamento à matéria de facto dada como provada o seguinte conspecto fáctico:
ee\ Algumas pessoas da confiança da ré eram detentoras da chave do locado, a quem os representantes da ré disponibilizaram a chave em razão da prestação de determinados serviços, nomeadamente, a responsável A, o funcionário responsável pelos stocks, o responsável pela segurança e a pessoa/empresa de limpeza.
ff\ Estes serviços não foram prestados em virtude do encerramento do locado e da situação de emergência que se vivia no país que impedia, inclusivamente, deslocações. Com interesse para a questão, a sentença recorrida tem as seguintes passagens da motivação da decisão de facto:
O tribunal teve em consideração […]
- o relatório de averiguação feito pelo gabinete de peritagens GEP que consta de fls. 493 [e segs - TRL] subscrito por PS que tem como anexo um relatório de peritagem técnica elaborado pela AMP que, na sua quase integralidade, confirma o que resulta do apurado pela PJ.
[…]
O depoimento de MS, inspectora da PJ, procedeu à investigação deste incêndio e subscreveu o relatório da PJ mencionado no inquérito foi determinante para que o tribunal entendesse as conclusões a que o MP chegou e que também são vertidas no relatório de averiguação da Fidelidade.
[…] a testemunha também referiu […] que não havia vestígios de entrada forçada no estabelecimento, pelo que é absolutamente lógica a conclusão de que teria de ter sido provocado por alguém com acesso ao estabelecimento, mas das pessoas que se apuraram que tinham, no âmbito do inquérito, não se conseguiu reunir indícios suficientes de quem seria ou se essa pessoa teria alguma ligação à arrendatária.
[…]
PS, perito avaliador na área de engenharia, presta serviços à Fidelidade desde 2017, na área de incêndios desde 2022, fez o relatório GEP e fez uma descrição do que viu, […]
Foi este perito que, a serviço da Fidelidade, no âmbito da realização das diligências que fez para descortinar a origem e as causas do referido incêndio […]
[…] referiu que nada apontava, ao contrário do que a experiência que na época teve, que fosse algo deliberadamente realizado para receber indemnização, na medida em que apurou que a situação financeira do segurado era à data bastante saudável.
[…]
CC […] mencionou […] várias pessoas que tinham a chave do locado para além dos seus empregados. Apreciação:
Como resulta da comparação da redacção do facto dd\ com a redacção proposta pelo réu, tudo o que estes pretendem, quanto a dd\, é que deixe de constar do facto dd\ que a pessoa que provocou o incêndio tinha acesso ao interior do estabelecimento.
O réu tem razão: o facto de a entrada principal não ter sinais de arrombamento, como diz o relatório da GEP junto a 16/04/2024, não quer dizer que o incêndio tenha sido provocado por alguém que tinha acesso ao interior do estabelecimento.
Desde logo porque as regras da experiência comum das coisas dizem que são inúmeras as pessoas que conseguem entrar em locais fechados através de modos de abertura de fechaduras sem uso das chaves respectivas, mesmo sem deixar rastos dessa abertura. E é mais provável que as pessoas que cometem actos ilícitos (atear um fogo) também tenham conhecimento daquelas formas de abrir as fechaduras.
Por outro lado, a fracção arrendada tinha outro acesso, que era um alçapão que existe no tecto, junto à cabine de som que dá acesso a um terraço de um outro apartamento. Ora, se o MP, no despacho de arquivamento junto aos autos a 12/06/2023, diz, em 25, que “o alçapão referido não era usado há bastante tempo face à quantidade de sujidade que apresentava”, já o que se diz no relatório da AMP que foi elaborado para a Fidelidade a 07/08/2020 e que está junto ao da GEP (no PE desde 16/04/2024) e que serviu de base a este (como o revela a utilização das mesmas exactas frases) e depois ao despacho do MP, foi que o interior desse alçapão “apresentava presença de poeiras e de teias de aranha, denotando um uso não frequente, conforme a imagem infra demonstra” (pág. 10 de 45 ou 66 de 446), o que de modo algum é suficiente para afastar a sua utilização desta vez.
Assim, a conclusão de que o incêndio foi provocado por alguém que tinha acesso ao interior do estabelecimento é pura especulação.
Para além disso, o tribunal não podia servir-se do que consta de um inquérito levado a cabo ao serviço da seguradora, ou pela PJ, ou de um despacho de arquivamento do MP baseado nos relatórios destes, pois que tudo isto é prova produzida sem contraditório e como tal não utilizável (art. 421 do CPC). Repare-se que os réus não foram parte em tais inquéritos e não puderam contrariar o que aí se diz ter visto e ouvido. E um inquérito levado a cabo ao serviço de uma seguradora, não tem qualquer garantia de imparcialidade e de objectividade. E o que é dito pelo autor do relatório do GEP e pela agente da PJ, na parte em que estão a transmitir o que apuraram através de prova que não podia ser utilizada, também não podia ser utilizado, pois que, senão, estaria a conseguir-se por esta via, aquilo que não podia obter-se por aquela. Sendo que ambos se basearam, como já foi dito, no que, antes deles, foi escrito pelo autor do relatório do AMP, que não foi chamado a depor e não se sabe o que é que de facto viu.
Por fim, esclareça-se que para a conclusão a que se chegou não se utilizou a argumentação do réu, que se refere a uma segunda porta, junto à principal (dizem, em 44: “Esta porta de emergência, que se situava ao lado da porta principal, na fachada do estabelecimento”). O réu diz que “é possível constatar, na planta de emergência, elaborado pelo Eng. DD, aceite e carimbado pela Autoridade Nacional de Protecção Civil – sem a qual o estabelecimento não seria licenciado -, a existência de duas portas de emergência no estabelecimento comercial em que ocorreu o sinistro.” O réu está a referir-se à planta junta como doc.1 do requerimento de 05/06/2024 (embora sem a localizarem devidamente). Dela não resultam duas portas como acessos alternativos, vendo-se apenas o desenho de 3 portas que estão juntas umas às outras. De resto a planta é de 2010 e não há nenhuma garantia de que a situação não tenha sido alterada. O réu não cita qualquer passagem do depoimento das testemunhas que se tenham pronunciado sobre esta outra porta e se ele queria invocar esta questão tinham que o ter feito (no recurso) e tinha que ter inquirido as testemunhas sobre o assunto (na audiência final).
Assim, embora não com base na argumentação do réu, dá-se procedência a esta impugnação, eliminando-se, do facto dd\, a parte impugnada.
Quanto à pretensão de aditar os factos que o réu indica como ee\ e ff\, a mesma é de indeferir por ser evidente a total ausência de relevo desses factos para as questões a decidir: o facto de as pessoas da confiança da ré detentores das chaves do estabelecimento não terem prestado serviço no período em causa não impedia, como é evidente, que elas, intencionalmente, se tivessem dirigido ao local para lhe pegar fogo.
* Do recurso sobre matéria de direito A sentença julga o pedido procedente quanto à arrendatária e ao fiador com base nas normas do art. 1044 do Código Civil, dizendo, nesta parte, o seguinte, que se transcreve com simplificações:
Após julgamento, ficou demonstrado que o incêndio decorreu de acto intencional de terceiro não identificado.
Não se demonstrou que este terceiro tivesse qualquer ligação à ré.
Estamos no âmbito da responsabilidade contratual, pelo que é com recurso às obrigações do arrendatário que há-de ser apurada a violação de dever contratual que possa fazer nascer a responsabilidade da ré. E tendo em conta a presunção de culpa prevista no art. 799 do CC.
Invoca o autor que a ré não restituiu o locado no estado em que o recebeu, decorrendo da violação dessa obrigação contratual o seu dever de indemnizar.
Independentemente das vicissitudes decorrentes da actividade comercial da ré e da sua gerente, não podemos deixar de considerar que o contrato que a ré celebrou com o autor, e o único que celebrou, é o de 2019.
O que interessa e releva é que a ré recebeu em 2019 o locado no estado em que este se encontrava, ou seja, com as obras feitas, apto a funcionar para o fim a que se destinava.
Não procede, assim, o argumento da ré de que o autor pretenderia receber o locado em melhores condições daquelas que entregou. Não, o autor tem direito a receber o locado no estado em que este se encontrava em 2019 quando celebrou o contrato com a ré, disso não há dúvidas.
Acresce que não é invocado, nem resulta da factualidade que tenha sido da iniciativa do autor a celebração de um novo contrato. A ré decidiu trespassar o estabelecimento porque quis, revogou de comum acordo o anterior contrato de arrendamento e celebrou um novo com as cláusulas nele inscritas porque também quis, não tendo sido invocada qualquer razão que possa justificar o afastamento da referida cláusula 10ª do primeiro contrato e a obrigação assumida pela ré no segundo de o entregar do estado de “boa conservação” em que o mesmo se encontrava.
É um facto que a ré quando resolveu o contrato e entregou o locado ao autor o fez nas condições que se constam dos factos r\.
Ou seja, não restituiu o locado no estado em que o recebeu (em 2019), ressalvas as deteriorações normais da sua utilização da actividade que exercia.
Dispõe o art.1043/1 do CC que, na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato. Para além do mais, nos termos do n.º 2, “Presume-se que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção, quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega.”, mas no caso dos autos não há dúvida: foi declarado no contrato.
O art. 1044 do CC dispõe que o “O locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não exceptuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela.”
Estão em causa deteriorações da coisa não correspondentes a utilização prudente, o que, no caso, aconteceu: o estado em que a fracção foi entregue é uma deterioração não excepcionada e pela qual o arrendatário responderá. Só não o fará se demonstrar que resultaram de causa que não lhe seja imputável. É a presunção de culpa (prevista no art. 799 para a responsabilidade contratual em geral) aqui também a surgir.
Concordamos com o acórdão do STJ de 15/02/2001 [só está publicado na CJSTJ2001, tomo 1, págs. 121-123; tem sumário no sítio do STJ - TRL], no qual se afirmou que “O que está em discussão na questão em apreço não é a responsabilidade objectiva, porque se não sabe qual foi a causa do incêndio, mas a de saber a quem incumbe o ónus de prova da causa de perda ou destruição. E, neste aspecto, a forma como se encontra redigido o art. 1044 aponta no sentido de que a regra é a responsabilização do inquilino, salvo se ele provar que a perda ou deterioração não resulta de causa que lhe seja imputável, nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização. E o princípio enunciado neste normativo segue de perto a orientação do art. 799 do CC, nos termos do qual incumbe ao devedor provar que o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua, porque se não fizer essa prova positiva de que não tem culpa, vigora o art. 798 que dispõe: «o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor».”
Assim, caso a perda ou deteriorações do arrendado sejam ilícitas, a lei considera que são imputáveis a actuação do arrendatário, mesmo que praticadas por terceiro a quem tenha consentido a utilização do mesmo, cabendo-lhe provar que a perda ou as deteriorações ocorreram sem culpa sua. De forma mais clara: cabe ao arrendatário provar que as deteriorações não decorreram de culpa sua nem de terceiro a quem tenha permitido a utilização.
Ficando provado que o incêndio causador das deteriorações ocorreu por facto praticado por pessoa não identificada, mesmo na falta de outros factos (porque não foram alegados e os que ficaram demonstrados resultaram da prova que foi produzida), há que fazer operar as regras do ónus da prova.
Não é ao autor que cumpre demonstrar que as deteriorações decorreram de acto ou omissão da ré ou de alguém a quem esta facultou a utilização do espaço. O autor só tem de demonstrar que as deteriorações são ilícitas, ou seja, que não resultam de uma utilização prudente, de um desgaste normal (o que fez).
Cabia à ré alegar (o que não fez) que as deteriorações resultam de causa que não lhe é imputável a si ou a quem permitiu que acedesse ao locado.
Ora, apesar de não ter ficado provado (porque também ninguém alegou) que o incêndio ocorreu por facto imputável à ré ou a alguém a que esta permitiu a utilização, também não ficou provado que não o foi. O facto de, em sede de inquérito, não ter resultado indícios suficientes para imputar a prática do acto à ré ou a alguém a esta ligada, designadamente os seus colaboradores, não quer dizer que tenha resultado demonstrado que a ré, ou aqueles colaboradores, não o fizeram.
Cumpria à ré afastar não só a imputabilidade do acto de dar início ao incêndio como da omissão dos deveres de vigilância sobre o locado adequados a prevenir a introdução de pessoas que dessem esse início. Ora, a ré nada alegou a esse respeito que permita concluir que – quer por acção quer por omissão – a deterioração da coisa não lhe é imputável, afastando assim a sua culpa.
Sendo o ónus da prova da ré, não podemos deixar de concluir que não o logrou cumprir e, por isso, não se trata de uma situação semelhante a um caso fortuito ou de força maior (que não foi), situações em que o risco corre por conta do locador.
Na falta de demonstração, funciona a presunção de que as deteriorações lhe são imputáveis e, pela sua reparação, é responsável.
Assim, como dissemos antes, terá de proceder às mesmas de forma a que o locado se encontre conforme o recebeu e o estado em que o recebeu é aquele que declarou quando celebrou o contrato em 2019. O réu contrapõe o seguinte:
31\ Nos termos do artigo 1044 do Código Civil, o locatário apenas responde pela perda ou deterioração do locado se esta lhe for imputável ou a terceiro a quem tenha permitido a utilização do mesmo.
32\ Assim, para a hipótese de perda ou deteriorações que não possam ser consideradas como resultado de uma utilização prudente, a lei estabelece um regime segundo o qual as mesmas serão suportadas nuns casos pelo locatário e noutros pelo locador.
33\ In casu, e nos termos do art. 1044 do CC, o arrendatário foi condenado apenas porque é arrendatário.
34\ Ora, da prova feita e que supra se reproduziu encontra-se cumprido o ónus da prova de afastamento quer da responsabilidade da ré quer de terceiros da confiança deste a quem lhe tenha permitido o acesso ao locado através da chave,
35\ Ao que se alia a prova de que a utilização do locado sempre se pautou pela maior prudência e diligência que um locatário poderia ter, tanto mais em virtude do vasto investimento que os réus e os seus familiares fizeram e que resultou cabalmente provado.
36\ Resultará a não aplicação do art. 1044 do CC em virtude do cabal cumprimento do ónus da prova que recaía sobre a ré.
37\ Neste seguimento, também a responsabilidade do fiador aferida pelo tribunal a quo, prevista no artigo 627 do CC, não pode subsistir quando não há fundamento para a responsabilidade do locatário principal. Apreciação:
A posição seguida pela sentença recorrida sobre a questão corresponde a uma interpretação das normas em questão praticamente unânime.
Sempre se tem entendido, quanto ao art. 1044 do CC, que ele consagra uma presunção de culpa correspondente à do art. 799/1 do CC, pelo que é ao arrendatário que cabe provar que a perda, total ou parcial, do imóvel, devido a incêndio, lhe não é imputável.
O que se faz decorrer, principalmente, da ideia de que é o arrendatário que tem o poder de facto sobre a coisa, tal como a distribuição do risco, no art. 796 do CC, se faz com base nesse poder de facto (isto é, no domínio de que fala o n.º 1 desse artigo ou no ‘ter a coisa em seu poder’ de que trata o n.º 2 do mesmo artigo). Sendo que no caso, apesar de o estabelecimento estar fechado (facto dd\ e mm\, no contexto da Covid-19), tal não quer dizer que esse poder de facto tenha passado para o senhorio.
Ora, não é pelo facto de se saber que o incêndio foi provocado por terceiro desconhecido que se pode dizer que o arrendatário afastou a presunção de culpa, isto é, provou que esse incêndio não lhe é imputável, pois que, só com isso, não fica afastada a hipótese de o terceiro ter actuado a mando do arrendatário.
Assim, por exemplo, no ac. do STJ de 12/11/2024, proc. 526/19.2T8CSC.L1.S1, apesar da 1.ª parte do seu sumário (a sociedade arrendatária é responsável, perante o senhorio, pelos danos que o seu gerente causou no imóvel arrendado), o que se diz, realmente, no seu texto, é: “assim acontece se a deterioração (ou destruição) da coisa locada ocorre por força de um incêndio ou de actos de vandalismo causados por desconhecidos.”
Muitos outros acórdãos do STJ, para além deste e para além daquele que foi invocado na sentença recorrida, vão no mesmo sentido, todos em casos de incêndio que não se sabe como é que ocorreram: de 26/01/2006, proc. 05B2346; de 28/02/2008, proc. 08B158; e de 21/11/2019, proc. 4672/16.6T8LRS.L1.S2, todos eles remetendo para doutrina e outros acórdãos no mesmo sentido.
Um ac. do STJ, o de 01/07/2004, proc. 04B1839, pela aplicação que faz desta interpretação praticamente unânime – “II: Tendo-se verificado um incêndio de que resultou a perda dos objectos locados, a responsabilidade do locatário é afastada quando tenha provado que, após a saída do público, todo o espaço interior da sala de espectáculos fora inspeccionado pelos funcionários e bombeiros permanentes dessa sala, os quais asseguraram a inexistência de qualquer foco de incêndio, verificando-se ainda que as investigações efectuadas pela polícia e bombeiros não puderam determinar as causas do incêndio, atribuído a caso fortuito.” - poderia ser utilizado, à 1.ª vista, em sentido favorável aos réus, mas não é assim, se não se esquecer que, no caso, o poder de facto sobre a fracção arrendada não deixou de ser da ré arrendatária.
No mesmo sentido, vai a doutrina; assim, apenas por exemplo e por últimos: Menezes Cordeiro, CC comentado, III, Dos contratos em especial, CIDP/Almedina, 2024, págs. 360-361; Ana Afonso, Comentário ao CC, Direito das Obrigações, Contratos em especial, UCP/FD/UCP editora, 2023, págs. 427-428; Elsa Sequeira Santos, no CC anotado, vol. I, 2.ª edição, CEDIS/Almedina, 2019, pág. 1308; os dois primeiros remetendo para outra doutrina e vários acórdãos no mesmo sentido.
* A sentença diz o seguinte “quanto à medida da indemnização”:
Contudo, não podemos deixar de considerar – até porque foi o autor que alegou esse facto em primeira linha - que desde de 2013 que não foram efectuadas outras obras no locado, ou seja, quando a ré recebeu a fracção (já com as obras de adaptação à actividade efectuadas pela anterior arrendatária) estas não estavam em estado novo, pelo que a reparação da situação em que o autor se encontraria não equivale a uma reparação integral de forma a que se o locado tivesse acabado de receber as referidas obras. A recolocação da fracção no estado em que se encontrava é colocação da fracção com o desgaste normal do seu uso para o exercício da actividade que nela foi exercida durante vários anos, não é colocá-la no estado novo.
Assim, entendemos que ao valor demonstrado quanto às reparações necessárias há que deduzir uma percentagem, que equitativamente calculamos dentro do que ficou demonstrado, e que visa traduzir esse desgaste. Não olvidamos, no entanto, porque se trata de um facto notório que os preços da mão de obra e materiais aumentaram, e de forma substancial, desde 2020 pela conjuntura internacional que é conhecida, pelo que a percentagem será apenas de 20% e não de 40%, que traduziria aquele desgaste.
Considerando, então, o que ficou provado a este respeito, somando o valor de remoção de escombros de €2.370 (valor apurado em 2020) ao de €48.690 (paredes, tectos, chão, portas e instalação eléctrica), chegamos a um montante de €51.060 que, deduzidos 20%, dá um valor de €40.848. O réu diz o seguinte contra isto:
[…]
38\ Para efeitos do cálculo da indemnização, ao valor demonstrado quanto às reparações necessárias há que deduzir uma percentagem que vise traduzir o real e verdadeiro desgaste de uma fracção que teve o seu normal uso para o exercício desta actividade exercida durante vários anos.
39\ Na verdade, desde 2013 que não foram efectuadas outras obras no locado.
40\ Porém, não atendeu o tribunal a quo a uma percentagem verdadeiramente representante de um desgaste normal, tanto mais que é um facto notório que a taxa de inflação é crescente na economia portuguesa, que os preços da mão de obra e materiais aumentaram desde 2020 por uma conjuntura internacional marcada pela pandemia e pela guerra, com grande impacto no mercado e na economia portuguesa
41\ Razão pela qual, será ajustado um valor percentual superior a 20% que represente o verdadeiro desgaste que o tempo e as circunstâncias do mundo exigem. Apreciação:
Acrescente-se, antes de mais, que também no corpo das alegações, o réu não diz qual a percentagem superior que defende que deve ser aplicada.
Esta imprecisão da posição do réu é significativa: ele próprio não sabe qual a percentagem superior que, segundo ele, deveria ser aplicada.
De qualquer modo, a forma como o pedido foi feito, levando ao apuramento do valor das obras necessárias à reposição da fracção arrendada no estado em que estaria no momento da entrega, não deve levar à aplicação de um coeficiente de desvalorização no cálculo da indemnização: não é o estado da fracção antes do incêndio que está em causa, mas o estado dela no momento da entrega. Ora, no momento da entrega ainda não tinha ocorrido nenhuma desvalorização.
Poderá é dizer-se que a indemnização do valor da reparação poderá levar a um benefício para o senhorio, resultante de o colocar numa situação melhor do que aquela em que estaria se não fosse a indemnização, com a fracção em estado novo, em vez de estar afectada de um desgaste decorrente de uma existência de já dez anos. Mas note-se que os danos foram (facto r\) nos tectos, nas paredes, na parte eléctrica e no chão, isto é, em partes componentes da coisa imóvel, não em coisas móveis desvalorizáveis muito mais rapidamente. Ora, não se vê que uma parede, um tecto, um chão ou uma parte eléctrica, reparados para os colocar como estavam no momento da entrega da fracção arrendada, 10 anos antes, traga ao senhorio uma vantagem (a desnecessidade de vir a fazer obras de conservação dessas coisas uns anos mais tarde do que teria de ser antes disso) que possa ser considerada superior aos 20% já aplicados pela sentença recorrida.
(no que antecede, teve-se em conta o esclarecimento que Maria de Lurdes Pereira faz no Direito da Responsabilidade civil, A obrigação de indemnizar, AAFDL, 2021, págs. 513 a 524, quanto ao “’desconto’ decorrente da substituição do ‘velho por novo’”, isto é, de que parece mais exacto falar de uma obrigação de restituir do lesado – que pode eventualmente extinguir-se por meio de compensação com o seu crédito à indemnização – do que de uma dedução na própria indemnização devida. O enriquecimento aqui é um efeito do cumprimento da indemnização, pelo que não pode logicamente interferir no cálculo do dano.” (págs. 520-521)).
*
Em suma, improcede, no seu todo, o recurso do réu.
* O recurso do autor é manifestamente improcedente pelo seguinte (o que decorre da pretensão que formula no recurso e por isso não se transcreveram as respectivas conclusões).
Com o recurso o autor só pretende aumentar a condenação do 3.º réu (é esse inequivocamente o pedido do recurso e no corpo das alegações e nas conclusões do recurso não é feita uma única referência à ré arrendatária).
O 3.º réu foi demandado e condenado como fiador. Segundo o art. 627/2 do CC, a obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor. Segundo o art. 631/1 do CC, a fiança não pode exceder a dívida principal […]; Segundo o art. 634 do CC, a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor.
Tudo isto resulta da característica da acessoriedade da fiança (por exemplo, Evaristo Mendes, notas introdutórias à subsecção da fiança e anotações aos arts. 627, 631 e 634, no Comentário ao CC, Direito das obrigações, Das obrigações em geral, UCP/FD/UCE, 2018, especialmente 4/I da pág. 758 e XII da pág. 760-761, 4/I da pág. 763 IV das págs. 765-766; também Manuel Januário da Costa Gomes, Assunção fidejussória de dívida…, Almedina, 2000, por exemplo no n.º 11, págs.116 a 121).
O autor não põe em causa o conteúdo da obrigação principal, tendo deixado transitar a decisão contra ao devedor principal que é a 4.ª ré, que é a arrendatária afiançada.
Assim sendo, não pode querer aumentar, para além dela, o conteúdo da obrigação acessória.
Dito de outro modo, o autor não pode pretender aumentar só o valor da dívida do fiador, sem aumentar antes, ou também, a dívida principal.
Note-se que o facto de o fiador se ter obrigado como “fiador solidário e principal pagador de todas e quaisquer obrigações da arrendatária” não o transforma em devedor principal. A cláusula de “fiador e principal pagador” é “classicamente a mais importante cláusula de agravamento do risco fidejussório” (Manuel Januário da Costa Gomes, obra citada, pág. 716). É a cláusula de um negócio de fiança, continuando o fiador a ser um fiador e não um devedor principal, designadamente não se verificando uma assunção cumulativa de dívidas, nem uma verdadeira solidariedade (ainda daquele autor e obra, agora nas págs. 714 a 717, 1116, 1119 a 1121, 1129, 1141 e 1146-1147).
*
Tudo isto tem por pressuposto que a sentença recorrida condenou o 3.º réu e a 4.ª ré, apesar de a sentença recorrida ter escrito “condenar este” e não “condenar estes”.
Mas trata-se um erro de escrita que não tem qualquer relevo porque em nada prejudicou o autor.
Desde logo, porque é um erro evidente: os próprios 3.º réu e 4.ª ré não tiveram qualquer dúvida de que foram condenados e por isso interpuseram, os dois, recurso contra a sentença, sem sequer perderem tempo com tal erro de escrita. Por outro lado, na decisão escreve-se expressamente que se está a apreciar os pedidos subsidiários contra estes dois réus. Por fim, utiliza-se a expressão ‘solidariamente’, o que implica mais do que um condenado.
Depois porque, das duas uma: ou o autor pensou que a 4.ª ré não tinha sido condenada e nesse caso tinha que ter recorrido contra ela como decorre do que antecede, ou pensou que a 4.ª ré tinha sido condenada e só está a recorrer contra o 3.º réu de caso pensado.
*
É certo que, assim, condenando os dois réus (o 3.º réu e a 4.ª ré), a sentença recorrida não seguiu a ordem dos pedidos, tendo apreciado o 3º pedido subsidiário (contra a 4.ª ré) sem razão, dada a procedência do 2.º subsidiário (contra o 3.º réu).
Ou seja, a reformulação dos pedidos, na petição aperfeiçoada, incorreu num erro evidente, já que o 2.º pedido subsidiário devia ter sido dirigido contra os dois réus e não primeiro contra o 3.º réu. Daí que a 1.ª ré logo tenha chamado a atenção para o facto de o autor ter reformulado os pedidos “com um critério de subsidiariedade cujo fundamento a ré não consegue alcançar.”
Seja como for, o facto de a sentença não ter seguido a ordem dos pedidos subsidiários, só prejudica os réus (a 4.ª ré não poderia ser condenada, visto que era objecto de um pedido subsidiário dependente da improcedência do 2.º pedido subsidiário) e não o autor, e os réus não recorreram dessa parte da sentença.
*
Diga-se, por fim, que é evidente também o erro de condenação da 4.ª ré nos termos formulados, já que a 4.ª ré deixou de existir, tendo sido substituída pela “generalidade dos sócios”, representada pela liquidatária CC.
Mas trata-se apenas de um erro formal, de designação do ente condenado, que não foi a 4.ª ré, representada pela liquidatária (como o despacho de 05/02/2024 demonstra ser o entendimento da sentença recorrida, partilhado em parte pelo mandatário da 4.ª ré como o demonstram os termos utilizados por ele no requerimento de 11/09/2023, pois que ao mesmo tempo que fala em substituição fala também em representação), mas sim a “generalidade dos sócios da 4.ª ré” representada (a “generalidade”, que no caso se sabe ser uma só sócia) pela liquidatária.
*
Pelo exposto, julgam-se improcedentes os dois recursos (do autor e do réu), mantendo-se a decisão recorrida, cuja redacção se corrige oficiosamente, ao abrigo do art. 614 do CPC, na parte que importa, ficando a constar o seguinte: condenam-se o 3.º réu e a única sócia da 4.ª ré, solidariamente, a pagar ao autor 40.848€ acrescidos de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Custas de parte, do recurso do autor, por este.
Não se condena o réu nas custas de parte do seu recurso, porque tem apoio judiciário que o dispensa das mesmas (de qualquer modo, o autor não contra-alegou).
Lisboa, 09/10/2025
Pedro Martins
João Severino
Ana Cristina Clemente