RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ADMISSIBILIDADE
ERRO DE JULGAMENTO
IN DUBIO PRO REO
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sumário


I - Não admissível recurso para o STJ com fundamento em erro de julgamento.
II - Dado o presente recurso ter sido interposto de decisão proferida, em recurso, pelo tribunal da Relação de Lisboa, não pode o recorrente fundamentar o mesmo no disposto nos n.os 2 e 3 do art. 410.ºdo CPP.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça:

A - Relatório

A.1. A decisão da primeira instância.

Através de acórdão proferido a 12/09/2024 pelo Juiz 2 do Juízo Central Criminal de Sintra foi designadamente decidido:

“- considerar não preenchida, pela conduta do arguido AA, a circunstância agravante modificativa prevista no artigo 132.º n.º 2 alínea h) do Código Penal e, procedendo à respectiva reconvolação, condena este arguido pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio agravado, p. e p., no artigo 131.º do Código Penal e artigo 86.º n.º 3 e n.º 4 da Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena parcial de 16 anos de prisão;

- condenar AA pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p., no artigo 86.º n.º 1 alínea c) do Regime Jurídico das Armas e Munições, na pena parcial de 2 anos e 6 meses de prisão;

- condenar o arguido AA em cúmulo jurídico na pena única de 17 anos de prisão”

A.2. O recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa

Inconformado com aquela decisão dela recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa, terminando as suas motivações com as seguintes conclusões (transcrição integral):

“CONCLUSÕES1

1. O presente recurso tem por objeto a decisão sobre a matéria de fato provada, tomada no douto Acórdão proferido nos presentes autos, de que ora se recorre.

2. Nos termos do artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, os Tribunais, além de órgãos de soberania, administram a justiça em nome do povo.

3. Daqui resulta, entre outros aspetos, que, nos termos do artigo 340.º, n.º 1 do CPP, o Juiz de Julgamento deve buscar a verdade material, a certeza processual, se quisermos, ou, de outra forma, o alicerce da decisão.

4. O mesmo é dizer, em sede de julgamento, que o Juiz só deva condenar se ficar efetivamente convencido quanto à culpa do arguido, convencido pela atividade probatória levada a cabo pelo Ministério Público ou pela investigação levada a cabo por si2

5. A Constituição define os Tribunais e as funções da judicatura e atribui-lhes o dever de realização de Justiça em nome do Povo Soberano, sem deixar de lado princípios estruturantes tais como o da presunção da inocência, das decisões fundadas na Justiça e no Direito, na autoridade do Juiz, sem ser autoritária, e na prolação da decisão afastada dos pré-juízos, que, dito de outra forma, é a capacidade de o Juiz de Julgamento se abstrair do caso tal como ele é visto pela acusação 3

6. O princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dúbio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os fatos decisivos para a solução da causa4 e significa que o arguido está isento do ónus de provar a sua inocência, a qual aparece imposta (ou ficcionada) pela lei; o que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido, concentrando a lei o esforço probatório na acusação5

7. Da conjugação do princípio da liberdade com o da presunção de inocência decorre o princípio in dúbio pro reo, que não se trata de uma regra de valoração da prova, como por vezes erradamente se pensa, mas apenas de um critério de valoração da dúvida sobre a prova e […] como o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da decisão condenatória, a dúvida sobre os fatos que alegadamente provam a sua responsabilidade criminal só pode reforçar esse estatuto de inocência e não uma eventual condenação6

8. A prova enquanto atividade probatória – é o esforço metódico através do qual são demonstrados os fatos relevantes para a existência do crime, a punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis7, cabendo ao julgador.

9. A livre apreciação da prova, enquanto atividade submetida à Constituição Penal, impõe ao Juiz, e bem, a prorrogativa de investigar oficiosamente todos os fatos que possam permitir, de forma imparcial, alcançar o alicerce da decisão.8

10. O arguido AA, vinha acusado da prática, como coautor material, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º, n.º 2, al. h), todos do Código Penal e os arguidos AA e BB de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo art.º 86.º, n.º 1, al. c) do Regime Jurídico das Armas e Munições.

11. -Em audiência, foi comunicado à defesa uma alteração da qualificação jurídica, considerando que a factualidade, tal como imputada ao arguido, poderia fazê-lo incorrer na prática de um crime de homicídio agravado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º do Código Penal e artigo 86.º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.

12. Após produção de toda a prova em audiência de discussão e julgamento, em 12.09.2024 foi proferido Acórdão condenando o arguido:

13. a. pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio agravado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º do Código Penal e artigo 86.º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena parcial de 16 (dezasseis) anos de prisão;

b. pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo art.º 86.º, nº1, al. c) do Regime Jurídico das Armas e Munições, na pena parcial de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

c. ao pagamento ao assistente CC da quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros) pelo dano morte do seu pai e € 50.000,00 (cinquenta mil euros) a título de danos morais próprios; e da quantia de € 23.300,00 (vinte e três mil e trezentos euros) a título de danos patrimoniais pelos lucros cessantes;

d. no pagamento das custas criminais do processo (cfr. art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e art.º 8.º e 16.º do Regulamento das Custas Processuais e tabela III a este anexo), fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s.

14. -Não podendo, com o devido respeito, o arguido conformar-se com a decisão proferida.

15. O Tribunal a quo decidiu, que da produção de prova e discussão da causa resultaram provados os seguintes fatos, com relevo para a decisão:

2. Convencido de que o autor de tais disparos fora DD, nascido em D de M de 1986, o arguido AA decidiu vingar-se do mesmo.

3. Para o efeito, no dia 22 de agosto de 2021, cerca das 02h00, deslocou-se ao Localização 1, na Damaia, Amadora, local onde sabia que iria encontrar DD, na companhia do BB e de outra pessoa não concretamente identificada.

4. O arguido AA encontrava-se munido de uma arma de fogo, espingarda tipo caçadeira, capaz de, através da ação de uma carga propulsora combustível, deflagrar cartuchos de caça, de calibre 12, com bala de zagalote.

5. Assim, quando DD se encontrava junto à Rua 2, no Localização 1, perto donde se encontrava a sua namorada, EE, foi surpreendido pelo arguido AA.

6. Após, o arguido AA efetuou, a curta distância, pelo menos 2 disparos na direção do corpo de DD.

7. Em consequência desses disparos, DD caiu ao chão.

8. Nesse momento, o arguido AA aproximou-se de DD e disparou, pelo menos, mais uma vez, voltando a atingir o ofendido.

9. Com estes disparos, o arguido AA atingiu DD na zona torácica, membros superiores e inferiores.

10. Apesar de EE se ter agarrado ao arguido AA para evitar que o mesmo conseguisse fugir, este logrou desembaraçar-se daquela e fugiu para parte incerta.

12. Em consequência da conduta do arguido AA e dos disparos por este efetuados, resultaram no corpo do DD múltiplas lesões traumáticas toraco-abdomino-pélvicas e nos membros, tendo sido atingidas nomeadamente, a nádega esquerda, vindo um projétil a alojar-se no tecido celular subcutâneo do hipogastro; a coxa esquerda, o terço proximal da face lateral da coxa direita, tendo sido atravessados os músculos dessa região; hemitórax esquerdo, sendo que o trajeto de um projétil efetuou-se para a anterior, inferior e para a direita, atravessando pele, tecido celular subcutâneo, músculos latissimus dorsal, serratus anterior e intercostais esquerdos, fraturando o terço posterior do 7º ao 9º arcos costais esquerdos, lacerando em seguida a base do pulmão esquerdo, diafragma, baço, estômago, epíploon e mesentério, ansas do delgado, fígado e vesícula biliar, novamente diafragma, vindo a fraturar o terço anterior do 8º arco costal direito e saindo pelo hipocôndrio direito; face anteromedial do braço direito; face medial do cotovelo direito; mamilo esquerdo, sendo que o trajeto desse projétil efetuou-se para inferior e para a direita, atravessando, subsequencialmente, a pele, tecido celular subcutâneo e músculos peitorais esquerdos, fraturando o terço anterior do 4º e 5º arcos costais esquerdos, lacerando, em seguida, a língula do pulmão esquerdo e o ápex cardíaco e perfurando o diafragma, fígado e, novamente, diafragma, fraturando em seguida o terço anterior do 6º e 7º arcos costais direitos e vindo a sair na linha axilar direita, ao nível dos arcos costais inferiores.

15.O arguido AA sabia que, na zona onde desferira os disparos, alojam-se órgãos vitais que, uma vez atingidos por um instrumento como uma arma de fogo, tal era apto a produzir o resultado morte, conforme sucedeu.

16. O arguido AA agiu com a intenção de tirar a vida a DD, o que conseguiu, bem sabendo que o meio por si utilizado era suscetível de atingir o resultado descrito que quis.

17. Em tudo, agiu o arguido AA de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.

16. Do relatório social que o arguido AA tem apoio familiar, bem como, sempre demonstrou vontade e hábitos de trabalho, fatos que devem ser ponderados e admitidos como bastante positivos

17. Em contradição com tais fatos, Ponto 3 – O arguido no dia 22 de agosto de 2021 encontrava-se numa festa de aniversário, pelo que nunca poderia estar no local indicado como local do crime, acompanhado de BB.

18. Pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 15, 16 e 17 – O arguido em consequência do contraditado no ponto 3, não pode ter praticado os atos aí descritos.

19. Para a motivação da decisão da matéria de fato, teve o Tribunal a quo em consideração os depoimentos das testemunhas EE, FF, GG, HH, II e JJ.

20. Foi considerada pelo Tribunal a quo como provada a atuação do arguido pelas declarações produzidas por EE, representante legal do assistente e demandante CC.

21. O depoimento da testemunha EE não é credível.

22. A testemunha prestou declarações perante OPC, cfr. auto de inquirição de fls. 21, que em tudo são contraditórias às declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento em 06.06.2024.

23 O auto de participação a testemunha perante o Agente da PSP KK, disse: “Os três suspeitos trajavam roupa escura, encapuzados, cerca de 1,70m a 1,80m de altura, possivelmente de aparência africana.”

24. Já nas declarações prestadas na Polícia Judiciária a testemunha mantém as suas declarações: Trajavam roupas escuras, à exceção de um deles que usava um casaco com tons verdes e uma inscrição cujo teor não se recorda, na zona do peito. Este indivíduo não acompanhou os outros dois, permanecendo próximo de um estabelecimento de venda de comidas.

25. Os dois atiradores quando atacaram o DD, tinham já colocado gorros na cabeça e o que empunhava a caçadeira cobriu-se também com o capuz do casaco.

26. Em sede de audiência, a testemunha diz que afinal o arguido não estava encapuçado e que lhe viu as feições.

27. Questiona o arguido em que altura mentiu a testemunha: perante OPC ou em sede de audiência de julgamento.

28. Justifica o Tribunal a quo para fundamentar a credibilidade dada à testemunha o facto de a mesma "ter medo".

29. Sucede que, ficou por clarificar então o fator determinante na dissipação do medo entre a prestação de declarações perante OPC e a prestação de declarações em sede de audiência de discussão e julgamento.

30. A testemunha tem um interesse direto em distorcer a verdade. Não nos podemos esquecer que a mesma é representante legal do assistente e que deduziu pedido de indemnização cível.

31. Também os depoimentos que se seguiram contradizem o declarado pela mesma, com exceção da testemunha FF, tia da testemunha EE, que curiosamente, também em sede de audiência de discussão e julgamento admite ter mentido perante OPC.

32. A testemunha GG dá conta que passaram dois indivíduos com máscara, com capuzes e cara tapada.

33 As contradições entre as declarações prestadas pelas testemunhas, com particular incidência nas testemunhas EE e FF, com ênfase nas contradições que estas mesmas testemunhas preconizaram junto de OPC, deveria ter gerado na

convicção do Tribunal a quo uma dúvida quanto ao cometimento do crime

34 Gera-se assim, entre os depoimentos prestados, e a prova documental, uma dúvida razoável.

35. Pelo que, deve o arguido AA ser absolvido do crime de homicídio agravado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º do Código Penal e artigo 86.º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro pelo qual foi condenado à pena única de 17 (dezassete) anos de prisão. “

A.3. A decisão do Tribunal da Relação de Lisboa

Por acórdão proferido a 19 de março de 2025 o Tribunal da Relação de Lisboa julgou “não provido o recurso e, consequentemente, manter acórdão proferido”.

A.4. O recurso para o STJ

Continuando inconformada recorreu agora o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas motivações com as seguintes conclusões (transcrição integral):

“CONCLUSÕES

1. O arguido é, além de sujeito processual, um meio de prova.9

2. A liberdade dos cidadãos é, para um Estado de Direito em sentido material, fundado na dignidade da pessoas humana e no respeito pelos direitos, liberdades e garantias fundamentis, um bem essencial. Por isso, o Estado tem interesse em punir em certos casos, mas também tem interesse em não punir.10

3. É corolário do processo penal democrático que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, bastando, apenas, atentar no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.

4. O princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dúbio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o principio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os fatos decisivos para a solução da causa.11

5. O que significa, a presunção de inocência é que o arguido está isento do ónus de provar a sua inocência, a qual aparece imposta (ou ficcionada) pela lei; o que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido, concentrando a lei o esforço probatório na acusação12.

6. No caso dos presentes autos, entendeu o douto Tribunal da Relação de Lisboa que não ficou provado a existência de erro de julgamento, porquanto o fundamento do recurso interposto pelo arguido baseia-se apenas numa opinião diversa das conclusões retiradas pelo Tribunal a quo.

7. O arguido não pode concordar com tal decisão.

8. O arguido/recorrente indicou o fatos concretos e a prova que dita conclusão diversa da proferida pelo Tribunal a quo.

9. O arguido/recorrente fundamentou, nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Penal, a existência de erro de julgamento.

10. Neste sentido, e em cumprimento dos princípios de in dubio pro reo e do principio de presunção de inocência deve o arguido ser absolvido.”

A.5. Resposta do MP

O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa apresentou resposta na qual defende, em síntese (transcrição parcial):

“Todavia, tal como é configurado pelo recorrente, o recurso não é admissível, salvo melhor opinião.

Nos termos do estatuído no artº 434º do CPP, “sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 410º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito”.

A crítica ao julgamento da matéria de facto, a expressão de divergência do recorrente relativamente ao acervo fáctico que foi fixado e ao modo como o foi, ou seja, as considerações por si tecidas, quanto à análise, avaliação, ponderação e valoração das provas feitas pelo tribunal são, de todo, irrelevantes, pois ressalvada a hipótese de prova vinculada,o STJ não pode considerá-las,sob pena de estar a invadir o campo da apreciação da matéria de facto.

Assinale-se ainda, não ser possível interpor recurso para o STJ com fundamento na verificação dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP – que de resto, o recorrente não invoca.

O STJ conhece oficiosamente desses vícios quando, num recurso restrito exclusivamente à matéria de direito, constate que, por força da inquinação da decisão recorrida por algum deles, não possa conhecer de direito sob o prisma das várias soluções jurídicas que se apresentam como plausíveis, devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excecional, surgindo como último remédio contra tais vícios.

Segundo o douto acórdão do STJ (juris.stj.pt) de 21.10.2020, P. 1551/19.9T9PRT.P1.S1, 3ª:

“(…)

VIII - Na medida em que a reapreciação da matéria de facto, seja em termos amplos (erro-julgamento) seja no âmbito dos vícios do artigo 410.º do CPP (erro-vício), não pode servir de fundamento ao recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, impõe-se rejeitar, por inadmissível, nesta parte, o recurso interposto pelo arguido, nos termos conjugados dos artigos 420.º, n.º 2, alínea b), 414.º, n.º 2 e 434.º, todos do CPP. (…)”

Em conclusão:

- entendemos que o recurso ora apresentado deverá ser rejeitado face ao disposto nos artigos 420º, nº 2, alínea b), 414º, nº 2 e 434º todos do C.P.P.

- caso assim não se entenda, entendemos que o douto acórdão do TRL deve ser totalmente confirmado e nada temos a acrescentar face às conclusões da motivação de recurso e ao que suprarreferimos, sob pena de sermos redundantes.”

A.6. Parecer

O Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça emitiu parecer que sintetiza nos seguintes termos (transcrição parcial):

“Em síntese:

Não é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, o Acórdão de Tribunal da Relação que improceda o recurso tendo por objecto o erro de julgamento, a violação do princípio in dubio pro reo e do princípio da presunção da inocência apontados ao Colectivo, se aquele recurso tem também por objecto a mera reinvocação da violação daqueles princípios relativos à produção e à apreciação da prova e o pedido de absolvição, por erro de julgamento, sem que sejam invocados quaisquer error in judicando ou error in procedendo, pela alegação de um concreto erro jurídico na aplicação dos mesmos princípios.

Deve, assim, ser rejeitado o presente recurso.”

A.7. Contraditório

Notificado nos termos do disposto no artigo 417º, nº 2 do CPP o arguido nada respondeu.

* * *

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B - Fundamentação

B.1. âmbito do recurso

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões do recorrente (artigos 402º, 403º e 412º do Código de Processo Penal) sem prejuízo, se necessário à sua boa decisão, da competência do Supremo Tribunal de Justiça para, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, nº 2, do mesmo diploma legal, (acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/95 in D.R. I Série de 28 de dezembro de 1995), de nulidades não sanadas (nº 3 do aludido artigo 410º) e de nulidades da sentença ( artigo 379º, nº do Código de Processo Penal).

Assim e em suma, a questão que o recorrente coloca é a de ter ocorrido “erro de julgamento” e de terem sido violados os princípios in dubio pro reo e da presunção da inocência.

B.2. O Direito

B.2.1. Questão prévia – A (in)admissibilidade do recurso

O recorrente invoca, como primeiro fundamento do recurso, a existência de “erro de julgamento”.

Ou seja, entende que ficaram provados factos diversos dos que foram dados como assentes na decisão da primeira instância, a qual foi confirmada, também nessa parte, pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Com efeito, o arguido recorreu para esse Venerando Tribunal invocando erro de julgamento, ao abrigo do disposto no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, sendo que a sua pretensão não mereceu provimento.

E agora vem, com a mesma argumentação, invocar novamente a existência do aludido erro de julgamento.

Esquece, porém, que este Supremo Tribunal de Justiça não pode conhecer da matéria de facto dada como assente com base em erro de julgamento.

Com efeito, estabelece o artigo 434º do Código de Processo Penal que:

“O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 432.”

Assim é por demais evidente que o recurso com tal fundamentação não é admissível para este Alto Tribunal e, por isso, deve ser rejeitado.

Neste sentido e apenas a título meramente exemplificativo veja-se o seguinte acórdão deste Tribunal:

“I. Os recorrentes não devem confundir o erro na subsunção dos factos ao direito com o erro de julgamento, nem tão pouco esquecer os poderes de cognição do STJ, definidos no art. 434.º do CPP, que visam exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432.º, o que significa que o recurso para o STJ é um recurso de revista, ainda que ampliado, ao contrário do que sucede com o recurso para a Relação que é um recurso de apelação, que conhece de facto e de direito (art. 428.º CPP).

II. Ou seja, é à Relação que incumbe, atentos os seus poderes de cognição (e não ao Supremo Tribunal de Justiça), conhecer do chamado erro de julgamento previsto no art. 412.º, n.º 3 e n.º 4, do CPP.”13

Por outro lado, o recorrente alega ter existido violação dos princípios do in dubio pro reo e da presunção da inocência.

Contudo, face ao disposto nos artigos 434º e 432º do Código de Processo Penal e sendo o recurso para este Supremo Tribunal de Justiça interposto de um acórdão de um tribunal da relação, nem podia o mesmo ter por fundamento a violação de tais princípios.

De qualquer forma acrescente-se que tais princípios reportam-se à fixação da matéria de facto, só podendo a sua violação ser invocada perante o STJ nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal.

Com efeito, é jurisprudência pacífica que:

I - A violação do princípio in dubio pro reo, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicada pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção14.

“VI - A limitação do recurso ao reexame da matéria de direito não impede, no entanto, este Tribunal de conhecer oficiosamente dos vícios da decisão recorrida a que se refere o n.º 2, do artigo 410.º, do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova –, se eles resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, se a sua sanação se revelar necessária à boa aplicação do direito, como este Tribunal vem de há muito afirmando em jurisprudência constante, neste âmbito se situando também a apreciação, por este Tribunal, do respeito pelo princípio in dubio pro reo ;

VII - É neste quadro que se torna admissível a possibilidade de o STJ conhecer de questões relacionadas com o princípio da presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição), que estruturando todo o processo, se expressa, no plano dos princípios relativos à prova, na proibição de valoração de um non liquet na questão da prova em desfavorecimento da posição do arguido, nisto se traduzindo o sentido e conteúdo do princípio in dubio pro reo. Nesta perspectiva pode afirmar-se que este princípio, que só vale em relação à prova da questão de facto, assume também uma dimensão que poderá conformar uma questão de direito, da competência do STJ.”15

Ora, in casu, o arguido não invoca a violação de tais princípios por referência ao texto da decisão recorrida.

De qualquer forma e como acima referido, é manifesto que o recurso também não é admissível com fundamento na violação dos aludidos princípios

B.2.2. Conclusão

Concluindo, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não pode ser impugnado nos termos em que o foi.

E o facto de ter sido admitido não impede este Alto Tribunal de o rejeitar, pois não se encontra vinculado àquela decisão (cf. artigo 414º, nº 3 do Código de Processo Penal)

Assim, impõe-se a rejeição do recurso nos termos do disposto nos artigos 434º, 432º (a contrario sensu), 414º, nº 2 e 420º nºs 1, al. b), 2 e 3 do Código de Processo Penal.

C. Das custas processuais:

Ao abrigo do disposto no artigo 524º do Código de Processo Penal e dos artigos 1,º 2º e 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Judiciais (aprovado pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de fevereiro), o Recorrente tem de pagar custas judiciais, cuja taxa de justiça varia, in casu e face à Tabela Anexa III ao aludido Regulamento, entre 5 e 10 unidades de conta.

Face ao exposto e tendo em conta a não complexidade da decisão, vai condenado em 5 (cinco) unidades de conta

Por outro lado, a rejeição do recurso implica ainda a condenação da recorrente no pagamento de uma importância entre 3 UC e 10 UC (que não são meras custas judiciais, tendo natureza sancionatória), por força do disposto no artigo 420º, nº 3, do Código de Processo Penal.

Com efeito, são cumulativas a condenação em custas do incidente e em multa no caso de pedido manifestamente infundado, pois elas visam propósitos diferentes: uma tributa o decaimento num ato processual a que deu causa e a outra castiga a apresentação de requerimento sem a prudência ou diligência exigíveis (Salvador da Costa, As custas Processuais, Coimbra: Almedina, 6.ª ed., 2017, p. 86).

Atendendo, por um lado, à não complexidade do objeto da decisão e, por outro, à manifesta improcedência do recurso, considera-se ajustado fixar essa importância em 3 (três) unidades de conta.

D – Decisão

Por todo o exposto, decide-se rejeitar o recurso interposto por AA, dado o mesmo não ser admissível, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 434º, 432º (a contrario sensu), 414º, nº 2 e 420º nºs 1, al. b), 2 e 3 do Código de Processo Penal;

Vai ainda o recorrente condenado no pagamento de 5 (cinco) U.C., relativas às custas devidas, a que acrescem 3 (três) U.C., nos termos do artº 420º, nº. 3, do Código de Processo Penal.

Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada

(Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)

Celso Manata (Relator)

José Piedade (1º Adjunto)

Vasques Osório (2º Adjunto)

____________________________

1. Na senda do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo 314/17.0GAPTL.G1, em 11.06.2019, relator Mário Silva, de onde se extrai o seguinte:

  São as questões sumariadas nas conclusões que, ao delimitarem o objeto do recurso, serão alvo de decisão, sendo imprescindível que sejam claras, concisas e precisas.

2. RUI PATRÍCIO, a presunção da inocência no julgamento em processo penal, Alguns Problemas, 2019, Almedina, p. 78.

3. Ora, é sabido que a acusação é uma antecipação da decisão final, um projeto de sentença, sendo certo que, se o primeiro contato do juiz com o caso é por via da acusação, o seu “pré-juízo” sobre o caso poderá ser um “pré-juízo” orientado no sentido do “caso da acusação” – Cfr. RUI PATRÍCIO, op. Cit, p.69.

4. Cfr. J.J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição revista, Almedina, 2007, p. 519.

5. Cfr. RUI PATRÍCIO, op. Cit, p.95.

6. Cfr. TERESA PIZARRO BELEZA/FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, op. Cit. P. 102, no mesmo sentido RUI PATRÍCIO, op.cit, p.96, ponto 5.º.

7. PAULO DE SOUSA MENDES, op. Cit. p.173.

8. Ou uma convicção o mais próxima possível da certeza, cfr. Patrícia Silva Pereira, p. 115.↩︎

9. Cfr. TERESA PIZARRO BELEZA/FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, op.cit. p.99.

10. Cfr. TERESA PIZARRO BELEZA/FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, op.cit. p.100.

11. Cfr. J.J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição revista, Almedina, 2007, p. 519.

12. Cfr. RUI PATRÍCIO, op.cit, p.95.

13. Ac. do STJ de 8 de novembro de 2023 no proc. nº 52/18.7GBSLV.E2.S1, disponível em www.dgsi.pt

14. Ac. do STJ de 14 de outubro de 2009 – proc. nº 101/08.7PAABT.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt

15. Ac. do STJ de 17 junho de 2021 no proc. nº 140/19.2GBCCH.C1.S1 disponível em www.dgsi.pt