I- O crime de incêndio, previsto no art.º 272, do CP, caracteriza-se como um crime de perigo comum (com a actividade punível, coloca-se em perigo, desde logo, um número indiferenciado de bens penalmente protegidos), e, simultaneamente um crime de perigo concreto (sendo o fundamento da punibilidade a actividade, em si, que coloca em perigo os bens penalmente protegidos, só preenche o tipo incriminador a actividade particularmente apta a produzir esse perigo — no caso, provocar incêndio de relevo, e criar desse modo perigo para a vida ou para integridade física de outrém, ou para bens patrimoniais alheios).
II- No n.º 1 do art. 272, prevê-se a acção dolosa e criação dolosa de perigo; no n.º 2, a acção dolosa e criação negligente de perigo; no n.º 3, a acção negligente;
III- Numa moldura entre 3 a 10 anos, não requer diminuição a pena de 5 anos e 4 meses de prisão, considerando-se o grau de ilicitude dos factos e gravidade das suas consequências: o incêndio propagou-se pela habitação do seu agregado familiar, e ainda a da vizinha, tornando-as inabitáveis, e obrigando ao uso de significativos e dispendiosos meios para o combate do incêndio; o grau de culpa do recorrente: agiu com dolo directo, e com uma forte consciência de que estava a criar uma grave situação de perigo para as habitações próximas e para quem lá estivesse; e as consideráveis exigências preventivas gerais decorrentes da forte necessidade de manter confiança da Comunidade nas normas que punem o provocar de incêndios (em meio urbano ou rural), sendo por demais conhecido o alarme social que tal provoca.
No Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Porto – JC Criminal –Juiz 9, processo supra-referido, em que é arguido AA foi proferido Acórdão com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, decide-se:
Julgar a acusação do Ministério Público parcialmente procedente e, por parcialmente provada e, em consequência decide-se:
a) absolver o arguido AA da prática em autoria material e concurso real de um crime de violência doméstica p.p. pelo artigo 152º, nº 1, al. a) e nºs 2, al a) do C.P.; de um crime de homicídio qualificado na forma tentada p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. b) e artigos 22º e 23º do C.P. e um crime de resistência e coação sobre funcionário p.p. pelo artigo 347º do C.P.
b) condenar o arguido AA pela prática de um crime de incêndio, previsto nos arts. 272º, nº 1, al. a) na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
d) condenar o mesmo arguido no pagamento de custas, com taxa de justiça individual de 3Uc, nos termos do art. 8º do Regulamento das Custas Processuais e 513º do C. P. Penal.
e) declarar perdido a favor do Estado o isqueiro, apreendido, nos termos do art. 109º, n.º 1 do CP.
f) descontar o tempo em que o arguido esteve detido e em situação de prisão preventiva à ordem dos presentes autos (art. 80º, nº 1, do C.P.);
g) manter a medida de coação de prisão preventiva”.
*
Deste Acórdão foi em representação do arguido/condenado AA, interposto recurso para este Supremo Tribunal, formulando-se as seguintes conclusões:
“I – O Recorrente não se conforma com a sentença em crise, por via do qual foi “…pela prática de um crime de incêndio, previsto nos arts. 272º, nº 1, al. a) na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão.”;
II – A divergência verifica-se, desde logo, no que concerne à subsunção dos factos que lhe são imputados ao n.º 1 do artigo 272.º do Código Penal, julgando ser mais acertada a sua subsunção ao n.º 3 do citado comando legal, ou, no limite, ao n.º seu número 2.
III - Os factos julgados provados, designadamente, nos pontos 5 e 7, demonstram que o Recorrente não incendiou os imóveis, mas sim um amontoado de lixo que se encontrava nas traseiras da habitação, sendo que, o fogo, fruto da negligência daquele, se alastrou para a habitação, inexisindo, assim, uma resolução criminosa do Arguido no sentido de incendiar um edifício e outros bens que sabia não lhe pertencer.
IV- O Arguido nunca representou que o fogo poderia provocar um incêndio, e que poderia alastrar ao edifício e causar danos relevantes, como, de resto, foi amplamente testemunhado em sede de audiência de julgamento.
V - Ademais, esse facto e resolução não lhe são imputados nos factos jugados provados, isto é, nenhum dos seus pontos conclui pelo dolo, pelo que, não se lhe pode imputar um comportamento doloso, como reclama o n.º 1 do artigo 272.º do Código Penal.
VI - Afigura-se, assim, salvo melhor opinião, mais acertado que o seu comportamento seja considerado como negligente e enquadrado no n.º 3 do citado artigo, ou, no limite, no n.º 2, com consequente redução da moldura penal e pena concretamente aplicada ao Arguido a um máximo de 5 (cinco) anos.
VII – Sem prescindir, sempre a pena concretamente aplicada ao Arguido, mesmo que subsumindo os factos ao n.º 1 do artigo 272.º do Código Penal – o que não se concede -, se afigura exagerada, porquanto, não valorizou devidamente as circunstâncias atenuantes e enquadramento social e familiar de que aquele beneficia, e amplamente constantes dos factos julgados provados
VIII – Do mesmo modo, há que considerar que os factos que são imputados ao Recorrente ocorreram num período de diminuta capacidade volitiva deste, sendo que, nem antes, nem depois, lhe foram imputados factos criminais relevantes.
IX - Sendo, assim, forçoso concluir que se tratou de um comportamento isolado e sem exemplo, do qual está sinceramente arrependido, tendo hoje o Arguido perfeita consciência da ilicitude e das consequências do seu comportamento.
X – Por fim, sempre sem prescindir, impunha-se que a pena seja reduzida um máximo de 5 (cinco) anos e suspensa na execução, tal como decorre do artigo 50.º do Código Penal, ainda que aliada à execução de medidas de carácter reparador, afigurando-se totalmente adequado, proporcional e suficiente para garantir e satisfazer as necessidades preventivo-gerais e preventivo-especiais que no caso se fazem sentir, devendo o Tribunal decretá-la, por a isso estar vinculado.
VII – A sentença recorrida violou, entre outros que Vossas Excelências doutamente suprirão, os comandos legais supra enunciados.
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Em resposta ao recurso, em 1.ª Instância, o M.º P.º pronunciou-se pela sua improcedência.
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, igualmente, pela improcedência do recurso.
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Enviado inicialmente o processo para a Relação do Porto, por a esse Tribunal ser dirigido o recurso, considerou-se “estar-se em presença de recurso per saltum e, por isso, a interpor obrigatoriamente para o STJ”, declarando-se a incompetência do Tribunal da Relação do Porto para a apreciação do recurso.
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Em consequência do decidido no Acórdão de que se pretende recorrer, são os seguintes os factos provados:
“1. BB e o arguido casaram em 29 de setembro de 1990.
2. O casal teve um filho em comum, já maior de idade.
3. No dia 29-07-2024, no período da tarde, o arguido dirigiu-se ao PAC dos Carvalhos, em Pedroso, Vila Nova de Gaia onde comprou gasolina, que armazenou num recipiente próprio para tal efeito.
4. Quando chegou junto da residência “regou” com gasolina os dois veículos da mulher.
5. Depois do jantar, o arguido foi para as traseiras da habitação, sita na Rua 1, em Perosinho e despejou gasolina num amontoado de lixo que aí se encontrava ao mesmo tempo que dizia “vou incendiar isto tudo”, e de imediato, fazendo uso de um isqueiro, lançou fogo ao referido lixo.
6. Aquando da chegada da GNR ao local o arguido verbalizava “isto vai arder tudo”.
7. As chamas alastraram para a residência do próprio (nº ...) e também para a habitação nº..., onde residia a vizinha CC.
8. De imediato, os militares da GNR tentaram abrir o portão de acesso à habitação, ocasião em que surgiu o arguido disse “vocês não mandam nada, incendiei isto tudo, isto vai tudo arder, vocês são uns chulos, recuando à residência que já se encontrava em chamas.
9. Em tal ocasião foi dada voz de detenção ao arguido, altura em que este tentou impedir a sua concretização esbracejando e tentando atingi-los com socos.
10. As chamas ateadas pelo arguido propagaram-se pelo interior da habitação do arguido e do agregado familiar atingindo os móveis, todo o recheio, e o edifício residencial, de valor não concretamente apurado, mas não inferior a €5 200 (cinco mil e duzentos euros);
11. E estendeu-se à habitação da vizinha e testemunha CC, tornando-a inabitável.
12. Para o local foram acionados, para além da GNR, 3 viaturas dos Bombeiros Sapadores de Gaia, com 10 elementos, 3 viaturas dos Bombeiros Voluntários dos Carvalhos, com 9 elementos e 1 ambulância dos Bombeiros Voluntários dos Carvalhos, com 2 elementos.
13. Sabia o arguido que ao atear o incêndio colocava em perigo e poderia causar danos graves a bens materiais de valor superior a € 5200 designadamente a sua habitação e o respetivo recheio, como sucedeu;
14. Sabia também que provocava perigo para as habitações vizinhas.
15. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as descritas condutas são proibidas e punidas por lei penal.
16. O arguido confessou parcialmente os factos.
17. E mostrou-se sinceramente arrependido.
Das condições socioeconómicas do arguido.
18. À data dos factos constantes do presente processo, o arguido residia na morada referida nos presentes autos, em casa arrendada.
19. O agregado de AA era constituído pelo próprio, pelo cônjuge/ofendida e pelo filho de 27 anos de idade.
20. A subsistência económica era considerada como equilibrada, sendo a mesma suportada por apoios sociais (RSI), pelo contributo financeiro do descendente, ocupado laboralmente na área da restauração e por serviços de limpeza e jardinagem que o casal ia fazendo, e dos quais provinham rendimentos variáveis.
21. Atualmente o agregado mantém-se, e o filho e a companheira do arguido residem noutra casa, após a destruição da anterior, conforme referido nos autos, sita na localidade de Grijó, e pela qual pagam 350 € de renda.
22. O descendente mantém a mesma atividade profissional e aufere cerca de 950 € mensais, e a companheira trabalha “às horas” em diversos locais, prestando serviços de limpeza, embora com limitações por problemas de saúde, que irão em breve, ser intervencionados cirurgicamente.
23. O núcleo familiar revela disponibilidade para reintegrar o arguido uma vez em meio livre, referindo que este sempre manifestou ajuste comportamental, que era negativamente afetado nos momentos em que o arguido se excedia no consumo de bebidas alcoólicas, problemática que aquele reconhece e para a qual nunca fez tratamento.
24. Ao mesmo tempo, familiares e arguido, referem que este terá feito uma primeira consulta no serviço de Psiquiatria do Hospital de S. João e que desde essa data não cumpria com a toma da medicação e não comparecia nos dias das restantes marcações, e que um eventual quadro depressivo associado ao álcool, estará na opinião dos próprios, na origem do desajuste comportamental.
25. O arguido tinha estado recentemente (por reporte à data dos factos) internado por ingestão (de forma não concretamente apurada) de produto agrícola tóxico.
26. AA descende de uma família que se dedicava à agricultura, tendo vindo para o Porto com 15 anos, vivendo junto de uma tia paterna.
27. O arguido não concluiu o primeiro ciclo do ensino básico, e após diversas retenções inicia a sua vida laboral como empregado de mesa e balcão, sendo que também esteve emigrado em França e na Holanda, onde trabalhou numa cantina para trabalhadores da construção civil.
28. Encontrava-se desempregado há cerca de 11 anos, e ia fazendo trabalho indiferenciado para outros membros da comunidade e dedicava-se à agricultura de subsistência.
29. Por volta dos 30 anos casou com a ofendida e mantiveram-se juntos até ao momento de ocorrência dos factos, sendo que apesar da conflitualidade entre o casal esta nunca colocou em causa a dinâmica familiar, porque tanto aquela como o sempre o consideraram um elemento importante.
30. A ofendida não expressa medo e mantém a intenção de recuperar o relacionamento, embora na expectativa que o arguido aceite tratar-se.
31. AA entrou no Estabelecimento Prisional do Porto (EPP) a 30/07/2024, preso preventivamente à ordem dos presentes autos.
32. O arguido refere manter-se abstinente do consumo de substâncias alcoólicas, reconhecendo a problemática e expressando vontade de ser tratado, porque apesar do contexto atual favorecer essa abstinência, o arguido receia uma eventual recidiva emmeio livre.
33. No Estabelecimento Prisional, AA vem mantendo um comportamento adequado às normas internas vigentes, sem sanções disciplinares e ocupado laboralmente desde outubro de 2024, nas hortas da instituição.
34. O arguido mantém contactos telefónicos e visitas com o descendente, referindo que apesar de ambos quererem, não pode contactar a companheira, por via do cumprimento da medida de coação imposta.
35. A mulher expressa a mesma vontade, e vai obtendo informações sobre o arguido, através do descendente.
36. O arguido projeta no futuro o reagrupamento familiar e numa rotina afastada do consumo abusivo de álcool, referindo que a atual privação da liberdade, se deve em parte ao facto de não ter no tempo certo aderido a um tratamento/acompanhamento.
Dos antecedentes criminais do arguido.
37. O arguido já foi condenado pela prática, em autoria material, e na forma consumada pela prática, a 07.12.2017 de um crime sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3º, nº1 e 2 do D.L. 2/98, de janeiro; pela prática a 19.07.2018 de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pela citada disposição legal e de um crime de condução em estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292º do C. Penal; pela pratica a 20.01.2019 e 02.07.2019 de um crime de condução sem habilitação legal , p. e p. nos termos do já aludido preceito; condenações essas sempre em penas não privativas da liberdade.
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Qualificação Jurídica
“(…)
Do crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, p. e p. pelo artigo 272º, nº 1, al. a) do C.P..
Estabelece o art. 272º, nº 1 do C.Penal: Quem: a) Provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício ou construção, a meio de transporte, a floresta, mata, arvoredo ou seara; e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos. Referindo o nº 2 que: “Se o perigo referido no número anterior for criado por negligência, o agente é punido com a pena de prisão de 1 a 8 anos”. Dispondo o nº 3 que: “Se a conduta referida no nº 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos”.
Tutela-se aqui (al. a)) a conduta intencional (dolosa) do agente, virado para a deflagração de um incêndio de relevo, devendo o perigo criado com tal comportamento assumir igualmente carácter intencional, ou seja, quer-se e provoca-se um incêndio, desejando e aceitando correr o risco do perigo que à acção está associado, traduzindo-se a conduta, pois, em pôr fogo o corpo, a vida ou valiosa fazenda de terceiro”( - Código Penal Anotado,1996, Vol. II- pag. 811 – Leal Henriques e Simas Santos.).
O nº 2 aplica-se para aquelas situações em que o agente quis provocar o incêndio e todavia, não obstante essa prática particularmente perigosa, está convicto, firmemente convicto de que não criaria perigo para a vida de ninguém, de que não poria em risco a integridade física de quem quer que fosse e de que, do mesmo modo, não arriscaria bens patrimoniais alheios. Sucede que esta última convicção se baseava em juízos pouco prudentes, reveladores, portanto de negligência. Vale por dizer: o resultado de perigo-violação foi representado e querido de maneira negligente ( Comentário Conimbricense, tomo II, pág. 877 – José de Faria Costa ).
O nº 3 aplica-se àquelas situações em que o agente actua de forma negligente, ou seja, acende um fogo e não teve as cautelas que se impunham para que ele não alastrasse e assim não se tornasse num incêndio de relevo.
No capítulo III do título IV do Código Penal, onde está inserido este art. 272º, cuja epígrafe é “Dos crimes de perigo Comum”, o legislador enumera as situações ou comportamentos que podem criar o perigo, e que são merecedoras de tutela penal.
Tal como resulta do ponto 31 do preâmbulo do CP de 1982 ( não houve neste aspecto alterações dignas de registo) o que está primacialmente em causa, neste capítulo, não é dano, mas sim o perigo. “A lei penal relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstracto) para que dessa forma o tipo legal seja preenchido (…) pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social” ( - Eduardo Correia, “ As grandes Linhas da Reforma Penal – Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pág. 24.).
Na esteira de J. Marques Borges ( - Dos Crimes de Perigo Comum e Crimes Contra a Segurança das Comunicações – Notas ao Código Penal de 1982 – rei dos Livros – 1985) diremos que um crime de perigo se caracteriza em primeiro lugar, pela inexistência de uma lesão efectiva de bens ou interesses, ou seja, a conduta do agente há-de criar uma situação, ou há-de traduzir-se num comportamento que, de acordo com a experiência comum e os conhecimentos existentes, possa originar um dano.
Acresce que, em segundo lugar, deve ser susceptível de causar um dano não controlável, ou melhor dito, difuso, com potência expansiva, sendo nesta aspecto, apto a poder causar alarme social.
Daí que, neste tipo de crimes, o legislador penal não possa esperar que o dano se produza, pois as condutas ilícitas podem causar efeitos altamente danosos, por expansivos, pelo que a protecção do bem jurídico tem de recuar para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.
“Nos crimes de perigo comum, a protecção dos bens jurídicos começa logo que o perigo se manifesta” ( - Lopes Rocha, A Parte especial do Novo Código penal – Jornadas de Direito Criminal, CEJ,1983,pag. 370).
Por outro lado, não obstante estarmos perante um crime de perigo o certo é que a lei não deixa de exigir, para a consumação do mesmo, que o agente produza - de forma intencional ou negligente – um resultado, qual seja um incêndio de relevo.
Assim, podemos considerar que os elementos do tipo legal do crime previsto no artº 272º, nº 1 al. a) são - a provocação de incêndio de relevo, - que crie perigo - em bens patrimoniais alheios - de valor elevado.
O conceito de incêndio de relevo, introduzido pelo D.L. 48/95 de 15/3, é, dada a sua indeterminabilidade, sempre difícil de fixar.
No entanto a lei dá-nos desde logo a possibilidade de o caracterizar quando se refere a incêndio provocado em edifício ou construção, a meio de transporte, a floresta, mata, arvoredo ou seara.
Essa enumeração é meramente exemplificativa e por isso é necessário distinguir o que é um pequeno fogo e o que é um incêndio.
Atear um fogo é desencadear uma combustão com material a isso propenso.
Incêndio é abrasamento total ou parcial de um edifício, mediante o fogo que lavra com intensidade ou extensamente – cfr. Faria Costa in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 870.
Não concordamos inteiramente quando se refere que o incêndio de relevo é aquele que não consiga ser apagado senão pela intervenção de bombeiros, mesmo que a mesma se justifique e seja determinante no evitar da propagação pois pode acontecer um incêndio de relevo sem que os bombeiros tenham intervindo.
É necessário, ainda, que esse incêndio crie perigo, que haja riscos para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para o edifício ou construção, o meio de transporte, a floresta, mata, arvoredo ou seara.
Mas não estando propriamente em causa o dano mas o perigo, muitas vezes o desvalor da acção é de pequena monta, porém o volume do resultado de efeitos catastróficos, o que, na ponderação destes aspectos demanda, face às situações possíveis, por parte do legislador a estabelecer um leque punitivo, que distingue entre actuação intencional com perigo, a imputação do perigo por negligência e a do facto por essa mesma via (Lopes Rocha, in Jornadas de Direito Penal, CEJ, I-371).
O arguido munido de um isqueiro ateou fogo a lixo e objetos velhos amontoados junto da habitação do arguido e agregado, que se estendeu a habitação vizinha pelo que não há dúvidas que ocorreu um incêndio de relevo face ao total abrasamento da habitação.
Para o preenchimento deste tipo legal de crime é absolutamente irrelevante que a habitação incendiada seja própria ou alheia pois não estamos a apreciar o tipo legal do crime de dano.
É necessário que esse incêndio crie perigo, que haja riscos para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para o edifício ou construção.
Face às desastrosas consequências do incêndio na habitação do arguido e da vizinha dúvidas não existem que se provou que aquele incêndio provocou riscos para bens patrimoniais de valor elevado, nos termos do art. 202º, al. a) do C. Penal.
Por outro lado, provou-se que o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente com intenção de destruir pelo fogo que ateou que se estendeu nos termos provados à habitação em causa e tudo que aquela continha.
Houve uma conduta dolosa do arguido no que se reporta ao incêndio porque ele quis o incêndio que provocou, mas quem incendeia material inflamável junto de habitações pratica um acto especialmente perigoso e tem um particular dever de representar que de tal conduta pode ocorrer um resultado mais gravoso para terceiros, , pelo que criou dolosamente o perigo.
O arguido agiu com dolo de perigo, isto é, não só quis causar o incêndio mas também representou que a sua conduta punha em perigo, em risco, a habitação própria e de terceiras pessoas, o que não o impediu de arriscar, prosseguindo e ateando o fogo, existindo, consequentemente uma criação dolosa de perigo.
Assim, entendemos que os factos provados configuram a prática de um crime de incêndio previsto no art. 272º, nº 1, al. a) do C. Penal, estando preenchido o elemento objectivo e subjectivo de tal tipo legal de crime já que o agente teve dolo no antecedente, dolo de provocar incêndio, com consciência de que esta conduta iria pôr o património de terceiros.
Ora, in casu, mostra-se firmado que o arguido foi o causador do incêndio, pondo dolosamente em perigo o património próprio e de terceiros”.
*
Medida da pena
“Uma vez feita a qualificação jurídica dos factos, é chegado o momento de determinar a medida concreta da pena aplicável ao arguido.
(…)
O crime de incêndio, previsto nos art. 272º, nº 1, al. a) prevê uma pena abstracta de três a dez anos de prisão.
Impõe-se assim ponderar:
- O dolo intenso do arguido de causar o incêndio (directo, dada a definição do art. 14º, nº 1 do C. Penal e a matéria fáctica provada);
- Por outro lado, dever-se-á ter em conta o elevado alarme social que este tipo de situações, de criminalidade violenta, ao nível familiar, suscita na comunidade, existindo necessidades de prevenção geral;
- os antecedentes criminais do arguido, em particular pela condução em estado de embriaguez que denota uma insensibilidade às sanções que lhe foram impostas pelo Tribunal, persistindo no consumo de bebidas alcoólicas.
Em favor do arguido dever-se-á atender às suas condições pessoais, familiares e profissionais, conforme relatado no respectivo relatório social e como consta da matéria de facto;
- o desequilíbrio psicológico que afectava o arguido à data da prática dos factos;
- a postura do arguido em julgamento, tendo admitido, ainda que não totalmente, conforme resultou provada, a sua conduta;
Não obstante sempre se dirá que a confissão parcial deste arguido não foi decisiva ou importante para a descoberta da verdade, na medida em que esta sempre seria alcançada mesmo que o arguido não tivesse feito tal confissão, ainda que indicie sensibilidade à pena e inadequação do facto à personalidade, o que levará à diminuição da culpa do arguido.
A declaração de arrependimento do arguido, enquanto facto dado como provado pareceu-nos sincera, denunciadora de alguma contrição, com repúdio pelo crime cometido.
A avaliação destas circunstâncias agravantes e atenuantes conduzem-nos a uma pena que se situa acima da média entre o máximo e o mínimo da pena prevista para este tipo legal de crime, mas reservando as penas que se aproximam do limite máximo para aquelas situações em que o agente, pratica o crime de incêndio causando várias mortes.
Atento o supra exposto, considera-se adequada a aplicação de uma pena de 5 (cinco) anos prisão e 4 (quatro) meses pela prática do crime de incêndio.
Do objeto apreendido.
Por se verificarem os respetivos pressupostos declara-se perdido a favor do Estado o isqueiro apreendido – art. 109º, nº1 do C. Penal.
Do estatuto processual do arguido.
O arguido foi condenado na pena de 5 anos e 4 meses de prisão, ainda que por decisão não transitada, reforçando os indícios fortes já existentes - mantendo-se intocadas as razões que justificaram a aplicação da prisão preventiva ao arguido – arts. artigos 191º a 194º, 196º, 201º, 204º als. c), 213º, 215º, todos do Código de Processo Penal)”.
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que no recurso do arguido/condenado AA se pretende suscitar as seguintes questões:
— Qualificação jurídica dos factos;
— Medida da pena e aplicação da pena substitutiva de suspensão da execução da pena principal de prisão.
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O recorrente estava, também, acusado da prática, em concurso real, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152, nº 1, al. a) e nºs 2, al a) do C.P.; de um crime de homicídio qualificado na forma tentada p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 131 e 132, nºs 1 e 2, al. b) e art.ºs 22º e 23º do C.P., e um crime de resistência e coação sobre funcionário p. e p. pelo art.º 347 do C.P.
Foi absolvido da prática de todos estes crimes.
Está condenado pela prática de um crime de incêndio p. e p. pelo art.º 272, n.º 1. al.ª a) do CP, na pena de 5 anos e 4 meses de prisão.
Em síntese, encontra-se provado que o recorrente “regou” com gasolina os dois automóveis da mulher (com quem casou em 29/09/90), após o que também “despejou gasolina num amontoado de lixo que aí se encontrava ao mesmo tempo que dizia “vou incendiar isto tudo”, e de imediato, fazendo uso de um isqueiro, lançou fogo ao referido lixo”.
As “chamas alastraram” para a residência do próprio e também para a habitação de uma vizinha.
Ao chegar a GNR verbalizava que “isto vai arder tudo” e quando os militares tentaram abrir o portão da casa, disse-lhes “vocês não mandam nada, incendiei isto tudo, isto vai tudo arder, vocês são uns chulos”.
Dada-lhe voz de detenção, tentou impedir a sua concretização “esbracejando e tentando atingi-los com socos”.
As chamas propagaram-se pelo interior da habitação do recorrente e do seu agregado familiar, “atingindo os móveis, todo o recheio, e o edifício residencial, de valor não inferior a €5 200”, e estenderam-se à habitação da vizinha “tornando-a inabitável”.
O incêndio obrigou à intervenção de “GNR, 3 viaturas dos Bombeiros Sapadores de Gaia, com 10 elementos, 3 viaturas dos Bombeiros Voluntários dos Carvalhos, com 9 elementos e 1 ambulância dos Bombeiros Voluntários dos Carvalhos, com 2 elementos”.
A habitação ficou destruída e o agregado familiar (companheira e filho do recorrente) tiveram que passar a residir noutra casa.
Tinha hábitos de consumo de bebidas alcoólicas e esteve internado “por ingestão (de forma não concretamente apurada) de produto agrícola tóxico”.
Tem 3 condenações anteriores pela prática de crimes de condução sem habilitação legal, e uma condenação pela prática de crime de condução em estado de embriaguez.
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Qualificação jurídica dos factos
No recurso começa-se por suscitar uma questão relativa à subsunção dos factos ao Direito, julgando-se “ser mais acertada a sua subsunção ao n.º 3 do citado comando legal, ou, no limite, ao n.º seu número 2”.
Afirma-se depois que os factos provados, designadamente os n.ºs 5 e 7, e que “não incendiou os imóveis, mas sim um amontoado de lixo que se encontrava nas traseiras da habitação, sendo que, o fogo, fruto da negligência daquele, se alastrou para a habitação, inexistindo, assim, uma resolução criminosa do arguido no sentido de incendiar um edifício e outros bens que sabia não lhe pertencer”.
Parece depois resvalar-se para a decisão sobre a matéria de facto, afirmando-se que o recorrente “nunca representou que o fogo poderia provocar um incêndio, e que poderia alastrar ao edifício e causar danos relevantes, como, de resto, foi amplamente testemunhado”, em Audiência.
Prossegue-se afirmando que “mais acertado que o seu comportamento seja considerado como negligente e enquadrado no n.º 3 do citado artigo, ou, no limite, no n.º 2, com consequente redução da moldura penal e pena concretamente aplicada”.
Vejamos:
A previsão e estatuição considerada preenchida é — na parte que interessa — a seguinte:
Título V (Dos crimes contra a vida em sociedade), Capítulo III (Dos crimes de perigo comum), art. 272º, nº 1 do CP (Incêndios):
Quem:
a) Provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício, construção (…) e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.
Como resulta da sua inserção sistemática, o legislador trata-o como sendo um crime de perigo comum; isto é, em que com a actividade punível, se coloca em perigo, desde logo, um número indiferenciado de bens penalmente protegidos — neste caso a vida ou integridade física de outrém, e/ou bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Segundo Faria Costa, “são crimes de perigo em que o perigo se expande relativamente a um número indiferenciado e indiferenciável de objectos de acção sustentados ou iluminados por um ou por vários bens jurídicos”.
E, como bem referido na decisão recorrida, citando Lopes Rocha, “nos crimes de perigo comum, a protecção dos bens jurídicos começa logo que o perigo se manifesta”.
Da sua tipificação resulta tratar-se, simultaneamente, de um crime de perigo concreto (ainda Faria Costa, “está-se perante um crime que é, simultaneamente, um crime de perigo comum e de perigo concreto”); isto é, sendo o fundamento da punibilidade a actividade, em si, que coloca em perigo os bens penalmente protegidos, só preenche o tipo incriminador a actividade particularmente apta a produzir esse perigo — no caso, provocar incêndio de relevo, e criar desse modo perigo para a vida ou para integridade física de outrém, ou para bens patrimoniais alheios.
Assim sendo, os elementos típicos objectivos são:
— O provocar de incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício;
— que crie, desse modo, perigo;
— para a vida ou para integridade física de outrém, e/ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
O recorrente ao despejar gasolina num amontoado de lixo junto à sua habitação, e fazendo uso de um isqueiro, lhe lançar fogo, tendo as chamas alastrado para a sua residência e também para a residência de uma vizinha, tornando-as inabitáveis, preencheu a supra transcrita previsão típica do crime de incêndio, na sua parte objectiva.
Isso é aceite no recurso.
O que se pretende colocar em causa — com a argumentação supra resumida — é o preenchimento da previsão subjectiva do n.º 1 do art.º 272, dizendo-se “mais acertada a sua subsunção ao n.º 3 do citado comando legal, ou, no limite, ao seu número 2”.
Sem qualquer razão, como é evidente, se tivermos em conta a matéria de facto provada, e as formas de prática do crime, a nível subjectivo, configuradas no art.º 272, e que (com o auxílio teleológico e histórico das actas da Comissão Revisora, Acta da Sessão 32ª, que procedeu à revisão do Código Penal, instituída pelo DL 48/95 de 15/03, criadora do tipo em causa),
— N.º 1 do art. 272, acção dolosa e criação dolosa de perigo;
— n.º 2, acção dolosa e criação negligente de perigo;
— n.º 3, acção negligente.
No caso, e tal como resulta da matéria de facto provada — n.ºs 13, 14 e 15 — o recorrente agiu com dolo directo: querendo atear fogo ao amontoado de lixo; e, a acrescer, com dolo de perigo: com consciência e vontade de, ao levar a cabo aquela acção dolosa, criar uma situação de perigo, conhecendo e querendo a possibilidade de produção de danos.
Tal como muito bem descrito na decisão recorrida — e totalmente ignorado no recurso, onde não se rebate directamente esta fundamentação, apenas se alvitrando hipóteses alternativas — “o arguido agiu com dolo de perigo, isto é, não só quis causar o incêndio mas também representou que a sua conduta punha em perigo, em risco, a habitação própria e de terceiras pessoas, o que não o impediu de arriscar, prosseguindo e ateando o fogo, existindo, consequentemente uma criação dolosa de perigo”.
Em conclusão, o recurso mostra-se improcedente nesta matéria.
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Medida da pena e pretendida aplicação da pena substitutiva de suspensão da execução da pena principal de prisão
Passando-se para a medida da pena, afirma-se no recurso que a mesma é “exagerada, porquanto, não valorizou devidamente as circunstâncias atenuantes e enquadramento social e familiar de que aquele beneficia, e amplamente constantes dos factos julgados provados”.
Argumenta-se que “ocorreram num período de diminuta capacidade volitiva deste, sendo que, nem antes, nem depois, lhe foram imputados factos criminais relevantes”, e que se tratou “de um comportamento isolado e sem exemplo, do qual está sinceramente arrependido”.
Termina-se afirmando que se impunha “que a pena seja reduzida um máximo de 5 (cinco) anos e suspensa na execução, tal como decorre do artigo 50.º do Código Penal, ainda que aliada à execução de medidas de carácter reparador”.
Comece-se por observar que a confissão parcial (ainda que não “decisiva ou importante para a descoberta da verdade, na medida em que esta sempre seria alcançada mesmo que o arguido não tivesse feito tal confissão”), e o arrependimento (“denunciador de alguma contrição, com repúdio pelo crime cometido”) foram — a par do “desequilíbrio psicológico que afectava” — foram consideradas atenuantes (não foram ignoradas pelo Julgador).
Porém, a anteceder foi considerado como agravante o dolo intenso, a gravidade das consequências, tendo se em conta o “alarme social” e os antecedentes criminais, em particular “a condução em estado de embriaguez”.
Numa pena entre 3 e 10 anos de prisão, foi-lhe fixada a pena de 5 anos e 4 meses de prisão.
Na revisão dessa decisão, considerando-se o grau de ilicitude dos factos e gravidade das suas consequências: o incêndio propagou-se pela habitação do seu agregado familiar, e ainda a da vizinha, tornando-as inabitáveis, e obrigando ao uso de significativos e dispendiosos meios para o combate do incêndio; o grau de culpa do recorrente: agiu com dolo directo, e com uma forte consciência de que estava a criar uma grave situação de perigo para as habitações próximas e para quem lá estivesse; e as consideráveis exigências preventivas gerais decorrentes da forte necessidade de manter confiança da Comunidade nas normas que punem o provocar de incêndios (em meio urbano ou rural), sendo por demais conhecido o alarme social que tal provoca, a pena de 5 anos e 4 meses de prisão não requer qualquer diminuição.
Assim sendo, mostra-se prejudicada a pretensão de aplicação da pena substitutiva de suspensão da execução da pena principal de prisão, por inadmissibilidade legal.
Em conclusão, o recurso mostra-se totalmente improcedente
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Nos termos relatados, decide-se julgar improcedente o recurso, interposto para este Supremo Tribunal, em representação do AA.
Mantém-se o Acórdão recorrido.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a Taxa de Justiça em 5 UC’s.
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Lisboa, 25/09/25
José Piedade (Relator)
Celso Manata
Vasques Osório