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DECLARAÇÕES DE PARTE
VALOR PROBATÓRIO
COMPRA E VENDA
COISA DEFEITUOSA
INDEMNIZAÇÃO EQUITATIVA
Sumário
Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do CPC) 1. As declarações da parte, na medida em que incidem muitas vezes sobre factos controvertidos que lhe são favoráveis, não podem, em regra, ser consideradas como suficientes para determinar a verificação desses mesmos factos, a menos que a sua conjugação com outros elementos de prova permita conclui-lo. 2. Fundando a sua discordância em algum meio probatório que tenha sido objeto de gravação, como é o caso do depoimento das testemunhas ou das declarações da parte, o Recorrente tem obrigatoriamente de indicar as passagens da gravação em que funda o seu recurso, nos termos do art.º 640.º n.º 2 al. a) do CPC, sob pena da rejeição do recurso quanto a tais meios de prova. 3. A identificação do objeto do contrato como uma viatura usada no estado em que se encontra, aponta para um veículo com as qualidades e o desempenho habituais num bem do mesmo tipo, com as quais qualquer pessoa pode razoavelmente contar, supondo uma viatura que pode circular, ainda que possa evidenciar o desgaste do tempo e do uso, o que é totalmente diferente de uma “carroçaria” que corresponde apenas a uma componente de uma viatura. 4. Sendo verdade que nos contratos bilaterais o incumprimento definitivo da prestação por uma das partes confere à parte contrária o direito a resolver o contrato, nos termos previstos no art.º 801.º n.º 2 do C.Civil, há que ter em conta que a resolução do contrato não é uma imposição, mas antes um faculdade conferida pelo legislador ao contraente não faltoso, exigindo uma declaração no sentido de pôr fim ao contrato, não resultando automaticamente do incumprimento. 5. O facto da A. ter vindo sempre a pugnar pelo cumprimento do contrato de compra e venda por parte da R., no sentido de proceder à entrega da coisa no estado de bom funcionamento em que se encontrava ao tempo da venda, revela o seu interesse na manutenção do contrato, nunca tendo também a mesma procedido à interpelação admonitória no sentido de converter a mora em incumprimento definitivo, pelo que sendo a prestação ainda possível, a situação da R. é de mora e não de incumprimento definitivo. 6. Não é de aplicar o regime da venda de coisas defeituosas previsto no art.º 913.º ss. do C.Civil, quando não estamos perante uma situação em que o veículo objeto da compra se apresenta com defeito, ou não é suscetível de assegurar o fim a que se destina, antes havendo que recorrer ao regime geral do cumprimento das obrigações previsto no art.º 762.º ss. do C.Civil, quando está em causa o incumprimento da prestação principal da vendedora que não realizou a entrega da coisa nos termos previstos no art.º 879.º al. b) do C.Civil. 7. Compete ao lesado fazer a prova da existência dos danos cuja indemnização requer, como resulta do art.º 342.º n.º 1 do C.Civil por ser facto constitutivo do direito que invoca, pelo que tem de improceder a indemnização a título de lucros cessantes reclamada pela A., quando alegando que ficou impossibilitada de vender o veículo a terceiro por cerca do dobro do valor pelo qual o adquiriu, não prova que tenha adquirido o veículo em questão para revenda ou que o teria vendido por valor superior àquele pelo qual o comprou. 8. A indemnização equitativa dos danos prevista no art.º 566.º n.º 3 do C.Civil destina-se às situações em que não pode ser averiguado o valor exato dos danos, julgando o tribunal equitativamente dentro dos limites que tiver por provados, mas sempre supõe a prova efetiva da existência de danos.
Texto Integral
Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
Vem a Unique FMT, Ld.ª, intentar a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra AA - Sociedade de Transportes Unipessoal, Ld.ª, formulando os seguintes pedidos:
a) Seja reconhecido o seu direito de propriedade sobre o camião e a restituição do bem, declarando-se a A. como dona e legítima proprietária do Trator Chassi YV2RT60A9JB854927, com a matrícula ..-UA-.., ordenando-se o respetivo registo;
b) Seja julgado procedente o pedido de redução do valor negociado, com a consequente condenação da R. a devolver à A. o valor de €12.300,00.
c) Seja a R. condenada ao pagamento à A. do montante de €27.500,00 a título de lucro cessante;
d) Seja a R. condenada à substituição do bem, no prazo de 15 dias, por outro da mesma categoria, marca, quilometragem que tinha à data da compra, e em perfeito estado de funcionamento, ou no caso de não cumprimento ou impossibilidade, ser a R. condenada ao pagamento, no prazo de 15 dias, após o prazo supra, de indemnização no valor da reparação do bem defeituoso, no montante de €101.432,69 a título de danos patrimoniais.
e) Seja a R. condenada no pagamento de valor não inferior a €5.000 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais.
Alega ter adquirido o Trator que identifica à R., tendo pago o respetivo preço, nunca tendo recebido o camião comprado, nem lhe foi entregue a declaração de venda, apesar de por várias vezes ter interpelado a R. para o efeito, o camião que permanece na posse da R. com a registada a seu favor desta. Refere que com vista à entrega do camião precisou de intentar uma providência cautelar de restituição provisória da posse, porém, o veículo não foi entregue do modo como foi comprado, tendo sido entregue sem motor, sem a parte elétrica e sem outras peças essenciais ao funcionamento da mesma. Enquanto o camião não foi entregue, esteve a ser utilizado pela R., sofrendo por isso desvalorização. A A. destinava o veículo à revenda tendo ficado impedida de o fazer. O comportamento da R. causou-lhe danos patrimoniais, cujo ressarcimento requer, incluindo a reparação do veículo e danos não patrimoniais.
A R., pessoalmente citada veio contestar, pugnando pela improcedência da ação e pela sua absolvição dos pedidos.
Aceita ter celebrado com a A. um contrato verbal de compra e venda do veículo trator identificado, alegando ter o contrato visado tão só a carroçaria do veículo e não o veículo completo, tendo colocado o veículo à disposição da A. para que o levantasse nas suas instalações, conforme acordado, o que a A. nunca fez. Posteriormente, a A. demonstrou interesse em adquirir os componentes do veículo pelo mesmo valor, afirmando, contudo, não ter liquidez para o fazer, ficando assim acordado que a R. iria aguardar até que a A. tivesse liquidez para realizar o pagamento desses componentes, momento em que os mesmos seriam montados no veículo. Em 6 de julho de 2021, remeteu comunicação à A. a solicitar o pagamento desse valor, informando que o veículo se encontrava apto para levantamento, conquanto fosse pago o valor em falta. Não tendo sido pago esse valor não existia obrigação de entregar o veículo completo, mas no estado em que se encontrava no momento da celebração do contrato de compra e venda da carroçaria do mesmo. Aceita ter utilizado o veículo, sem que daí tivesse resultado qualquer desvalorização do mesmo. Quanto à reparação do veículo, afirma ter na sua posse as peças em falta, que poderá entregar e colocar no veículo, logo que seja pago o preço.
Notificada para o efeito, a A. veio responder, concluindo como na p.i.
Foi dispensada a realização de audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador que afirmou a validade da lide. Foi fixado o objeto do litígio e os temas da prova.
Procedeu-se à audiência de julgamento com observância do formalismo legal e foi proferida sentença que julgando parcialmente procedente a ação, decidiu a final o seguinte: “a) Reconheço a A. como dona e legítima proprietária do veículo automóvel Tractor com o Chassi YV.RT..A.JB......, matrícula ..-UA-... b) Condeno a R. à entrega definitiva à A. do veículo identificado em a) com as peças devidamente montadas, nomeadamente, motor, caixa de velocidades e ligação da caixa ao diferencial e em funcionamento nas condições em que se encontrava em abril de 2021, na data da celebração do contrato de compra e venda com a A.. c) Absolvo a R. dos demais pedidos contra ela formulados.”
Por não se conformarem com esta decisão, vêm ambas as partes dela interpor recurso.
A A. não se conformando com a improcedência dos pedidos indemnizatórios que formulou, vem pugnar pela “consequente revogação parcial da sentença recorrida, e substituição por decisão que condene a Ré nos seguintes termos, ou noutros que V. Exas. julguem adequados à efetivação dos direitos da Recorrente: a) Condene a Ré a pagar €12.300,00, a título de redução do preço; b) Condene a Ré a pagar €27.500,00, a título de lucros cessantes; c) Condene a Ré a pagar €101.432,69, a título de indemnização; d) Diante da impossibilidade de cumprimento da condenação ordenada na sentença no que respeita à entrega do veículo nas exatas condições contratuais, requer-se que este Venerando Tribunal substitua tal comando por condenação em indemnização equivalente ao custo da reparação, sob pena de se perpetuar um comando inútil e inexequível”, apresentando para o efeito as seguintes conclusões que se reproduzem:
1) Ficou provado que a Recorrente adquiriu à Recorrida, no mês de abril de 2021, o veículo automóvel Tractor Chassi YV.RT..A.JB......, com a matrícula ..-UA-.., pagando integralmente o valor de €33.825,00, mediante emissão da correspondente fatura em 17.04.2021 (factos provados a) e b)).
2) Também se provou que o veículo apenas foi entregue em 2 de junho de 2022, em sede de execução da decisão proferida em ação cautelar de restituição provisória da posse, após diligência frustrada em abril de 2022, por ausência do bem nas instalações da Ré (factos provados d) e e)).
3) Ficou ainda assente que o veículo não foi entregue no estado em que fora adquirido, tendo sido entregue sem motor, sem caixa de velocidades e sem ligação da caixa ao diferencial, contrariando a condição de integridade em que foi inicialmente apresentado (factos provados f), g), h) e m)).
4) A Recorrida continuou a utilizar o veículo após a sua venda, tendo o mesmo, em dezembro de 2021, já percorrido 619.601 Km (factos provados i) e j)).
5) A Recorrente é uma sociedade cujo objeto social consiste, entre outras atividades, na comercialização de veículos automóveis, nomeadamente viaturas pesadas (facto provado k)).
6) Resulta ainda provado que a Recorrente suportou custos adicionais de €492,00 com o reboque para retirada do veículo das instalações da Ré, em consequência do estado em que este lhe foi entregue (facto provado l)).
7) A Ré mantém na sua posse as peças em falta no veículo vendido, sendo que pode entregá-las e colocá-las no mesmo (facto provado n)).
8) Os factos provados demonstram incumprimento definitivo da obrigação de entrega por parte da Ré, nos termos do artigo 808.º, n.º 1 do Código Civil, dado o decurso de mais de um ano desde a celebração do contrato até à entrega forçada, acrescido do uso indevido e entrega incompleta do bem.
9) Face ao incumprimento contratual e à impossibilidade prática de substituição ou entrega do veículo em conformidade, assiste à Recorrente o direito à indemnização pelos prejuízos causados, conforme disposto nos artigos 801.º e 817.º do Código Civil.
10) Os danos patrimoniais sofridos encontram respaldo no orçamento junto aos autos, no valor de €101.432,69, destinado à reposição do veículo conforme contratado, devendo ser valorado como meio de prova documental, nos termos do artigo 376.º do Código Civil.
11) A Recorrente logrou demonstrar que a entrega defeituosa e o uso abusivo do bem afetaram a sua atividade comercial, sendo admissível o reconhecimento de lucros cessantes, com recurso à equidade para fixação do respetivo montante (arts. 564.º, n.º 1 e 566.º, n.º 3 do Código Civil).
12) A recusa do pedido subsidiário de redução do preço com fundamento em incompatibilidade com outros pedidos não acolhidos contraria os artigos 554.º e 555.º do Código de Processo Civil, devendo ser deferida a redução no valor de €12.300,00, em conformidade com os artigos 911.º e 913.º do Código Civil.
13) Atenta a atividade da Recorrente e o descrédito comercial resultante da conduta da Ré, devem ser reconhecidos danos não patrimoniais indemnizáveis, nos termos do artigo 496.º do Código Civil, no valor mínimo de €5.000,00.
14) A sentença recorrida incorreu em erro de julgamento quanto à qualificação jurídica do incumprimento, à admissibilidade da cumulação e ao valor probatório do documento junto aos autos, devendo ser parcialmente revogada.
15) Por fim, diante a impossibilidade da entrega do veiculo nas exatas condições fixadas, deve a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” ser reformada para condenar a Ré em indemnização equivalente ao custo da reparação, sob pena de se perpetuar um comando inútil e inexequível.
Também a R. veio interpor recurso da sentença proferida, requerendo: a) Ser a sentença proferida pelo Tribunal a quo parcialmente revista nos termos supra exposto, b) Devem ser considerados como não provados os factos identificados nas alíneas f), h) e m); c) Deve ser considerado como provado o facto de que “A. e R. celebraram um contrato verbal de compra e venda da carroçaria do veículo trator pesado identificado pela matrícula ..-UA-...”, d) Deve a ora Recorrente ser absolvida da condenação de “entrega definitiva à A. do veículo identificado em a) com as peças devidamente montadas, nomeadamente, motor, caixa de velocidades e ligação da caixa ao diferencial e em funcionamento nas condições em que se encontrava em abril de 2021, na data da celebração do contrato de compra e venda com a A.”, formulando as seguintes conclusões que igualmente se reproduzem:
I. - O presente Recurso da sentença proferida em primeira instância, tem por objeto tanto a decisão sobre os factos como a interpretação jurídica deles decorrente.
II. - No que diz respeito à matéria de facto, a ora Recorrente entende que o Tribunal a quo, não poderia considerar como provados os factos enunciados nas alíneas f), h) e m), na medida em que baseou essa decisão exclusivamente nas declarações de parte do representante legal da Autora, que, por ser parte diretamente interessada no desfecho da ação, não deveria ter sido considerada fonte probatória suficiente para sustentar a decisão.
III. - Igualmente, entende que deve ser considerado como provado o facto de que “A. e R. celebraram um contrato verbal de compra e venda da carroçaria do veículo trator pesado identificado pela matrícula ..-UA-...”
IV. - As declarações de parte do legal representante da Autora não foram corroboradas por prova documental conclusiva, nomeadamente através da fatura emitida pela Ré, ora Recorrente, nem por testemunhos verdadeiramente isentos ou com conhecimento direto dos factos em discussão.
V. - No que respeita à prova documental utilizada para suportar as declarações de parte do legal representante da Autora, ora Recorrida, importa referir que a fatura emitida pela Ré, ora Recorrente, refere “viatura usada no estado em que se encontra”, pelo que, do ponto de vista da Recorrente, esta última expressão tem um peso determinante, na medida em que indica claramente que a venda dizia respeito unicamente à carroçaria do veículo e não ao veículo completo e funcional, como alegado pela Autora, ora Recorrida.
VI. - Sublinha-se ainda que os depoimentos das testemunhas BB e CC carecem de valor probatório por não terem presenciado a celebração do contrato, nem possuírem conhecimento direto dos seus termos, sendo certo que os seus testemunhos decorreram de informações transmitidas pela Autora, ora Recorrida, através dos seus legais representantes.
VII. - Acresce que, importa ter presente que o preço alegado pela Autora, ora Recorrida, não se encontra adequado, face às regras da experiência comum, ao valor de mercado de um veículo completo e funcional da marca e modelo em questão, pelo que tal valor apenas seria compatível com a venda da carroçaria.
VIII. - Quanto à matéria de Direito, a ora Recorrente entende que não incumpriu qualquer obrigação contratual, uma vez que que entregou o bem conforme acordado, em específico, a carroçaria do veículo, o efetivo objeto do negócio de compra e venda celebrado com a Autora, ora Recorrida.
IX. - Assim sendo, entende a Recorrente que não existe qualquer dever de entrega de peças do veículo, que não foram objeto do contrato de compra e venda, razão pela qual entende que não se encontra em mora.
X. - Conclui que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser retificada, no sentido de serem considerados como não provados os factos identificados nas alíneas f), h) e m), e ainda de ser considerado como provado o facto de que “A. e R. celebraram um contrato verbal de compra e venda da carroçaria do veículo trator pesado identificado pela matrícula ..-UA-...”.
XI. - Bem como que, deve a ora Recorrente ser absolvida da condenação de “entrega definitiva à A. do veículo identificado em a) com as peças devidamente montadas, nomeadamente, motor, caixa de velocidades e ligação da caixa ao diferencial e em funcionamento nas condições em que se encontrava em abril de 2021, na data da celebração do contrato de compra e venda com a A.”.
II. Questões a decidir
São as seguintes as questões a decidir tendo em conta o objeto dos recursos delimitado pelas Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC - salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine: Recurso da A.
- do incumprimento definitivo do contrato por parte da R.;
- da condenação da R. no pagamento de € 101.432,69 destinados à reposição do veículo no estado em que se encontrava à data da compra;
- do direito da A. a ser indemnizada pelos lucros cessantes;
- do direito da A. na redução do preço do veículo;
- do direito da A. a ser indemnizada pelos danos não patrimoniais. Recurso da R.
- da impugnação da decisão da matéria de facto;
- do cumprimento do contrato pela R.
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Por razões de precedência lógica, começa por apreciar-se as questões suscitadas pela R. no seu recurso, uma vez que a mesma vem impugnar a decisão da matéria de facto.
III. Fundamentos de Facto
A matéria de facto foi decidida pelo tribunal de 1ª instância, que considerou provados e não provados os seguintes factos, nos termos que se reproduzem:
Factos provados
a) No decurso do mês de abril de 2021, a A. adquiriu à R. o Tractor Chassi YV.RT..A.JB......, com a matrícula ..-UA-...
b) A A. pagou pelo Tractor supra identificado, o valor de €27.500,00 (vinte e sete mil e quinhentos euros) acrescido de IVA, num total de €33.825,00 (trinta e três mil, oitocentos e vinte e cinco euros), tendo a R. emitido a competente fatura datada de 17 de abril de 2021.
c) A propriedade do veículo identificado em a) mostra-se inscrita junto da Conservatória do Registo Automóvel a favor da R..
d) Em 29 de abril de 2022, foi realizada uma diligência com vista à restituição provisória da posse do veículo automóvel identificado em a) à A.), porém, não foi efetuada a entrega pelo facto do veículo não se encontrar nas instalações da R., tendo o sócio-gerente desta informado o Sr. Oficial de Justiça que o veículo se encontrava na “Auto Sueco”.
e) Em execução da decisão proferida nos autos apensos de restituição provisória da posse, em 2 de junho de 2022, foi entregue à A. o veículo automóvel identificado em a) e os respetivos documentos.
f) O veículo não foi entregue à A. do modo como fora adquirido na data referida em a).
g) A R. entregou o veículo sem motor, sem caixa de velocidades e sem a ligação da caixa ao diferencial.
h) O veículo adquirido possuía todas as peças, circulando normalmente.
i) O veículo identificado em a) foi utilizado pela R. após a data referida em a).
j) Em 30 de dezembro de 2021, o veículo identificado em a) havia percorrido 619.601 Km.
k) A A. dedica-se ao comércio de viaturas automóveis ligeiras e pesadas, compra e venda de máquinas industriais para construção civil, aluguer de máquinas e equipamentos para a construção e engenharia civil.
l) Atentas as circunstâncias referida em g), a A. teve necessidade de contratar um reboque para proceder a retirada do veículo das instalações da R., tendo para o efeito despendido o montante de € 492,00 (quatrocentos e noventa e dois euros).
m) Nas circunstâncias referidas em a) o veículo foi apresentado pela vendedora, ora R., a funcionar corretamente, possuindo todas as peças que o guarnecem e necessárias ao seu bom funcionamento.
n) A R. mantém na sua posse as peças em falta no veículo identificado em a), as quais pode entregar e colocar no mesmo.
Factos não provados:
- Não se provou que a aquisição de propriedade do veículo identificado em a) não foi inscrita a favor da A., porque não lhe ter sido entregue a declaração de venda pela R..
- Não se provou que a A., por várias vezes, interpelou a R. para proceder à entrega do veículo identificado em a).
- Nada se provou sobre o que ocorreu desde a data referida em a) até à referida em d).
- Nada se provou quanto às diligências realizadas junto da Auto Sueco na sequência da diligência referida em d).
- Não se provou qual a efetiva utilização dada ao veículo no período referido em i).
- Não se provou que na data da compra, em 14 de abril de 2021, o veículo referido em a) havia percorrido 598.534km.
- Não se provou que em novembro de 2021, o veículo o veículo referido em a) havia percorrido 574.875km
- Não se provou que a A. adquiriu o veículo identificado em a) para revenda.
- Não se provou que a A. se debata com constrangimentos no fluxo de caixa,
- Não se provou que com a não entrega do veículo identificado em a) a A. ficou impossibilitada de o vender a um 3º interessado, pelo valor de €55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros) acordados entre as partes.
- Não se provou que os custos de reparação do veículo identificado em a) se fixam no montante de €101.432,69 (cento e um euros, quatrocentos e trinta e dois euros e sessenta e nove cêntimos).
- Não se provou que A. e R. celebraram um contrato verbal de compra e venda da carroçaria do veículo trator pesado identificado pela matrícula ..-UA-...
- Não se provou que a R. tinha já celebrado um prévio contrato de compra e venda do motor, corrente elétrica, caixa de velocidades e outros componentes internos do veículo identificado em a).
- Não se provou que a R. colocou o veículo identificado em a) à disposição da A. para que o viesse levantar nas suas instalações, conforme ficara acordado entre as partes.
- Não se provou que o contrato de compra e venda celebrado entre a R. e o terceiro comprador das peças internas do veículo identificado em a), acabou por não se verificar.
- Não se provou que a R. contactou a A., explicando a não realização da venda dos componentes do veículo identificado em a) e questionou o seu interesse nos mesmos.
- Não se provou que a A. demonstrou interesse em adquirir os componentes do veículo identificado em a) pelo valor de € 33.825,00 (trinta e três mil, oitocentos e vinte e cinco euros).
- Não se provou que a A. referiu não possuir liquidez para realizar o pagamento deste valor de imediato.
- Não se provou que ficou acordado que a R. iria aguardar, não realizando a venda desses componentes por terceiros, até que a A. tivesse liquidez para realizar o pagamento dos mesmos.
- Não se provou que A. e R. estipularam que deveria ser remetido o comprovativo de pagamento para a R., de modo a que a mesma, nessa data, montasse o motor e restantes componentes no veículo identificado em a).
- Não se provou que entre A. e R. ficou acordado que apenas com a realização do pagamento seria emitida a fatura pela R..
- Não se provou que a R. remeteu comunicação à A., datada de 6 de julho de 2021, com o teor do doc. 1 junto com a contestação.
- Não se provou que foi pela convicção criada de a A. iria adquirir o veículo completo que a R. procedeu à montagem do mesmo. - da impugnação da decisão da matéria de facto
Vem a R. impugnar a decisão sobre a matéria de facto, quanto aos factos provados identificados nas alíneas f), h) e m) dos factos provados, que entende deverem ser considerados não provados, mais requerendo que se dê como provado que “A. e R. celebraram um contrato verbal de compra e venda de carroçaria do veículo trator pesado identificado pela matrícula ..-UA-..”, facto que o tribunal a quo teve como não provado.
Procedendo à impugnação conjunta destes factos, indica a Recorrente os meios de prova que, no seu entender, impõem uma diferente decisão, que concretiza da seguinte forma que se sintetiza:
- alega que a decisão destes factos se fundamentou nas declarações prestadas pelo legal representante da A., ao qual o tribunal a quo deu uma relevância que não devia ter dado, por não terem sido corroboradas por outros meios de prova;
- refere que o teor da fatura emitida pela R. não admite a interpretação que lhe é dada pelo tribunal;
- mais refere que o tribunal procura “consubstanciar” as declarações do legal representante da A. nos depoimentos as testemunhas BB e CC, que não “fornecem o suporte probatório necessário”.
Da própria alegação da Recorrente decorre que o tribunal a quo não se socorreu apenas das declarações de parte da A. para decidir sobre a matéria em questão, antes levou em conta a conjugação das mesmas, quer com o documento junto aos autos que constitui a fatura emitida pela R., quer com o depoimento das duas testemunhas que indicou.
Consta da motivação da decisão, designadamente, que: “Relativamente à matéria de facto julgada provada em f), h) e m) procedeu o Tribunal à apreciação da prova produzida em sede de julgamento, declarações de parte do legal representante da A. e prova testemunhal, conjugada coma a prova documental junta, máxime, a fatura emitida pela R..”, explicitando-se de seguida os termos em que tais meios de prova - declarações de parte, documentos e depoimento das testemunhas que identifica - relevaram e permitiram formar a convicção do juiz sobre esta matéria.
Sobre as declarações de parte enquanto meio probatório, rege o art.º 466.º do CPC, que no seu n.º 3 estabelece que “o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.”
Tal como defende a Recorrente, em asserção com a qual se concorda, as declarações das partes, enquanto meio de prova, têm de ser ponderadas com toda a cautela pelo tribunal, não podendo olvidar-se que as partes estão diretamente interessadas no desfecho da ação e que, por isso, não raras vezes prestam declarações de forma não isenta e comprometida.
Na medida em que incidem muitas vezes sobre factos controvertidos que lhes são favoráveis, as declarações da parte não podem, em regra, ser consideradas como suficientes para determinar a verificação desses mesmos factos, a menos que a sua conjugação com outros elementos de prova permita conclui-lo.
Como nos diz, a respeito da valoração deste meio prova, o Acórdão do TRP de 18-05-2017 no proc. 3456/16.6T8VNG.P1: “A norma não fornece, contudo, qualquer pista sobre o modo como essa apreciação deverá ser feita, designadamente se as declarações da parte apenas devem ser aceites como prova complementar ou supletiva dos demais meios de prova, se devem ser aceites como mero princípio de prova ou se podem ser suficientes para permitir ao tribunal julgar provados factos favoráveis é apenas demonstrados através das suas declarações. Não tendo o legislador tomado posição sobre esse aspecto parece que o intérprete não deve assumir aí uma atitude dogmática, de puro princípio, seja ela qual for. Se não basta à parte alegar um facto para que o tribunal o tenha de aceitar e se o direito ao contraditório implica que tendo um facto sido impugnado pela parte contrária ele deve ser objecto de produção de prova que o demonstre, parece adequado entender que, em condições normais, para fazer a prova de um facto favorável a uma das partes não será suficiente que esse facto seja afirmado pela própria parte no decurso das suas declarações de parte.”
Na situação em presença, verifica-se, porém, que não foi apenas nas declarações de parte do legal representante da A. que o juiz a quo se estribou para formar a sua convicção sobre a matéria de facto impugnada, antes o fez na conjugação dos diversos elementos probatórios que identifica.
Questão diferente é a de saber se tais elementos probatórios foram bem ou mal valorados pelo tribunal a quo, como entende a Recorrente.
Contudo, esta questão está subtraída à apreciação deste tribunal, na medida em que a Recorrente não dá cumprimento ao disposto no art.º 640.º n.º 2 al. a) do CPC, não indicando os excertos da gravação das declarações de parte do legal representante da A., nem tão pouco dos dois depoimentos das testemunhas que identifica, de modo a permitir a sua avaliação.
O art.º 640.º do CPC impõe um ónus a cargo do Recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto dispondo:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o Recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a. Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b. Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c. A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes. b) (…) 3. (…)”
De acordo com este regime legal, além da indicação concreta dos factos que considera mal avaliados, da necessidade de individualização das divergências com referência aos concretos meios de prova que constam do processo, da decisão que no seu entender deve ser proferida sobre os mesmos, exigências das várias alíneas do n.º 1 do artigo mencionado, caso o recurso se funde em meios probatórios gravados, o Recorrente tem ainda de indicar com exatidão as passagens da gravação em que baseia o seu recurso.
Fundando a sua discordância em algum meio probatório que tenha sido objeto de gravação, como é o caso do depoimento das testemunhas ou das declarações prestadas pela parte, o Recorrente tem obrigatoriamente de indicar as passagens da gravação em que funda o seu recurso, mesmo que proceda à sua transcrição, nos termos do n.º 2 al. a), sendo que a inobservância de alguma destas especificações determina a rejeição do recurso, conforme aí também previsto.
O Acórdão do STJ de 29-09-2015 no proc. 233/09, inwww.dgsi.pt indica a razão de ser destas exigências do art.º 640.º n.º 1 e n.º 2, pronunciando-se nos seguintes termos: “Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação – que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do nº 1 do art. 640º do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do art. 640º, nº2, al. a) do CPC).”
O art.º 640.º do CPC ao impor estes ónus a cargo do Recorrente, traduz uma opção do legislador que não admite o recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas a possibilidade de revisão de factos individualizados, relativamente aos quais a parte manifesta e concretiza a sua discordância, com fundamento nos meios de prova concretos que indica, que em se tratando de depoimentos gravados devem estar bem delimitados na parte considerada relevante por identificação no excerto da gravação; deve ainda indicar a decisão que entende dever ser proferida sobre os factos contestados.
Diz-nos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 126, a propósito desta questão: “Relativamente a pontos da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o Recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevante e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.” Acrescenta a pág. 129: “Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.”
À luz dos requisitos legais exigíveis que ficaram expostos, é forçoso reconhecer que o presente recurso sobre a matéria de facto deduzido pelo Recorrente não os observa na totalidade, faltando a indicação dos excertos de gravação das declarações de parte do legal representante da A. que a Recorrente questiona e dos depoimentos das testemunhas em que funda o seu recurso, exigência a que alude o art.º 640.º n.º 2 al. a) do CPC, pelo que o incumprimento desta norma impõe a imediata rejeição do recurso quanto a tais meios de prova, o que se determina.
Aqui chegados resta apenas dizer que o documento também invocado pela Recorrente que corresponde à fatura por ela emitida que foi junta aos autos com a p.i., não permite de forma alguma sustentar o erro da decisão do tribunal quanto à matéria de facto impugnada, antes pelo contrário.
A fatura em questão foi emitida pela R., está datada de 17-04-2021, identifica a A. como compradora, indica o valor total a pagar de € 33.825,00 correspondendo a € 27.500,00 mais IVA de € 6.325,00 e contém a seguinte descrição: “Tractor ..-UA-.. Chassi YV2RT60A9JB854927 OBS: viatura usada no estado em que se encontra”.
Daqui não pode inferir-se, como pretende a Recorrente, que a expressão “viatura usada no estado em que se encontra” carateriza o objeto do negócio apenas como reportando-se à carroçaria do trator.
Pelo contrário, se assim fosse, o que seria normal e razoável é que a fatura identificasse apenas a carroçaria do veículo como objeto da venda, já que a menção a uma viatura, aponta para o sentido comum que tal expressão identifica, dirigindo-se a uma coisa que pela sua natureza e características, visa um veículo suscetível de poder circular, ainda que possa tratar-se de uma viatura usada.
A identificação de uma viatura usada no estado em que se encontra, aponta para um veículo com as qualidades e o desempenho habituais num bem do mesmo tipo, com as quais qualquer pessoa pode razoavelmente contar, apta a circular, podendo evidenciar o desgaste do tempo e do uso, por se tratar de uma viatura usada, o que é totalmente diferente de uma “carroçaria” que corresponde apenas a uma componente de uma viatura.
Resta concluir, sem necessidade de mais considerações, que o documento em questão não suporta minimamente as alterações da matéria de facto pretendidas pela Recorrente, improcedendo na íntegra a impugnação apresentada.
IV. Razões de Direito - do cumprimento do contrato pela R.
Esta questão suscitada pela R. Recorrente surge na sequência da pretendida alteração da decisão de facto, designadamente quanto a considerar-se que o contrato de compra e venda celebrado entre as partes teve por objeto apenas a carroçaria do veículo trator, concluindo a R. que tal carroçaria está entregue, não existindo qualquer outro dever de entrega da sua parte.
A procedência da impugnação da matéria de facto constituía pressuposto da consideração do cumprimento do contrato, pelo que não sendo assim, não pode concluir-se no sentido de tal conclusão jurídica. - do incumprimento definitivo do contrato por parte da R.
Alega a A. Recorrente que os factos revelam uma situação de incumprimento definitivo do contrato por parte da R., perante a inércia e resistência manifestada na entrega voluntária do veículo, que foi judicialmente entregue incompleto, além de ter sido abusivamente utilizado pela R., assistindo-lhe o direito a ser indemnizada pelos prejuízos que reclama.
A sentença sob recurso considerou que a R. não cumpriu a prestação a que se obrigou, por não ter entregue o veículo no estado em que se encontrava ao tempo da venda, tendo na sua posse as peças do veículo que pode entregar e colocar, desta forma cumprindo a sua obrigação, pelo que existe uma situação de mora contratual e não um incumprimento definitivo.
Os factos provados mostram que estamos perante um contrato de compra e venda celebrado entre as partes em abril de 2021, que teve por objeto o veículo trator identificado, em estado de usado em condições de circular e com as peças necessárias ao seu bom funcionamento, tendo a A. procedido ao pagamento do preço acordado, sem que a R. tenha efetuado entrega do veículo, apenas tendo sido possível à A. obter a carroçaria do veículo, após intervenção judicial, estando em falta diversas peças do mesmo necessárias ao seu bom funcionamento que a R. mantém na sua posse.
O contrato de compra e venda é um contrato bilateral, cuja noção nos é dada pelo art.º 874.º do C.Civil, que visa a transmissão da propriedade de uma coisa ou direito, mediante um preço, tendo como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entrega da coisa e a obrigação de pagar o preço, como rege o art.º 879.º do C.Civil.
No que se refere expressamente ao dever de entrega da coisa, estabelece o art.º 882.º do Civil:
“1. A coisa deve ser entregue no estado em que se encontrava ao tempo da venda. 2. A obrigação de entrega abrange, salvo estipulação em contrário, as partes integrantes, os frutos pendentes e os documentos relativos à coisa ou direito. 3. Se os documentos contiverem outras matérias de interesse do vendedor, é este obrigado a entregar pública-forma da parte respeitante à coisa ou direito que foi objecto da venda, ou fotocópia de igual valor.”
O incumprimento de qualquer contrato pode assumir um carater provisório, quando há simples mora, nos termos do art.º 804.º do C.Civil ou um carater definitivo. Em qualquer caso, para que o incumprimento seja gerador da obrigação de indemnizar é necessário que haja culpa do devedor nos termos, respetivamente, do disposto nos art.º 804.º n.º 2 e 798.º do C.Civil.
A mora do devedor é o atraso culposo no cumprimento da obrigação. O devedor incorre em mora, na concreta estatuição do art.º 804.º n.º 2 C.Civil, quando por causa que lhe seja imputável, não realiza a prestação no tempo devido, continuando a prestação a ser ainda possível.
Já o incumprimento definitivo, na previsão do art.º 808.º do C.Civil, verifica-se quando o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considerando-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação. No dizer de Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Vol. II, pág. 251: “Verifica-se o incumprimento definitivo da obrigação quando o devedor não a realiza no tempo devido por facto que lhe é imputável, mas já não lhe é permitida a sua realização posterior, em virtude de o credor ter perdido o interesse na prestação ou ter fixado, após a mora, um prazo suplementar de cumprimento que o devedor desrespeitou (art. 808)”.
A chamada interpelação admonitória a que alude o art.º 808.º n.º 1 do C.Civil consiste na notificação formal dirigida ao devedor para que cumpra a sua obrigação num certo prazo, sob pena de incumprimento definitivo. Esta interpelação deve conter a intimação para o cumprimento; a fixação de um prazo perentório para o cumprimento e a cominação da obrigação se ter definitivamente por não cumprida se o cumprimento não ocorrer nesse prazo. A interpelação admonitória representa uma forma de converter a mora em incumprimento definitivo.
Importa ainda ter em conta o incumprimento que resulta da declaração do devedor de não querer ou não poder cumprir o contrato, o que acontece quando, no dizer do Acórdão do TRP de 02-05-2013 no proc. 1434/10.8TBGDM.P1 inwww.dgsi.pt : “o devedor emite declaração "certa, séria e segura" de não querer ou não poder cumprir; ou seja, desde que se exprima em termos não equívocos, categóricos e definitivos, não deixando dúvidas sobre esse seu propósito (…).” Aí bem se refere, de forma sintética, a respeito dos fundamentos da resolução contratual: “O fundamento legal de resolução de um contrato é, nos termos do art. 801º, a impossibilidade de cumprimento decorrente de incumprimento definitivo. O incumprimento definitivo de um contrato pode ocorrer em qualquer destas situações: - Inobservância de prazo fixo essencial para a prestação; - Comportamento do devedor que exprima inequivocamente a vontade de não querer cumprir o contrato; - Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação; - Se o devedor, caído em mora, não realizar a prestação dentro do prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor.”
Sendo verdade que nos contratos bilaterais o incumprimento definitivo da prestação por uma das partes confere à parte contrária o direito a resolver o contrato, nos termos previstos no art.º 801.º n.º 2 do C.Civil, há que ter em conta que a resolução do contrato não é uma imposição, mas antes um faculdade conferida pelo legislador ao contraente não faltoso, não resultando automaticamente do incumprimento.
A extinção do contrato por resolução, com os consequentes efeitos jurídicos que dela possam resultar, não se basta com o incumprimento definitivo que é o seu fundamento, antes exige uma declaração do contraente não faltoso no sentido de que lhe pretende pôr um termo, como prevê o art.º 436.º n.º 1 do C.Civil, devendo ser invocado o fundamento legal ou contratual para o efeito.
Avaliando o caso em presença, verifica-se que a R. não procedeu à entrega voluntária da coisa objeto do contrato de compra e venda à A., que já havia realizado o pagamento da totalidade do seu preço, tendo esta obtido judicialmente, no âmbito da providência cautelar que correu termos, a entrega do veículo em questão, ainda que sem motor, sem caixa de velocidades e sem a ligação da caixa ao diferencial, sendo que quando da celebração do contrato o mesmo possuía todas as peças necessárias ao seu bom funcionamento, circulando normalmente, tendo sido inclusivamente utilizado pela R. após essa data, que mantém na sua posse as peças em falta.
Não obstante esta situação, a A. tem vindo sempre a pugnar pelo cumprimento do contrato de compra e venda celebrado com a R., revelando dessa forma o seu interesse na manutenção do contrato, não obstante a R. não ter cumprido o seu dever de entrega da coisa no estado em que a mesma se encontrava ao tempo da venda.
Veja-se que a A. não só nunca realizou uma interpelação admonitória nos termos do art.º 808.º n.º 1 do C.Civil, fixando um prazo razoável para que a R. cumprisse a prestação em falta, por nela perder o interesse na sequência da mora, como ainda expressamente refere na sua p.i. que opta pela reparação da viatura em pleno estado de funcionamento em lugar de resolver o contrato (art.º 56.º da p.i.), isto num momento em que a carroçaria do veículo já lhe havia sido entregue em sede de procedimento cautelar que intentou. Na presente ação, o primeiro pedido que a A. formula é no sentido de ser reconhecido o seu direito de propriedade sobre a viatura e restituído o bem.
Na avaliação desta questão a sentença sob recurso pronunciou-se da seguinte forma: “Desde logo se diga que, como efeito deste contrato ocorreu a transmissão da propriedade do veículo para a esfera jurídica da A., pelo que, o pedido de reconhecimento desta como dona e legítima proprietária do veículo será desde logo julgado procedente, em face do disposto nos artigos 879º, 1316º, 1371º a) e 408º. Alegou a A. e provou que a R. não entregou o veículo do modo como fora adquirido em abril de 2021, entregando o veículo sem motor, sem caixa de velocidades e sem a ligação da caixa ao diferencial. Mais se provou que a R. mantém na sua posse as peças em falta no veículo, as quais pode entregar e colocar no mesmo. Daqui resulta o incumprimento pela R. do disposto no artigo 882º nºs 1 e 3; com efeito a R. não entregou o veículo no estado em que se encontrava ao tempo da venda. Porém, provando-se que a R. tem na sua posse as peças do veículo, as quais pode entregar e colocar no mesmo, não estamos face a um incumprimento, mas sim perante mora – a R. incumpriu de forma defeituosa a sua obrigação, mas a obrigação ainda pode ser cumprida – cfr. artigo 804º. Com a entrega à A. do veículo com as peças devidamente montadas e em funcionamento nas condições em que se encontrava à data da conclusão do negócio a R. cumpre a sua obrigação.”
Deste modo, a sentença deu acolhimento ao primeiro pedido apresentado pela A. que requer o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o veículo objeto do contrato que identifica e a sua entrega, reconhecendo que pelo facto do cumprimento da obrigação ainda ser possível e mantendo a A. o seu interesse na prestação, o incumprimento em que a R. se encontra se traduz numa situação de mora e não de incumprimento definitivo.
Alega agora a Recorrente que o comportamento da R. configura um incumprimento definitivo do contrato, nos termos do art.º 808.º n.º 1 do C.Civil, por impossibilidade objetiva da prestação, pela inércia da R. e resistência ativa à entrega, utilização abusiva do bem e sua entrega incompleta em sede de providência cautelar, afirmando ter a faculdade de optar pela resolução do contrato, o que não fez e expressamente afastou, com os pedidos que formula na presente ação e concretamente ao reclamar a entrega do camião objeto do contrato de compra e venda.
Não há nenhuma impossibilidade absoluta da R. proceder à montagem das peças em falta e pôr o veículo nas condições de funcionamento que tinha à data da compra, competindo à R., em razão do seu incumprimento, diligenciar pela realização da prestação em falta, na qual foi condenada, pondo o veículo com as peças e no estado de bom funcionamento que o mesmo tinha à data da compra, não constituindo uma impossibilidade de tal prestação o facto da carroçaria estar na posse da A., ainda que naturalmente necessite da sua colaboração para o cumprimento. Esta circunstância pode onerar mais a R. no cumprimento da sua prestação, mas a isso foi ela que deu causa ao não proceder à entrega voluntária do bem, sendo também ela que, no âmbito da presente ação referiu ter as peças em falta na sua posse, que pode entregar e colocar no veículo.
Tal como se refere na sentença sob recurso, o devedor não realizou a prestação a que estava obrigado no tempo devido, mas a mesma continua ser possível, pelo que estamos perante uma situação de mora, nos termos previstos no art.º 804.º n.º 2 C.Civil.
Persistindo a mora da R. na realização da prestação, nada obsta também a que a A. venha a fixar um prazo razoável para o cumprimento, nos termos do art.º 808.º n.º 1 e 2 do C.Civil, convertendo a mora em incumprimento definitivo caso perca o interesse na prestação, em razão do atraso que venha a ocorrer.
Resta concluir, que não merece censura a sentença sob recurso quando qualifica o incumprimento da R. como mora e não como incumprimento definitivo, por não se encontrar verificada nenhuma das circunstâncias suscetíveis de o determinarem, sendo a prestação ainda possível e mantendo a A. o seu interesse na mesma, como decorre do seu primeiro pedido. - da condenação da R. no pagamento de € 101.432,69 destinados à reposição do veículo no estado em que se encontrava à data da compra
Alega a A. Recorrente que tem direito ao pagamento da quantia de € 101.432,69 com vista à reposição do veículo no estado contratado, invocando o art.º 913.º do C.Civil que alude à venda de coisas defeituosas, podendo a parte lesada optar por executar a prestação a expensas do devedor, exigindo o reembolso das despesas necessárias, quando a substituição do bem não seja possível.
Sobre esta questão, a sentença recorrida pronunciou-se da seguinte forma: “Peticiona ainda a A. a condenação da R. à substituição do bem, no prazo de 15 dias, por outro da mesma categoria, marca, quilometragem que tinha à data da compra, e em perfeito estado de funcionamento, ou no caso de não cumprimento ou impossibilidade, ser a R. condenada ao pagamento, no prazo de 15 dias, após o prazo supra, de indemnização no valor da reparação do bem defeituoso, no montante de €101.432,69 a título de danos patrimoniais. Não obstante a A. falta de fundamentação jurídica na PI do pedido formulado, afigura-se-nos que a A. entende ser aplicável à situação dos autos o regime da venda de coisa defeituosa. Não perfilhamos esse entendimento, o que está em causa nos autos, face à matéria de facto provado, não é um vício do veículo que desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinado, nem a falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, mas sim, o incumprimento stricto sensu do contrato de compra e venda do veículo identificado nos autos, na medida em que a R. incumpriu a obrigação de entrega do veículo adquirido pela A.. Só com a entrega efetiva do veículo adquirido pela A., ou seja, a carroçaria com o motor, caixa de velocidades, ligação da caixa ao diferencial e todas as peças que o guarnecem e necessárias ao seu bom funcionamento, se poderá equacionar a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas, caso o veículo apresente algum defeito de funcionamento. Em face da prova produzida, o contrato não está cumprido, estando a R. em mora, pelo que, não é aplicável o regime de venda de bens defeituosos, mas tão só o regime decorrente da mora, sendo a R. condenada como supra referido ao integral cumprimento contratual. Com este fundamento serão os pedidos de substituição do veículo e de indemnização pelos custos de reparação julgados improcedentes por não provados.”
Nos art.º 913.º ss. do C.Civil vem o legislador estabelecer o regime geral da venda de coisas defeituosas.
O art.º 913.º começa por estipular: “1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes. 2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.”
De forma clara ensina-nos a este propósito Luís Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Contratos em Especial, Vol. III, pág. 120: “A aplicação do regime da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual. Quanto ao primeiro pressuposto, a lei faz incluir assim no âmbito da venda de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias. Apesar de a distinção entre vícios e falta de qualidades não se apresentar tarefa fácil, parece que se poderá sustentar que a expressão "vícios", tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente, enquanto que "a falta de qualidades", embora não implicando a valoração negativa da coisa, a coloca em desconformidade com o contrato. Em relação ao segundo pressuposto, para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas toma-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a que é destinada. A primeira situação refere-se aos vícios e a segunda à falta de qualidades, enquanto que a terceira abrange estas duas situações.”
Da conjugação dos art.º 913.º n.º 1, 914.º e 915.º do C.Civil, resulta que o comprador do bem defeituoso tem o direito de exigir do vendedor, em alternativa, a reparação da coisa, a anulação do contrato ou a redução do preço.
Tal como considerou a sentença sob recurso, o caso em presença não configura uma situação de venda de coisa defeituosa, já que não se trata da compra de um veículo que se apresenta com defeito, que não é suscetível de assegurar o fim a que se destina ou que não detém as qualidades asseguradas pelo vendedor, mas antes um incumprimento do contrato pela vendedora ao faltar à obrigação principal de realizar a entrega da coisa nos termos previstos no art.º 879.º al. b) do C.Civil, havendo por isso que recorrer ao regime geral do cumprimento das obrigações previsto no art.º 762.º ss. do C.Civil.
Como ensinam Ana Filipa Morais Antunes e Rodrigo Moreira, in Comentário ao Código Civil, Direito das obrigações, Contratos em Especial, da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, pág. 49, em anotação ao art.º 879.º do C.Civil: “À obrigação de entrega aplica-se o regime comum do cumprimento das obrigações previsto no art.º 762.º ss. A directriz geral da boa fé impõe que ambas as partes, alienante e adquirente, atuem em termos retos, honestos e que colaborem reciprovamente com vista à satisfação integral dos interesses implicados no cumprimento da obrigação e no exercício do direito correspondente- cfr. artigo 762.º. n.º 2 para cuja anotação se remete.”
No caso a A. começou por reclamar da R. a entrega do veículo, na qual a R. veio a ser condenada nos termos do dispositivo da al. b) da sentença recorrida, ou seja, com as suas peças devidamente montadas e em devido funcionamento, tal como se encontrava à data da celebração do contrato, o que é incompatível com um pedido de substituição do veículo ou de condenação da R. a indemnizar a A. por um valor supostamente necessário à sua reparação, que nem veio a resultar apurado no processo.
Salienta-se a este propósito que, ainda que a Recorrente venha invocar um documento junto aos autos para atestar o suposto valor da reparação do veículo, o mesmo foi desconsiderado pelo tribunal a quo, como consta da motivação da decisão da matéria de facto, sendo certo que a Recorrente não vem impugnar tal decisão nos termos previstos no art.º 640.º n.º 1 do CPC.
A entrega do veículo nas condições de bom funcionamento em que se encontrava à data da compra, na qual a R. foi condenada é incompatível com este pedido formulado pela A. de condenar a R. a pagar-lhe o valor que a mesma considera necessário à reparação do veículo, na medida em que com a realização daquela primeira condenação a obrigação da R. fica cumprida. - do direito da A. a ser indemnizada pelos lucros cessantes
Alega a Recorrente que tem direito a ser indemnizada pelos lucros cessantes que refere agora deverem ser fixados com recurso à equidade, tendo invocado na sua p.i. para fundamentar este pedido, que pretendia revender o veículo no âmbito da sua atividade, que tinha possibilidade de vender por € 55.000,00 o que ficou impedida de fazer, por o mesmo não lhe ter sido entregue.
A sentença recorrida, afirmando que o devedor é responsável pelos prejuízos resultantes do incumprimento, considerou que a A. não logrou provar este dano que reclama.
É um princípio geral contemplado no art.º 798.º do C.Civil que “O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que cause ao credor”, acrescentado o art.º 804.º n.º 1 do C.Civil que a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
Como é pacífico, de acordo com o regime da obrigação de indemnizar contemplado nos art.º 562.º ss. do C.Civil, os lucros cessantes são suscetíveis de ser indemnizados, estabelecendo expressamente o art.º 564.º n.º 1 que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado como os benefícios que o lesado deixou de obter na sequência da lesão.
Compete ao lesado fazer a prova da existência dos danos cuja indemnização requer, como resulta do art.º 342.º n.º 1 do C.Civil ao estabelecer que cabe a quem invoca um direito fazer a prova dos factos constitutivos do direito que invoca.
Sobre esta questão a sentença sob recurso pronunciou-se da seguinte forma: “A este respeito não logrou a A. provar que destinasse o veículo adquirido à R. a revenda, nem qual o destino concreto do mesmo e muito menos o preço pelo qual este seria alienado. Para prova do dano que alegou, não basta a A. ter como objeto a compra e venda de veículos, tanto mais que tem igualmente por objeto o aluguer de veículos, teria a A. que provar o fim a que em concreto destinava o veículo adquirido à R., o que reitera-se não fez. Acresce que a A. não logrou fazer qualquer prova quanto aos motivos pelos quais o veículo não foi entregue em abril de 2021, nem que tenha feito quaisquer diligências junto da R. para a entrega do mesmo, ou que a tivesse interpelado – cfr. artigo 777º. Nestes termos e com fundamento na falta de prova dos danos alegados a título de lucros cessantes será o pedido formulado pela A. a esse respeito julgado improcedente por não provado.”
Se se atentar nos factos que resultaram provados e não provados, decisão que não foi impugnada pela Recorrente, verifica-se que não só não se provou que a A. ficou impossibilitada de vender o veículo a um terceiro por € 55.000,00, como nem sequer se provou que a A. tenha adquirido o veículo em questão para revenda.
A indemnização equitativa dos danos, que a Recorrente vem invocar, vem prevista no art.º 566.º n.º 3 do C.Civil para as situações em que não pode ser averiguado o valor exato dos danos, julgando o tribunal equitativamente dentro dos limites que tiver por provados, mas sempre supõe a prova efetiva da existência de danos.
Como nos diz de forma clara o Acórdão do STJ de 28-10-2010 no proc. 272/06.7TBMTR.P1.S1 inwww.dgsi.pt : “a aplicação do regime prescrito no nº3 do art 566º do CC em sede de puros e típicos danos patrimoniais envolve, desde logo, a questão de saber se a indefinição factual acerca do real valor do dano sofrido é susceptível de suprimento através de uma ponderação equitativa; é que, como atrás se referiu, o apelo à equidade é, neste caso, puramente complementar e acessório da aplicação da teoria da diferença, pressupondo que o «núcleo essencial» do dano está suficientemente concretizado e processualmente demonstrado e quantificado – não devendo o juízo equitativo representar um verdadeiro e arbitrário «salto no desconhecido», dado perante matéria factual de contornos manifestamente insuficientes e indeterminados. A previsão contida no referido preceito legal supõe, na verdade, o preenchimento de duas condições ou requisitos: não estar determinado apenas o «valor exacto» do dano mas terem sido provados «limites», máximo e mínimo, para esse dano.”
Na situação em presença a A. não logrou sequer provar que o destino do veículo fosse a revenda, ou que ficou impedida de o revender por um preço superior àquele pelo qual o adquiriu, designadamente aquele que invocou, pelo que estamos perante uma situação em que não resultaram apurados factos que apontem para este dano efetivo da A., ainda que de valor não precisamente apurado, ou sequer os limites de tal prejuízo, no âmbito dos quais o tribunal poderia formular um juízo equitativo, nos termos previstos na norma referida.
Não merece por isso censura a decisão recorrida quando absolve a R. deste pedido indemnizatório contra ela formulado. - do direito da A. na redução do preço do veículo
Alega a Recorrente que deve ser reduzido o preço da viatura no valor de € 12.300,00 atenta a desvalorização do bem, atenta a sua desvalorização comercial resultante do tempo decorrido, bem como pelo uso que entretanto lhe tem sido dado pela R., invocando como suporte deste pedido os art.º 911.º e 913.º do C.Civil.
A sentença sob recurso decidiu sobre esta questão o seguinte: “Veio a A. requerer a redução do preço. Estatui o artigo 884º nº 1 “se a venda ficar limitada a parte do seu objecto, nos termos do artigo 292.º ou por força de outros preceitos legais, o preço respeitante à parte válida do contrato é o que neste figurar, se houver sido discriminado como parcela do preço global.” A redução do preço implicaria a nulidade ou a anulação parcial do contrato, o que não foi peticionado pela A., sendo a redução pedida mesmo incompatível com o pedido de substituição do bem igualmente formulado, dado que a substituição sempre teria por pressuposto que o contrato se mantivesse tal como celebrado, quanto ao objeto. Assim e sem mais, por não se verificarem os pressupostos para a redução do preço, não invocando a A. a nulidade ou anulabilidade do contrato, será a ação julgada improcedente quanto a este pedido.”
Como já se teve oportunidade de referir, ao caso não é aplicável o regime jurídico da venda de coisa defeituosa invocado pela A., sendo certo que como se diz na sentença recorrida, não estamos perante uma situação em que a venda ficou limitada a parte do seu objeto, situação que, na redução do negócio, admite uma redução do preço, nos termos previstos no art.º 884.º do C.Civil, pelo contrário, a obrigação da R. proceder à entrega da coisa em bom estado de funcionamento, como se encontrava à data da venda, mantém-se e no cumprimento de tal obrigação foi a R. condenada pelo tribunal a quo.
A redução do preço do valor do bem pago pela A. não encontra qualquer fundamento legal, salientando-se que no seu recurso a Recorrente limita-se a invocar o que já havia invocado, em termos completamente desligados da motivação apresentada na sentença sob recurso, que não contraria nos seus fundamentos, não esclarecendo, designadamente, em que termos é que foram violadas as normas jurídicas que serviram de suporte à decisão, ou outro sentido com que devessem ser interpretadas.
Improcede também nesta parte o recurso da A. - do direito da A. a ser indemnizada pelos danos não patrimoniais
Pugna a Recorrente pelo ressarcimento de danos não patrimoniais que sofreu, devendo a R. ser condenada a pagar-lhe o valor mínimo de € 5.000,00.
A esta questão a Recorrente dedica apenas a conclusão 13) do seu recurso, sem que na motivação apresentada discorra sobre a sua discordância com a sentença recorrida, designadamente não esclarecendo qual a norma jurídica violada com o entendimento nela defendido.
A sentença sob recurso pronuncia-se sobre esta questão nos seguintes termos: “Por ultimo pede a A. a condenação da R. ao pagamento de valor não inferior a €5.000 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais. Este pedido será naturalmente julgado improcedente, dado que a A. nem sequer alegou e muito menos produziu qualquer prova quanto aos alegados danos de natureza não patrimonial, os quais, diga-se, são dificilmente concebíveis por referência a uma sociedade comercial, sendo que, seja qual for o entendimento, os mesmos nunca se presumem, carecendo sempre de alegação e prova.”
Relativamente aos danos não patrimoniais, o art.º 496.º do C.Civil prevê no seu n.º 1 a indemnização dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, merecem a tutela o direito.
Ensina Antunes Varela in Das Obrigações em Geral, pág. 428: “A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objetivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de fatores subjetivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada); por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma indemnização de ordem pecuniária ao lesado.”
Como já se teve oportunidade de referir, o direito indemnizatório reclamado pela parte no processo, confere-lhe o ónus de alegar e provar os factos constitutivos de tal direito, nos termos previstos no art.º 342.º n.º 1 do C.Civil.
No caso, constata-se, tal como refere a sentença sob recurso que a A. não invocou na sua p.i. quaisquer danos não patrimoniais que tenha sofrido em razão do incumprimento contratual da R. que merecessem ressarcimento a este título, em suporte do pedido que formulou a final.
Sem necessidade de outras considerações, já se vê que improcede o recurso nesta parte.
V. Decisão:
Em face do exposto, julgam-se totalmente improcedentes quer o recurso interposto pela A., quer o recurso interposto pela R., mantendo-se a sentença proferida.
Custas por cada uma das partes por terem ficado vencidas – art.º 527.º n.º 1 e 2 do CPC.
Notifique.
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Lisboa, 9 de outubro de 2025
Inês Moura
Susana Gonçalves
Higina Castelo