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LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PROCESSO JUDICIAL
INCAPACIDADE DE FACTO
EXECUTADO
COMPENSAÇÃO
Sumário
Sumário (da responsabilidade do relator): I. Verifica-se uma situação de litigância de má-fé a título meramente culposo quando decorra dos autos que uma das partes atuou no processo de forma gravemente censurável, em violação da equidade que deve estruturar o seu decurso; II. O credor que instaura um procedimento de injunção e posteriormente uma execução contra uma pessoa incapaz de entender o sentido de um processo judicial omitindo informação da incapacidade de facto do visado, atua culposamente; III. Decorrendo dos autos que os processos foram simultaneamente movidos contra outro condevedor, familiar direto do incapaz e com quem aquele vive, que veio a ser posteriormente designado seu acompanhante legal, tendo as citações de ambos sido enviadas para a morada comum e que a condevedora (e acompanhante do maior) se vinha furtando a contactos do credor há mais de um ano, não é possível qualificar como grave a culpa do exequente; IV. A atribuição de compensação ao executado ao abrigo do art.º 858.º do CPC é independente da existência de má-fé processual, bastando-se com a verificação de culpa leve de quem instaura ou impulsiona o processo executivo; V. A norma em causa (art.º 858.º do CPC) tem natureza simultaneamente sancionatória e compensatória, impondo ao exequente uma sanção, mas apenas ante a demonstração de danos causados ao executado pelos atos processuais de um processo executivo que finde com a procedência de embargos; VI. Na falta de alegação de danos concretos sofridos pelo executado e, consequentemente, ante o seu não apuramento, nunca poderá um exequente ser sancionado com base neste preceito, não se podendo estabelecer um prejuízo geral e indeterminado pela simples existência de um processo executivo. –
Texto Integral
Decisão:
I. Caracterização do recurso:
I.I. Elementos objetivos:
- Apelação – 2 (duas), nos autos;
- Tribunal recorrido – Juízo de Execução de Oeiras - Juiz 1, Comarca de Lisboa-Oeste;
- Processo em que foi proferida a decisão recorrida – Embargos de executado n.º 5048/22.1T8LSB-B;
- Decisão recorrida – Despacho saneador.
--
I.II. Elementos subjetivos:
- Embargante/executado): - ---(representado pela mãe - ---). –
- Embargada/exequente: - ---;
---
I.III. Síntese dos autos:
- Instaurou a exequente execução para cobrança de quantia certa, liquidando o valor do seu crédito em €6.889,26;
- Apresentou como título executivo um requerimento de injunção com aposição de fórmula executória;
- Sustenta o seu crédito, em síntese, alegando:
- Ser uma entidade prestadora de cuidados de saúde;
- Ter prestado, em tal âmbito, serviços ao requerido, cujo valor corresponde à dívida de capital reclamada;
- Que tais valores não foram pagos, vencendo juros desde a data de vencimento;
- Citado, embargou o executado, representado pela sua mãe, dizendo, em síntese:
- Que o requerido sofre de doença mental, do espetro do autismo, que determina sucessivos períodos de internamento médico;
- Que esteve internado em estabelecimento da exequente;
- Que foi declarada judicialmente a sua insuscetibilidade de gerir pessoalmente a sua pessoa e bens, sendo determinado o seu acompanhamento pela mãe;
- Que não recebeu qualquer carta para citação no procedimento de injunção e, caso a tenha recebido e assinado o respetivo aviso, não entendeu o seu teor;
- Em todo o caso, a acompanhante mãe já procedeu ao pagamento de parte da dívida exequenda;
- Ao requerer injunção e instaurar execução pessoalmente contra o executado a exequente atua de má-fé, bem sabendo que o executado padece de anomalia psíquica impeditiva de conhecer os termos de um processo judicial;
- O executado não trabalha nem aufere rendimentos, recebendo uma pensão de valor de €350 (trezentos e cinquenta);
- A mãe, sua acompanhante, trabalha e aufere o ordenado mínimo nacional.
- Notificada, contestou a exequente/embargada, concluindo pela improcedência total dos embargos, dizendo:
- Que a citação para injunção foi assinada pelo punho do executado, impugnando que não tenha entendido o respetivo teor;
- Que foram efetuados pela mãe do executado dezanove pagamentos parcelares da dívida, todos em momento anterior à alta do executado da instituição e à instauração da injunção;
- Que tais pagamentos foram devidamente computados na conta-corrente do executado, correspondendo o valor liquidado ao remanescente da dívida;
- Que, em 11/09/2020, no momento da alta do seu filho da Instituição, a embargante/representante do embargante assinou declaração de dívida onde consta a confissão do montante peticionado;
- Que, após essa data, foi efetuado apenas um pagamento, no valor de 300€, no dia 13/10/2020, computado no valor liquidado, nada mais sendo pago desde então;
- Que as dezoito faturas computadas na injunção foram remetidas para a morada do executado e da mãe, não foram devolvidas nem contestado o seu pagamento;
- Que a mãe do embargante (e co-executada) foi diversas vezes e sob várias formas interpelada para pagamento, o que não fez, dando origem à instauração da injunção e subsequente cobrança executiva;
- Que durante mais de um ano se furtou a contactos da exequente, levando à instauração dos processos de cobrança.
- Foi determinado e oficiado ao Juízo Local Cível de Cascais envio de sentença da decisão de acompanhamento executado, com nota de trânsito em julgado;
- Junto tal documento aos autos, foi proferido despacho determinativo da suspensão da execução e consignando entendimento que os autos permitiam prolação decisão sem necessidade de produção de prova, convidando as partes a pronunciarem-se;
- Pronunciou-se a embargante, reiterando o teor da sua oposição e das conclusões que da mesma decorrem;
- Após, foi proferido despacho saneador-sentença, cujo dispositivo tem o seguinte teor:
Por todo o exposto, com os fundamentos de facto e de direito explanados, julgam-se:
- Procedentes por provados, os presentes embargos de executado, com consequente extinção da execução relativamente a ---.
- Procedente o pedido de condenação por litigância de má-fé deduzido pelo Embargante/Executado, com consequente condenação do Embargado/Exequente no pagamento de multa processual que se fixa em 5 (cinco) UC’s.
- Improcedente o pedido de condenação do Embargado/Exequente em multa, nos termos do artigo 858º do CPC.
- Deste despacho, inconformadas, recorreram ambas as partes, a exequente/embargada restringindo o recurso à decisão relativa à má-fé e o executado/embargante à não atribuição de uma compensação a seu favor pela instauração da execução.
--
II. Objeto do recurso deduzido pela embargante/exequente:
II.I. Conclusões apresentadas pela recorrente nas suas alegações (sem atualização de grafia, suprimindo trechos impertinentes):
A. O presente recurso tem por objeto a sentença proferida (...);
B. Não pode a recorrente conformar-se com a decisão impugnada (...) não se verifica qualquer das situações a que aludem as alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 542º do CPC, nomeadamente a sua conduta não representa omissão de factos relevantes com intenção de obter uma decisão do litígio que lhe seja favorável, nem de omissão grave do dever de cooperação;
C. Para existir litigância de má-fé não basta a dedução de pretensão sem fundamento (...), para existir litigância de má-fé o recorrido teria de ter alegado e provado factos reveladores de uma conduta censurável (...);
D. A conduta da recorrente e os factos dados como provados não permitem concluir que a recorrente atuou “com dolo ou negligência grave, tenha alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa ou tenha praticado omissão grave do dever de cooperação;
E. Com efeito, só pode afirmar-se a litigância de má-fé se o processo fornecer elementos seguros (...) sobre a atuação dolosa ou gravemente negligente da parte, o que (...) não se verifica neste caso. A má-fé processual não opera no domínio da interpretação e aplicação das regras do direito, mas tão só no domínio dos factos, pelo que a sustentação de posições jurídicas porventura desconformes com a correta interpretação da lei não é suficiente para se afirmar a litigância de má-fé de quem as sustenta;
F. Nesta condenação, o tribunal a quo não cumpriu o estabelecido nas normais legais, tendo violado os artigos 542º e 543º do CPC;
G. O tribunal a quo considerou oito factos como provados (...);
H. Destes oito factos provados, o tribunal a quo concluiu, de forma resumida, que a recorrente remeteu injunção e execução contra um seu ex-utente sabendo que ele se encontrava incapaz de receber tal citação, por anomalia psíquica, omitiu informação clínica do processo de cobrança judicial para obter resultado conveniente, obteve título executivo inválido e ação de execução indevida, praticando por isso uma conduta censurável, sendo merecedora de condenação como litigante de má-fé.
I. O tribunal a quo não fez uma correta aplicação do direito aos factos dados como provados, senão vejamos a cronologia dos mesmos por outro prisma:
- ---esteve internado no ---entre 06.06.2017 a 11.09.2020;
- O procedimento de injunção foi instaurado a 16.11.2021 contra dois requeridos: ---e --- (mãe de --);
- A 17.11.2021 foi expedida notificação do requerimento de injunção dirigida ao requerido -- - e à sua mãe, por via postal registada com aviso de receção para a morada constante das faturas peticionadas;
- O aviso de receção foi devolvido ao Balcão Nacional de Injunções a 10.12.2021 com a indicação de ter sido assinado pelo próprio requerido a 30.11.2021;
- A 18.01.2022 foi aposta fórmula executória ao requerimento de injunção;
- O Exequente, ora recorrente, instaurou a execução a 24.02.2022 com base em requerimento de injunção com fórmula executória aposta a 10.01.2022;
- A 02.04.2022 o Ministério Público intentou ação especial de acompanhamento de maior tendo por beneficiário -- -, tendo sido proferido despacho a 03.10.2022 determinando que “Atento a impossibilidade do(a) citando(a) de receber a citação e (ou) falta de apresentação de oposição, desde já se autoriza a nomeação de defensor, para querendo, nos prazos legais, contestar, nos termos do art. 21.º, n.º 2 CPC, por remissão do art. 895.º, n.º 2 CPC, na redação da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto.”
- A 24.03.2023 foi proferida sentença que declarou o acompanhamento do maior ---, fixou o dia 23.07.1990, como data de começo da incapacidade de exercício do Requerido, nomeou como acompanhante, ---, fixou o domicílio do acompanhado, na residência da acompanhante, estabeleceu o conteúdo do acompanhamento, como representação geral.
J. Ou seja, na data do requerimento de injunção – um ano após a saída do utente da instituição–, a recorrente não tinha qualquer informação sobre o paradeiro do utente ou da sua mãe, muito menos sobre a pendência de processo de maior acompanhado.
K. Recorde-se que nesta execução está em causa o pagamento de faturas vencidas no âmbito da prestação de serviços variados relacionados com a assistência a pessoas com patologias clínicas. A recorrente não tem indicação de avaliação clínica pormenorizada que permita determinar o grau de incapacidade do recorrido. A recorrente conhecia apenas, na data da injunção, que o mesmo está inserido no espectro do autismo.
L. Ora, o processo de maior acompanhado do recorrido só é iniciado a 02/04/2022 pelo Ministério Público, já durante a pendência desta ação de execução, e sem que a recorrente tivesse disso informação, com efeito, durante o período de internamento, a mãe de -- - responsabilizou-se pelo pagamento dos serviços, no entanto, na data da alta existia dívida de 5599,75 € que não foi liquidada; após a alta, a mãe do -- deixou de responder a todas as solicitações e contactos da recorrente, razão pela qual a mesma prosseguiu com a cobrança judicial do valor em dívida.
M. Um ano após a alta, sem expectativa de recuperação voluntária da dívida, a recorrente peticiona o valor da dívida contra o -- e contra a sua mãe, justamente por não ter informação sobre qualquer um deles.
N. E assim é porque até ao conhecimento do processo de maior acompanhado (recorde-se que a recorrente só teve conhecimento da sentença de medidas de acompanhamento na pendência da execução), ambos são responsáveis pelo pagamento da dívida, o -- porque configura como benificiário dos serviços prestados pela recorrente, conforme faturas peticionadas, e a sua mãe porque se responsabilizou pelo pagamento de tais faturas.
O. Posteriormente, e nos termos legais, o serviço postal do balcão nacional de injunções deveria ter verificado e atestado a impossibilidade de o -- receber e compreender a notificação em causa; o distribuidor postal deveria ter-se abstido de fazer a citação considerando que «a notória incapacidade de facto do citando constitui motivo de impossibilidade de entrega da carta se outra pessoa não a receber e assinar o aviso de recepção» lavrando nota da ocorrência e devolvendo o expediente ao tribunal (cfr. nº 7 do art 228º); situação em que o tribunal procederá em conformidade com o disposto na norma do art. 234º, sendo que concluindo pelo reconhecimento da incapacidade, temporária ou duradoura, nomeará ao citando curador provisório, no qual será feita a citação.
P. No entanto, tal não aconteceu nos autos: foi o próprio -- que assinou o aviso de receção do balcão nacional de injunções a 30/11/2021. A mãe do --, também requerida na injunção, recebeu e assinou o aviso de receção do balcão nacional de injunções em seu nome.
Q. Não foi apresentada oposição à injunção por nenhum dos requeridos. Nem pelo --, nem pela sua mãe, o que determinou a aposição automática da fórmula executória, nos termos do artigo 14º do DL 269/98 de 1/09. Após a aposição da fórmula executória (com ambos os requeridos a constarem dela) a recorrente prosseguiu para a ação de execução. Ora, constando os dois requeridos no título executivo, ambos constam como executados na ação competente.
R. A recorrente não ignora que, nos termos legais, ao ter sido recebida a citação da execução, a defesa do -- deveria ser, com o devido respeito, no sentido de o mesmo não poder estar em juízo ele próprio porque já teriam sido encetadas diligências para o processo de maior acompanhado.
S. Mas tal não aconteceu. A recorrente apenas tinha conhecimento que o -- tinha recebido a carta com a citação para a injunção e não tinha existido oposição, nem do --, nem da sua mãe.
T. E aqui se repita, um ano desde a saída do utente, o credor não pode ignorar que ambos os responsáveis pela dívida devem ser chamados a juízo. A recorrente não sabe o estado de saúde e a capacidade jurídica de alguém com quem já não tem contacto há mais de um ano. A recorrente não sabia sequer se iria conseguir chamar algum dos dois a juízo.
U. A concretização da citação do --, a automática emissão da fórmula executória e a posterior invalidade do título executivo com consequente extinção da execução não ocorreram por atuação da recorrente, logo nunca se poderia considerar o comportamento da mesma como doloso ou com negligência grave.
V. Ainda que se considerasse o disposto no artigo 188º alínea e) do CPC, e a falta de citação do --, não poderia concluir-se pela má-fé da recorrente. Os serviços postais deveriam ter determinado a não citação do requerido/recorrido e, com isso, impedido a tramitação natural dos autos processuais.
W. A recorrente não atuou por forma a causar grave prejuízo para o direito de defesa do recorrido, tanto assim é que foi a própria que em sede de contestação concordou que o mesmo, tendo sido considerado maior acompanhado em 2023 deveria estar em juízo representado pela sua acompanhante.
X. Em momento algum foi falseada a realidade. A recorrente considera que os factos conhecidos na data da injunção e do requerimento executivo são bastantes para chamar a juízo os dois visados e os factos conhecidos posteriormente nomeadamente o processo de maior acompanhado e medidas de acompanhamento, levam a que um deles esteja representado pelo outro.
Y. Os factos considerados provados pelo tribunal a quo não permitem concluir que a recorrente atuou com intenção maliciosa, negligência grave ou grosseira, de forma manifesta e inequívoca, de forma a impedir ou entorpecer a ação da justiça.
Z. O tribunal a quo quis atribuir um juízo de censura à recorrente sobre um comportamento que não é ilícito, ilegal, incorreto, nem censurável. Aliás, como se disse, não estão assentes factos que permitam concluir por este juízo de censurabilidade.
AA. O tribunal a quo considera, erradamente, que a recorrente não faz qualquer menção à patologia que o utente tem na injunção e execução e, com o devido respeito, não teria de o fazer: a recorrente chamou os dois sujeitos ao processo judicial. A recorrente não elaborou uma injunção contra o utente e outra contra a mãe; não entregou uma injunção apenas contra o utente; a recorrente peticionou a dívida contra os dois responsáveis na data da injunção.
BB. Por outro lado, o tribunal a quo considerou erradamente ser “irrelevante (…) que a sua incapacidade judiciária não estivesse ainda judicialmente declarada – cf art 17º do CPC [--]”, desconsiderando a interpretação adequada dos artigos 154º nº 3 do Código Civil, 16º nº 1 e 19º do CPC.
CC. Relacionar a prestação de serviços de cuidados de saúde mental com a impossibilidade absoluta de demandar um devedor (não sujeito a medidas de acompanhamento) a pagar quantias vencidas e devidas é desproteger sobremaneira a posição deste credor concreto, a recorrente. De facto, situações há em que pessoas com patologias de saúde mental não são sujeitas a medidas gerais de representação e têm autonomia para exercer determinados direitos e cumprir determinados deveres, como é do conhecimento geral.
DD. Nestes termos, andou mal o tribunal a quo ao desconsiderar os vários preceitos legais que possibilitam a presença do recorrido na injunção e execução. Aliás, desonerar, à partida, todos os utentes da recorrente de pagar o internamento pelo facto de ser uma instituição que á apoio a pessoas com problemas de saúde mental seria, isso sim, atuar com negligência grave uma vez que a premissa seria sempre “quem aqui reside (e gera dívida vencida e não paga) nunca poderá ser o credor ativo da dívida porque está internado numa instituição de saúde mental”. Esta interpretação deve ser afastada.
EE. Por outro lado, era do conhecimento da recorrente que o utente/recorrido auferia pensão de invalidez e esse valor mensal ere gerido pela sua mãe, sem que, no entanto, esse rendimento fosse utilizado para liquidar a dívida vencida.
FF. Nos termos do artigo 30º nº 1 e 2 do CPC o réu é parte legitima quanto tem interesse direto em contradizer exprimindo-se este interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
GG. Não se pode ignorar que, na fase inicial da cobrança judicial, tenho o conhecimento dos factos à data, a recorrente tinha expectativa de poder penhorar bens de ambos os requeridos, e com isso recuperar a dívida. Por outro lado, antes do conhecimento das medidas de acompanhamento a recorrente não sabia e não tinha forma de saber quem poderia estar, naquele momento, administrar os rendimentos do --, quem liquidaria as suas dívidas e quem o auxiliaria nos demais atos da vida.
HH. Importa agora referir que a recorrente atua de forma distinta perante vários indivíduos sujeitos a internamento/residência: quem é internado e tem processo de maior acompanhado em curso ou transitado em julgado tem um tratamento administrativo de gestão de dívida diferente de quem tem um termo de responsabilidade e/ou uma pessoa de referência que se voluntaria para pagar mensalmente. No caso concreto, a mãe do recorrido, que assinou o termo de responsabilidade para liquidar as faturas estava incontactável há mais de um ano, sem responder aos contactos e solicitações da recorrente, com um acordo em incumprimento, com uma dívida pendente de 5599,75€, o que orientou a recorrente para um tratamento jurídico da dívida diferente.
II. Não pode este comportamento ser considerado censurável, devendo ser feita a devida análise aos factos provados.
JJ. Mais, o tribunal a quo considera que a recorrente “que pertence à --- é reconhecida desde --- pelo acompanhamento a diversos pacientes, na área da saúde mental, o que torna a sua conduta ainda mais censurável”, sem, no entanto, suportar a sua conclusão em factos que considerou como provados.
KK. Como se afirma nos acórdãos do STJ de 14/03/2002 e 15/10/2002, citados no ac. do Tribunal da Relação do Porto de 20/10/2009, a afirmação da litigância de má-fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para se concluir pela sua verificação, (...). No mesmo sentido, afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/11/2024 (...)
LL. No caso concreto, pelas razões expostas, entendemos que o processo não fornece elementos de onde se possa extrair com segurança a litigância de má-fé da recorrente, pelo que não pode subsistir a condenação aqui impugnada.
MM. O tribunal a quo não fundamenta a “omissão do dever de cooperação” da recorrente. Quais são os factos que permitem esta conclusão? As faturas peticionadas estão em nome do utente/recorrido; o contacto com a pessoa de referência deixou de ser possível após a saída do mesmo da instituição, apesar das insistências da recorrente.
NN. A considerar-se a interpretação do tribunal a quo, como pode a recorrente ou outra instituição semelhante, cobrar a dívida de uma pessoa que ainda não foi declarada maior acompanhada, mas tem uma doença do foro mental? Em termos práticos, como se configura a injunção para trazer os devedores à cobrança judicial?
OO. Neste caso concreto, entre a injunção (onde a mãe do utente/recorrido também foi requerido e não se opôs) e a ação de execução, foi iniciado e transitado em julgado o processo de maior acompanhado do recorrido, mas se não existissem medidas de acompanhamento, como poderia ser feita a defesa dos interesses das partes? Qual a solução jurídica para o caso concreto?
PP. A prestação de serviços em causa tem três sujeitos, dois dos quais responsáveis pelo pagamento dos valores associados (ainda que esta realidade possa ser transmutada ao longo do internamento, quando, por exemplo, é proposta e procedente ação de maior acompanhado e esse mesmo utente é sujeito a medidas de acompanhamento que incluem administração de bens e responsabilização de outrem pelo pagamento das dívidas).
QQ. No caso concreto tratava-se de um utente que tinha saído há mais de um ano da instituição, não existiam notícias do seu paradeiro, nem da sua mãe que se havia responsabilizado pelo pagamento; citado da injunção, o requerido assinou o aviso de receção e originou a emissão da fórmula executória, possibilitando assim a prossecução da ação executiva.
RR. A recorrente tinha a expectativa legitima de, através da notificação remetida ao recorrido, vir aos autos a pessoa que o representasse.
SS. Depois de ter uma assinatura do recorrido no aviso de receção da injunção, a recorrente considerou que deveria seguir contra ambos os requeridos (que não deduziram oposição à injunção). Sem que essa atitude estivesse dotada de malícia ou quisesse coartar o direito de defesa do recorrido. Tanto assim é que em sede de embargos de executado a sua mãe veio, a final, a alegar a incapacidade e juntar informação sobre as medidas de acompanhamento então verificadas.
TT. Para alem do mais, não existiu qualquer prejuízo patrimonial para o recorrido: não foram penhorados quaisquer bens do recorrido.
UU. O tribunal a quo deveria ter julgado a invalidade do título executivo e a extinção da execução com os factos provados assentes contra o recorrido, sem, no entanto, considerar verificada a litigância de má-fé da recorrente.
VV. Condenar a recorrente como litigante de má-fé na sequência da absolvição da instância pela procedência da verificada incapacidade judiciária (que é posterior ao início da cobrança judicial) viola o preceituado nos artigos 542º e 543º do CPC.
WW. Na letra do artigo 542º do CPC, só haveria lugar a litigância de má-fé com a falta grosseira à verdade, com a ausência de razão da parte que aquela não deveria desconhecer, com a distorção de provas, com a conduta processual desleal, com o abuso de direito de ação, com expedientes dilatórios ou com o desrespeito a decisões judiciais.
XX. O que, salvo o devido respeito, são indiscutivelmente cenários legais não subsumíveis aos presentes autos.
YY. Em função do exposto, entende a Recorrente que, contrariamente ao entendimento do tribunal a quo, e salvo o devido respeito, não deverá ser condenada como litigante de má-fé, uma vez que sendo a questão controvertida objeto de discussão e de alguma querela doutrinária e jurisprudencial (e sendo certo que a recorrente, não ocultou nenhum facto relevante para a decisão da causa, nem violou o dever de cooperação), não se poderá afirmar que a recorrente atuou com dolo ou negligência grave, pelo que não se encontra preenchido o disposto no art. 542.°, n.º 1 e n.º 2, alíneas b) e c) do CPC.
ZZ. Assim sendo, a decisão em crise fez uma incorreta interpretação dos factos e desadequada aplicação do Direito, designadamente das citadas disposições legais, que violou, devendo, por isso, ser determinada a anulação da decisão que condenou a Recorrente como litigante de má-fé em multa de 5 UCs.
AAA. Caso assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se considera, a verificar-se a confirmação da condenação da litigância de má-fé não resulta dos factos provados que a conduta da recorrente tenha tido qualquer intervenção negativa na tramitação e decisão da causa, pelo que a multa, a ser fixada, deveria ser pelo mínimo estabelecido.
BBB. A recorrente é uma instituição particular de solidariedade social, sem fins lucrativos, que administra o seu orçamento com vista ao proveito dos seus utentes, tentando sempre recuperar os valores em dívida, como é o caso dos autos, tendo por isso esta multa, como é bom de ver, enorme repercussão no seu património. A multa aplicada pelo tribunal a quo é excessivo e deve ser alterada para o valor mínimo legalmente aplicável.
Nestes termos e nos do douto suprimento, deve ser dado provimento ao recurso e a recorrente ser absolvida do pedido de condenação como litigante de má-fé, com as devidas consequências legais, ou caso assim não se entenda, ser a multa fixada pela condenação em causa reduzida para o mínimo legal estabelecido Assim se fazendo a acostumada
Justiça!
--
III. Objeto do recurso deduzido pelo embargante executado (sem atualização de grafia, suprimindo trechos impertinentes):
1. O ora Recorrente vem apenas apresentar recurso relativo à parte do Despacho Saneador- Sentença que declarou improcedente o seu pedido de condenação da Exequente/Embargada pelos danos que culposamente lhe foram causados e em multa nos termos do Artº. 858º do Código de Processo Civil.
2. O Executado/Embargante nos Artºs. 30º,31º, 32º e 33º dos Embargos de Executado faz referência aos danos que lhe foram culposamente causados pela Exequente.
3. No Artº 31º dos aludidos Embargos, o Executado/Embargante refere que a sua mãe na qualidade de sua legal representante teve de providenciar a defesa do filho no âmbito dos presentes autos e resolver todos os problemas relacionados com a presente ação executiva que a Exequente intentou contra o Executado, tendo este sofrido danos que a Exequente culposamente lhe causou.
4. Portanto, ao contrário do que se afirma no Despacho Saneador-Sentença, o ora Executado descreve no Artº. 31º da Oposição à Execução os danos que culposamente lhe foram causados pela Exequente ---e pelos seus representantes, pois que tinham conhecimento que o Executado era autista e sofria de anomalia psíquica, sendo essas as razões porque esteve internado nesta -- durante cerca de quatro anos.
5. A Exequente processou o Executado -- -- bem sabendo que ele era incapaz de apresentar a sua defesa em Tribunal e seria condenado no pagamento da quantia exequenda peticionada pela Exequente.
6. Porém, a mãe do Executado, D. -- - na qualidade de legal representante do seu filho -- -- teve de providenciar os serviços de uma Advogada para organizar a defesa do filho no âmbito dos presentes autos.
7. A mãe do -- - --, Maria de. -- - é animadora cultural num Lar de Idosos e aufere mensalmente o salário mínimo nacional, tendo dificuldades económicas.
8. Assim, a mãe do -- teve de reunir todos os documentos que a sua Mandatária lhe solicitou, teve de se deslocar ao escritório desta e também de se deslocar ao Tribunal, tendo a mãe do -- tido despesas com todas estas diligências.
9. A mãe do -- -- tinha solicitado Proteção Jurídica na modalidade de isenção de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação de um Defensor Oficioso na Segurança Social para a defesa do seu filho.
10. Mas, a mãe do -- -- nunca conseguiu falar pessoalmente com o Defensor Oficioso que lhe foi nomeado, tendo este deixado de lhe atender os seus telefonemas.
11. Portanto, o Executado/Embargante -- - -- alegou e comprovou a natureza danosa da atuação da Exequente/Embargada, e optou por solicitar ao Juízo de Execução competente que fixasse a quantia monetária relativamente aos danos que lhe foram causados culposamente pela Exequente/Embargada, confiando assim o Executado/Embargante que seria o Tribunal a proferir uma decisão relativamente a tal questão, por se afigurar que aquele seria a entidade competente para proferir tal Decisão com critérios de equidade.
12. É de referir que se encontram documentadas no âmbito dos presentes autos todas as peças processuais que foram até agora apresentadas pelo Executado no âmbito dos presentes autos, todos os documentos cuja junção se revelou necessária por parte do Executado e todas as diligências que foram efetuadas.
13. Na verdade, a lei não obriga a que seja o Executado a fixar o valor dos danos que foram culposamente causados pelo Exequente, mas o que refere o Artº. 858º do Código de Processo Civil é que se a oposição vier a proceder, o exequente sem prejuízo da eventual responsabilidade criminal responde pelos danos culposamente causados ao executado e incorre em multa.
14. Salvo melhor opinião, neste caso concreto encontram-se preenchidos os pressupostos gerais da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, isto é verifica-se neste caso concreto um facto voluntário que é a propositura da presente ação pela Exequente contra o -- --, a ilicitude dado que bem sabia a Exequente que não devia propor a presente ação contra o -- - -- que é autista e sofre de demência, sendo este um facto ilícito praticado pela Exequente, pois que viola a lei e o Direito Natural.
15. Verifica-se também o pressuposto da culpa da Exequente/Embargada ao atuar como atuou, o dano pois foram causados culposamente danos pela Exequente ao Executado e à mãe deste que teve de tratar da defesa do filho -- -- no âmbito da Execução que foi intentada pela Exequente contra o Executado/Embargante . e verifica-se ainda o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
16. Portanto, deve ser declarado procedente o pedido de condenação da Exequente/Embargada pelos danos culposamente causados ao Executado/Embargante e em multa nos termos do Artº. 858º do Código de Processo Civil.
17. O Despacho Saneador-Sentença na parte recorrida violou o disposto no Artº. 858º do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos melhores de Direito, com o douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao recurso e a Exequente/Embargada ser condenada pelos danos culposamente causados ao Executado/Embargante e em multa nos termos do Artº. 858º do Código de Processo Civil, assim se fazendo a costumada
Justiça.
- Os recorridos de cada uma das apelações não responderam aos recursos interpostos pelas respetivas contrapartes.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. –
--
III.II. Questões a apreciar:
As conclusões dos recursos delimitam o respetivo objeto, estabelecendo a matéria a conhecer, sem prejuízo do conhecimento de vícios não carecidos de invocação, algo que não se configura nestes autos.
Assim, ressalta que o recurso deduzido pela embargada se atém à questão da litigância de má-fé e, portanto, o fundo da matéria dos embargos está definitivamente decidido, com o consequente efeito de extinção da execução.
Porque é assim, e porque a embargada exequente apela pela revogação da sua condenação e o embargante executado apela pelo aditamento de uma multa a seu favor, conclui-se que o objeto dos recursos está numa situação de verdadeira prejudicialidade, que importará avaliar se é total ou parcial (será total se o pedido de revogação da decisão na parte em que não condenou a exequente em multa depender estritamente de uma verificação de má-fé) .
Em termos lógicos, cumpre, por consequência, começar por conhecer o recurso da embargada, na sequência de cuja apreciação resultará a manutenção ou revogação da sua condenação como litigante de má-fé. Será a partir desse resultado que se imporá a avaliação do pedido recursório do embargante, i.e., se se justifica a imposição de uma compensação adicional a seu favor.
Complementarmente, cumprirá avaliar se o fundamento de compensação fundado no disposto no art.º 858.º do CPC depende de uma condenação do exequente como litigante de má-fé ou assenta em diferentes pressupostos e, em consequência, avaliar da respetiva aplicação à luz dos fundamentos recursórios apresentados. –
---
IV. Apreciação dos recursos:
IV.I. Apelação deduzida pela executada-embargante:
--
a) Os fundamentos da condenação da exequente como litigante de má-fé:
Importa começar por assentar a base que conduziu à condenação da exequente/embargada a este título.
No despacho saneador-sentença foi fixada a seguinte factualidade nos autos, base para a decisão da instância e do pedido de condenação por litigância de má-fé:
1. O Exequente instaurou a execução de que os presentes autos constituem apenso, a 24.02.2022, com base em requerimento de injunção com fórmula executória aposta a 10.01.2022.
2. No requerimento de injunção n.º 105875/21.0YIPRT, quanto aos elementos de identificação das partes envolvidas, constam as seguintes informações:
i.) Figura como requerente --- e como requeridos --- e ---Embargante/Executada, com menção de «--»;
ii.) Não foi assinalada a existência de domicílio convencionado; e
iii.) Como morada do requerido foi indicada a «---.»
3. Por sua vez, passado em revista o procedimento injuntivo, verifica-se que
i. O procedimento de injunção foi instaurado a 16.11.2021;
ii. A 17.11.2021 foi expedida notificação do requerimento de injunção dirigida ao requerido -- -, por via postal registada com aviso de recepção para a morada referida em 2 iii) supra.
iii. O aviso de recepção foi devolvido ao Balcão Nacional de Injunções a 10.12.2021 com a indicação de ter sido assinado pelo próprio requerido a 30.11.2021.
iv. A 18.01.2022 foi aposta fórmula executória ao requerimento de injunção.
4. -- - esteve internado no ---entre 06.06.2017 a 11.09.2020.
5. A 02.04.2022 o Ministério Público intentou acção especial de acompanhamento de maior tendo por beneficiário -- -.
6. Na mencionada acção que correu termos junto do Juízo Local Cível de Cascais – J3 sob o número 1186/22.9T8CSC foi proferido despacho a 03.10.2022 determinando que “Atento a impossibilidade do(a) citando(a) de receber a citação e (ou) falta de apresentação de oposição, desde já se autoriza a nomeação de defensor, para querendo, nos prazos legais, contestar, nos termos do art. 21.º, n.º 2 CPC, por remissão do art. 895.º, n.º 2 CPC, na redação da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto.”
7. A 24.03.2023 foi proferida sentença no aludido processo da qual consta como “Factos Provados:
1. Em 23.07.1990, nasceu ---, sendo filho de --- -- e de --- -.
2. O qual viu diagnosticado um atraso mental grave, em consequência de que:
3. Se apresenta desorientado no espaço e desorientado no tempo.
4. É funcionalmente analfabeto.
5. Mostra-se capaz de cumprir ordens simples, mas não complexas.
6. É incapaz de realizar cálculo mental aritmético muito básico, assim como complexo.
7. Conhece o dinheiro, mas não tem noção do seu valor em pequenos montantes, assim como em montantes elevados. Não faz trocos.
8. Não apresenta noção real da proporção ou valor de bens ou serviços, ou do sentido de posse ou propriedade.
9. Apresenta grande dificuldade para autogestão da sua vida quotidiana pessoal, tendo diminuída perceção das suas necessidades pessoais, tais como alimentar-se, vestir-se, higiene pessoal, tendo que ser ajudado.
10. Deambula autonomamente, ainda que não seja capaz de andar autonomamente em sítios que não conheça muito bem, pelo receio de se perder.
11. Apresenta continência de esfíncteres.
12. O quadro clínico iniciou-se de nascença.
13. Nunca exerceu qualquer atividade laboral.
14. Reside com a mãe ---, apesar de no presente momento se encontrar internado no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Cascais.
16. O Requerido mostra-se incapacitado para reger a sua pessoa e os seus bens, necessitando de ser representado em todos os atos da vida corrente e carecendo de auxílio permanente para as atividades da vida diária, tomada de decisões de saúde e tratamentos prescritos.
17. Em consequência do que se torna indispensável nomear-lhe alguém que cuide da sua pessoa e dos seus bens e que legalmente o represente de forma permanente.”
8. Nessa decorrência, o Tribunal julgou a ação procedente, e em consequência:
A) Declarou o acompanhamento do maior ---
B) Fixou o dia 23.07.1990, como data de começo da incapacidade de exercício do Requerido.
C) Nomeou como acompanhante, ---.
D) Fixou o domicílio do acompanhado, na residência da acompanhante. E) Estabeleceu o conteúdo do acompanhamento, como REPRESENTAÇÃO GERAL, incluindo administração total de bens (art. 145.º, n.º 2 Cód.Civil), ficando vedado ao maior acompanhado o exercício de direitos pessoais e celebração de negócios da vida corrente.
--
A partir desta factualidade, fixada na decisão recorrida e não objeto de qualquer discussão, o tribunal a quo fundamentou-a do seguinte modo:
Pugnou o Embargante/Executado pela condenação do Embargado/Exequente como litigante de má-fé, em indemnização e multa, sustentando que este último fez um uso abusivo e malicioso do processo, dado que sendo conhecedor da anomalia psíquica grave de que padece o executado, não se inibiu de omitir tal factualidade, contribuindo de forma decisiva para a sua citação irregular com grave prejuízo para o seu direito de defesa.
Em sede de contestação, o exequente alegou só ter tomado conhecimento da sentença que decretou a situação de maior acompanhado com medida de acompanhamento de representação geral com os presentes autos, sendo que à data da instauração do procedimento injuntivo tal não se verificava, sendo que o aviso de recepção relativo à notificação de tal procedimento foi assinado pelo próprio e que a situação decorrente da sua incapacidade deverá ser suprida mediante citação do mesmo para a execução na pessoa da sua mãe, sua acompanhante.
Mais referiu que o embargante deu entrada nas suas instalações a 06.06.2017 onde permaneceu internado até 11.09.2020 e que apesar de ter conhecimento da sua patologia inexistia qualquer limitação declarada quanto à sua capacidade judiciária.
*
O modelo processual vigente consagra, como um dos seus princípios fundamentais, o princípio da cooperação, segundo o qual «na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.» – cf. artigo 7.º, do Código de Processo Civil.
No que respeita às partes, o dever de cooperação encontra-se vertido no artigo 8.º, do mesmo diploma, impondo a estas o dever de agir de boa fé, sendo que a sua violação pode traduzir-se em litigância de má fé.
Por sua vez, preceitua o artigo 542.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que «Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.».
Adensando no seu n.º 2, que «Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.».
Distingue-se, claramente, na formulação legal, a má fé substancial – que se verifica quando a atuação da parte se reconduz às práticas aludidas nas alíneas a) e b), do n.º 2, do artigo 542.º – e a má fé instrumental – cf. alíneas c) e d), do mesmo artigo.
Contudo, em qualquer dessas situações, está-se perante uma intenção maliciosa ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da atuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reação punitiva.
Daqui resulta, por conseguinte, que a condenação de uma parte como litigante de má-fé deve naturalmente revestir uma natureza excepcional, só devendo ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, com dolo ou negligência grave, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a ação da justiça, ou, a deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (...).
A condenação como litigante de má fé assenta, pois, num juízo de censura sobre um comportamento que se revela desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de Direito.
No que respeita a este juízo de censurabilidade, como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.10.2023, processo n.º 349/20.8T8LRS-C.L1.S1 « a lei não exige o dolo, bastando-se com a negligência grosseira. Não se torna, pois, necessário a prova da consciência da ilicitude do comportamento do litigante e da intenção de conseguir um objectivo ilegítimo, bastando tão só que, à luz dos concretos factos apurados, seja possível formular um juízo intenso de censurabilidade pela sua actuação.»
No caso, o exequente ciente da anomalia psíquica grave de que o executado padece, causa, aliás, do seu internamento na -- num período de cerca de 3 anos, apresentou requerimento de injunção contra o mesmo, bem sabendo não ser detentor de capacidade para compreender o sentido e o alcance do acto de citação.
No requerimento de injunção e no requerimento de execução não fez qualquer alusão ao estado de incapacidade do mesmo para receber (no sentido de as compreender) as citações e notificações que lhe fossem dirigidas no âmbito do procedimento injuntivo e no processo executivo contra si instaurados, sendo irrelevante para esse efeito que a sua incapacidade judiciária não estivesse ainda judicialmente declarada – cf. artigo 17º do CPC -, o que poderia e deveria fazer.
Por outro lado, ainda que não fosse notória tal incapacidade, o exequente, tendo em conta a natureza dos serviços prestados ao mesmo durante três anos e os próprios objectivos que prossegue no âmbito da sua actividade, não tinha como desconhecer que essa incapacidade existia.
A omissão de tal circunstância contribuiu de forma decisiva para a aposição de fórmula executória ao requerimento de injunção deduzido contra uma pessoa que bem sabia ser incapaz de compreender o sentido e alcance da notificação que viesse a receber.
Acresce que, em sede de contestação à presente oposição à execução, insistiu em afirmar que tendo sido o aviso de recepção assinado pelo próprio, num momento em que não havia sido ainda declarada judicialmente a sua incapacidade e que estando o mesmo sujeito a medida de acompanhamento, então, deveria o mesmo ser citado na pessoa da sua acompanhante nos termos do artigo 16º do CPC, assim se suprindo a invocada incapacidade.
Sucede que, na execução de que os presentes autos constituem apenso, foi apresentado como título executivo um requerimento de injunção com aposição de fórmula executória, cuja formação se mostra inquinada de vício que inquina a formação de tal título executivo e que já não é possível de suprir.
Do exposto resulta, que o Embargado/Exequente não podia ignorar uma tal realidade fáctica, aquando da dedução quer do requerimento de injunção quer da subsequente execução.
Veja-se que a omissão da situação do requerido não é despicienda, não só se atentarmos aos apertados fundamentos previstos no artigo 14-A do Regime anexo ao Decreto-Lei n.º 268/98, de 1 de Setembro e 729.º, do Código de Processo Civil, como também às consequências derivadas da falta de dedução de oposição, daí advenientes para o requerido.
Ora, tem-se por certo que o Embargado/Exequente sabia que o requerido, ora executado, não havia sido regular e validamente citado, em sede de requerimento injuntivo, e, não obstante, optou por continuar a omitir tal informação igualmente na acção executiva subsequentemente intentada.
Importa igualmente ter presente que a --, que pertence à ---, é reconhecida desde ---, pelo acompanhamento a diversos pacientes, na área da saúde mental, o que torna a sua conduta ainda mais censurável, pois: sabia da situação de anomalia psíquica grave do executado, que foi seu paciente durante três anos; sabia que a citação/notificação do mesmo seria realizada por via postal e que o mesmo não tinha capacidade para perceber o sentido e alcance de tais actos e ainda assim não se inibiu de agir judicialmente contra o mesmo, sem que tivesse tomado qualquer iniciativa no sentido de assegurar a sua representação judiciária nos termos previstos nos artigos 17º, n.º 1, 20º, n.º 1 e 234º do CPC.
Nesta conformidade, toda a sua conduta vertida nos autos, merece veemente juízo de censura, na medida em que representa a omissão de factos relevantes com intenção de obter uma decisão do litígio que lhe seja favorável e de omissão grave do dever de cooperação, que preenche as alíneas b) e c), do citado artigo 542.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Termos em que se conclui que o Embargado/Executado tem de ser condenado em multa, multa essa que oscila entre um mínimo de 2 UC e um máximo de 100 UC – cf. artigo 27.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais. Isto posto, atentas às circunstâncias do caso, entende este Tribunal ser adequado fixar o valor da multa em 5 (cinco) UC’s.
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Sintetizando a sustentação da decisão recorrida, pode dizer-se que assenta nos seguintes juízos e conclusões:
a. A exequente, aquando da formação do título executivo injunção, necessariamente conhecia a incapacidade de facto do citando, por este ter estado longamente internado em estabelecimento seu (entre 2017 e 2020);
b. Que tal conhecimento sai reforçado pela larga experiência da exequente no setor do acompanhamento de pessoas com doenças ou limitações do foro psíquico;
c. Que, apesar de não estar ainda declarada judicialmente a situação de acompanhamento do maior (à data), o quadro de (in)capacidade apurado e fixado é congénito e manifesto;
d. Que tal evidência determina um necessário conhecimento da incapacidade pela exequente ou, pelo menos, uma negligência grave e igualmente censurável, justificativa da sanção imposta.
Procura a embargada/exequente rebater estes fundamentos apresentando, sobretudo, seis ordens de razões:
a. O facto de receber múltiplas pessoas nas suas instalações e ter decorrido um período de tempo leva a que desconhecesse as limitações concretas e atuais do embargante, sabendo apenas que sofria de autismo;
b. O facto de a decisão judicial que determinou o acompanhamento do maior ser posterior à dívida, não conhecendo nem estando determinada a extensão fáctica da incapacidade do maior;
c. O facto de inexistir uma incapacidade declarada à data levou a que devesse instaurar a cobrança contra ambos os obrigados, competindo ao distribuidor postal assinalar impossibilidade de concretizar a diligência;
d. O facto de a dívida relativa ao internamento ser exigida não apenas ao maior acompanhado, representado pela acompanhante sua mãe, mas também pessoalmente a esta, em virtude de ter assumido essa responsabilidade e assinado declaração de confissão da dívida aquando da alta do filho;
e. O facto de residirem em comum e ser necessariamente conhecida de ambos a pretensão de cobrança;
f. A circunstância de a mãe ter mantido um comportamento de ostensiva recusa de pagamento, ou, pelo menos, ter-se repetidamente furtado a contactos da credora, a despeito de numerosas insistências (tendo a cobrança sido iniciada cerca de um ano após o término dos contactos e dos pagamentos).
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Antes de avançar no sentido da decisão, importa relevar que a decisão em apreço, de condenação de uma parte como litigante de má-fé, foi proferida em sede de despacho saneador e, portanto, sem qualquer diligência de produção de prova.
Os elementos considerados pelo tribunal a quo foram, portanto, os existentes nos autos no momento final dos articulados, o que conduz, necessariamente, à constatação que foi seguido um caminho pela Mm. Juíza do processo, no exercício do seu dever de gestão processual, no sentido de considerar inexistente qualquer matéria factual carecida de esclarecimento e suscetível de, em termos de probabilidade razoável, impor decisão diversa.
Para o tribunal a quo a questão apresentou-se, portanto, clara e sem margem para esclarecimentos adicionais.
Diga-se, por outro lado, que a recorrente não estrutura o seu recurso na invocação da necessidade de produção de prova relativa à má-fé e, portanto, a base de decisão está definitivamente estabelecida nos autos.
Isto não quer dizer, todavia, que esta instância recursória esteja estritamente limitada ao elenco factual assinalado a quo, na medida em que, não sendo este resultado da produção de qualquer prova, mas apenas de um ato de apresentação decisória dos elementos do processo tidos por relevantes, poder-se-á nesta sede fazer relevar outros que dele exumem.
É particularmente importante considerar os factos relativos à dívida exequenda e ao procedimento de injunção, como indicados pela embargada.
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Neste quadro, a decisão recorrida apresenta a cobrança, primeiro em injunção e depois em sede executiva, como uma verdadeira ação capciosamente movida contra um incapaz. Na lógica da decisão recorrida, a credora, sabendo que o devedor era incapaz de entender o sentido de uma ação de cobrança, ou de qualquer ato nela incluído, dirigiu-se intencionalmente a ele, assim sabendo que garantia a formação de um título executivo (algo que conseguiu) e que garantia a inexistência de uma oposição à cobrança executiva (algo que, como bem atestam estes autos, não conseguiu).
A credora, por seu lado, apresenta uma versão oposta, a de que o devedor, mas sobretudo a sua mãe (como sua representante e também a título pessoal) são verdadeiramente relapsos no cumprimento, furtam-se aos contactos e à cobrança. Assim, dirigir a cobrança a ambos foi a única solução capaz de oferecer um mínimo de segurança na concretização do resultado pretendido.
Importa tomar em boa consideração o que consta dos autos a este respeito.
Na fundamentação de facto da decisão em apreço, o tribunal a quo ressalta elementos relativos ao procedimento injuntivo, mas nada refere quanto à própria cobrança executiva, o que, aliás, é coerente com os juízos subsequentes, sendo a má-fé assacada sobretudo à formação do título executivo (sendo a cobrança executiva apresentada como uma decorrência daquela).
Especificamente quanto à formação do título executivo é a seguinte a matéria fixada na decisão:
1. O Exequente instaurou a execução de que os presentes autos constituem apenso, a 24.02.2022, com base em requerimento de injunção com fórmula executória aposta a 10.01.2022.
2. No requerimento de injunção n.º 105875/21.0YIPRT, quanto aos elementos de identificação das partes envolvidas, constam as seguintes informações:
i.) Figura como requerente --- e como requeridos --- e ---Embargante/Executada, com menção de «--»;
ii.) Não foi assinalada a existência de domicílio convencionado; e
iii.) Como morada do requerido foi indicada a «---.»
3. Por sua vez, passado em revista o procedimento injuntivo, verifica-se que
i. O procedimento de injunção foi instaurado a 16.11.2021;
ii. A 17.11.2021 foi expedida notificação do requerimento de injunção dirigida ao requerido -- -, por via postal registada com aviso de recepção para a morada referida em 2 iii) supra.
iii. O aviso de recepção foi devolvido ao Balcão Nacional de Injunções a 10.12.2021 com a indicação de ter sido assinado pelo próprio requerido a 30.11.2021.
iv. A 18.01.2022 foi aposta fórmula executória ao requerimento de injunção.
Decorre destes elementos, logo numa primeira análise, que tem sustentação um dos argumentos da recorrente - que a injunção foi proposta contra ambos os executados (a mãe --- - e o filho -- --, ambos residentes na mesma morada, sem indicação de qualquer incapacidade do citando).
Constata-se também que foi conferida força executiva ao requerimento de injunção em janeiro de 2022 e, portanto, muito antes da existência de qualquer processo de acompanhamento do maior, aqui embargante (instaurado em abril de 2022).
Há, todavia, elementos no requerimento de injunção que não foram ressaltados pela decisão recorrida e que são relevantes para esta análise, a saber:
- Que o espaço destinado a exposição de factos no requerimento injuntivo dirige a responsabilidade na satisfação da dívida, em primeiro lugar, para a requerida mãe:
- a requerida é mãe do utente (...) e, a seu pedido, é responsável pelo pagamento das despesas de internamento
- (...) outorgou termo de responsabilidade no qual aceitou satisfazer até dia 10 de cada mês todas as despesas de internamento, tratamentos e outras;
- Que nesse espaço, indica depois um conjunto de faturas, alegando que foram enviadas para pagamento e não devolvidas, reclamadas ou pagas.
Como documentos anexos ao requerimento executivo inicial, junta a exequente cópia de termo de responsabilidade que, analisado, constitui uma declaração genérica de responsabilidade pelo pagamento das despesas relativas ao filho, assinada pela mãe (sem qualquer indicação de valores a pagar).
Consta ainda em anexo um documento simples, manuscrito e não reconhecido quanto a letra e assinatura, em que, além do mais, consta o seguinte:
Eu, --- - (...) mãe e responsável pelo pagamento e custo de internamento do utente -- - -e -- declaro nesta data ter conhecimento da dívida existente na conta-corrente do meu filho, no valor de €5.599,75, sem contar com a fatura de setembro e comprometo-me a ir pagando o valor mensalmente de €300 e em dezembro de 2020 a liquidar a restante dívida
(...) -, 11/9/2020.
Este documento, que não tem força executiva a se, por não estar autenticado (cf. art.º 703.º n.º 1 al. b) do Código de Processo Civil – CPC), apresentado em anexo ao requerimento executivo, ganha especial relevo neste contexto, sustentando também os argumentos do recorrente no sentido de ter dirigido a cobrança à mãe, primeira responsável, dirigindo-a também ao filho, seu utente, sobretudo a título de cautela quanto a uma eventual declaração de ilegitimidade.
Olhando diretamente para o requerimento executivo inicial, cujo teor, como referido, não foi considerado na decisão em apreço (ou, pelo menos, não foi aí mencionado), cumpre relevar os seguintes elementos:
a. A execução foi instaurada contra ambos, --- e -- - - --, sem indicação de qualquer representação e, portanto, verdadeiramente indicando dois responsáveis pelo pagamento;
b. No espaço relativo à indicação dos factos no requerimento executivo inicial consta, de relevante:
- O valor (...) do tratamento administrado é assegurado pelo utente ou por pessoa que se responsabilize por tal, através da liquidação mensal da fatura referente à conta corrente de custos mensais;
- A executada é mãe do utente e executado Sr. ---e, a seu pedido, é a responsável pelo pagamento das despesas de internamento, tendo sido enviadas as respetivas faturas do internamento para sua morada sita...;
- A executada outorgou no dia 6/06/2017 termo de responsabilidade no qual aceitou satisfazer até ao dia 10 de cada mês toda as despesas de internamento, tratamentos e outras extraordinárias correspondentes ao mês anterior;
- A Executada não devolveu as faturas no tempo devido, nem contestou o seu pagamento, aliás, no dia da alta do utente (11/09/2020), a executada assinou uma declaração a reconhecer o valor atual em dívida (5599,75€), bem como o vencimento próximo da fatura correspondente ao mês de Setembro de 2020 e comprometeu-se perante a exequente a liquidar esse valor em dívida a cada mês no montante de 300€, devendo liquidar a restante dívida até Dezembro de 2020 (...).
- Contudo, a executada não liquidou nenhuma prestação nem entregou qualquer dinheiro à exequente.
c. O título apresentado pela exequente foi a injunção (acompanhada de documentos anexos, entre os quais os supra referidos).
Além destes, importa considerar ainda um elemento que não pode ser tido senão como relevante nesta questão e que, aliás, não se mostra devidamente saneado nos autos – a existência de duas oposições à execução, mediante embargos de executado (apensos A e B), cujo teor é grandemente semelhante, figurando o embargante nestes autos também como embargante naqueloutros.
A oposição que faz apenso A foi deduzida em 18/6/2024, contendo os seguintes elementos de identificação da requerente:
---, na qualidade de Executada nos autos supra referenciados, e também na qualidade de representante legal do Executado -- - - --.
Tal apenso continua a decorrer, sem decisão final, tendo sido realizada audiência prévia e tendo a Mm. Juíza a quo consignado entendimento que iria proferir despacho saneador, convidando as partes a pronunciarem-se.
A oposição que faz apenso B, que corresponde aos presentes autos, foi deduzida por:
-- - - e --, Executado nos autos supra referenciados, representado pela sua mãe ---
Quer isto dizer que haverá uma sobreposição parcial entre as oposições (na medida em que o executado figura em ambas e a executada apenas numa delas) e há também uma sobreposição parcial dos fundamentos materiais de oposição, algo que não foi ainda devidamente resolvido nos autos, mas, com relevância para esta questão da litigância de má-fé, faz ressaltar o carater artificial da divisão de uma oposição com fundamentos largamente coincidentes em processos autónomos e com tramitações diversas.
Esta separação artificial das oposições (que é, diga-se, legalmente inadmissível) também dá sustentação ao argumento da recorrente no sentido de ter instaurado execução contra ambos para prevenir qualquer dificuldade ou falta de algum pressuposto processual.
Por outro lado, essa divisão da oposição em dois processos também retira consistência aos juízos afirmados na sentença recorrida, na medida em que esta assenta na premissa de uma cobrança intencionalmente dirigida contra um incapaz, cuja oposição foi autonomamente considerada e permitiu estabelecer um juízo estanque de má-fé processual, quando, na verdade, quer a execução quer as próprias oposições são insuscetíveis de uma segmentação desse tipo.
Se estes argumentos reforçam a tese da recorrente, também a sustenta o argumento de competir ao distribuidor postal (a citação foi realizada por via postal) assinalar alguma incapacidade de entendimento que se manifestasse aquando da concretização do ato, o que não se verificou.
--
Chegando a este ponto, perante um conjunto de elementos e circunstâncias que reforçam a posição da recorrente quanto ao juízo de censurabilidade no seu comportamento processual, haverá que olhar o corpo central do juízo de censura formulado a quo – a intencionalidade, ou negligência grave, na demanda contra um incapaz.
Não consta do elenco factual estabelecido, nem poderia constar por não ter sido objeto de prova, que a exequente sabia que o requerido de injunção (depois executado) receberia as cartas de citação, as assinaria e não entenderia o seu teor e, consequentemente, não conseguiria impedir a formação de um título executivo ou o seguimento da execução para cobrança.
Não podendo a situação ser reconduzida, por isso, a uma atuação dolosa, teria que se enquadrar na área da negligência grave ou grosseira.
A este nível, há que considerar os elementos de análise que estão disponíveis. Assim:
a. Aquando da injunção, não fora decretado, ou sequer instaurado, o processo de maior acompanhado em que viriam a ser formalmente apreciadas as limitações psíquicas do executado e declaradas as suas limitações ao exercício de direitos;
b. O executado esteve internado mais de três anos nas instalações da exequente;
c. Foi fixado na sentença de acompanhamento o quadro psíquico ao executado:
- Nascido em 1990 (atualmente com 35 anos);
- Quadro clínico de atraso mental grave, iniciado à nascença;
- Desorientação no espaço e no tempo;
- Funcionalmente analfabeto (isto é, com capacidade de decifrar letras e algoritmos, eventualmente até de compor as palavras, mas não de compreender o sentido de textos);
- Capacidade de cumprir ordens simples, mas não complexas;
- Incapacidade de realizar cálculo mental aritmético muito básico;
- Conhecimento do dinheiro, sem noção do seu valor;
- Incapacidade de efetuar pagamentos por não conseguir fazer trocos.
- Falta de noção real da proporção ou valor de bens ou serviços, ou do sentido de posse ou propriedade;
- Grande dificuldade para autogestão da sua vida quotidiana pessoal, com diminuída perceção das suas necessidades pessoais com alimentação, vestuário, higiene pessoal ou medicamentação;
- Necessidade de ajuda nas tarefas da vida quotidiana;
- Capacidade de deambulação autónoma, mas com receio de se perder.
- Este quadro de incapacidade atesta limitações muito profundas na capacidade de entender e gerir a sua vida e, portanto, por maioria de razão, de participar e defender os seus interesses em qualquer procedimento administrativo ou processo judicial.
O facto de o executado ter estado internado por largo período em instalações da exequente conduz, inexoravelmente à conclusão que esta tinha conhecimento desse quadro de incapacidade, por dever ser qualificado de manifesto.
É claro que, tratando-se a exequente de uma pessoa coletiva, esse conhecimento, enquanto efetiva apreensão de informação, é produto de uma imputação jurídica, sendo normal que não se efetive sequer na(s) mesma(s) pessoa(s) físicas que diligenciou/diligenciaram pela cobrança.
O conhecimento da situação de saúde do executado será, em primeiro lugar, das pessoas ligadas ao seu acompanhamento diário no estabelecimento de saúde, presumivelmente depois traduzido em alguma informação administrativamente disponível (relativa à situação de saúde do utente internado).
A manifestação de intenção de cobrança no seio da exequente será, presumivelmente, da autoria das pessoas físicas com responsabilidade na gestão ou na cobrança, depois transferida para pessoas ligadas diretamente ao contencioso judicial.
Em todo o caso, uma das decorrências básicas da personalidade jurídica coletiva é que a imputação de ações e omissões é indistintamente feita à pessoa, de onde decorre a irrelevância de quaisquer circunstancialismos internos nas cadeias de informação e decisão.
Quer isto dizer, concluindo este ponto, que, a despeito da inexistência de uma declaração jurídica de acompanhamento de maior, perante a extensão das incapacidades do executado e do período de internamento, a exequente necessariamente conhecia a sua condição (conhecimento passível de ser juridicamente afirmado).
Será que daqui decorre uma conclusão de necessária de má-fé, se não dolosa, por culpa grave no direcionamento da cobrança?
Este é o cerne da questão em apreciação.
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Para avançar, há que tomar em consideração a noção jurídico-processual de litigância de má-fé, que corresponde a um conceito bem definido, e não a uma simples censura por uma posição processual que possa ser entendida como menos correta.
A disciplina da figura está estabelecida no art.º 542.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC).
Assim, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a. Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b. Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c. Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d. Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Vertendo estas previsões à situação em apreço, a pergunta antes apresentada ganha novos enfoques:
- Propor ação contra pessoa que se sabia que era, de facto, incapaz de se defender é deduzir pretensão cuja falta de fundamento não se podia ignorar? (cf. al. a);
- Omitir referência à incapacidade de facto de um demandado é uma omissão de factos relevantes para a decisão da causa? (cf. al. b);
- Não informar no processo uma incapacidade de facto de um demandado é faltar gravemente a um dever de cooperação? (cf. al. c);
- Propor ações contra um incapaz de facto, sem referir a sua incapacidade, é fazer do processo e dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objetivo ilegal? (cf. al. d).
Para responder às questões assim dirigidas importa considerar como vem sendo densificado este conceito jurídico-processual.
Uma primeira referência essencial refere-se a uma clara linha de fronteira entre posições processuais infundamentadas e posições processuais de má-fé.
Dizem, a propósito, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa1 que a lei, em regra, não retira do decaimento qualquer outra consequência, só o fazendo quando alguma das partes viole regras e princípios básicos por que devem pautar a sua atuação processual.2
Traçada esta fronteira entre decaimento e má-fé nessas regras e princípios básicos do processo, cumpre verificar se pode assim ser qualificada uma omissão de prestação de informação processualmente relevante.
Disse-se, a propósito, em acórdão desta Relação (de 16/12/2021, Nelson Borges Carneiro)3 que é corrente distinguir má fé material e má fé instrumental. A primeira relaciona-se com o mérito da causa: a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo (neste sentido veja-se também, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/11/2020 – Maria do Rosário Morgado)4.
A má-fé aqui convocada teria esta dupla qualificação: - material e instrumental:
- Material, na medida em que seria uma forma capciosa de obter vencimento (por determinar uma impossibilidade de dedução de defesa do visado);
- Instrumental, na medida em que traduziria um comportamento processual de omissão de prestação de informações relevantes para conclusão de uma citação regular do demandado.
Quanto ao padrão de avaliação, este mesmo aresto, a par de outros, estabelece-o no grau de diligência exigível ao litigante, que deverá corresponder ao que uma pessoa medianamente prudente e cuidadosa teria empregado previamente à propositura de uma ação judicial.
Desenvolvendo os critérios de avaliação, disse-se ainda no supra referido acórdão do STJ que, em situações de litigância de má-fé, estaremos perante uma intenção maliciosa ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da atuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reação punitiva.
Essa punição assenta num juízo de censura sobre um comportamento que se revela desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de Direito.
Será que a omissão em causa atinge estes patamares de desrespeito e censurabilidade?
Entende-se que não, sobretudo fazendo relevar duas ordens de razões:
- A circunstância de a pretensão ter sido deduzida simultaneamente (e principalmente) contra mãe e filho, acompanhante e acompanhado, residentes no mesmo local (e assim tendo sido identificados pela credora), dirigindo-a até, repete-se, preferencialmente à mãe;
- A circunstância de ter decorrido mais de um ano entre a prestação de serviços e o início da cobrança, associada a uma ausência de contactos que, em termos médios, permitem inferir uma intenção da executada mãe de se furtar ao pagamento (sendo que assumiu pessoalmente a dívida e confessou-se devedora de um valor líquido, prometendo pagá-lo faseadamente).
Neste contexto, o argumento da recorrente de pretender sobretudo assegurar a eficácia da sua cobrança ganha sustentação, preponderando sobre uma avaliação oposta, que tratasse a omissão de informação como uma forma capciosa de obter uma condenação e uma execução sobre uma pessoa incapaz de se defender.
Não quer com isto dizer-se que não seja imputável à exequente o conhecimento da incapacidade de facto do demandado. Apenas que não é possível afirmar taxativamente um juízo de grave censura na omissão de referência expressa à sua incapacidade de facto que sustente a sua condenação como litigante de má-fé.
A exequente, conhecendo a limitação, deveria tê-la informado nos autos e, não o fazendo, atuou culposamente. Entende-se, porém, tudo ponderado, que essa culpa, no circunstancialismo supra referido, não tem um grau que ultrapasse o limiar da litigância de má-fé, atendo-se a um grau de culpa leve.
É o que se decide, nesta parte, concedendo-se a apelação à embargada. –
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b) A omissão de fixação de compensação a favor do embargante ao abrigo do que dispõe o art.º 848.º do CPC:
Decorre do anteriormente decidido que, deixando a exequente de ser condenada como litigante de má-fé, não pode ser atribuída qualquer indemnização ao embargante com esse fundamento.
Tal não preclude a possibilidade de lhe ser atribuída uma compensação com base no disposto no art.º 858.º do CPC, como pede no seu recurso.
Como decorre logo da epígrafe deste preceito (sanções do exequente), e muito claramente do seu teor literal, a lei estabelece nesta disposição um fundamento indemnizatório autónomo da multa por litigância de má-fé.
Está aí estabelecido o seguinte:
Se a oposição à execução vier a proceder, o exequente, sem prejuízo da eventual responsabilidade criminal, responde pelos danos culposamente causados ao executado, se não tiver atuado com a prudência normal, e incorre em multa correspondente a 10% do valor da execução, ou da parte dela que tenha sido objeto de oposição, mas não inferior a 10 UC, nem superior ao dobro do máximo da taxa de justiça.
O sentido desta norma pode considerar-se resumido no acórdão desta Relação de 12/5/2022 (Jorge Leal)5 - a responsabilidade do exequente prevista no art.º 858.º do CPC tem por objeto a instauração de execução em que as diligências de agressão do património do executado (penhora) se efetuam sem audição prévia do executado nem, em regra, o controlo preliminar, pelo juiz, da admissibilidade da execução, da fiabilidade do título ou da provável existência da dívida exequenda.
O que a lei pretende estabelecer é uma sanção para a instauração abusiva de execuções, ou para o abuso de diligências executivas promovidas pelo credor, reconhecendo que o regime legal confere ao exequente um conjunto alargado de faculdades de impulso processual, desde a simples propositura do processo sem contraditório antecipado ao seu desenvolvimento, particularmente na realização de diligências afetadoras do património do executado, sem contraditório prévio ou até contra sua expressa manifestação de vontade.
Este preceito tenta introduzir um meio de equilíbrio e salvaguarda da posição do executado, com uma função preventiva e repressiva de abusos, numa forma processual em que a lei intencionalmente confere prevalência aos interesses de uma das partes (o credor).
Por isso, voltando ao aresto antes referido, também se deve subscrever o que ali consta a propósito dos critérios de avaliação - contrariamente ao que ocorre no regime geral da litigância de má-fé, em que o tipo subjetivo pressupõe o dolo ou a culpa grave, aqui a responsabilização do exequente basta-se com culpa leve (“se não tiver atuado com a prudência normal”).
Quer isto dizer, concretizando o quadro legal de avaliação, que seria possível determinar a fixação de uma multa ao exequente, mesmo excluída a existência de uma situação de litigância de má-fé, verificado que fosse:
a. A existência de danos do executado em virtude dos atos executivos realizados sobre o seu património;
b. A existência de uma culpa leve da exequente.
Se essa culpa leve se pode considerar verificada, repescando-se tudo o que acima ficou dito (que permite retirar uma omissão culposa de prestação de uma informação, que é relevante e que a exequente conhecia e tinha obrigação de conhecer), é manifesto nos autos que nenhum dano concreto, patrimonial ou não patrimonial, foi causado ao executado/embargante pelo processo executivo..
São invocados, genericamente, prejuízos e despesas, sem qualquer concretização, ao mesmo tempo que transparece dos autos a inexistência de qualquer ato executivo afetador do património do executado, a inexistência de despesas com o pleito (beneficia de apoio judiciário e, aludindo a despesas, nada demonstra), e também a inexistência de qualquer dano não patrimonial (desde logo até pela sua incapacidade de entender o alcance e consequências de ser demandado num pleito judicial).
Não existe, assim, fundamento de facto para atribuir uma indemnização ao embargante, devendo manter-se, nesta parte, o decidido em 1.ª instância. –
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Em conclusão, procede o apelo apresentado pela exequente/embargada e improcede o deduzido pelo executado/embargante.
É o que se decide. –
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V. Decisão:
Face ao exposto, decidindo:
a. Concede-se a apelação interposta pela exequente/embargada e revoga-se a sua condenação como litigante de má-fé;
b. Nega-se a apelação interposta pelo embargante, mantendo-se, nessa parte, a decisão recorrida.
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Custas pelo embargante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique-se e registe-se. –
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Lisboa, 09-10-2025,
João Paulo Vasconcelos Raposo
Rute Sobral
António Moreira
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1. Código de Processo Civil Anotado, volume I, edição de 2020, p. 615.
2. Idem, p. 617. 3. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 4. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 5. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa