CONTRATO DE EMPREITADA
CLÁUSULA PENAL
ABUSO DE DIREITO
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
REDUÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
INTERPRETAÇÃO
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
BOA -FÉ
ÓNUS DA PROVA
Sumário


I - A qualificação de uma concreta cláusula penal, que deve ser precedida da sua interpretação por recurso aos critérios ou cânones gerais, assenta na intencionalidade das partes ao convencioná-la, do interesse prático que com ela visam acautelar e na finalidade prosseguida pelos contraentes.
II - Se a pena tiver sido estipulada a título indemnizatório na aferição da proporcionalidade do seu valor da pena, o contraste flagrante entre o dano efectivo e o valor pré-determinado pela pena constitui o parâmetro decisivo.
III - O ónus da prova dos factos que permitem concluir pelo carácter desproporcional ou excessivo da pena vincula o devedor.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório.

Móveis e Estofos Soares, de ... & Filhos, Lda., promoveu contra Faria de Castro-Exportação e Importação Unipessoal Lda., procedimento especial de injunção – ulteriormente convertido em acção declarativa de condenação, com processo comum - pedindo a condenação da última a pagar-lhe a quantia de € 77.754,01, acrescida de juros de mora vencidos no valor de € 4.277,75 e dos que se vencerem até integral pagamento.

Fundamentou esta pretensão no facto de ter concluído com a demandada, no âmbito da actividade comercial de ambas, um contrato de fornecimento de bens e de serviços, em execução do qual lhe forneceu bens diversos, e da última não lhe ter pagado o preço.

A demandada, com fundamento, designadamente, em que o valor do preço devido é de apenas € 59.386,25 e que a demandante não cumpriu o acordado no tocante ao prazo de entrega dos produtos, tendo entregado uma parte deles com 18 dias de atraso e outra com 32 dias de atraso, pelo que o valor da cláusula penal convencionada, deductível ao valor do preço, a título de indemnização pelo atraso no cumprimento, é-lhe superior, reduzindo-se nos termos acordados, àquele valor, concluiu pela improcedência do pedido.

Oferecida a resposta e realizada a instrução, discussão e julgamento da causa, a Sra. Juíza de Direito do Juízo Central Cível da Comarca do Porto, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença proferida no dia 16 de Maio de 2024, depois de observar que o contrato concluído entre as partes é de empreitada, na qual se convencionaram duas cláusulas penais, uma indemnizatória e outra compulsória, e de invocar, oficiosamente, o abuso de direito, nas modalidades de venire contra factum proprium e de supressio, com fundamento em que conferir à ré o direito de, por via da aplicação da terceira cláusula penal (compulsória) e por essa via, transformar um negócio oneroso em gratuito, impondo à autora um sacrifício manifestamente excessivo, perante a total ausência de danos sofridos pela ré, consubstancia uma actuação da ré em manifesto abuso de direito, ao pretender nada pagar à autora, deduziu ao valor do preço, que computou em € 59 386,25, o valor da cláusula penal indemnizatória, no montante de € 7 827,13, e terminou por condenar a ré a pagar à autora a quantia de € 51. 559,12 acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal para os juros comerciais, desde 5 de Maio de 2022, até efectivo pagamento, absolvendo-se a ré do demais peticionado.

A ré interpôs desta sentença recurso ordinário de apelação para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão proferido no dia 26 de Junho de 2025, com fundamento em que estamos em presença de uma cláusula penal de natureza exclusivamente compulsória, pois a aplicação da mesma não está dependente de danos e está prevista para acrescer ao cumprimento (a sua aplicação pressupõe a obrigação de entrega dos produtos fabricados pela autora) e até ainda ao que as partes chamaram de “indemnização pelo dano excedente” por parte da segunda contraente (cláusula 4ª), que o valor global decorrente da aplicação da cláusula penal em referência corresponde a 62.949,18 euros, que a ré nada alegou, defendeu ou invocou que se possa subsumir ou interpretar como pretensão de redução de tal cláusula, nomeadamente insurgindo-se contra o montante da pena que dela deriva, estando assim vedada a redução de tal cláusula com base no art. 812º do C. Civil, e que não ocorre qualquer abuso do direito sob qualquer das modalidades analisadas – venire contra factum proprium e supressio – revogou a sentença recorrida e absolveu a ré do pedido.

A autora interpôs deste acórdão recurso ordinário de revista, no qual pede a confirmação da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, reconhecendo o direito da Recorrente ao valor de € 51.559,12 (deduzida a penalização indemnizatória), acrescido de juros de mora comerciais desde 5 de maio de 2022.

Os fundamentos do recurso, expostos nas conclusões são os seguintes:

I. A sentença de 1.ª instância mostra-se, em nosso entender, mais conforme com os princípios fundamentais do Direito das Obrigações, nomeadamente:

- O princípio da boa fé objetiva (art. 762.º, n.º 2 CC);

- A proibição do abuso de direito (art. 334.º CC), tanto na sua forma venire contra factum proprium como na suppressio;

- O princípio da equidade contratual e o poder conferido ao tribunal para reduzir cláusulas penais manifestamente excessivas (art. 812.º CC).

II. A aceitação da obra por parte da ré, sem qualquer reserva, após atraso que não resultou em prova de prejuízo concreto, justifica a aplicação exclusiva da cláusula penal indemnizatória (cláusula 2.ª) e não da cláusula compulsória (cláusula 3.ª), cuja aplicação integral resultaria em enriquecimento injustificado e desequilíbrio contratual.

A recorrida, na resposta, concluiu, naturalmente, pela improcedência do recurso.

2. Determinação do âmbito objectivo da revista e individualização da questão concreta controversa que importa resolver.

Não se discute na revista que entre a recorrente e a recorrida foi concluído um - típico - contrato de empreitada, contrato de troca para a prestação de obra, no qual a segunda figura na posição jurídica de dono da obra e, a primeira, na de empreiteiro, e do qual emergiu para aquela o direito de receber a obra que constitui o seu objecto mediato, nos moldes e nos prazos convencionados e, para esta, a de perceber o preço convencionado (art.º 1207.º do Código Civil). Também não é objecto de discussão, por um lado, que naquele contrato se convencionou uma poena para o atraso do cumprimento, pela recorrente, da prestação de obra a que, por força daquele contrato se vinculou, e que o crédito relativo ao preço que lhe é devido, que a recorrida não solveu, diferentemente do que aquela alegou no requerimento de injunção, se restringe ao valor de € 59 386, 25.

Objecto de áspera controversão é, porém, de um aspecto a unidade, natureza e finalidade daquela poena convencional, e de um outro, sobretudo o da sua redução ou da legitimidade da sua exigibilidade.

A sentença da 1.ª instância depois de assentar, por um lado, em que a cláusula penal se reveste, simultaneamente, de uma natureza e a uma finalidade duplas – a de cláusula penal indemnizatória e a de cláusula penal compulsória – e, de outro, que a cláusula penal indemnizatória é exigível, mas que a cláusula penal compulsória, o não é, por virtude do seu carácter abusivo – abuso de que conheceu oficiosamente - embora não seja líquida sobre a modalidade do abuso do direito que, concretamente, julgou presente no caso, se o venire contra factum proprium ou a supressio – julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré no pagamento do preço efectivamente devido, descontado do valor da cláusula penal a que atribuiu natureza indemnizatória.

Diferentemente, o acórdão impugnado foi terminante, de um aspecto, na conclusão de que a poena convencionada reveste um carácter e uma finalidade únicas – a de cláusula penal compulsória – que não é oficiosamente reductível, e que o abuso do direito, oficiosamente cognoscível, intervém, não para reduzir a pena, mas antes para aferir da legitimidade do exercício do direito à pena - i.e., que a questão concreta controversa não é de redução equânime da pena, mas de licitude da sua exigência – e, de outro, que não vislumbrou abuso do direito por parte da ré. Em coerência, revogou a sentença apelada e absolveu a ré do pedido,

A recorrente, na alegação da revista, afirma que, no seu entender, a sentença de 1.ª instância se mostra mais conforme com os princípios fundamentais do Direito das Obrigações e que se justifica a aplicação exclusiva da cláusula indemnizatória, i.e., a recorrente aceita expressamente a decisão contida no acórdão impugnado, no segmento em que – embora com um fundamento diverso da 1.ª instância – excluiu a redução da cláusula penal, no valor de € 7 827,13, especificamente estipulada na cláusula 2.ª do documento que contém, designadamente, as declarações contratuais correspondentes. Aquela aceitação expressa daquele troço da decisão do acórdão recorrido importa a perda, nessa parte, do direito à impugnação, com o consequente trânsito em julgado, nesse segmento, daquele mesmo acórdão (art.ºs 628,º, 632.º, n.ºs 2 e 3, 1.ª parte, do CPC).

Como o âmbito objetivo da revista é delimitado, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados nas instâncias, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação, é uma só questão concreta controversa que importar resolver (art.ºs 635.º n.º 4, 639.º, n.º 1, e 608.º, n.º 2, ex-vi art.º 663.º, n.º 2, do CPC): a de saber se poena pactuada pelas partes deve, na parte em que excede a quantia de € 7 827,13, ser reduzida ou se o exercício, pela recorrida, do direito a ela – que determina a extinção, por compensação, do crédito do preço titulado pela recorrente – se deve ter por ilegítimo, com fundamento no abuso do direito, nas modalidades de venire contra factum proprio e de supressio.

A resolução deste problema vincula, evidentemente, a que se determine a natureza e a finalidade da pena convencionada e o seu carácter unitário ou plural e se, na sua exigência, a recorrida actua em abuso do respectivo direito, nas modalidades apontadas.

3. Fundamentos.

3.1. Fundamentos de facto.

As instâncias consideraram adquiridos para o processo os factos seguintes:

3.1.1. Factos provados.

1. A Requerente é uma sociedade comercial por quotas com o NIPC ... ... .72, que se dedica a fabricação de mobiliário de madeira para outros fins, entre outras atividades;

2. A Requerida é uma sociedade comercial por quotas com o NIPC ... ... .65, empresa que tem como atividade o comércio de produtos têxteis, cerâmicos, mobiliário, cosméticos e outros produtos e bens de gama variada, exportação e importação.

3. Após negociações prévias encetadas em finais de 2021 as partes celebraram o contrato junto aos autos como doc. 1, com a oposição.

4. Apesar de constar do contrato a data de 23.12.2021, o mesmo foi assinado pelas partes em 07.01.2022, data que corresponde à da nota de encomenda efetuada pela ré;

5. Do contrato outorgado entre as partes consta o seguinte:












6. Tal contrato tinha como objeto o fornecimento pela requerente à requerida de vários artigos da sua produção (cadeiras, bancos, sofás cama, cabeceiras e bases de cama e outros) destinados à realização de um projeto de 49 quartos para um hotel nos Estados Unidos da América, que as partes identificaram como projeto P-2106.

7. Tal como resulta do contrato, acordaram as partes que:

- o preço unitário dos artigos a fornecer pela requerente constantes da nota de encomenda anexa ao contrato, englobava todo o material necessário à respetiva produção, tecido incluído (“objeto”);

- prazos de entrega, sendo os produtos do grupo A até 18.02.2022 e os do grupo B até 04.03.2022 (cláusula 1ª);

- multas por incumprimento dos prazos de entrega (cláusulas 2ª. 3ª e 4ª);

- obrigação de entrega pela requerente, juntamente com os produtos fabricados, das listas de componentes correspondentes, diagrama de montagem e vídeos (cláusula 5ª);

- os padrões de qualidade das embalagens dos produtos (cláusula 6ª);

- as etiquetas a afixar nas embalagens (cláusula 7ª);

- as condições e prazo de pagamento das faturas a emitir (cláusula 8ª);

- garantia dos produtos fabricados dada pela requerente (cláusula 9ª);

- a empresa transportadora dos produtos fabricados (cláusula 10ª).

8. A nota de encomenda aceite pelas duas partes (fls. 3 a 6) continha a descrição dos bens a fabricar e a quantidade de tecido que era previsível ser necessário, quer para o designado Grupo A, quer para o Grupo B, ascendendo ao montante total de € 78.271,25.

9. Os produtos da encomenda que constituem o grupo A e o grupo B foram fabricados pela autora e foram entregues à ré;

10. A autora emitiu e enviou à ré as faturas identificadas no requerimento de injunção e juntas aos autos, de fls. 12 a 14 verso do anexo documental, a saber:

- fatura n.º ......75, datada de 22/03/2022, no montante de € 20.724,28;

- fatura n.º ......76, datada de 22/03/2022, no montante de € 605,35;

- fatura n.º ......77, datada de 22/03/2022, no montante de € 2.811,54;

- fatura n.º ......90, datada de 29/03/2022, no montante de € 27.986,61;

- fatura n.º ......98, datada de 06/04/2022, no montante de € 25.477,00;

- fatura n.º ......99, datada de 06/04/2022, no montante de € 149,23;

11. Em cada uma das faturas foi mencionado: “Condições de pagamento: pagamento a 8 dias.”

12. Logo em finais de 2021, ainda antes da assinatura do contrato escrito, a requerida informou a requerente da quantidade de tecido necessário para ser incorporado nos produtos a fabricar;

13. A requerida escolheu o tecido pretendido em quantidade superior às necessidades que lhe haviam sido indicadas pela requerente e os respetivos fornecedores (“Damaceno & Antunes, Lda”, “AMS Leather & Textiles, Lda”, “ALDECO – Comércio Internacional, SA” e “ELASTRON Portugal, SA”) e entregou à requerente o valor de 16.193,18€ destinado ao pagamento do preço do tecido, pagamento que fez em dois momentos: 7.810,00€ em 07.12.2021 e 8.383,18€ em 20.12.2021, tendo a autora emitido inicialmente as faturas relativas a esses adiantamentos a 11-12-2021 e 28-12-2021, e posteriormente, em 30-03-2022 e 14-04-2022, com emissão das respetivas notas de crédito.

14. Os tecidos encomendados foram entregues à autora entre finais de dezembro de 2021 e meados de janeiro de 2022;

15. O preço dos produtos a fornecer pela requerente incluía o preço do tecido a incorporar nos mesmos. Desse valor a ré entregou à autora a quantia de 16.193,18€, mencionada em 13, valor que constituiu um adiantamento a deduzir no valor das faturas a emitir pela requerente.

16. Nessa medida, os valores que estão indicados nas faturas:

. nº CFAC ......76, de 22.03.2022, de 605,35€

. nº CFAC ......99, de 06.04.2022, de 149,23€,

e que se reportam a tecido, não são devidos.

17. Da fatura identificada no requerimento de injunção nº CFAC ......77, de 22.03.2022, consta um valor de 420,00€, que se reporta a 28 almofadas (“cushions”);

18. Da nota de encomenda anexa ao contrato não estão identificadas de forma autónoma as 28 almofadas;

19. A autora fabricou e entregou à ré as 28 almofadas;

20. As almofadas (“cushions”) são componentes das cadeiras e sofás e não produtos autónomos, estando o preço das mesmas integrado no preço dos produtos onde se inserem, definido entre as partes e identificados na nota de encomenda;

21. A requerente fabricou e entregou à requerida os produtos e pelos preços indicados nas faturas seguintes:

. nº CFAC ......75, de 22.03.2022, de 20.724,28€;

. nº CFAC ......77, de 22.03.2022, apenas quanto ao valor de 2.391,54€ (retirando o valor de 420,00€ pelas almofadas);

. nº CFAC ......90, de 29.03.2022, de 27.986,61€;

. nº CFAC ......98, de 06.04.2022, de 25.477,00€;

no valor total de 75.579,43€.

22. A este valor devem ser deduzidos 16.193,18€, montante adiantado pela requerida à requerente (e referido em 13º) para aquisição do tecido necessário ao fabrico dos produtos encomendados, considerando que o preço dado pela requerente no orçamento anexo ao contrato inclui o preço do tecido a incorporar nos produtos, num valor total de 59.386,25€;

23. De acordo com o acordado entre as partes e constante da cláusula 8ª do contrato, com a adjudicação a ré deveria depositar o valor de 30% do total do valor dos produtos encomendados e que correspondia a € 23.481,35 (78.271,25 x 30%) e “100% do tecido a fornecer pela primeira contraente e comunicado à segunda contraente que efetuará a compra do tecido em nome da FARIADECASTRO, incumbindo à segunda contraente o levantamento e transporte do tecido no local selecionado pela primeira outorgante”;

24. A ré não procedeu ao pagamento da prestação de 30% com a adjudicação, nem posteriormente, mas apenas adiantou o pagamento referido em 13º;

25. Em relação ao grupo A e que foram lançados nas faturas nºs .75 e ..7 e que, de acordo com o contrato, deveriam ter sido entregues até 18.02.2022, apenas foram entregues em 08.03.2022, ou seja, com 18 dias de atraso;

26. Em relação aos produtos do grupo B e que foram lançados nas faturas nºs .90 e .98 e que deveriam ter sido entregues até 04.03.2022, foram disponibilizados pela autora em 05.04.2022, ou seja, com 32 dias de atraso;

27. A requerente não entregou à requerida juntamente com os produtos fabricados as listas de componentes correspondentes, diagrama de montagem e vídeos;

28. Por mail de 02.08.2022 junto aos autos a fls. 10-11 do anexo documental, a ré deu a conhecer à autora os motivos pelos quais recusava o pagamento das faturas; tal mail tem o seguinte conteúdo:

(…)

O extrato de conta enviado por vocês é inválido por vários motivos, detalhados abaixo.

1. O valor do saldo que vocês enviaram não tem em consideração a dedução dos pagamentos de tecidos efetuados em dezembro de 2021. Por favor, consultem as transferências em anexo.

2. De acordo com o acordo assinado (contrato) que pode ser encontrado em anexo, as deduções abaixo entram em vigor:

a. Os artigos do Grupo A foram entregues com 18 dias de atraso (8 de março em vez de 18 de fevereiro), resultando numa penalidade de 44% sobre o valor total da fatura.

b. Os artigos do Grupo B foram entregues com 32 dias de atraso (5 de abril em vez de 4 de março), resultando numa penalidade de 64% a 72% sobre o valor total da fatura.

c. A penalidade cumulativa de 108% - 116% corresponde a 100%, pois a dedução possível não deve exceder o valor da fatura.

Apesar da realidade no ponto 2 acima, os esforços para alcançar um acordo estão em curso, mas sem compromisso

29. A fatura ......76 (fls. 12 verso) é referente a tecido que foi pedido após a encomenda inicial quando a autora constatou que o tecido encomendado inicialmente não chegou, facto que comunicou à ré apenas em 5 de março de 2022;

30. Na comunicação referida no ponto anterior - 5 de março de 2022 -, por email, a autora informa a ré de que a “pele (MAS) PACIFIC 641 LEATHER, para o item C4 (bench) não é suficiente. Estamos ainda a aferir a quantidade em falta, mas deverá ser para todos os rolos.

31. A ré respondeu no mesmo dia referindo que tinha alertado para a necessidade de encomendarem mais. Se não o fizeram deveriam contactar o mais o fornecedor para uma entrega rápida. A quantidade mencionada pela ré na resposta do doc. 11 é a que consta da nota de encomenda anexa ao contrato em relação ao artigo identificado como C4 (fls. 4 verso);

32. No dia 10 de janeiro de 2022 a ré é informada, por email, do seguinte (fls. 12 do anexo documental):


33. No dia 17 de janeiro de 2022 a ré é informada, por email, do seguinte (fls. 12 do anexo documental):


34. Com data de 21 de março de 2022, a ré recebe da parte dos advogados que representam o seu cliente nos EUA a carta junta ao apenso documental como doc. 4, junto com a oposição, com o seguinte conteúdo (traduzido):







35. Com data de 6 de dezembro de 2022, a autora interpelou a ré para pagamento das faturas por carta registada com A/R, constante de fls. 61 a 63, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido.

3.1.2. Factos não provados.

3.1.2.1 . Do requerimento de injunção:

- que o contrato tivesse a data de 22-3-2022;

3.1.2.2. Da contestação, o seu artigo 24º com a redação:

“Importa referir, ainda, que a negligência da requerente causou graves danos patrimoniais à requerida que, por força do incumprimento daquela, perdeu o cliente americano que foi o destinatário dos produtos encomendados à requerente, o qual deixou1 de trabalhar com a requerida.”

3.1.2.3. Da resposta:

- que no que se refere à fatura ......77, as 28 almofadas foram pedidas e fornecidas fora do orçamentado (artigo 17);

- quanto ao alegado nos artigos 22 e 23, que tenha existido um acordo entre autora e ré, acordo que não é mencionado nas comunicações, que apenas mencionam a impossibilidade de acesso às instalações até 24 de Janeiro, com ressalva de entregas de material por fornecedores e outros casos justificados;

- quanto ao alegado nos artigos 25 e 26, que a ré tenha aceite a alteração da data de entrega para o dia de 8 de março;

- quanto ao alegado no artigo 27, que o material do grupo B foi entregue na data acordada, somente a ré não tinha contentores para expedir a encomenda e solicitou para a autora reter o material nas suas instalações até obter contentores, ficando o material do grupo B guardado nas instalações da ré, que todos os fornecedores e clientes verificaram, dado que ocupava imenso espaço.

- quanto ao alegado no artigo 28, provado apenas a entrega no dia 5 de Abril de 2022.

3.2. Fundamentos de direito.

Entre as cláusulas contratuais típicas – tanto social como juridicamente – encontra-se a cláusula penal (art.ºs 810.º a 812.º do Código Civil).

A cláusula penal, em sentido amplo ou lato, consiste na convenção por que o devedor promete ao seu credor uma prestação para o caso de não cumprir, ou de não cumprir perfeitamente, a obrigação1. A doutrina tradicional construía a cláusula penal como um instituto unitário e com uma dupla função: a de fixar antecipadamente a indemnização; a de incentivar ou compelir o devedor ao cumprimento. A doutrina e jurisprudência mais recentes quebraram a unidade do conceito, separando as cláusulas penais em indemnizatórias e compulsórias: nas primeiras, a convenção das partes tem por finalidade liquidar a indemnização devida em caso de não cumprimento definitivo, de mora ou de cumprimento defeituoso; nas segundas, aquele acordo tem por escopo compelir o devedor ao cumprimento ou sancionar o não cumprimento2. Portanto, ao lado da pena convencional tradicional ou da cláusula penal estrita, às partes é lícito estabelecer uma pura e simples liquidação antecipada da indemnização a que, eventualmente, em face de uma patologia contratualmente identificada, haja lugar (art.º 810.º, n.º 1, do Código Civil). Deste enunciado decorre a grande virtude da poena convencional: a fixação, no exercício, pelos contraentes, da sua autonomia privada, de um sistema rápido e eficaz de justiça contratual.

Uma experiência velha de séculos, torna patente que as partes, quando convencionam uma cláusula penal, não estão a pensar na hipótese de vir a sofrê-la, fiadas em que, em qualquer caso, cumprirão, pontualmente, o contrato. Isto explica que aceitem subscrever cláusulas penais exorbitantes ou excessivas que, no momento em que são chamadas a actuar, colocam delicados problemas de justiça3. Neste plano, assumem, evidentemente, particular relevância os mecanismos de controlo jurisdicional das cláusulas penais, de que constitui claro exemplo, a reductio ad aequitatem, disposta na lei civil geral (art.º 812.º do Código Civil). Todavia, as apertadas cautelas com a que lei rodeia a redução equitativa das cláusulas penais restringem naturalmente o âmbito da tutela que disponibiliza. Seja como for, a poena, traduz-se, frequentemente, numa quantia certa, em juros especiais (agravados) ou na entrega à contraparte de determinada quantia por cada dia de mora. Mas bem pode, porém, revestir outras modalidades, podendo, inclusivamente, não ter por objecto uma quantia em dinheiro e, portanto, a prestação prometida pelo devedor pode ser não pecuniária4. O que, no entanto, é objeto de funda controvérsia, tanto doutrinal como jurisprudencial, é saber se a redução da pena convencional, seja qual for a sua função, pode ser feita oficiosamente.

Efectivamente, alguma doutrina e jurisprudência sustenta que há-de ser lícito ao juiz reduzir oficiosamente uma pena manifestamente desproporcionada ou manifestamente excessiva, dado que se o juiz deve conhecer oficiosamente do abuso do direito individual de exigir benefícios excessivos ou injustificados ou o incumprimento de obrigações que afectem gravemente os princípios da boa-fé, então também lhe deve ser autorizado reduzir oficiosamente uma pena desproporcionada ou excessiva, dado que também aqui está em questão um mecanismo justificado por razões e interesses de carácter público5.

Mas não é essa, seguramente, a orientação, doutrinária e jurisprudencial maioritária ou dominante, que faz depender a redução de um pedido do devedor e adstringe este ao ónus da alegação e da prova dos factos susceptíveis de fundamentar essa mesma redução6, considerando, por um lado, o princípio substantivo da autonomia privada e, por outro, o princípio adjectivo da disponibilidade privada sobre objecto do processo – de harmonia com o qual incumbe às partes a definição desse objeto e a prova dos respectivos factos (art.ºs 405.º do Código Civil e 3.º e 5.º do CPC). Argumentos a que pode adicionar-se o da conexão sistemática entre a redutibilidade da pena e o regime do negócio usurário e da resolução ou modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias (art.ºs 282.º e 283.º, e 437.º a 439.º do Código Civil): se o tribunal não dispõe da faculdade de, oficiosamente, anular ou modificar o negócio usurário – anulação que deve ser pedida pela pessoa em cujo interesse estabelece a invalidade, e modificação que deve ser pedida pela parte lesada – também não deve dispor da faculdade de reduzir oficiosamente uma pena convencional ou um sinal desproporcional ou excessivo, e que já o era no momento da conclusão do contrato; do mesmo modo, se ao tribunal não assiste a faculdade de resolver ou modificar oficiosamente contratos atingido por uma alteração anormal das circunstâncias – dado que a resolução ou a modificação deve ser pedida pela parte lesada – também não lhe deve assistir a faculdade de reduzir, de ofício, a pena contratual, ou sinal que é excessivo, ainda que só por uma causa superveniente.

Na espécie da revista, contudo, a 1.ª instância foi terminante em concluir que à cláusula penal, ainda que, como sucede no caso, o contraente a quem o funcionamento da cláusula prejudica não tenha pedido a sua redução, são aplicáveis, para refrear os excessos da conformação dos direitos do credor, o princípios da proibição do abuso de direito e da boa fé (art.º 334.º do Código Civil). O acórdão impugnado sustenta, porém, que como o abuso do direito tem como efeito a paralisação do direito do credor, dificilmente, se compagina com a redução da cláusula, dado que essa redução ainda assim pressupõe que afinal o direito que emerge da cláusula se exercite (ainda que só em parte). Não parece, todavia, que esta reserva ou objecção do acórdão recorrido se deva ter por procedente. O princípio do proibição do abuso do direito e da boa fé, concretizados no subprincípio da proporcionalidade, pode fundamentar quer a exclusão in totum do direito do credor à pena, quer a redução dessa mesma pena, o que sucederá, no último caso, quando, submetida ao teste ou ao critério ou princípio regulativo da proporcionalidade, a pena se revelar excessiva, mas apenas em parte. Nesta hipótese, a ilegitimidade do exercício pelo credor do direito à pena referir-se-á apenas ao valor que exceder aquele que é imposto pelo subprincípio da proporcionalidade, ínsito no princípio da boa fé. Realmente, a possibilidade de reductio da pena visa evitar um exercício abusivo do direito a ela, pelo que a cláusula de redução da pena convencional desproporcionada ou excessiva se baseia no dever de agir de boa fé e no princípio proibição do abuso do direito, princípio que sempre levaria – e leva – por si só a idêntico resultado ao que o art.º 812.º explicitamente consagra (art.ºs 334.º e 762.º, n.º 2, do Código Civil)7.

Para o problema da exclusão ou da redução do direito à pena, interessa, evidentemente, desde logo, determinar a espécie da cláusula penal concretamente convencionada pelos contraentes.

Em primeiro lugar, é seguro que se trata de uma cláusula penal moratória, dado que foi, indubitavelmente estipulada para o atraso ou retardamento da obrigação de entrega da obra. Qualificação que é expressiva ou significante, dada a admissibilidade da cumulação do pagamento da cláusula penal moratória com o cumprimento da obrigação principal (art.º 811, 1.ª parte, do Código Civil). Mais espinhoso é, porém, o problema de saber se a trata de uma cláusula penal indemnizatória ou antes – como decidiu o acórdão impugnado – de uma cláusula penal de natureza exclusivamente compulsória, pois a aplicação da mesma não está dependente de danos e está prevista para acrescer ao cumprimento (a sua aplicação pressupõe a obrigação de entrega dos produtos fabricados pela autora) e até ainda ao que as partes chamaram de “indemnização pelo dano excedente” por parte da segunda contraente (cláusula 4ª). Qualificação que, evidentemente, é de importância subida.

É garantido que a redutibilidade da pena convencional, ainda que por intervenção do princípio da proibição do abuso do direito, depende de factores de ordem objectiva e de natureza subjectiva, que devem ser ponderados em concreto. Para além do critério não normativo da equidade – que é o decisivo – a redução exige a demonstração de que a pena é manifestamente excessiva, o que inculca, indelevelmente, que não basta uma maior ou menor superioridade do seu valor por comparação com o dano efectivo suportado pelo credor: se tiver sido convencionada a título indemnizatório uma variação pouco significante não deve autorizar a redução; tendo um carácter compulsório, a eficácia da pena pressupõe que apenas nos caso de patente ou evidente desproporção a redução deva ter lugar.

Na avaliação da desproporcionalidade da pena, deve ponderar-se, desde logo, a finalidade que as partes tiveram vista quando a convencionaram, o tipo de pena acordado, já que uma pena pode ser manifestamente excessiva se tiver sido contratualizada a título de liquidação do quantum respondeatur – mas já não o será ou poderá não o ser, se o tiver sido com uma finalidade estritamente compulsória.

Para concluir pelo carácter manifestamente excessivo da pena, deve atender-se, entre outros elementos, a gravidade da infracção contratual para a qual foi disposta, o interesse do credor, a situação económica dos contraentes, a sua boa ou má fé, o grau de ilicitude e de culpa do devedor e as vantagens que este auferiu com a violação, sendo certo que o peso relativo de qualquer destes factores será diferente consoante o tipo ou a espécie de pena contratualizada.

Assim, se o fim conspícuo da pena for compulsório, o factor que deve ter-se por decisivo não será o prejuízo real suportado pelo credor – mas o interesse do credor no cumprimento, pelo que haverá que determinar qual é o valor necessário para estimular o devedor a cumprir, i.e., se o montante que se convencionou era adequado, segundo um juízo de razoabilidade, para assegurar a eficácia da pena, conatural a esta. O que não exclui, todavia, em absoluto, a redutibilidade da pena, se factores supervenientes, igualmente atendíveis, inculcarem a sua excessividade. A equidade será chamada, também aqui, a desempenhar um papel decisivo. Maneira que, se a pena, no momento da sua estipulação, á luz daqueles factores, não era excessiva, o seu exercício, em concreto, pode apresentar-se como tal e, portanto, poderá ficar sujeita a redução, por força, por exemplo, do grau diminuto da ilicitude ou da culpa da violação da obrigação.

Não assim, porém, se a pena tiver sido estipulada a título indemnizatório: neste caso, na aferição da adequação do valor da pena, o contraste flagrante entre o dano efectivo e o valor pré-determinado pela pena, há-de, por certo, ser o parâmetro decisivo8. A conclusão pelo carácter patentemente excessivo da pena exige, pois, aqui, um juízo de relação ou de comparação entre o valor estipulado na pena como indemnização para o não cumprimento e o valor do dano efectivamente suportado pelo credor com a violação da obrigação. E, neste plano, há que ter presente que o nosso direito probatório material se orienta pela chamada doutrina da construção da proposição jurídica ou teoria das normas, de harmonia com a qual a repartição desse ónus decorre das relações das normas entre si – e que, numa formulação simplificada, pode enunciar-se deste modo: cada parte está onerada com a prova dos factos subsumíveis à regra jurídica que lhe atribuiu um efeito favorável – pelo que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos, incumbe à parte contra quem a invocação do direito é feita (art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil). Do que decorre que é a recorrente que está vinculada ao ónus de provar os factos que, devidamente apreciados, permitiriam concluir pelo carácter excessivo ou desproporcionado da pena, ainda que por aplicação oficiosa do princípio da proibição do abuso do direito, dada a sua nítida feição de factos extintivos ou, pelo menos, modificativos do direito de crédito correspondente, pelo que, em caso de non liquet, há decidir contra ela, parte onerada com a prova (art.º 342.º. n.º 2, do Código Civil, e 414.º do CPC). E entre esses factos contam-se, seguramente, tratando-se de uma pena com uma finalidade indemnizatória, os relativos ao valor do dano efectivamente suportado pelo credor com a violação da obrigação para a qual foi estipulada essa mesma pena.

A qualificação de uma concreta cláusula penal, assenta na intencionalidade das partes ao convencioná-la, do interesse prático que com ela visam acautelar, enfim, na finalidade prosseguida pelos contraentes. Trata-se, portanto, de um puro problema de interpretação mais ou menos difícil, conforme os casos - que tem forçosamente de preceder a qualificação, que não se pode fazer sem saber o que as partes efectivamente quiseram, qual o significado das suas palavras ou expressões.

A interpretação do contrato visa, naturalmente, apurar ou determinar o seu sentido juridicamente relevante. Ainda quando o seu sentido pareça estar bem à vista, deve essa primeira impressão, colhida uti oculi, ser contrastada com uma séria reflexão e só depois disso se poderá ter como realmente claro e da plana inteligência o seu verdadeiro sentido. Mesmo quando permita só concluir pela mera existência ou inexistência de certo acto – como sucede nas declarações que se reduzam a actos jurídicos em sentido estrito – a interpretação, entendida no sentido apontado, é sempre necessária.

A nossa lei civil fundamental disponibiliza um conjunto de regras de interpretação da declaração negocial, a primeira das quais surge formulada sob o signo da chamada impressão do declaratário: a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição real do declaratário possa deduzir do comportamento do declarante (art.º 236.º, n.º 1, do Código Civil). Esta regra inculca indelevelmente, que a interpretação, sem prejuízo da atendibilidade das particularidades relevantes do caso concreto, deve ser objectiva ou normativa9.

A declaração vale, em princípio, em princípio, com o sentido que as partes lhe quiseram conferir - vontade real das partes (art.º 236.º, nºs 1 e 2, do Código Civil). Mas se não for conhecida essa vontade ou declarante e declaratário entenderam a declaração em sentidos diversos, vale o sentido que o declaratário normal podia julgar conforme às reais intenções do declarante, excepto se este não tinha o dever de considerá-lo acessível à compreensão da outra parte10.

O declaratário normal é configurado em função das características do declaratário real, designadamente competência linguística, profissão, natureza e localização da actividade, conhecimentos gerais, técnicos e de mercado relacionados com o negócio jurídico e objectivos, empresariais ou de consumo. O sentido relevante é aquele que se considere corresponder à compreensão do comportamento do declarante, segundo um padrão de normal diligência, intenção e racionalidade, tendo embora em conta a projecção tipológica da personalidade do declarante e as circunstâncias concretas que envolveram a declaração negocial. É controverso, tendo em conta o elemento essencial do critério legal – a concretização proveniente do horizonte de compreensão segundo a posição do real declaratário - se o declaratário normal equivale ou não a um declaratário médio ou razoável, ao bonus pater familias ou a uma pessoa razoável, i.e., medianamente instruída, diligente e sagaz11, seguro é, porém, a existência de um limite à imputabilidade ao declarante da compreensão normal, dado que a declaração não vale com sentido normal se o declarante não puder razoavelmente contar com esse sentido (art.º 236.º. 1.ª parte, do Código Civil). Para o efeito de se apurar a vontade normal, o declarante é, também, um declarante normal, colocado na posição do real declarante: a normalidade do declaratário tem como contraponto a razoabilidade do declarante.

Em termos deliberadamente simplificadores, pode, pois, dizer-se, sem erro, que a doutrina disposta na lei quanto à interpretação do negócio jurídico é, portanto, de carácter marcadamente objectivista, baseada na impressão do destinatário, limitada, negativamente, pela possibilidade de imputar a declaração a interpretar a quem a tenha produzido e pela regra falsa demonstratio non nocet.

O direito português não dispõe de regras específicas para a interpretação do contrato. A jurisprudência e doutrina dominantes apelam, por isso, à aplicação directa à interpretação do contrato das regras hermenêuticas dispostas para a interpretação da declaração negocial, no pressuposto – que não é inteiramente exacto – de que a pluralidade de declarações e a cumulação, na mesma pessoa, das qualidades de declarante e de declaratário não reclamam quaisquer adaptações.

Nos contratos formados por declarações contratuais conjuntas – i.e., de declarações de conteúdo idêntico que exprimem o acordo contratual num só documento, subscrito por cada uma das partes - a aplicação rigorosa das regras de interpretação dispostas na lei, impõe que cada uma das declarações seja interpretada em separado: apesar da unidade do texto, e da tendencial homotropia das circunstâncias que antecederam e acompanharam a sua redacção, a diferente autoria exige que, em relação a cada uma das declarações se considere o ponto de vista das partes, enquanto declaratários e enquanto declarantes (art.º 236.º do Código Civil).

A nossa lei também não contém uma enumeração das circunstâncias atendíveis ou relevantes na interpretação dos negócios jurídicos e dos contratos. É, todavia, incontroverso – seja qual for o entendimento adoptado quanto a outros pontos - que à redacção da lei subjaz a atendibilidade de todas as circunstâncias que possam contribuir para determinar o sentido que um declaratário normal possa deduzir do comportamento do declarante, assim como para determinar o âmbito dos significados com que este possa contar, a sua vontade real e o seu conhecimento pelo declaratário (art.º 236.º do Código Civil). Circunstâncias que, a este propósito, são geralmente mencionadas, são – sem preocupação de exaustão – por exemplo: as circunstâncias da conclusão do contrato; a conduta, anterior e posterior a essa conclusão, das partes e a sua qualidade; a natureza e o objectivo do contrato, e a negociação honesta e leal.

Embora o tempo relevante para a interpretação do contrato seja naturalmente, o da sua celebração, as condutas anteriores e posteriores– quer procedam de um contraente, quer de ambos - podem ser reveladoras do sentido que deve ser atribuído aos enunciados contratuais sob interpretação: tanto a intenção significativa como a sua compreensão podem ser reveladas quer por via prospectiva, durante a formação do contrato, quer por via diacrónica. A invocação das negociações preliminares, constantes v.g., comunicações físicas ou eletrónicas trocadas entre as partes, é decerto um elemento atendível da interpretação, o que bem se compreende dado que, mesmo que contrato tenha forma escrita ele é o resultado de um processo negocial prévio, um produto acabado de trocas anteriores de actos comunicacionais.

Em cada contrato coexistem e sobrepõem-se vários fins ou objectivos, que podem ou não ser comuns a ambos os contraentes – embora no caso de não serem comuns, a sua relevância dependa, geralmente da sua cognoscibilidade pelo outro contraente – que devem ter-se por atendíveis na interpretação do contrato: pressupondo a racionalidade económico-social e a coerência dos outorgantes, aqueles objectivos, quaisquer que eles sejam – empresariais, ou outros – contribuem para explicar a sua génese e para o compreender com um todo, que é, por sua vez, um factor indiscutido da sua interpretação: cada um das cláusulas do contrato deve ser interpretada com o sentido de todo o contrato em que estão inseridas. Apesar da inexistência no nosso direito de uma disposição expressa, o contrato deve ser interpretado como um todo, i.e., cada uma das cláusulas do contrato deve ser interpretada com o sentido que resulta de todo o contrato em que está inserida; considerar o contrato como um todo pressupõe, de harmonia com este cânone interpretativo complementar, que se considere o contrato na sua globalidade, dado que a sua interpretação tem como objecto todos os enunciados de que é composto, estabelecendo, eventualmente, uma hierarquia entre as cláusulas, em função da sua essencialidade ou instrumentalidade relativamente os interesses titulados pelos contraentes das finalidades que visam prosseguir.

No nosso direito, a boa fé12 não é mencionada como critério de interpretação do contrato, mas não parece que essa menção seja necessária, dado que a regra de interpretação disposta na lei garante o equilíbrio na atenção aos interesses do declarante e do declaratário e protege a confiança de um e de outro através dos princípios da compreensão pelo declaratário e da limitação de imputabilidade ao declarante (art.º 236.º do Código Civil). Num domínio em que são extraordinariamente relevantes o conhecimento e a compreensão, está, decerto, excluída a boa fé em sentido subjectivo, dado que só existe em estado de ignorância; quanto à boa fé em sentido objectivo ou ético, i.e., enquanto regra de conduta socialmente correcta, não se vê que possa ser um comportamento do declarante ou do declaratário, dado que a interpretação negocial visa apurar o sentido de condutas tais como o foram, não como deveriam ter sido na fase pré-contratual ou no cumprimento.

Resolvendo a questão da conciliação dos critérios de interpretação com os requisitos de forma, a lei determina, como regra especial de interpretação, que nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, mas que esse sentido pode valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (art.º 238.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

A regra especial segundo a qual a declaração não pode valer com um sentido que não tenha uma correspondência textual, conhece, pois, um excepção relevante, verificados que sejam dois requisitos cumulativos: que se apure uma intenção significativa comum; que as razões determinantes da forma do contrato não se oponham à relevância do sentido assim apurado (art.º 238.º, n.º 2, do Código Civil). É, assim, aplicável aos contratos formais a regra subjacente ao brocardo falsa demonstratio non nocet, dado que se pressupõe as situações de conhecimento mútuo, o que só tem, evidentemente, alcance prático se esse sentido for desconforme com qualquer um dos sentidos admissíveis pelo texto do documento. A excepção implica o retorno às regras gerais de interpretação do contrato, embora só tenha aplicação efectiva se o critério interpretativo básico for o previsto no n.º 2 do art.º 236.º do Código Civil).

Contrato formal é, para este efeito, qualquer contrato com forma solene ou escrita ad substantiam, independente de a forma ser exigida por lei ou de ter sido livremente adoptada pelas partes. A particularidade do processo interpretativo dos contratos formais restringe-se a esta regra que, porém, tem um alcance mais largo do que aparenta: para a delimitação dos significados admissíveis estão excluídas, numa primeira fase, a invocação das negociações e práticas anteriores ao contrato e de condutas das partes posteriores à sua conclusão; a segunda tarefa lógica consiste em suprimir as ambiguidades subsistentes, decidindo qual de entre os significados possíveis o sentido relevante - segunda fase em não se justificam os constrangimentos à consideração das circunstâncias atendíveis, incluindo as condutas anteriores e posteriores das partes, provadas por qualquer meio (art.º 393.º, n.º 3, do Código Civil). A regra interpretativa geral só intervém no âmbito da interpretação dos negócios formais se o sentido da intenção significativa for compatível com algum dos significados admissíveis pelo texto do documento (art.ºs 236.º, n.º 2, e 238.º, n.º 1, do Código Civil).

Temos por certo que aplicando à cláusula contratual na qual foi disposta a pena os cânones hermenêuticos apontados, há que concluir que se trata, não de uma cláusula penal compulsória, mas de uma cláusula penal indemnizatória. Uma das disposições contratuais relativas à pena – a 4.ª - tem este exacto conteúdo: o valor da cláusula penal estipulada nas duas cláusulas anteriores terá como limite o valor da factura, sem prejuízo de a primeira contraente poder ainda exigir à segunda contraente indemnização pelo dano excedente (…). Para além de as partes se referirem, repetidamente, a indemnização, a expressão exigir a indemnização pelo dano excedente, inculca que as penas convencionadas nas disposições contratuais anteriores tinham também por fito fixar ou liquidar a indemnização pelo atraso no cumprimento da prestação, visando a cláusula 4.ª, na qual se lê aquela expressão, garantir à recorrida a reparação do dano eventualmente não indemnizado por aplicação da pena convencionada nas cláusulas antecedentes, a indemnização de todo o dano causado pelo retardamento, ainda que com tecto máximo representado pelo valor da factura.

E se a pena, ainda que segmentada, assume um feição indemnizatória ou foi estipulada a título indemnizatório, o critério decisivo para aferir da sua proporcionalidade há-de ser, como já se apontou, o contraste flagrante, manifesto ou ostensivo, entre o dano efectivo e o valor pré-determinado pela pena. Na espécie da revista, o valor da pena mostra-se adquirido para o processo, mas o mesmo não sucede com o valor do dano real suportado pela apelante com o retardamento, pela recorrente, na realização da sua prestação de obra. É certo que, feito o exercício da prova, se não provou que a negligência da requerente causou graves danos patrimoniais à requerida que, por força do incumprimento daquela, perdeu o cliente americano que foi o destinatário dos produtos encomendados à requerente, o qual deixou1 de trabalhar com a requerida. Simplesmente uma resposta negativa sobre a realidade ou veracidade de um facto não equivale à prova do facto contrário13, tudo se passando como se o facto não tivesse sido sequer articulado.

E constituindo o dano efectivamente suportado pela recorrida com a mora em que se constituiu a recorrente no tocante à sua obrigação de entrega da obra um non liquet falta um dos parâmetros indispensáveis para aferir do carácter manifestamente excessivo da pena contratualizada e, na ausência desse parâmetro, a decisão de reduzir, oficiosamente ou não, a poena, não é juridicamente fundada

De resto, como, com inteira correcção o acórdão impugnado concluiu, os factos adquiridos para o processo não autorizam a conclusão de que a recorrida, com a exigência da pena, actuou em abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium ou de supressio.

Dado que não há um proibição geral de comportamento contraditório, doutrina e jurisprudência são acordes no sentido de que o exercício de um direito em contradição com um comportamento anterior só poder qualificar-se abusivo quando, no caso, concorram, cumulativamente as circunstâncias seguintes: tenha sido criada, na contraparte, uma situação objectiva de confiança, imputável ao titular do direito, relativa ao modo do seu exercício; quando, com base nessa situação objectiva de confiança, a contraparte tenha tomado organizado a sua vida ou tomado disposições – investimento de confiança – que seriam frustradas com o exercício do direito ou com o modo como é exercido; quando a contraparte tenha agido de boa fé e com cuidado e precauções usuais no tráfego14.

O abuso do direito na modalidade de supressio – que só se contradistingue do venire contra factum proprium por não haver factum mas apenas uma abstenção – verifica-se quando um direito ou uma posição jurídica não tendo sido exercida durante certo lapso razoável de tempo, não mais possa sê-lo por atentar contra a boa fé. Exige-se, porém, a presença no caso dos quatro elementos de tutela da confiança: a situação de confiança, a justificação, o investimento de confiança e a imputação da confiança ao titular não exercente15.

Ora, no caso da revista, considerados os factos julgados provados, é patente que não se mostram adquiridos para o processo nenhuns dos factos indispensáveis para assacar à recorrida, o exercício, em abuso do direito à pena, tanto na modalidade de venire como de supressio. A sentença da 1.ª instância concluiu pelo abuso do direito por virtude da total ausência de danos sofridos pela ré. Um tal facto não foi, porém, adquirido para causa. E como a sua prova competia à recorrente, face ao non liquet, impõe-se decidir contra ela a dúvida irresolúvel correspondente (art.ºs 342.º, n.º 2, e 346.º, in fine, do Código Civil e 414.º do CPC).

O recurso não dispõe, pois, de bom fundamento. Cumpre julgá-lo improcedente.

Do percurso argumentativo percorrido, extraem-se, pela sua saliência, as proposições conclusivas seguintes:

- A qualificação de uma concreta cláusula penal, que deve ser precedida da sua interpretação por recurso aos critérios ou cânones gerais, assenta na intencionalidade das partes ao convencioná-la, do interesse prático que com ela visam acautelar e na finalidade prosseguida pelos contraentes;

- Se a pena tiver sido estipulada a título indemnizatório na aferição da proporcionalidade do seu valor da pena, o contraste flagrante entre o dano efectivo e o valor pré-determinado pela pena constitui o parâmetro decisivo;

- O ónus da prova dos factos que permitem concluir pelo carácter desproporcional ou excessivo da pena vincula o devedor.

A recorrente sucumbe no recurso. Essa sucumbência torna-se objectivamente responsável pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 30-09-2025

Henrique Antunes (Relator).

Maria Clara Sottomayor (1.ª Juíza-Adjunta): Vencida, pelos fundamentos expostos na declaração infra.

Nelson Borges Carneiro (2.º Juiz-Adjunto).

Declaração de voto

Vencida.

Com todo o respeito e reconhecendo o brilhantismo da argumentação do Acórdão que fez vencimento, não acompanho a solução do caso sub judice, pelos motivos que passo a expor.

Como resulta da factualidade provada a autora e a ré celebraram um contrato de empreitada de mobiliário de quarto de hotel, a ser fornecido pela autora à ré, com vista a ser vendido por esta a uma empresa norte-americana. Nesse contrato foi acordada a importância do cumprimento rigoroso dos prazos pela autora, em virtude dos prejuízos que decorreriam para a ré de qualquer atraso, dado que os bens tinham de ser transportados por via marítima para os EUA.

Foram estipuladas duas cláusulas penais com o seguinte teor:

- No caso de a segunda contraente não entregar todos os artigos nas datas assinaladas (18 de fevereiro de 2022 para os artigos do grupo A e 4 de março de 2022 para os artigos do grupo B), a segunda contraente, aqui autora, obriga-se a indemnizar a primeira contraente no valor de 10% sobre a encomenda total que será descontada no valor da fatura.

- A este valor acresce por cada dia de atraso subsequente uma indemnização adicional de 2% sobre o valor da encomenda total.

Estipulou-se, ainda, no contrato que a aplicação das cláusulas penais terá sempre como limite o valor da fatura, sem prejuízo de a ré poder exigir à autora indemnização pelo dano excedente.

Nos termos dos factos provados n.º 25 e n.º 26, os bens do grupo A foram entregues com 18 dias de atraso e os bens do grupo B foram disponibilizados com 32 dias de atraso.

Vejamos.

Em primeiro lugar, a decisão do litígio – que implica a compensação de um crédito ao pagamento do preço por um contra-crédito decorrente da aplicação de uma cláusula penal por atraso na entrega dos bens – produz um resultado que, do meu ponto de vista, surge como contrário ao princípio do equilíbrio das prestações – critério interpretativo das cláusulas do contrato nos termos do artigo 237.º, in fine, do Código Civil – e não é imposto pelos danos efetivos suportados pela ré, nem pelo grau de culpa da autora, aqui apenas uma culpa presumida, mas não grosseira. Deve notar-se que a empresa americana, a quem os bens se destinavam, foi flexível com a empresa aqui ré e alargou o prazo de entrega dos bens para 31 de março, conforme decorre da carta enviada pelos advogados da empresa americana à aqui ré transcrita na matéria de facto (facto provado n.º 34). Por outro lado, não se provou que a negligência da autora tivesse causado graves danos patrimoniais à ré, nem que a ré tivesse perdido o cliente americano (ponto 3.1.2.2 dos factos não provados).

Na revista apenas está em causa a cláusula penal nos termos da qual a autora terá de pagar, por cada dia de atraso subsequente, uma indemnização adicional de 2% sobre o valor da encomenda total.

Esta cláusula penal tem na minha opinião uma natureza compulsória, na medida em que do seu teor literal e finalidade decorre, para um declaratário normal colocado na posição do declaratário real, que não está em causa reparar danos, mas antes compelir o contraente em falta a cumprir o mais depressa possível, penalizando-o por cada dia de atraso. Na prática judiciária e nos usos do comércio, estas cláusulas têm uma finalidade coercitiva e punitiva e são acordadas para incentivar a parte em falta a cumprir a fim de não se sujeitar a pagar penalizações. A referência no texto da cláusula a uma indemnização não é decisiva para justificar a sua natureza exclusivamente indemnizatória, dado que «A fixação do sentido do contrato não pode ser procurada meramente no plano linguístico, devendo apelar-se a uma perspectiva integrada da autonomia privada através de uma articulação com outros princípios do direito dos contratos, como o da justiça (ou equilíbrio do contrato), o da protecção da confiança ou o da conduta segundo a boa fé» (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-01-2015, proc. n.º 3938/12.9TBPRD.P1.S1).

Ora, o recurso a esta cláusula penal (de natureza compulsória) está sujeito ao controlo do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil), quando o contraente a invoca depois de aceitar a prestação e independentemente dos danos sofridos e do grau de culpa do devedor. Foi esta a fundamentação do tribunal de 1.ª instância, a qual julgo ser correta, não relevando a circunstância de a sentença não ter especificado se a modalidade de abuso do direito em causa era o venire ou a supressio.

A natureza abusiva do exercício do direito decorre do contexto fáctico do caso concreto.

A aceitação da prestação para o grupo B de bens foi em 5 de abril de 2022 (data em que foram entregues) e para o grupo A de bens em 8 de março de 2022. A invocação da cláusula penal compulsória (que o Tribunal da Relação indica ter sido invocada pela ré em 2 de agosto de 2022) foi já posterior à entrega e à data de vencimento da obrigação de pagar o preço (5 de maio de 2022 - 30 dias após a entrega do último artigo). Com esta conduta a ré criou na autora a expetativa de que a cláusula compulsória não seria exercida, tanto mais que estamos num contexto de um atraso de entrega reduzido em termos temporais e que ficou atenuado, na medida em que a empresa norte-americana alargou o prazo à ré para 31 de março, o que a ré teria de repercutir, nos termos do dever de agir com boa fé na execução do contrato (artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil), nos limites temporais da obrigação de entrega da autora. Acresce que este atraso sucedeu durante a pandemia do covid19, conforme resulta da matéria de facto provada, e considero facto público e notório que houve constrangimentos no cumprimento pontual das obrigações, circunstância que reduz o grau de culpa da autora.

Para além deste fundamento, entendo que, estando em causa uma cláusula penal coincidente com a totalidade do preço estipulado, que permite ao credor, por um lado, receber a prestação com atraso e, por outro, nada pagar por ela, a mesma tem de ser interpretada nos termos dos artigos 236.º e 762.º, ambos do Código Civil, de acordo com o equilíbrio das prestações e com a boa fé. Assim, devem ser exigidos, para preservar estes princípios, requisitos específicos para a sua aplicação: a gravidade dos danos sofridos e a natureza grosseira da culpa do devedor. Ora, não decorre da matéria de facto que a ré tenha perdido o cliente norte-americano ou que tenha havido negligência grosseira da autora no atraso. O ónus da prova destes factos, pressupostos da aplicação da cláusula penal invocada pela ré, recai sobre esta (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), que, assim, tem de demonstrar, para poder beneficiar do contra-crédito gerado por uma cláusula penal de natureza compulsória (ou indemnizatória como considerou o acórdão que fez vencimento), não só o atraso na entrega dos bens, mas também danos patrimoniais graves ou culpa grave ou grosseira da autora. Neste sentido, se orientou o Acórdão deste Supremo, datado de 14-04-2011 e proferido no processo n.º 3830/06.6TBBRG.G1.S1 quando afirmou que «Demandado o dono da obra pelo empreiteiro para pagamento do preço convencionado para a empreitada e excepcionando o réu, por via da compensação, um crédito sobre o autor, emergente do funcionamento de cláusula penal estipulada para o incumprimento pelo empreiteiro do prazo imposto para a conclusão dos trabalhos, incumbe ao réu, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º, a prova dos factos genéticos ou constitutivos do invocado contra-crédito, alegadamente extintivo do direito ao preço, incluindo a culpa do empreiteiro na demora na conclusão da obra, perspectivada como idónea para desencadear o funcionamento da referida cláusula penal».

Assim sendo, não tendo a ré provado a perda do cliente norte-americano ou negligência grosseira da autora no atraso, ou outros danos graves justificativos da legitimidade do exercício da cláusula penal, não poderia a ré invocá-la, em litígio judicial, para extinguir o seu dever de pagar o preço.

Maria Clara Sottomayor

2025.09.30

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1. Vaz Serra, Pena Convencional, BMJ n.º 67, págs. 185 a 243.
2. António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, Coimbra, 1990, pág. 602, e Nuno Manuel Pinto de Oliveira, Cláusulas Acessórias ao Contrato, Cláusulas de Exclusão e de Limitação do Dever de Indemnizar e Cláusulas Penais, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, págs. 73 a 78; Acs. do STJ de 18.11.97, BMJ nº 471, pág. 380 e 09.02.99, CJ, STJ, VII, I, pág. 97. Mais rigorosamente, distingue-se, designadamente, a cláusula penal de fixação antecipada da indemnização – que visa liquidar, antecipadamente, de modo ne varietur o dano futuro – a cláusula penal puramente compulsória – convencionada como um plus, como algo que acresce à execução específica da prestação ou á indemnização pelo não cumprimento – e a cláusula penal em sentido estrito – que visa compelir o devedor ao cumprimento através da cominação de outra prestação, que o credor terá a faculdade de exigir, em vez da primeira, a título sancionatório, caso o devedor se recuse a cumprir e que substituirá a indemnização. Apenas a primeira espécie coincide com a definida na lei (art.º 810.º, n.º 1, do Código Civil): Acs. do STJ de 18.01.2022 (889/18) e de 27.01.2015 (1938/12).
3. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 532 e 533.
4. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pág. 74, António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, cit., pág. 44, e António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, Vol. II, AAFDL, Lisboa, 1980, pág. 427. No sentido, porém, da monetarização, cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, Livraria Almedina, Coimbra, 2002, pág. 280.
5. Nuno Pinto de Oliveira, Em tema da redução oficiosa da pena convencional, Estudos em Comemoração do 10.º aniversário da licenciatura em direito da Universidade do Minho, Almedina, Coimbra, 2004, págs. 762, e Cláusulas Acessórias do Contrato, Cláusulas de Exclusão e de Limitação do Dever de Indemnizar e Cláusulas Penais, cit., págs. 132 e ss., Ana Prata, Cláusulas de Exclusão e de Limitação da Responsabilidade Contratual, Almedina, Coimbra, 1985, pág. 642, e Vaz Serra, Pena Convencional, cit., pág. 53; Acs. STJ de 09.02.1999, CJ/STJ, T 1, pág. 97, e de 14.02.1975, BMJ n.º 244, pág. 261 e, por último, o de 08.04.2025 (513/23);. Em geral, para os termos da controvérsia doutrinária, Ana Filipa Morais Antunes, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, UCP, 2018, pág. 1175, e da jurisprudencial, o Ac. da RL 29.04.2021 (439/16).
6. Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, cit., pág. 734, Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Coimbra, págs. 275 e 276 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, cit., pág. 69, Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pág. 441, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8.ª edição, Almedina, Coimbra, 2000, pág. 734; na jurisprudência, entre muitos outros, Acs. STJ 18.01.2018 (473/14) e 25.03.2009, (09AO440), RL 04.11.2021 (2779/20), 08.06.2021 (1340/18), 21.05.2020 (28037/15) e de 04.12.2014 (7964/13).
7. António Pinto Monteiro, Cláusula penal e indemnização, cit., pág. 735. Idem, “Sobre o controlo da cláusula penal, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Vol. III, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, págs. 129-208 (200-202).
8. António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, cit., pág. 745.
9. Acs. do STJ de 13.04.1994, CJ, STJ, II, pág. 32, e da RL de 15.02.1996, CJ, XXI, I, pág. 121.
10. Para uma resenha sobre as opiniões doutrinárias quanto á consagração no art.º 236.º do Código Civil de um critério objectivista ou subjectivista, cfr. Santos Júnior, Sobre a Teoria da Interpretação dos Negócios Jurídicos, AAFDL, 1988, págs. 144 a 150.
11. Assim, v.g., Galvão Teles, Manual Dos Contratos em Geral, Refundido e Actualizado, Coimbra Editora, 2002, pág. 445; diferentemente, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos IV, Funções, Circunstâncias e Interpretação, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 262.
12. Alguma doutrina – v.g. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, 2.ª edição, 2000, pág. 551 – e jurisprudência – v.g. o Ac. do STJ de 27.02.2013 – refere, todavia, de modo genérico, a boa fé no âmbito dos negócios jurídicos↩︎
13. Ac. do STJ de 02.03.2016 (81/12).
14. Acs. do STJ de 23.04.2025 (802/24), 24.09.2009 (09B0659), 16.12. 2010 ( 1584/06), 12.12.2013 (1464/11), 09.09.2021 (2319/19), 10.01.2023 (412/20), 19.01.2023 (3244/19), 02.03.2023 (1558/21) e 12.10.2023 (19691/20); J. Baptista Machado, Tutela da Confiança e venire contra factum proprium, RLJ, Ano 118, págs. 171 e 172, Paulo Mota Pinto, Estudos, Gestlegal, págs. 442 a 446, Pedro Paes de Vasconcelos/Pedro Leitão de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª edição, Almedina, pág. 279.
15. Acs. do STJ de 08.11.2022 (5366) 14.1.2021 (17431/19) e 20.04.2021 (7268/18)