PRESUNÇÃO JUDICIAL
ILOGICIDADE DA PRESUNÇÃO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
MATÉRIA DE FACTO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
PROVA TESTEMUNHAL
PROVA DOCUMENTAL
DECLARAÇÕES DE PARTE
RELATÓRIO DE AUTÓPSIA
ATO MÉDICO
RESPONSABILIDADE MÉDICA
Sumário


Sumário (art.º 663º, nº7 do CPC):
I. Segundo decorre do disposto no art.º 349.º do CC, as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tiram de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
II. No caso da presunção judicial – artigo 351.º do CC –, o funcionamento da presunção fica na disponibilidade do julgador.
III. Em regra e mesmo quando está em causa o controle do uso de presunções judiciais pela Relação está vedado ao tribunal de revista a indagação do erro intrínseco à própria apreciação crítica das provas produzidas em regime de prova livre.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório:

AA, BB e CC, identificados nos autos, instauraram a presente acção declarativa comum contra as rés Lusíadas, SA e DD, igualmente identificadas nos autos, solicitando a sua condenação solidária no pagamento da quantia indemnizatória de € 220.000,00 (duzentos e vinte mil euros), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida do pagamento de juros legais, vencidos e vincendos, desde a citação.

Para fundamentar esta pretensão invocaram a sua qualidade de marido e filhos de EE, falecida em 26-03-2016, em consequência de uma intervenção cirúrgica realizada em 22-03-2016 pela segunda ré, nas instalações da primeira, a um quisto do ovário direito e a uma hérnia umbilical.

Mais alegaram que o óbito de EE decorreu de isquémia intestinal, em contexto pós-cirúrgico por herniação do intestino em ferida operatória da parede abdominal que, na perspectiva dos autores, se deveu a má execução da técnica cirúrgica, designadamente a um deficiente encerramento das feridas cirúrgicas.

Por fim, invocaram a violação das legis artis, bem como do consentimento informado por parte das rés, considerando que se verificam os pressupostos da responsabilidade civil contratual que determinam a procedência da obrigação indemnizatória deduzida.

Regularmente citadas, as rés deduziram contestação.

Na mesma peça processual a ré DD defendeu-se por impugnação, negando ter incorrido em qualquer violação das legis artis e concluindo que não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil invocados pelos autores, pugnando a final pela improcedência da acção.

Requereu ainda a intervenção provocada da seguradora Ageas Portugal, para quem alegou ter transferido a responsabilidade civil decorrente de actos, omissões e erros profissionais cometidos em diagnósticos, prescrições ou aplicações terapêuticas ou de tratamentos ou intervenções cirúrgicas.

A ré Lusíadas, SA apresentou defesa por impugnação, considerando não ter havido violação das legis artis ou das regras de consentimento informado, pugnando pela improcedência da acção.

Alegou ainda ter celebrado com a “Fidelidade Companhia de Seguros, SA” contrato de seguro de responsabilidade civil profissional”, cuja intervenção principal provocada requereu.

Os autores apresentaram articulado com vista ao exercício de contraditório relativamente à documentação junta pelas rés, pronunciando-se ainda sobre os incidentes de intervenção deduzidos, considerando que apenas acessoriamente as seguradoras podem ser admitidas a intervir, não a título principal, dado não serem garantes directos perante terceiros lesados, visando a sua intervenção acautelar o direito de regresso das contestantes.

Foi proferido despacho que admitiu a intervenção principal de ambas as chamadas.

Citadas as chamadas, ambas apresentaram contestação.

Assim, a interveniente Ageas Portugal-Companhia de Seguros, SA confirmou a existência do contrato de seguro invocado, esclarecendo que foi acordado o sub-limite por sinistro de € 150.000 e uma franquia de tipo 30 - 10% do valor dos danos resultantes de lesões materiais, no mínimo de € 125,00.

Considerou ainda que a sua intervenção apenas pode ser admitida a título acessório, mais impugnando os factos alegados pelos autores.

A interveniente Fidelidade-Companhia de Seguros, SA, defendeu-se por excepção, arguindo a prescrição do direito invocado pelos autores, por decurso do prazo de três anos previsto no artigo 498º, CC, dado que o sinistro não lhe foi participado e que decorreram 4 anos e 4 meses até ao momento em que foi admitida a sua intervenção principal.

Pronunciou-se ainda sobre os limites da cobertura acordada e sobre as suas exclusões, considerando que os danos invocados estão excluídos do contrato de seguro, por o sinistro não ter sido participado no prazo máximo de 24 meses desde a sua ocorrência.

Por fim, apresentou ainda defesa por impugnação, pugnando pela improcedência da acção.

Os autos prosseguiram os seus termos, sendo dispensada a realização de audiência prévia e proferido despacho saneador, que afirmou a regularidade da instância, julgou improcedente a excepção de prescrição e fixou o objecto do litígio e os temas de prova.

Instruída a causa, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, no culminar da qual foi proferida sentença, onde se julgou a acção improcedente, e se absolveram, as Rés e as Intervenientes dos pedidos formulados pelos Autores.

Não se conformando com tal decisão, os Autores vieram interpor recurso de apelação, na tramitação do qual foi proferido acórdão da Relação que negou provimento ao recurso e confirmou a decisão proferida.

Desta decisão vieram os Autores interpor recurso de revista excepcional.

As Rés e as Intervenientes vieram contra alegar.

Recebido o processo no Supremo Tribunal de Justiça, a Formação proferiu decisão nos termos do que dispõe o art.º 672º, nº3 do CPC.

Assim, foi proferido acórdão onde se concluiu pela admissibilidade da revista excepcional ao abrigo da alínea a) do nº1 do art.º 672º, do Código de Processo Civil e com os seguintes fundamentos: “…não obstante o Supremo Tribunal de Justiça, ter vindo a dispensar ao tema da responsabilidade civil médica um profuso tratamento, a especificidade da complicação pós-operária no âmbito da cirurgia laparoscópica realizada, adveniente de hibernação do intestino identificado como causa de morte da lesada, atribui ao caso um ineditismo que justifica a intervenção clarificadora e estabilizadora do mais alto tribunal assim como uma análise mais aprofundada da matéria, numa situação em que o dano assumiu gravidade superior.”

Cumpridas que estão todas as formalidades legais e nada obstando ao seu conhecimento, cumpre apreciar e decidir o recurso dos autos nos termos determinados.


*


II. Enquadramento de facto e de direito:

É consabido que o objecto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pelos Autores nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº3, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).

Nos autos é o seguinte o teor das conclusões que constam das alegações de recurso dos Autores:

1) Vem o presente recurso de revista excecional interposto do acórdão proferido pelo TRL que negou provimento ao recurso de apelação, absolvendo os recorridos.

2) Os recorrentes não se conformaram com o acórdão do TRL, considerarem que estão verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil contratual, na violação das leges artis na execução do procedimento cirúrgico (não encerramento da ferida operatória), e na violação dos deveres de esclarecimentos e consentimento informado por banda dos Réus.

3) Na reapreciação da matéria de facto, o acórdão recorrido deu procedência (parcial), à alteração dos factos provados em 36º, 66º, 68º, 69º, 70º e aos não provados em hh) e ii), aditando o facto 100º aos provados, tudo conforme melhor resulta do acórdão, todos transcritos no corpo alegatório.

4) Os recorrentes apresentam as razões da admissibilidade do Recurso de Revista Excecional ao STJ, como lhes impõe o artigo 672.º n.º 1, 2, 3 e 5º do CPC, por estarem em causa questões de relevância jurídica com necessidade uma melhor aplicação do direito; interesses de particular relevância social; e existir contradição entre a resposta dada no Acórdão recorrido e o Acórdão proferido pelo STJ, sobre a mesma questão fundamental de Direito. (artigo 672º nº. 1 do CPC).

5) No acórdão recorrido foram violadas disposições legais no exercício dos poderes de reapreciação da decisão de facto pelo TRL em relação ao facto provado em 66º (art.º 674º nº.1 al. a), b), nº.3 CPC); violação da lei substantiva por erros de interpretação ou aplicação dos factos provados em 27º, 28º, 34º, 35º, 36, 68º, 69º e 70º, e não provado em i), respeitantes ao consentimento informado. (art.º 674º nº.1. al. a) e 2 CPC).

6) Da admissibilidade do recurso de revista excecional:

-Estão verificados os requisitos gerais de admissibilidade do recurso ordinário (art.º 627º, 629º, 631º/1 CPC), os requisitos especiais de admissibilidade da revista enquanto espécie (671º CPC) e existem razões que compreendem os pressupostos referidos no artigo 672.º n.º 1 do CPC, para que seja admitido o presente recurso de revista excecional, o que se requer ao STJ.

7) Apresentamos (sumariamente) o caso: EE após ter sido submetida a uma anexectomia direita laparoscópica para a retirada dum quisto, efetuada pela 2ª Ré no hospital da 1ª Ré, parte do seu intestino delgado (37 cm) introduziu-se pela incisão/ferida operatória da fossa ilíaca direita, causando a herniação do intestino, isquémia intestinal e a sua morte.

8) Por apurar nesta demanda: Se foi encerrada/suturada a ferida operatória na fossa ilíaca direita, como mandam as leges artis e, Se a EE foi devidamente esclarecida sobre os riscos da realização daquele procedimento laparoscópio.

9) Questão com relevância jurídica/necessidade de melhor aplicação do direito art.672.º n.º 1, al. a) CPC, a saber:

- Cuidados de saúde de qualidade e em segurança é um direito dos pacientes, vários diplomas legais, consagram o direito à saúde, à integridade física/moral, à inviolabilidade da vida humana, à proteção da saúde, à responsabilidade jurídica na violação desses direitos, incluindo os ilícitos penais, que tutelam a vida, saúde, corpo, direitos absolutos que justificam a intervenção do STJ.

- erro médico, negligência médica, responsabilidade medica/hospitalar, consentimento informado, matérias que encerram complexidade, motivam debates doutrinários e jurisprudenciais, em que a intervenção do STJ é necessária para uma melhor aplicação do direito, referência para a jurisprudência nacional e para a melhoria dos procedimentos na prestação dos cuidados de saúde em Portugal.

- o aumento dos eventos adversos na prestação de cuidados de saúde, tem gerado aumento da jurisprudência nacional, sendo necessário maior solidez e segurança jurídica das decisões, maior credibilidade e confiança aos cidadãos na responsabilização civil dos erros médicos em Portugal.

- tornando-se definitivo o acórdão recorrido, a referência e as repercussões em matéria do direito médico, consentimento informado e responsabilidade contratual, são claramente negativas e de retrocesso, influenciando, negativamente, futuras comparações na jurisprudência nacional.

- os acórdãos do STJ em matéria de responsabilidade medica/hospitalar e consentimento informado, são estudados nos diversos formações/cursos/pós-graduações em Direito Médico, Gestão da Qualidade e Segurança dos Doentes, por profissionais de saúde, administradores/gestores dos hospitais públicos/privados, que neles procuram compreender o Direito. Inclusivamente, servem-lhes para a compreensão do Direito e orientação para os procedimentos a adotar, o acórdão nº.7053/12.7TBVNG.P1.S1 do STJ de 22-03-2018, que analisaremos, tem sido um exemplo.

- atualmente, ainda se verificam divergências na jurisprudência nacional sobre estas matérias e o acórdão recorrido é um exemplo disso.

10) Interesses de particular relevância social - art.º 672.º n.º 1 al. b) do CPC:

- o erro médico tem sido tão estudado por organizações internacionais científicas, supranacionais, nacionais, que movimentam em torno do Patient Safety, para prevenir eventos adversos, mortes e os elevadíssimos custos associados.

- A Segurança do Doente tem sido alvo de inúmeros estudos internacionais, mostram a frequência, natureza dos erros, danos, onde a cirurgia ocupa um lugar de destaque. A OMS considera a insuficiente segurança dos doentes um grave problema de saúde pública e desde 2004 lançou a World Aliance for Patient Safety que investiga e promove a segurança dos doentes.

- A União Europeia trilha caminho no Patient Safety, (Recomendação do Conselho da União Europeia), reforça a cooperação entre os Estados-Membros e a aproximação dos Sistemas de Segurança do Doente. Calcula-se que na União Europeia entre 8% e 12% dos doentes internados em hospitais sejam afetados por eventos adversos nos cuidados de saúde. Evento Adverso é o incidente que resultou em danos para o doente.

- Em Portugal, segundo os resultados do estudo realizado em 3 hospitais portugueses, a incidência dos eventos adversos é de 11,1%, sendo que 53,2% poderiam ter sido evitados.

- O medo dos portugueses em relação aos problemas da segurança nos cuidados de saúde, "eventos adversos", é o terceiro mais alto ao nível europeu, segundo os dados do Eurobarómetro.

- Boas práticas ao nível dos deveres de esclarecimentos e corretos formulários de consentimento informado, são impostos pelo Direito, pela doutrina e a pela Jurisprudência, assim como pelas normas/orientações da Direção Geral de Saúde, tudo pode contribuir para as melhores práticas nas instituições prestadoras de cuidados de saúde a este nível.

11) Contradição de julgados - artigo 672.º n.º 1 al. c) do CPC: o Acórdão recorrido está em contradição com o proferido pelo STJ em 22-03-2018 n.º7053/12.7TBVNG.P1. S1 no domínio da mesma legislação, questão de direito e não existe acórdão de uniformização de jurisprudência (código de acesso certidão QQER-ZPA7-4LPG-MMK2) Doc. 1.

12) Problema nuclear em ambos os acórdãos: Se foram cumpridos os deveres legais de esclarecimentos à paciente, ou, se foram violados esses deveres e existe responsabilidade civil dos Réus.

13) Em ambos os acórdãos a questão fundamental de direito, prende-se com os pressupostos da responsabilidade civil, contratual, presunção de culpa e ónus da prova, no que diz respeito ao cumprimento dos deveres legais de esclarecimentos prévios dos riscos da intervenção a realizar na paciente, concreta.

14) Existe identidade factual nos acórdãos em confronto (alguma divergência factual não retira a identidade factual): no acórdão recorrido o procedimento foi uma laparoscopia que a paciente veio a falecer porque o seu intestino delgado se introduziu pela ferida operatória; no acórdão fundamento o procedimento foi uma colonoscopia com perfuração do cólon, sem morte.

15) Quadro fáctico em matéria do consentimento informado: no Acórdão recorrido temos os factos provados em 27, 28, 34, 35, 36, 65, 68, 69, 70º e 18 https://www.dgs.pt/normas-orientacoes-e-informacoes/normas-e-circulares normativas/norma-n-0152013-de-03102013-pdf.aspx alínea i) não provado; no Acórdão fundamento os factos provado em 19, 37, 38, 53, e não provados em 14. (para todos se remete leitura).

16) O facto provado em 27º no acórdão recorrido, não contém factos, é uma conclusão em que foram adjetivos riscos “próprios”, “frequentes”, “mais graves”, mas não conhecemos a natureza dos riscos destas categorias.

17) O TRL fundamentou o facto provado 27, deste modo: “…resultou das declarações e do depoimento de parte da ré …resulta que transmitiu à paciente que a cirurgia era suscetível de gerar problemas intestinais, oclusões, o que fez designadamente no momento da assinatura do consentimento... apenas não tendo advertido para a possibilidade da morte, embora a mesma esteja sempre latente.. . o facto de a cirurgia apresentar riscos baixos. …

18) E no facto provado 28, assim: “Ora, de tal documento, datado de 22-03-2016, consta expressamente: “Confirmo que expliquei ao doente (…) ..”. Das declarações prestadas pela ré DD resulta que tal documento, elaborado pela instituição hospitalar e do qual constava informação sumária, era subscrito pelo paciente, a quem o médico, previamente, informava verbalmente acerca do procedimento cirúrgico e suas implicações, o que também sucedeu relativamente a EE. Assim, a subscrição de tal documento, de leitura simples, a par com as informações que lhe foram transmitidas pela médica, não pode deixar de evidenciar que EE deu o seu consentimento à intervenção cirúrgica em causa, o que inviabiliza que a matéria em questão transite para os factos não provados.

19) No Acórdão-fundamento, o STJ apreciou: “No caso dos autos, tendo sido provado que os riscos de perfuração, embora raros, são inerentes a um exame de colonoscopia, … e ainda que, devido aos antecedentes clínicos da A., tais riscos eram acrescidos (…Foi dado como provado que “A Autora assinou em 15.03.2011, antes da realização do exame desse dia feito pelo Réu CC, um impresso do Hospital com o título «Consentimento Informado», onde a Autora assina uma declaração em que afirma compreender a explicação fornecida acerca do seu caso clínico e os riscos em causa, conforme consta a fls. 125 dos autos”. ...Do documento de fls. 125 consta a declaração da A. a autorizar a realização do exame de colonoscopia, “estando perfeitamente informada e consciente dos riscos, complicações ou sequelas que possam surgir”. O consentimento, prestado desta forma genérica, não preenche, só por si, as condições do consentimento devidamente informado. Porém, há que atentar também na prova de que “A Autora conhecia os riscos inerentes à realização de um exame de colonoscopia, incluindo a possibilidade de perfuração, tendo-lhe sido transmitido em 29.12.2009, 25.01.2010 e 15.03.2011, informação relativa à realização dos exames”. (…) Porém, não basta a prova do esclarecimento quanto aos riscos comuns de perfuração. No caso dos autos em que os riscos de perfuração eram superiores ao normal (factos 40 e 54) era imperativo que o R. fizesse prova de que a A. fora informada de tais riscos acrescidos. Ora, não se provou que “À Autora tenha sido expressamente referido pelo Réu CC ou por algum profissional do Réu «Hospital, . » que por estar em causa um cólon operado e o estado geral do mesmo cólon estar mais debilitado face à operação ao tumor, o exame consubstanciava um maior risco”……Assim sendo, conclui-se não ter sido feita prova bastante para preencher as exigências do consentimento devidamente informado.

20) Os Réus defenderam nas contestações (e em audiência de julgamento), que EE tinha fatores de riscos acrescidos, para assim justificarem a herniação do intestino na ferida operatória: cirurgias prévias, obesidade, obstipação crónica, zonas de fraqueza da parede abdominal, risco de formação de aderências de intervenções anteriores, bridas, etc. (contestação da 2. Ré - 87º a 93º e contestação do 1. Réu -51º a 58º).

21) No acórdão recorrido ficaram provados os riscos acrescidos da EE, cirurgias prévias, obesidade e bronquite crónica, (fp 34º, 35º) e os fatores de risco para a ocorrência da herniação pela ferida operatória (fp 36º e 70º).

22) No acórdão fundamento, também se provou a existência os riscos acrescidos daquela paciente (fp 40º e 54º).

23) Em ambos acórdãos, não existem factos provados que os riscos acrescidos tivessem sido esclarecidos às pacientes.

24) Em relação ao formulário do CI, comparemos as apreciações dos julgadores: Acórdão recorrido: o documento (fls.232) do qual constava informação sumária, leitura simples, a subscrição de tal documento, a par com as informações que lhe foram transmitidas pela médica, não pode deixar de evidenciar que EE deu o seu consentimento à intervenção cirúrgica em causa. No acórdão fundamento: o documento de fls.125, o consentimento, prestado desta forma genérica, não preenche, só por si, as condições do consentimento devidamente informado, decidindo-se que não foi feita prova bastante para preencher as exigências do consentimento informado.

25) No Acórdão-fundamento, o STJ considerou não ter sido feita prova bastante para preencher as exigências do consentimento devidamente informado e condenou o Réu com fundamento na falta de consentimento devidamente informado da paciente para a realização da colonoscopia. No acórdão recorrido, o TRL concluiu que a 2. Ré cumpriu o dever deontológico de esclarecimento, aderindo à mesma conclusão jurídica afirmada na sentença da primeira instância e improcedeu o recurso de apelação.

26) Estão, pois, verificadas as contradições de julgados, oposição frontal entre os acórdãos, que concluíram de forma diametralmente oposta.

27) A questão de direito controverso foi essencial para determinar o resultado numa e noutra das decisões, muito diferentes, nos presentes autos foi a absolvição dos Réus, e no STJ a condenação dos Réus.

28) Em ambos os acórdãos são as mesmas disposições legais e o mesmo quadro normativo em matéria do consentimento informado: O acórdão recorrido, remete para a conclusão jurídica da primeira instância. No acórdão fundamento, vem referido o facto impeditivo do direito da A., que cabe ao R. médico fazer prova do consentimento informado, e as várias disposições legais que impõem o dever de esclarecimento e consentimento informado (cfr. Acórdão fundamento). Não há dúvidas que o quadro normativo é o mesmo, nos dois acórdãos.

29) Não existe acórdão de uniformização de jurisprudência, estão, pois, verificados os requisitos da contradição/oposição de julgados, previstos no art. 629º/2/ al. d) do CPC, devendo o recurso de revista excecional ser admitido pelo STJ.

30) Fundamentos da Revista: A) Violação de normas processuais e substantivas: O Tribunal recorrido a violação de normas de direito adjetivo e substantivo na reapreciação do facto provado em 66º do acórdão recorrido.

31) Muito cientes dos artigos 662º/4, 674/3, 682º/2 CPC, contudo as condições que justificam a alteração ou a confirmação da decisão da 1ª.instância pelo Tribunal da Relação, são matéria de direito e suscetíveis de serem apreciadas no recurso de revista. Como nos orientou o Ac. 2499/17.T8AVR.P1.S1 de 12/11/2024 do STJ. Neste foram citados outros do STJ e a Doutrina (que os Venerandos Conselheiros melhor conhecem), que encorajam os recorrentes a submeterem o recurso de revista excecional ao STJ, por muito sérios os fundamentos legais e processuais e merecedores da apreciação da Alta Instância da estrutura Judicial.

32) Na sentença da 1ª. Instância o facto provado 66º: “66. A 2.ª Ré procedeu ao encerramento da aponevrose da entrada da porta acessória de 12mm”. E não provado em aa): A 2. Ré encerrou incorretamente e deficientemente as feridas operatórias, as incisões por si efetuadas nas camadas da parede abdominal (peritoneu, músculo, aponevrose, tecido adiposo e pele), possibilitando a herniação do intestino em 37 cm.

33) Os Recorrentes impugnaram a factualidade deste 66º, porque não ficou provado, que a 2. Ré tivesse encerrado a porta de entrada acessória de 12mm na fossa ilíaca direita (por onde saiu o intestino), mas sem sucesso. Tendo ficado consignado no acórdão: “66. A ré procedeu ao encerramento da aponevrose da entrada da porta acessória de 12 mm na fossa ilíaca direita.”, com base nas declarações contraditórias.

34) Pergunta-se: E bastava o encerramento da aponevrose da entrada da porta acessória de 12mm? Não sabemos. A Perita no relatório pericial(40) refere-se” encerramento das portas da parede abdominal anterior “”, e, em julgamento, referiu a necessidade do encerramento da porta cirúrgica, e, do encerramento da incisão operatória, ora, nunca se referiu ao encerramento da aponevrose, como podemos constatar da leitura do acórdão recorrido.

35) A prova do encerramento e do correto encerramento cabia aos Réus, que sobre si impendia a presunção legal de culpa e o ónus da prova, ademais, têm os conhecimentos técnico para fazerem essa prova, mas não a fizeram, pelo contrário, mas foi feita prova nestes autos que não existia sutura no local por onde saiu o intestino.

36) O Tribunal recorrido na reapreciação deste facto provado em 66º, fez uso da presunção judicial e das regras da experiência comum, para dar como provado o encerramento da sutura da ferida operatória.

37) O Julgador socorreu-se das regras da experiência comum e presumiu (erradamente) o encerramento, escreve no acórdão: “o facto de nesta ferida cirúrgica direita não terem sido detetados vestígios de sutura, por si, não implica a automática consideração de que aquela incisão não tenha sido encerrada ao nível da aponevrose, tanto mais que a operação ocorrera sete dias antes, em 22-03-2016 (o relatório da autópsia a está datado de 29-03-2024).”.

38) O médico que realizou a autópsia, observou objetivamente o cadáver, disse em Tribunal que, não verificou a sutura no local onde estava a sair o intestino da EE, como referido no acórdão (minutos 27:45 a 28:00). A frase foi exatamente esta: “Não verifiquei a presença de sutura no local onde estava a sair o intestino:

39) A EE foi observada da urgência do HGO, apresentava vómitos fecaloides em grande quantidade pela boca e nariz, entrou em paragem cardíaca, 30 minutos de manobras de reanimação, mas acabou por morrer às 21.07H. (fp 61º a 64º.). Causa da morte, isquémia intestinal, que ocorreu em contexto após-cirúrgico por herniação de ileon terminal em ferida operatória da parede abdominal (fp em 65. conclusão da autopsia).

40) O parecer da perita do CML (fls.431 a 454) também descrito no acórdão recorrido: “a morte foi atribuída à ocorrência seriada em cadeia dos seguintes factos: defeito da parede abdominal, hérnia via porta trocar, encarceramento intestinal necrose intestinal, isquémia intestinal e morte. O defeito da parede abdominal é uma fragilidade deste e tem como causa primária a cirurgia. (quesito 17). E quesito 40, “O encerramento deficiente/incorreto das portas da parede abdominal anterior são um factor contribuinte para a ocorrência de hérnias incisionais. E em audiência, diz que segundo as leges artis, as incisões de 10 ou mais, devem ter encerramento cirúrgico das portas de entrada.

41) A Ré médica (interessada no desfecho dos autos), num dia diz que encerrou a ferida cirúrgica na fossa ilíaca direita, noutro diz que não encerrou, como referido no acórdão recorrido. E se olharmos para a fundamentação do julgador da 1ª. Instancia, refere“ segundo as declarações. a própria Ré declarado que estas não foram encerradas face à sua dimensão (2 de 5mm cada – uma na fossa ilíaca direita e outra na fosse ilíaca esquerda) – factos provados em 66e 67.” Como se vê, a prova deste facto nunca seria com a 2.Ré.

42) O Tribunal a quo, andou na buscou dum suposto fio de sutura, “o fio poderia ter rompido, o médico da autópsia podia não ter visto o fio de sutura”, quando, no exame objetivo ao cadáver e naquele local exato onde saíram os 37 centímetros do intestino, fez-se prova com o medico da autópsia, que não existia sutura.

43) O Tribunal fez a prova dum facto principal/essencial com base numa presunção judicial. O facto: encerramento ou não encerramento cirúrgico da porta de entrada, não se prova com regras da experiência comum, mas sim, com regras da experiencia técnica, a fisiologia do corpo e o encerramento/sutura dum órgão, não se presume com as regras da experiencia comum. Veja-se o que escreve no acórdão: “ o facto de nesta ferida cirúrgica direita não terem sido detetados vestígios de sutura, por si, não implica a automática consideração de que aquela incisão não tenha sido encerrada ao nível da aponevrose, tanto mais que a operação ocorrera sete dias antes, em 22-03-2016 (o relatório de autópsia a está datado de 29-03-2024).

44) E bastava que a incisão fosse encerrada apenas ao nível da aponevrose? Não sabemos. Cabia aos Réus provarem que a aquela incisão foi encerrada e corretamente e que bastava a aponevrose. O facto 66º, não prova o encerramento correto da incisão, por onde saiu e intestino e levou à morte da EE.

45) A EE foi submetida a uma laparoscopia (intervenção cirúrgica minimamente invasiva para confirmação diagnóstica da benignidade, como referem os Réus nas contestações), para a retirada de um quisto, pequeno, aparentemente benigno (confirmado) em que o seu intestino se introduziu em 37 cm pela ferida cirúrgica na fossa ilíaca direita.

46) Nas urgências do Hospital apresentou vómitos fecaloides em grande quantidade pela boca e nariz, entrou em paragem cardíaca, 30 minutos manobras de reanimação, acabou por morrer às 21.07H. (fp 61ºa64º) A autópsia confirmou a causa da morte, isquémia intestinal em contexto após-cirúrgico por herniação de ileon terminal em ferida operatória da parede abdominal.

47) O uso da presunção judicial neste facto 66º, configurou uma violação das regras probatórias com o desrespeito pelo art.º 349º do CC e 655º CPC, violação das regras processuais. Ademais, patenteia um raciocínio que evidencia um ilogismo manifesto e ilegal, devendo ser conhecido e controlado pelo STJ o que se requer.

48) O Tribunal da Relação fez dos poderes que lhe são conferidos no artigo 662º CPC, um mau uso, uso indevido e excessivo, com violação das regras probatórias, da presunção legal de culpa dos Réus e do ónus da prova, tudo configuram violações da lei do processo que os recorrentes invocam nos termos do disposto artigo 674º, nº1 al. a) e b) CPC, que constituem fundamentos desta revista ao STJ.

49) Ilidir uma presunção de culpa em matéria tão sensível como o incumprimento dos deveres médicos, neste caso, deveres de cuidado ao executar e encerrar o procedimento cirúrgico de acordo com as leges artis, constitui uma questão de direito em relação à qual a jurisprudência e a doutrina são exigentes, dada a finalidade do instituto da responsabilidade civil ser a proteção do lesado, da vida, neste caso, uma intervenção não urgente (72º fp), um pequeno nódulo de pequenas dimensões anexial direito, aparentemente benigno a merecer controlo evolutivo (20 fp), confirmado benigno na citologia (37º fp).

50) Nos termos do disposto nos artigos 682º e 674º nº. 3 do CPC, 349º, 344º do CC, os recorrentes requerer ao STJ a sindicância da presunção judicial utilizada pelas instâncias, com violação de normas legais e do direito probatório, ilogicidade e a falta do facto base, no caso em apreço. Elucida-nos desta possibilidade toda a jurisprudência e doutrina supra referida e ainda o acórdão do STJ de 18.05.2027.

51) Requerem, ainda a sindicância do STJ para a interpretação deste facto 66º, e se, encerrar a aponevrose é encerrar corretamente a ferida cirúrgica, a porta de entrada. Os recorrentes consideram que a prova do encerramento não foi feita nestes autos, mas nem a redação aposta facto 66 prova o correto encerramento da ferida cirúrgica. E por conseguinte a ilicitude e a culpa dos Réus, não ficou afastada com a redação dada a este 66º.

52) A herniação do intestino ocorreu na ferida operatória, não encerrada pela 2. Ré, temos um cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços, destinado à realização da cirurgia laparoscópica, causou lesões gravíssimas e a morte a EE, não consentidas no cumprimento do contrato de prestação de serviços, verificando-se a ilicitude e a culpa.

53) E não se trata apenas de uma presunção de culpa, esta presunção pressupõe necessariamente uma presunção de ilicitude, como referem vários acórdãos e doutrina (corpo alegatório), que consideram que não é possível presumir a culpa se não se presumir, igualmente, a ilicitude, a violação de uma regra jurídica. (cfr. Ac. RP 1891/19.7T8GDM.P19.

54) Em relação ao nexo de causalidade, os factos provados consubstanciam matéria provada suficiente, para não se questionar o nexo de causalidade entre o facto ilícito, culposo, o dano morte da EE e os danos dos recorrentes, com destaque para o provado em 65º causa da morte e 71º, que estabelece a correlação entre a herniação do intestino, necrose e o local onde a incisão havia sido efetuada na área da fossa ilíaca direita.

55) Danos encontram-se elencados factos provados que os suportam, todos configuram danos patrimoniais e não patrimoniais que merecem a condenação dos recorridos e das Companhias de Seguros, por via das apólices de responsabilidade civil, no pagamento.

56) A EE esteve em sofrimento, pelo menos desde 24 de março de 2016 até ao dia da sua morte – 26 de março de 2016, padecimento agravado a cada dia, o que culminou na sua morte muito dolorosa e trágica (fp 61º a 64º, 83º fp).

57) O 1. Réu responde civilmente por todos os danos verificados, solidariamente com o 2. Réu, o que se requer ao Supremo Tribunal de Justiça.

58) Os recorrentes reclamam a condenação solidaria dos recorridos e Companhias de Seguros FIDELIDADE, SA e AGEAS PORTUGAL, SA, que por força dos contratos de seguros celebrados são responsáveis pelo pagamento da indemnização peticionada aos recorrentes.

59) Requer-se ao STJ uma decisão Justa dos pedidos indemnizatórios dos recorrentes, no montante indemnizatório de € 220.000,00, acrescido de juros moratórios à taxa legal desde a citação até integral pagamento nos termos do artigo 806/2º e 805/1 do CC.

60) O acórdão proferido pelo Tribunal a quo, violou as seguintes normas jurídicas: artigos 349º, 798º, 799º, 70º, 344º, 563º, 494º, 496º todas do código civil, 655º CPC, artigos 24º e 25º da CRP, 4º da CDHB, 1, 2º, 4, 5, 10º, 39º, 40º do Código Deontológico (Regulamento 707/2016 DR, 2º. Série de 21/06/2016), artigo 135º do EOM Lei 117/2015 de 31 agosto, artigos 3º, 5 da Lei 12/2005 de 26/01.

61) Fundamentos da Revista: B) Violação da lei substantiva em matéria do consentimento informado (CI) De acordo com a jurisprudência do STJ a violação do dever de informação fundamenta uma acção de responsabilidade civil, mesmo na ausência do erro médico nas intervenções realizadas. (Ac. STJ de 24-10-2019, Processo 3192/14.8TBBRG.G1).

62) O alcance, extensão do dever de informação, cumprimento ou incumprimento, constituem questões de direito centrais e a apreciação delas está incluída nos poderes cognitivos do Supremo (Ac. STJ. 359/10.1TVLSB.L1.S1 de 09/02/2021).

63) Requer-se ao STJ uma avaliação dos factos provados e não provados para o efeito de subsunção às normas jurídicas aplicáveis, sendo possível nos poderes da Alta Instância Judicial, porque o acórdão recorrido, não está conforme o Direito e a Jurisprudência desse Tribunal em matéria do Consentimento Informado (CI).

64) O TRL cometeu erros de interpretação da lei substantiva em matéria do consentimento informado aos factos em presença, que os recorrentes invocam nos termos do disposto no artigo 674º nº1 alínea a) e nº 2 do CPC. A que acrescem os fundamentos do pedido de admissibilidade desta revista, por existir contradição entre o acórdão recorrido e acórdão julgado pelo STJ, nos termos do disposto no artigo 672º/1 do CPC, reiterando à necessidade de uma melhor aplicação do Direito aos factos do CI.

65) Os factos provados e não provados, relacionados com este segmento decisório são 27, 28, 34, 35, 36, 68, 69 e 70 e não provado em al. i), assim todos os restantes do acórdão recorridos, para os quais remetemos leitura, permitem apurar e decidir, que a EE não foi devidamente esclarecida acerca dos riscos daquela intervenção laparoscópica.

66) Também nos factos 27º e 28º na impugnação em apelação, os recorrentes não tiveram procedência, contudo e ainda assim, permite-nos fazer as mesmas perguntas, sem respostas: quais são os riscos “próprios”, “mais frequentes” e “mais graves”, que foram esclarecidos a EE? Não sabemos, pois neste 27º não temos factos, mas sim conclusões, e outros factos não existam no acórdão recorrido, que permita decidir que a EE foi devidamente esclarecida dos riscos da laparoscopia.

67) O teor deste 27º, foi retirado do artigo 41º da contestação da 2. Ré) e assim, ficou, exatamente igual. Sucede que, a 2. Ré, não disse em contestação, nem em audiência, que falou a EE do risco da complicação grave que sucedeu, herniação do intestino, nem do risco de morte. O 1. Réu Hospital na sua contestação, assume que tais riscos (referindo-se à herniação do intestinal e isquémia intestinal), não foram esclarecidos EE (cfr. artigos 165º e 166º da contestação).

68) Vejamos como motivou o acórdão recorrido, o facto 27º (…) Já das suas declarações de parte resulta que transmitiu à paciente que a cirurgia era suscetível de gerar problemas intestinais, oclusões, o que fez designadamente no momento da assinatura do consentimento. Tal informação foi por si transmitida quer nas consultas (designadamente na pré-operatória), quer no decurso da ecografia, apenas não tendo advertido para a possibilidade da morte, embora a mesma esteja sempre latente, dado o stress que tal informação causa aos doentes e o facto de a cirurgia apresentar riscos baixos (minutos 9.40 a 10.00 e 12.00 a 13.30). (….) O certo é que, para além da consonância das declarações da ré com as regras de normalidade da vida, dado que qualquer cidadão com uma instrução média quando se submete a cirurgia exige ser esclarecido acerca das suas implicações, é decisivo o teor do consentimento informado subscrito pela EE (documento junto pela ré Lusíadas, SA na sua contestação como documento nº 1). E da sua leitura resulta que a paciente recebeu a informação necessária para aferir das implicações da intervenção cirúrgica, o que inviabiliza a consideração como não provada de tal matéria. Improcedente se revela a impugnação do facto provado nº 27. (negrito nosso)

69) E o como motivou o facto 28º: (…) Na perspetiva dos recorrentes, a tal facto deve ser conferida a seguinte redação: “EE assinou o formulário de consentimento informado para atos médicos, cirúrgicos ou exames/MCDT.s existente na instituição hospitalar Lusíadas (fls 232 dos autos).” …Ora, de tal documento, datado de 22-03-2016, consta expressamente: “Confirmo que expliquei ao doente (…) de forma adequada e inteligível, a condição clínica do doente, os tratamentos propostos, os potenciais benefícios e prejuízos, as alternativas possíveis, a previsibilidade de êxito da sua aplicação, possíveis problemas relacionados com a recuperação e possíveis resultados da decisão de não realização dos tratamentos”. Das declarações prestadas pela ré DD resulta que tal documento, elaborado pela instituição hospitalar e do qual constava informação sumária, era subscrito pelo paciente, a quem o médico, previamente, informava verbalmente acerca do procedimento cirúrgico e suas implicações, o que também sucedeu relativamente a EE. ...Assim, a subscrição de tal documento, de leitura simples, a par com as informações que lhe foram transmitidas pela médica, não pode deixar de evidenciar que EE deu o seu consentimento à intervenção cirúrgica em causa, o que inviabiliza que a matéria em questão transite para os factos não provados. Em consequência, improcede a impugnação do facto provado nº 28.

70) Em relação ao 28º, formulário do CI (exibido no corpo alegatório) resgatamos a mesma pergunta: Quais são as informações que constam do formulário do “consentimento informado para actos médicos, cirúrgicos ou exames/MCDT’s? NADA, nem informações sumárias.

71) Ora, nestes raciocínios do TRL estão crismados vários erros de interpretação e de aplicação do Direito aos factos em matéria do consentimento informado, que conduziu à uma decisão errada, considerarem que os deveres deontológicos da 2. Ré tinham sido cumpridos e por conseguinte nenhum responsabilidade jurídica existia.

72) A EE não foi devida e adequadamente esclarecida, nem sobre a possibilidade dos tratamentos alternativos (tratamento expectante vs. Cirurgia), nem sobre os riscos da cirurgia laparoscópica, nem sobre a existência de riscos acrescidos em face da sua condição física.

73) Os Réus defendiam que a EE apresentava riscos acrescidos, devidos a cirurgias prévias, obesidade, obstipação crónica, zonas de fraqueza da parede abdominal, risco de formação de aderências nas intervenções anteriores, bridas.. (contestação da 2. Ré 87º a 93º, e contestação do 1. Réu, 51º a 58º.) Tanto assim, que resultaram os factos provados em 35, 36, 68, 69 e 70 no acórdão recorrido.

74) Ora, se existiam riscos acrescidos pela condição física da EE, então, eram esclarecimentos muito relevantes que tinham de lhes ser dados a conhecer, pela 2. Ré, o que não sucedeu. E o elenco dos factos provados do acórdão, não existe prova do cumprimento dos deveres deontológicos e legais, todas as normas legais que os consagram estão identificados em 89) destas conclusões

75) Os riscos não foram partilhados e esclarecidos à EE, o risco que se verificou (herniação do intestino pela ferida operatória da parede abdominal), mesmo sendo raro, tinha de ser valorizado e tinha de ser comunicado à paciente. Ademais, um risco tão gravoso é essencial para que a paciente disponha de toda a informação relevante para tomar a uma decisão, consciente, esclarecida, sobre seu corpo. (cfr.68º, 69ºfp).

76) Os factos provados elucidam sobre os fatores predisponentes para a ocorrência de hérnia via porta de trocar, para além dos relacionados com a técnica, por exemplo o não encerramento, existem também fatores do doente, por exemplo, a obesidade, cirurgias prévias, bronquite crónica (36º factos provados).

77) Se os riscos acrescidos tivessem sido conhecidos pela EE, obviamente, que influenciavam a sua decisão, a decisão de não se submeter a uma laparoscopia para a retirada de um nódulo de pequenas dimensões, aparentemente benigno a merecer controlo evolutivo, como concluiu a Ressonância Magnética. (20º factos provados).

78) Ainda em relação ao formulário do CI (28º fp), é absolutamente violador das regras legais, éticas e deontológicas, por isso, os raciocínios do Tribunal, na analise que faz ao mesmo, são absolutamente errados, tanto assim que conduziu à errada interpretação da lei substantiva, das normas, dos princípios do direito nacional, internacional e das convenções ou tratados internacionais.

79) Todas as normas legais existentes, obrigam ao cumprimento dos deveres de esclarecimento para com os pacientes, para a autodeterminação e decisão sobre o seu corpo, são informações obrigatórias que deve ser dadas previamente qualquer intervenção médica a realizar, para a paciente poder tomar uma decisão livre e esclarecida, o que não sucedeu no caso da EE.

80) Cabia aos Réus o ónus da prova, provar que a EE foi esclarecida sobre os riscos daquela laparoscopia, inclusivamente, os riscos acrescidos em face da sua condição física, o que não sucedeu. Se não provaram que cumpriram os deveres de esclarecimento e que agiram ao abrigo de uma causa de justificação, recai sobre os Réus, todos os riscos daquela intervenção, incluindo os fracassos da intervenção e os efeitos secundários, como têm decidido as instâncias superiores.

81) Como já demonstrou no Ac. do STJ 7053/12.7TBVNG.P1.S1 (certidão junta), também se provou a existência dos riscos acrescidos (fp 40º e 54º), e da existência do formulário do CI (fls.125), considerado genérica, que não preenchia as condições do consentimento devidamente informado, ai se decidindo que não foi feita prova bastante para preencher as exigências do consentimento informado e condenou-se o Réu, com fundamento na falta de consentimento devidamente informado da paciente para a realização da colonoscopia.

82) Ora, este citado acórdão do STJ, analisado, fundamentou o pedido de admissão da Revista Excecional, mas também fundamenta o pedido dos recorrentes de procedência deste recurso de Revista, assim como a condenação dos recorridos nesta demanda, por violação dos deveres de esclarecimentos e consentimento informado, que também consubstanciam violações das leges artis.

83) O Supremo Tribunal de Justiça tem decidido que é ao médico que cabe o ónus da prova do cumprimento do dever de informação, sobre ele recai as consequências da falta de prova ou da insuficiência, ao abrigo do artigo 342.º n.º 2 do Código Civil. (cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02-06-2015, proc. nº1263/06.3TVPRT.P1.S1; de 16- 06-2015, proc. n.º 308/09.0TBCBR:c1.S1; de 22-03-2018, proc. n.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1). e Doutrina do André Dias Pereira, “Responsabilidade médica e consentimento informado. Ónus da prova e nexo de causalidade”.

84) O 1.º Réu Hospital é responsável pelo cumprimento das boas práticas em termos do consentimento informado dos pacientes que contratam os serviços médico/cirúrgicos na sua unidade Hospitalar. Cabendo-lhe instituir corretos procedimentos, válidos formulários do CI, exigindo dos seus profissionais de saúde o cumprimento dos deveres legais e deontológicos. As violações das legis artis, onde se incluiu também o consentimento informado, configuram violações imputáveis à Instituição Hospitalar, onde foram prestados os serviços a EE, respondem nos termos do artigo 800º/1 do CC.

85) Está ostensivamente demonstrado o nexo de causalidade naturalístico e preenchido o requisito da causalidade adequada nos termos do 563º do CC, recaindo sobre os Recorridos (Hospital e médica) a responsabilidade civil e a condenação solidária dos mesmos, e das suas Companhias de Seguros no pagamento pelos danos não patrimoniais, como o dano moral da EE pelo seu sofrimento, a morte, os danos morais dos autores, demonstrados nos factos provados do acórdão recorrido de 73 a 93º e 100º os quais devem ser indemnizados nos termos dos artigos 495º, 496º, 497º do CC, o que se reclama ao Supremo Tribunal de Justiça.

86) Requer-se a condenação dos recorridos no montante indemnizatório global de € 220.000,00, acrescido de juros moratórios à taxa legal desde a citação até integral pagamento nos termos do artigo 806/2º e 805/1 do CC. Por força dos contratos de seguros, operando-se a transmissão da responsabilidade civil, são responsáveis pelo pagamento as Intervenientes FIDELIDADE – Companhia de Seguros, SA e AGEAS PORTUGAL, SA.

87) O caminho do consentimento informado está trilhado na Jurisprudência cível, que nos mereceu mencionar no corpo alegatório, na certeza porém, que estas e outras decisões da Jurisprudência Nacional, o STJ melhor conhece e reconhece.

88) A Jurisprudência cível que foi mencionada no corpo alegatório: Ac. STJ de 22/03/2018, Relatora Maria Graça Trigo; Ac. STJ de 21/10/2019, Relator Acácio das Neves: Ac. STJ de 02/12/2020 Relator Maria Clara Sottomayor: Ac. TRL de 10/10/2013, Relator Maria José Mouro: Ac. STJ de 02/1/2017, Relator Maria dos Prazeres Pizarro Beleza: ac. do TRP de 15/05/2021, Relator Aristides Rodrigues de Almeida, Ac. TRL de 05/06/2023, Relator Fernanda Almeida e Ac STJ de 08/09/2020, Relator Maria João Vaz Tomé, permitem fundamentar o presente recurso de revista, alicerçar o pedido condenação dos recorridos e das intervenientes Companhias de Seguros.

89) O Tribunal da Relação de Lisboa, ao decidir erradamente como decidiu em relação ao consentimento informado, violou as seguintes normas jurídicas: artigo 5º da convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Biomedicina, artigo 3º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Artigos 25º e 26º da CRP, artigos 70º, 81º, 340º, 563º, 495, 496, 497º do Código Civil, Base XIV nº. 1 al. b) e c) da Lei de Bases da Saúde à data dos factos Lei 48/90 de 24/08, artigo 7º da Lei 15/2014 de 21/03, artigos 19º, 20º e 21 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos e artigos 156º e 157º do Código Penal.


*


Quanto às Rés DD e Lusíadas S.A. e à Interveniente Ageas Portugal S.A. verifica-se que as mesmas não concluem as suas contra alegações.

Constata-se no entanto, que terminam todas elas as mesmas peças processuais defendendo que o recurso ser liminarmente rejeitado por não ser admissível.

Mais requerem, caso assim se não entenda, que o mesmo recurso seja julgado improcedente, por contrário ao Direito aplicável, mantendo-se sem mais a decisão recorrida.

Perante o antes exposto, verifica-se que são as seguintes as questões objecto do presente recurso:

1ª) A violação de normas processuais e substantivas no que diz respeito à matéria de facto inscrita no ponto 66º dos factos provados;

2ª) A violação da lei substantiva em matéria do consentimento informado;

3ª) A violação das legis artis médicas;

4ª) A revogação da decisão proferida e a condenação dos Réus no pedido indemnizatório peticionado pelos Autores;

Vejamos, pois da pertinência de tais pretensões.


*


É o seguinte o teor da decisão da matéria de facto que consta dos autos e decorre do que foi decidido nas anteriores instâncias:

Factos Provados:

1. Os Autores AA, BB e CC são, respectivamente, marido e filhos da falecida EE.

2. No dia 26 de Março de 2016, pelas 21 horas e 7 minutos, faleceu no Hospital 1, EPE, em ..., EE, com 61 anos de idade.

3. Em 2015, foi detectado a EE um quisto de pequenas dimensões no ovário direito.

4. Em data que não se consegue precisar, mas do ano de 2015 e anteriormente a 22 de Outubro de 2015, a EE contratou os serviços de ginecologia da 2.ª Ré DD, a qual após consulta médica lhe prescreveu uma ecografia.

5. A ecografia pélvica endovaginal foi realizada pela 2.ª Ré Dr.ª DD, no dia 22 de Outubro de 2015, e por si relatado, nesse mesmo exame ecográfico, consta o seguinte:

“Útero móvel, normodimensionado, com 1 fibromioma intramural posterior de 11 x 8mm.

Endométrio fino e regular com 2,7mm.

Anexo esquerdo – ovário normal com 20 x 19,4 x 9,7mm.

Anexo direito – ovário normal com 23,3 x 24,5 x 11,5mm.

Quisto provavelmente do paraovário direito com papilas capsulares não vascularizadas.

Dimensões do quisto: 18,3 x 16,6 x 14mm.

Fundo de saco posterior livre.

Conclusão: Anexo direito com quisto de 18mm, provavelmente de etiologia do paraovário com projecções papilares da cápsula, sem vascularização.”.

6. O quisto não teve resolução espontânea em 5 meses.

7. Perante um achado imagiológico de cisto anexial, a decisão médica de vigilância versus abordagem cirúrgica deve basear-se em critérios clínicos, imagiológicos e/ou analíticos.

8. A maioria dos cistos anexiais na pós-menopausa são benignos, cerca de 30% acima dos 50 anos são malignos.

9. Os critérios para ponderação para intervenção cirúrgica, são:

- Clínicos: a – forte suspeição clínica de malignidade; b – sintomas clínicos de gravidade ou de difícil controlo com terapêutica medicamentosa; c – risco moderado/elevado de complicações;

- Achados em meio complementares de diagnóstico, sugestivos de malignidade: exames imagiológicos e/ou marcadores tumorais sugestivos de malignidade.

10. Uma massa anexial detectada no período da pós-menopausa deve ser considerada anormal e faz parte da boa prática médica proceder à sua investigação diagnóstica.

11. Comparando os riscos globais do tratamento expectante e do tratamento laparoscópico, era aceitável cada uma delas, no caso da EE.

12. A decisão cirúrgica de anexectomia unilateral foi correcta.

13. A 2.ª Ré sugeriu a EE a realização de cirurgia laparoscópica ou a manutenção da vigilância clínica e ecográfica do quisto, tendo a paciente optado pela realização da cirurgia.

14. Neste contexto, foi explicada a EE a cirurgia laparoscópica.

15. Nessa mesma consulta, EE referiu à 2.ª Ré que tinha uma hérnia na região umbilical, desde uma cirurgia anterior.

16. EE combinou com a 2.ª Ré, DD, que iria efectuar os exames e as análises, prévios e necessários à cirurgia, prescritos pela 2.ª Ré.

17. Foram prescritos os necessários exames complementares de diagnóstico:

- Análises ao sangue e à urina;

- RX Tórax PA;

- Ressonância magnética pélvica;

- Electrocardiograma.

18. No dia 23 de Outubro de 2015, EE, efectuou as análises ao sangue e à urina.

19. No dia 26 de Outubro de 2015, EE realizou o RX Tórax PA e segundo consta no relatório:

“TORAX PA

Pequenas densificações lineares e micronodulares no apex direito, podendo traduzir alterações de tipo esclero-fibrótico/cicatricial e granulomas, no entanto a valorizar de acordo com os elementos clínicos e se possível por comparação com outros exames, nomeadamente anteriores e/ou TC.

Pequena atelectasia discal na base direita.

Não se observam outras alterações valorizáveis da permeabilidade pleuro-parenquimatosa

Hilos pulmonares e silhueta cardiomediastínica da normalidade”.

20. No dia 7 de Novembro de 2015, EE realizou uma Ressonância Magnética Pélvica, tendo sido elaborado o seguinte relatório:

“RESSONÂNCIA MAGNÉTICA PÉLVICA

Informação clínica:

Quisto anexial.

(…)

Interpretação do Exame:

Útero em retroflexão, com dimensões de 5.6x3x3.4cm, correspondendo aos diâmetros longitudinal, antero-posterior e transversal e de acordo com a idade da examinada.

Endométrio aparentemente fino, contudo mal definido, medindo 4mm a nível do corpo.

Zona juncional discretamente espessada.

No anexo direito identificamos um nódulo, o qual apresenta hipersinal em T1, sem restrição à difusão e que baixa na sequência com supressão de gordura, apresentando sinal intermédio em T2 e medindo 1.5cm (…). Este nódulo parece-nos assim ter algum componente de gordura associado e merece controlo evolutivo.

Anexo esquerdo atrófico, sem lesões ocupando espaço.

Prega vesico-uterina livre.

Não de documentam adenopatias pélvicas e inguinais.

Não há adenopatias retroperitoneais.

Fundo de saco de Douglas livre.

Bexiga com conteúdo hídrico homogéneo e contornos regulares.

Não há uretero-hidronefrose distal.

CONCLUSÃO:

Nódulo de pequenas dimensões anexial direito, com aparente componente de gordura aparentemente benigno, a merecer controlo evolutivo.”.

21. No dia 1 de Março de 2016, EE repetiu as análises ao sangue.

22. No dia 16 de Março de 2016, EE realizou um Eletrocardiograma, o qual consta no relatório o Ritmo sinusal (FC=63bpm) e ECG sem alterações significativas.

23. A 4 de Março de 2016, a LUSITÂNIA, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. emitiu “TERMO DE RESPONSABILIDADE” com o n.º .......20, com a aprovação dos seguintes procedimentos:

“Código ......05 - Anexoctomia, uni ou bilateral – K 132

Código ......13 – Tratamento de hérnia umbilical – K 45

Equipa Cirúrgica aprovada – Cirurgião, Anestesista, 1º Ajudante, Instrumentista

Regime – Internamento (2 dias)

Valor de “K” – 6,75€

Limite de capital – 15.000 €

Comparticipação – 85%.”.

24. No dia 9 de Março de 2016, o 1.º Réu HOSPITAL LUSÍADAS e a 2.ª Ré DD emitiram “PROPOSTA CIRÚRGICA” e “PEDIDO DE PREVISÃO DE ENCARGOS”.

25. Destes documentos, resulta:

“Diagnósticos (ICD9):

6202 – Quisto do ovário não especificado e,

5531 – Hérnia umbilical sem menção de obstrução,

Previsão:

Duração da Cirurgia: 2h

N.º Dias de Internamento: 3

Data da cirurgia: 22/03/2016, Tarde: 15 UCI

Tipo Anestesia: Geral

Tempo de Bloco: 2 h

Nº Previsto de Diárias: 3.”.

26. No dia 21 de Março de 2016, EE teve uma consulta de anestesia nas instalações do 1.º Réu.

27. EE foi cabalmente esclarecida sobre a cirurgia a realizar, nomeadamente sobre o tipo de procedimento e os respectivos riscos próprios, nomeadamente os mais frequentes e os mais graves.

28. EE prestou, por escrito, o seu consentimento à realização da intervenção cirúrgica.

29. E prestou o seu consentimento por escrito à administração da anestesia.

30. No dia 22 de Março de 2016, EE deu entrada nas instalações hospitalares de Lisboa do 1.º Réu para o internamento e realização da cirurgia que se encontrava agendada.

31. Tendo sido registado no seu Diário de Internamento, os seguintes diagnósticos principais:

“Cod. ICD9 – 620.2 – Cisto Ovarico Ncop ou não especificado

Cod. ICD9 553.1 Hérnia Umbilical Sem Menção Obstrução Ou Gangrena

Motivo de Internamento:

cirurgia eletiva laparoscópica a Quisto anexial dto e hérnia umbilical.”.

32. Nesse mesmo dia 22 de Março de 2016, pelas 17H29M, EE foi submetida à cirurgia: “Anexectomia dta laparoscópica e herniorrafia umbilical”, procedimento cirúrgico realizado pela 2.ª Ré DD, nas instalações do 1.º Réu, com a seguinte descrição:

“Pneumoperitoneu com incisão periumbilical.

Anexectomia direita.

Colocação de 1 trocar de 12 mm e 2 trocar de 5 mm

Revisão da hemostase.

Encerramento com monocryl 3/0

Diagnóstico pós-operatório:

Quisto do paraovário dto

hérnia umbilical.”.

33. Resulta registado no “PROCESSO DE INTERNAMENTO” de EE, os dados pessoais, os patológicos (bronquite crónica, fibromialgia), os antecedentes cirúrgicos (vesícula e Bypass gástrico), a medicação em curso (triticum, diplexil, leponex, cipralex), o realizado Exame Físico à A.P e A.C, sem alterações, os factores de risco intrínsecos, onde foi mencionado que não existiam e que não existe infecção à entrada.

34. EE tinha sido submetida à remoção da vesícula/colescistecomia e ao by-pass gástrico.

35. EE tinha antecedentes pessoais de obesidade classe I, bronquite crónica, fibromialgia, doença bipolar/depressão, insuficiência venosa periférica, atelectasia da base direita.

36. Os vários fatores predisponentes para a ocorrência de hérnia via porta de trocar, são:

- aspetos técnicos – relacionados com o trocar, a localização da porta, o encerramento no local da incisão da porta, manipulação intraoperatória, técnica de acesso à cavidade e duração da cirurgia;

- fatores do doente – potenciadores de fragilidade da parede abdominal/comprometedores de normal cicatrização da parede abdominal – idade avançada, obesidade, estado nutricional, incisões cirúrgicas prévias no local de incisão (incisões interativas), infeção da parede abdominal no local da incisão cirúrgica, defeito congénito ou adquiridos de alterações do colagénio/elastina e outros constituintes da parede abdominal;

- fatores contribuintes para o aumento da pressão intra-abdominal – obstipação, tosse crénica, doença pulmonar obstrutiva crónica (como por exemplo bronquite crónica), atividades físicas, que aumentem a pressão intra-abdominal.

37. Foi enviado o anexo direito e quisto do paraovário direito para realização do exame histológico/citológico.

38. Consta do relatório do exame, o seguinte:

“Relatório:

Macroscopia

Peça de anexectomia, cuja trompa mede 4cm de comprimento e 0,5 cm de diâmetro. No mesotubário há um quisto de conteúdo líquido seroso, de superfície interna lisa, com 0.9cm de maior dimensão. Ovário com 2.5x1.5x0.9cm, sem alterações.

Microscopia

Trompa e ovário sem alterações de significado patológico.

O quisto descrito no mesotubário corresponde morfologicamente a um quisto paramesonéfrico.

Conclusão

Trompa e ovário sem lesão.

Quisto paramesonéfrico.”.

39. Consta do processo clínico de EE, constante do documento “PROCESSO DE INTERNAMENTO”, que cerca das 19H09M: “Cliente veio do bloco operatório cerca das 18H40 após ser submetido a excisão quisto ovário + herniorrafia umbilical via laparoscopia sem intercorrências sob anestesia geral. Tem soro em vpp. Pensos abdominais íntegros. Não comeu e não urinou. Foi desalgaliada às 18H no recobro.”

40. E às 20H00M foi registado neste mesmo FC 78 TA 120-55 TAX 36,4

41. Foi registado no “PROCESSO DE INTERNAMENTO”: “Duração da Cirurgia 15:23 - 18:45.

42. No dia seguinte, dia 23 de Março de 2016, nas Notas de Enfermagem, constantes do documento “PROCESSO DE INTERNAMENTO”, foi registado, às 9H59M, o seguinte:

“cliente calma e orientada

Cvp permeável

Pensos abdominais íntegros

Sem perdas hemáticas por via vaginal

Urinou

Não evacuou”

43. E às 12H24M, ficou registado:

“UDA

Realizada visita de UDA. Cliente bem disposta. Nega queixas álgicas, náuseas ou vómitos.

FC 78

FR 19

TA 101-71

TAX 36,1”.

44. E às 18H38M, foi registado:

“Utente orientada, calma e sem queixas. Penso íntegro. CVP obturado. Sem perdas hemáticas. Fez levante e deambulou pelo Serviço. Urinou esp. e alimentou-se.

FC 66

TA 98-57

TAX 36,1”.

45. EE teve alta hospitalar no dia 23 de Março de 2016, por volta das 20H00M, com o parecer médico favorável da 2.ª Ré, sem ter defecado.

46. A 2.ª Ré procedeu a uma visita médica 24 horas após a realização da cirurgia, tendo concluído que EE apresentava um bom estado clínico, deambulando e alimentando-se sem náuseas ou vómitos, urinando espontaneamente com boa diurese.

47. Pese embora não tivesse evacuado, tinha emissão de gases e apresentava-se sem dores, sem distensão abdominal com a palpação abdominal mole, depressível e indolor.

48. Foi questionada EE se pretendia permanecer mais um dia em internamento, para continuação dos cuidados pós-operatórios, tendo a paciente recusado.

49. Dadas as boas condições clínicas apresentadas na observação e confirmadas pelas enfermeiras que tinham acompanhado o pós-operatório da paciente, a 2.ª Ré decidiu proceder à alta médica, tendo sido elaborado o respectivo relatório.

50. As dores, cólicas e obstipação configuram efeitos muito habituais após realização de qualquer cirurgia, em especial, de uma nexoctomia laparoscópica e herniorrafia umbilical.

51. A 2.ª Ré disponibilizou o seu contacto telefónico.

52. Foi agendada a consulta de acompanhamento pós-operatório, tendo sido marcada para o dia 29 de Março na Policlínica 1, para penso.

53. No dia 24 de Março de 2016, o 1.º Autor mandou mensagem escrita para a 2.ª Ré, dando-lhe conta das dores de EE ao que a 2.ª Ré lhe perguntou se EE já tinha tomado os analgésicos, ao que o 1.º Autor respondeu que não, mas que tinha a receita.

54. Posteriormente, o 1.º Autor informou a 2.ª Ré que EE estava pior e que as dores iam e vinham, tendo a 2.ª Ré perguntado se ela tinha evacuado, ao que o 1.º Autor respondeu que não, mas que ia tratar disso.

55. No dia 26 de Março de 2016, da parte da tarde, o 1.º Autor ao constatar um agravamento da situação da sua esposa, voltou a contactar telefonicamente com a 2.ª Ré, esclarecendo-a que EE estava com dores abdominais fortes, ao que a 2.ª Ré aconselhou a ir ao Hospital Lusíadas para EE ser observada.

56. Nesse mesmo dia 26 de Março de 2016, pelas 19H43, o 1.º Autor ao se aperceber que a sua esposa estava a piorar, apresentando uma respiração mais ofegante, notou que o nervo óptico do olho esquerdo estava mais lento do que olho direito e que tinha um discurso sem nexo, desesperado voltou a telefonar à 2.ª Ré, contando-lhe o que se estava a passar.

57. A 2.ª Ré ouviu as queixas e disse ao 1.º Autor para chamar imediatamente o 112 para levar EE para o Hospital 1.

58. EE iniciou episódios de vómitos na madrugada de 26 de Março.

59. O 1.º Autor chamou o 112 e sua mulher EE foi transportada pelos bombeiros para o Hospital 1.

60. A EE entrou com vida no serviço de urgência do Hospital 1, às 20H37M.

61. Nas Urgências do Hospital 1, EE fez paragem cardiorrespiratória e vómitos fecalóides em grande quantidade.

62. Na sala de reanimação, foram-lhe efectuadas medidas de SAV, durante 30 minutos, com aspiração e EOT e administração de 5 mg de adrenalina com 30min de SAV + 3 f de glicose hipertónica por hipoglicemia de 47 mg/dl- mas sem sucesso.

63. Foi registado pelas médicas que prestaram os cuidados de reanimação no Hospital 1, que a EE apresentava uma distensão abdominal grave com massa palpável na FID e sinais de laparoscopia recente.

64. Também foi registado no processo clínico, pelo enfermeiro, o seguinte: “Aspirado imenso conteúdo fecaloide pela boca e nariz durante as compressões. Doente com traçado cardíaco em assistolia em todas as reavaliações de ritmo. Certificado o óbito pelas 21.07, após 30 minutos de manobras.”

65. No dia 29 de Março de 2019, foi realizada autópsia a EE, constando do relatório o seguinte:

“ (…)

EXAME DO HÁBITO EXTERNO

Rigidez cadavérica: Moderada

Livores: Fixos, abundantes e rosados, nas partes posteriores do corpo.

Sinais de putrefação: Mancha verde abdominal.

Sinais de desidratação: Das conjuntivas bilateralmente.

Cabeça: Fragmentos acastanhados, periorais.

Pescoço: Não foram encontrados sinais de lesões traumáticas.

Torax: Não foram encontrados sinais de lesões traumáticas.

Região Dorso-Lombar: Não foram encontrados sinais de lesões traumáticas.

Abdómen:

. Distensão abdominal marcada.

. ferida operatória com sinais incipientes de cicatrização, medindo 1 cm, na fossa ilíaca direita.

-ferida operatória com sinais incipientes de cicatrização, medindo 1 cm, na fossa ilíaca esquerda.

- ferida operatória com sinais incipientes de cicatrização, medindo 0,5 cm, na região periumbilical.

Membros superiores: Sinais de picada, com infiltração sanguínea, ao nível das flexuras dos cotovelos, compatível com ato médico recente – punção lombar.

Membros inferiores: Alterações tróficas na face anterior das pernas.

EXAME DO HÁBITO INTERNO

Cabeça

(…)

Cavidade bucal e língua: Mucosa avermelhada, lisa sem alterações macroscópicas aparentes. Liquido acastanhado disperso.

Pescoço

(…)

Faringe e esófago: Líquido acastanhado disperso.

(…)

Abdómen

Paredes: Soluções de continuidade, com infiltração sanguínea escassa, em relação com as feridas operatórias descritas no hábito externo. Ao nível da solução de continuidade da parede abdominal à direita observa-se herniação do intestino com presença de 37 cm de comprimento de íleon terminal em loca da parede abdominal.

Peritoneu e cavidade peritoneal: Com 50cc de liquido com aspeto sanguinolento.

Intestinos: Distenção marcada do intestino delgado. Íleon terminal de coloração avermelhada escura em relação com herniação na parede abdominal atrás descrita abertura do íleon com necrose de toda a espessura da parede intestinal.

Fígado: Superfície lisa e brilhante, com forma e dimensões mantidas. Secções de corte com parênquima liso de coloração amarelada, compatível com esteatose hepática.

Vesicula biliar: Ausente.

Estômago: Com 50cc de líquido acastanhado com partículas alimentares não identificáveis e cheiro fétido.

(…)

Útero e anexos: Com útero e ovários

(…)

CONCLUSÕES

Em face dos dados necrópsicos e da informação clínica, a morte de EE foi devido a isquémia intestinal.

Tal ocorreu em contexto pós-cirúrgico por herniação de íleon terminal em ferida operatória da parede abdominal.”.

66. A ré procedeu ao encerramento da aponevrose da entrada da porta acessória de 12 mm na fossa ilíaca direita.

67. Procedeu-se à correção do ponto de herniação umbilical pré-existente, e ao posterior encerramento da entrada umbilical.

68. A ocorrência de complicações pós-operatórias, de herniação pela ferida operatória da parede abdominal nas incisões realizadas na cirurgia laparoscópica está descrita na literatura/bibliografia médica. A incidência de herniação via porta trocar é de 0.3-5,4%. O encarceramento de hérnia é de 0,4-0,66%.

69. São raros os casos descritos de necrose intestinal associado a hérnia via porta de trocar, não existindo incidência publicadas, poder-se-á inferir que poderá ser inferior ou no máximo semelhante à do encarceramento da hérnia via porta.

Todas as complicações têm que serem valorizadas, mesmo que seja incidência de 0.3 a 5%.

70. As cirurgias prévias são factores de risco para hérnias incisionais (no caso e as incisões subsequentes serem efectuadas no mesmo local, ou serem iterativas), aderências peritoneais (que podem incrementar acomplexidade cirúrgica com subsequente aumento sua morbilidade perioperatória). No caso na EE não existiam aderências no local onde foram efetuadas as incisões para a realização da laparoscopia.

71. A herniação do intestino e seu necrose foi uma complicação numa zona de fraqueza da parede abdominal, no local onde uma das incisões havia sido efetuada, na área da fossa ilíaca direita.

72. A laparoscopia foi apresentada a EE pela 2.ª Ré para a remoção do quisto e a correcção da hérnia umbilical, como um procedimento não urgente.

73. A falecida EE quando deu entrada no Hospital dos Lusíadas em Lisboa, no dia 22 de Março de 2016, procedeu ao pagamento antecipado a título de caução do valor de € 672,38, correspondente ao pagamento antecipado dos serviços, tais como internamento, bloco operatório, equipa médica, vários exames e análises efectuados, fármacos, consumos, ao 1.º Réu.

74. Considerando que a falecida era detentora de um seguro do ramo saúde, na ADVANCECARE – LUSITÂNIA SEGUROS, S.A., apólice Saúde/.....00, esta entidade também procedeu ao pagamento de todos os serviços médicos prestados a EE, tais como internamento, bloco operatório, equipa médica, vários exames e análises efectuados, fármacos, consumos, procedimentos cirúrgicos, no montante de cerca de € 3.847,00, todos correspondentes ao que também foi pago pelos Autores.

75. Os Autores liquidaram nos serviços do 1.º Réu o montante de € 577,04, no dia 28 de Março de 2016, correspondente ao remanescente do preço e facturado à COMPANHIA DE SEGUROS LUSITÂNIA.

76. A 2.ª Ré é médica, especialista em Ginecologia, e à data dos factos, trabalhava para o 1.º Réu, Unidade Hospitalar dos Lusíadas Lisboa.

77. EE era uma pessoa afável.

78. A empresa C..., Unipessoal, Lda. dispunha de dois estabelecimentos comerciais abertos ao publico, um no Centro Comercial ... e outro no ....

79. A falecida EE dava ao seu agregado familiar e aos seus filhos, do ponto de vista económico um contributo muito significativo.

80. A falecida era uma esposa e uma mãe exemplar para os seus dois filhos maiores, e avó muito dedicada e estes contavam diariamente com a sua presença e a sua ajuda e até financeira.

81. No ano de 2011 tinha sido avó da KK, filha do Autor BB, a quem dedicava muito amor e atenção, fazia questão de contribuir para as despesas da menina.

82. A sua morte provocou um desgosto incomensurável e uma perda impossível de reparação.

83. Pelo menos, desde 24 de Março, até ao dia da sua morte - 26 de Março de 2016 -, EE esteve em sofrimento, padecimento agravado a cada dia, o que culminou no na sua morte dolorosa e trágica.

84. Os Autores sofrem um profundo desgosto com a morte da respectiva esposa e mãe.

85. Os sentimentos de revolta, consternação, com a morte da esposa e mãe, respectivamente, causou-lhes muita tristeza, são ainda muito intensos os sentimentos e jamais apagados com o tempo.

86. A dor e a mágoa que os Autores sentem são constantes.

87. A falecida EE era uma esposa e uma mãe exemplar para os seus filhos, mesmo maiores de idade, era muito dedicada ao marido e ao lar, casou com o Autor AA, tinha 18 anos de idade, pelo que durante os 43 anos de casamento, cuidou dele e acompanho-o em todos os momentos alegres e tristes da vida em comum.

88. Formaram sempre um casal muito unidos sentimentalmente.

89. O Autor marido vive sozinho num pequeno apartamento (T1) arrendado no ... e trabalha na loja do ....

90. O Autor BB quando faleceu a sua mãe, tinha 40 de idade e mantinha com a sua adorada mãe uma relação muito forte e de convívio diário.

91. A Autora CC, quando faleceu a sua mãe tinha 33 anos de idade e mantinha com a sua mãe uma relação diária, de muita cumplicidade, ajuda mútua e de trabalho.

92. O Autor BB, filho mais velho da EE, sempre foi muito presente na sua vida e desde 2011 com o nascimento da sua filha KK, os laços de união foram, reciprocamente, fortalecidos.

93. A sua mãe ajudava bastante o filho BB, diariamente ia buscar a neta ao colégio, ficava com a neta até o pai ou a mãe chegarem dos empregos, confeccionava com frequência refeições para a neta e para o casal levar para casa ao fim do dia, ainda ajudava em alguns afazeres domésticos.

94. O 1.º Réu LUSÍADAS, S.A. celebrou um contrato de responsabilidade civil profissional com a FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., pelo qual esta garantiu, até ao limite do valor seguro, o pagamento de indemnizações que fossem legalmente devidas pelo Réu a título de responsabilidade civil por danos causados a terceiros.

95. O contrato de seguro prevê como limite máximo de responsabilidade por sinistro/ período de vigência do contrato o montante de € 1.000.000,00, existindo na presente data o montante de € 888.049,90 de capital disponível para o sinistro em causa.

96. O tomador do seguro suportará a título de franquia, no âmbito da responsabilidade civil profissional, o valor de € 2.500,00.

97. Por contrato de seguro celebrado com a AGEAS Portugal, a 2.ª Ré transferiu para esta a responsabilidade civil em que possa incorrer em consequência de actos, omissões e erros profissionais cometidos em diagnósticos, prescrições ou aplicações terapêuticas e no decurso de tratamentos ou intervenções cirúrgicas.

98. Tal contrato está titulado pela apólice n.º 0084.05.425710 e em vigor no momento em que ocorreram os factos.

99. Ao seguro é aplicável o sub limite por sinistro de € 150.000,00 e uma franquia de tipo 30 – 10% do valor dos danos resultantes de lesões materiais, no mínimo de € 125,00.

100. EE desenvolvia a sua atividade profissional na empresa familiar C..., Unipessoal, Lda, cujo funcionamento era assegurado por si ou pelo marido.


*


FACTOS NÃO PROVADOS:

a) A paciente passou a referir dor ligeira o que implicava a possibilidade de ter uma complicação hemorrágica ou de torção.

b) A 2.ª Ré na sequência da realização e observação ecográfica, em consulta médica, informou EE que o quisto se encontrava colado ao ovário direito e que o melhor era retirar o quisto, que provavelmente, o ovário também seria extraído, esclarecendo que não era uma situação de urgência, já que o quisto era benigno e pequeno.

c) Após o exame clínico, confirmou-se uma pequena hérnia umbilical, tendo sido explicado à doente que a situação seria corrigida se concordasse com a cirurgia laparoscópica, porque a mesma se situava exactamente no local onde seria efectuada uma das incisões necessárias à realização do procedimento.

d) O tratamento da hérnia umbilical seria realizado no mesmo tempo operatório, porque para a realização desta cirurgia laparoscópica iria utilizar-se uma técnica que permitiria a sua correcção, que é a do método aberto de entrada na cavidade abdominal para a colocação da porta umbilical, com um trocar de Hasson e não com a técnica fechada com a agulha de Veress.

e) Deste modo, seria possível a cura da hérnia umbilical prévia, porque este método aberto é realizado com a dissecção por planos de cicatriz umbilical e entrada o abdómen sob visão directa e com a referenciação da camada da aponevrose e seu encerramento final com suturas de reabsorção prolongada – abrem-se os vários planos da parede abdominal no umbigo, com a introdução subsequente do trocar de Hassan com 10mm a 12mm de diâmetro.

f) O tratamento da hérnia umbilical seria realizado porque a porta de entrada umbilical da cirurgia por laparoscopia realizada a isso obrigava, sendo feito o seu posterior encerramento com as suturas da aponevrose.

g) A herniorrafia umbilical para correcção da hérnia que EE apresentava foi realizada porque a porta de entrada umbilical da cirurgia por laparoscopia a isso obrigava, sendo feito o seu posterior encerramento com as suturas da aponevrose.

h) A hérnia encontrava-se precisamente no local onde foi efectuada uma das incisões necessárias à realização da laparoscopia, sendo o seu tratamento uma consequência da realização deste procedimento.

i) A paciente foi igualmente informada das complicações mais raras, tais como o íleos paralítico, formação de aderências ou bridas e a oclusão intestinal.

j) Os Réus nunca deram conhecimento aos Autores do resultado deste exame da anatomia patológica, embora lhes tenha sido pedido, por diversas vezes.

k) A laparoscopia é uma cirurgia minimamente invasiva, com menor dor no pós-operatório, sendo frequente os doentes encontrarem-se clinicamente bem 24 horas após a realização da cirurgia e em condições para alta hospitalar.

l) Trata-se de uma cirurgia que pode ser realizada em regime de ambulatório, com períodos de internamento tendencialmente curtos.

m) EE ficou um dia internada pelo facto de a cirurgia ter sido realizada à tarde e apenas por precaução para vigilância nas horas que se seguiram à intervenção.

n) Era comum EE ter obstipação intestinal, já antes de ser submetida à cirurgia.

o) A 2.ª Ré deu as indicações habituais de alta após as cirurgias a que a paciente tinha sido submetida: terapêutica analgésica SOS, laxante ou microlax também em SOS, uma dieta ligeira com reforço de líquidos e mobilização sem esforço.

p) A paciente e o seu marido foram ainda esclarecidos da necessidade de o trânsito intestinal ser restabelecido, tendo ambos referido que EE tinha antecedentes de crónica e sabiam como resolver esta situação habitual.

q) Na presença do 1.º Autor, a 2.ª Ré informou pessoalmente a sua paciente, EE, que podia ir para casa, e que caso tivesse dores, deveria tomar ben-u-ron, sendo que nenhuns outros esclarecimentos ou recomendações terapêuticas e/ou cuidados a ter, transmitiu a EE, nem ao 1.º Autor.

r) Nesse mesmo dia 23 de Março de 2016, já em casa, o 1.º Autor ligou para a 2.ª Ré, dando conta que EE estava a sentir dores, tendo a médica referido que as dores eram normais e sugeriu que EE, tomasse analgésicos, alternando o Ben-u-ron com o Nolotil.

s) Perante a resposta do 1.º Autor (que a sua mulher não tinha defecado), a 2.ª Ré relativizou a situação e informou-o de que a EE deveria fazer clisteres e continuar com os comprimidos para as dores, alternando o ben-u-ron com o Nolotil.

t) O que veio suceder, a EE aplicou vários clisteres, mas sem sucesso, continuava sem defecar, tendo o 1.º Autor informado a 2.ª Ré que mesmo com a aplicação dos clisteres, a EE continuava sem defecar.

u) No dia 25 de Março de 2016, como a sua mulher não melhorava, o 1.º Autor AA voltou a telefonar para a 2.ª Ré DD, dando-lhe conta da persistência das dores da EE, e transmitiu-lhe que ela estava com fortes cólicas, ao que a 2.ª Ré, voltou a questionar o Autor se a EE já tinha defecado, tendo o 1.º Autor respondido que não. Em resposta, mais uma vez, a 2.ª Ré insistiu que EE deveria tomar Nolotil e Ben-u-ron, alternadamente, e continuar a aplicar os clisteres.

v) A 2.ª Ré voltou a perguntar se a EE já tinha defecado, e mais uma vez, o 1.º Autor respondeu que EE ainda não tinha defecado, tendo a 2.ª Ré sugerido que para a tensão não baixar, o 1.º Autor lhe pusesse sal debaixo da língua.

w) As duas médicas do Hospital 1 questionaram o 1.º Autor sobre a cicatriz da EE, e que tipo de cirurgia lhe tinha sido feita e se EE tinha defecado após a cirurgia realizada.

x) A estas perguntas o Autor esclareceu que a sua esposa tinha realizado uma cirurgia no dia 22 de Março, há 3 dias e que ainda não tinha defecado desde a cirurgia.

y) As médicas informaram o 1.º Autor que a EE tinha morrido em paragem cardio-respiratória, mas com contornos anormais, sobretudo por ter tido alta após a intervenção cirúrgica, sem ter defecado.

z) As médicas revelaram espanto quando o 1.º Autor lhes disse que a sua esposa não tinha defecado, e afirmaram, “em nenhuma unidade hospitalar se dá alta a um doente, após a cirurgia, sem a doente ter defecado”.

aa) A 2. Ré encerrou incorrectamente e deficientemente as feridas operatórias, as incisões por si efectuadas nas camadas da parede abdominal (peritoneu, musculo, aponevrose, tecido adiposo e pele), possibilitando a herniação do intestino em 37 cm.

bb) Se EE tivesse sido informada e devidamente esclarecida pela 2.ª Ré dos riscos e complicações do procedimento laparoscópico, concretamente do risco de herniação do intestino, nunca se teria sujeitado a tal procedimento.

cc) EE era uma pessoa dinâmica e muito activa profissionalmente.

dd) EE era empresária e sócia gerente da Sociedade Comercial por Quotas, denominada C..., Unipessoal, Lda..

ee) A falecida EE, o Autor marido AA e a Autora CC eram trabalhadores da empresa C..., Unipessoal, Lda, uma empresa de cariz familiar, primordialmente assente na gerência da falecida, sendo que os três mantinham em funcionamento diário, as duas lojas da empresa, uma no ... e a outra loja no Centro Comercial ....

ff) A falecida EE era uma profissional excelente, muito válida e activa na empresa C..., Unipessoal, Lda., da qual era sócia e gerente desde a constituição da sociedade comercial, no ano de 1993.

gg) E para a empresa C..., Unipessoal, Lda, da qual era sócia e única gerente desde 2011, a sua morte provocou uma enorme prejuízo financeiro, quer ao nível da facturação, clientela, volume de negócios, e levou a que os autores, tivessem que proceder à cedência do estabelecimento comercial da loja do Centro Comercial ..., por um preço muito inferior ao mercado, correspondente apenas ao preço dos produtos que a compunham e a preço das respectivas facturas.

hh) A EE estava com 61 anos de idade, com saúde e capacidade física, tinha uma vida muito ativa.

ii) A atividade do Autor AA e da sua falecida mulher na empresa C..., Unipessoal, Lda. e na loja principal sita no ... tenha ocorrido por mais de vinte anos.

jj) Após o seu falecimento, a empresa sofreu um enorme prejuízo, o facto de EE ser a única sócia gerente, gerou grandes problemas de gestão e financeiros, dificuldades nos pagamentos a fornecedores e um decréscimo enorme do volume de negócios da empresa.

kk) A morte da esposa, arrastou o 1.º Autor para sérios problemas financeiros, a nível pessoal e da empresa.

ll) O Autor AA teve que vender o seu veículo automóvel Mitsubishi que havia adquirido em Novembro de 2015, vendeu-o em 2016 logo após o falecimento da sua mulher.

mm) Vendeu a casa morada de família sita na Rua 1, um bem imóvel hipotecado ao Banco, porque sozinho não conseguia fazer face aos encargos assumidos pelo casal e aos enormes problemas financeiros criados após a sua morte na empresa familiar.

nn) A Loja do Centro Comercial ... e tudo a que a compunha, teve que ser rapidamente “vendida”, já que não conseguiam mantê-la, o arrendamento era muito elevado, € 1.500,00 mensais e os prejuízos avolumavam. Viram-se obrigados a vender a loja e tudo os bens que a compunha, por apenas € 30.000,00, quando a mesma tinha um valor comercial estimado de cerca € 100.000.00.

oo) Quando a sua mãe faleceu, a Autora CC trabalhava na empresa familiar C..., Unipessoal, Lda e naquela altura assegurava o funcionamento diário da Loja ..., o que ainda seguiu fazer até Setembro de 2016, até ao momento da venda daquela.

pp) A Autora CC depois da morte da sua mãe, com o desgosto enorme, a sua falta e a revolta que sentia, fez com que não conseguisse mais prosseguir na empresa, tendo cessando o seu contrato de trabalho em Janeiro de 2017, com a empresa C..., Unipessoal, Lda.

qq) A Autora CC sofreu um abalo e depressão enorme com a morte da mãe, não estava em condições psicológicas para continuar a trabalhar na loja, agravada também pelos prejuízos financeiros que a empresa sofreu com o falecimento da mãe, socia gerente da empresa e com o necessário encerramento da loja ....

rr) A Autora CC, perante a tragédia e os acontecimentos vividos, emigrou para ... em Fevereiro de 2017.

ss) Sofreu imenso pela morte trágica da sua mãe, pela ausência da sua família e pela enorme preocupação que tem com o seu pai, seu sofrimento e isolamento desde a morte de EE.

tt) E a ajuda financeira da mãe, não se ficava por aí, vários meses ajudou financeiramente o filho BB nas propinas do mestrado, que àquela data o Autor frequentava Mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação. Sucede que desde a sua morte, este nunca mais o conseguiu frequentar, por falta de ânimo e também pelas dificuldades económicas, designadamente, empréstimos financeiros que teve que suportar para ajudar o seu pai e a empresa familiar C..., Unipessoal, Lda..

uu) Os Autores BB e CC, com os sérios problemas que a morte da mãe representou para a empresa C..., Unipessoal, Lda., viram-se obrigados a ajudar financeiramente o seu pai e a manter a empresa activa, inclusivamente, contraíram um empréstimo pessoal no montante de € 16.000,00 (dezasseis mil euros), que ambos vêm suportando, mensalmente, para fazer face a dividas e compromissos financeiros da empresa familiar dos pais, C..., Unipessoal, Lda.

vv) Nunca antes, em vida da sua mãe e em quase 30 anos de gerência da empresa C..., Unipessoal, Lda, os Autores foram confrontados com tantos problemas e preocupações, de par com tanto sofrimento pelo luto, o maior desgosto e as maiores preocupações das suas vidas, surgidas pelo seu desaparecimento da EE e pelo pilar que esta representava na vida de todos e na actividade da empresa.

ww) A falecida era muito acarinhada por todos os seus familiares mais próximos e pelos amigos com quem convivia habitualmente.

xx) Era frequente reunirem-se em casa nas épocas festivas, eram momentos obrigatoriamente vividos em família, num convívio muito saudável, que todos prezavam manter, e desde a sua morte, nunca mais esses momentos foram festejados em união familiar, com enorme tristeza para os Autores


*


Apreciando as questões suscitadas.

Quanto à primeira destas questões alegam os Autores que o Tribunal “a quo” violou normas de direito adjectivo e substantivo na reapreciação da matéria de facto em 66.º dos factos provados, o que conduziu a uma errada aplicação do Direito aos factos em discussão.

Perante tal alegação cumpre recordar aqui qual o conteúdo que foi dado ao mesmo artigo pela 1ª instância e que foi o seguinte:

“A 2.ª Ré procedeu ao encerramento da aponevrose da entrada da porta acessória de 12mm.”

Nas alegações de recurso de apelação, os Autores requereram que tal facto fosse alterado, e passasse a ter a seguinte redacção:

“A 2.ª Ré não procedeu ao encerramento cirúrgico da porta de entrada da fossa ilíaca direita.”

No acórdão recorrido, o Tribunal da Relação alterou a redacção do mesmo ponto de facto provado dando ao mesmo a seguinte redacção:

“A Ré procedeu ao encerramento da aponevrose da entrada da porta acessória de 12 mm na fossa ilíaca direita.”

Para tanto o Tribunal “a quo” teve em conta os seguintes meios de prova: a) o parecer técnico do Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. (“Parecer Técnico”38), b), o relatório de autópsia (Doc. n.º 25 da Petição Inicial) e c) os esclarecimentos prestados pelo seu autor, o médico-legista, Dr. MM (“Dr. MM”), d) os esclarecimentos da relatora do Parecer Técnico, a Prof.ª Dr.ª NN (“Sra. Perita”), e) as declarações de parte da 2.ª Ré, f) o depoimento da testemunha Dr.ª OO (“Dra. OO”) e, bem assim, g) os Documentos com os números 18, 19 e 20 (Diário de internamento, Protocolo de intervenção cirúrgica e Processo de internamento).

Quanto ao Parecer Técnico, a Relação consignou o seguinte:

“Por outro lado, no relatório pericial não é afirmado que a incisão na fossa ilíaca direita não tenha sido encerrada, apenas se referindo que um incorrecto encerramento da incisão operatória pode conduzir à herniação do intestino (resposta ao quesito 17).”

Já em relação ao relatório de autópsia (Doc. n.º 25 da Petição Inicial), ficou a constar o seguinte:

“Do relatório da autópsia, designadamente do aí exarado quanto ao hábito externo e interno, extrai-se que a herniação do intestino ocorreu, à direita, com a presença de 37cms de comprimento de íleon terminal (intestino) em loca da parede abdominal.

Também resulta de tal meio de prova que as feridas operatórias geradas com a intervenção foram de 1 cm na fossa ilíaca direita, 1 cm na fossa ilíaca esquerda e 0,5 cm na região periumbilical. Certo é que tal meio de prova não se revela esclarecedor acerca da execução ou não do encerramento cirúrgico da porta de entrada na fossa ilíaca direita (a única que releva para apreciação da causa, porquanto foi ali que ocorreu a herniação do intestino).”

Quanto aos esclarecimentos do Dr. MM, prestados em sede de audiência de julgamento, o Tribunal a quo faz a seguinte apreciação:

“Dos esclarecimentos prestados pelo médico legista MM, a cuja audição integral se procedeu, resulta que as três feridas detectadas no abdómen de EE são compatíveis com a intervenção cirúrgica a que se submeteu a 22-03-2024 (minutos 2.00 a 3.00). Tais feridas resultam da passagem do material cirúrgico para a laparoscopia. Mais esclareceu que normalmente uma das feridas permite a passagem da câmara e as restantes servem para manuseamento de instrumentos (3.30 a 4.30). No hábito interno, na espessura do abdómen, observou o intestino introduzido na parede abdominal, constatando que a herniação do intestino ocorreu na ferida operatória à direita. Relativamente ao encerramento das portas, não verificou a presença de sutura no local onde estava a sair o intestino (minutos 27.45 a 28.00).”

[…]

“Porém, o médico legista que realizou a autópsia não esclareceu, designadamente, se encontrou ou não vestígios de fio de sutura, o que inviabiliza uma afirmação segura sobre se foi ou não executado o encerramento da fossa ilíaca direita que, atenta a sua dimensão, de acordo com as boas práticas de medicina, teria sempre que ocorrer (minutos 17.00 a 49.15).”

No que se refere aos esclarecimentos prestados em sede de audiência de julgamento pela Sra. Perita, o Tribunal a quo procedeu exarou o seguinte:

“Das declarações da perita prestadas em audiência resulta que a herniação do intestino ocorreu na loca cirúrgica à direita, e ainda que no relatório cirúrgico não consta a informação sobre se as portas cirúrgicas foram ou não encerradas, nomeadamente a da fossa ilíaca direita, porque o processo clínico não o descreve. Acresce que, segundo esclareceu a perita, o relatório de autópsia também não esclarece tal factualidade, mostrando-se omisso nessa matéria. Mais referiu que a ter sido executado o encerramento, o fio poderia ter rompido (dado que “… não reduz a zero o risco de herniação” mantendo-se sempre essa fragilidade).”

A propósito das declarações de parte da 2.ª Ré a este respeito, o Tribunal a quo fez constar o seguinte:

“No que se reporta às declarações prestadas pela ré DD, verifica-se que na sessão de 11-01-2023, descrevendo a cirurgia, referiu que, com vista à intervenção na hérnia umbilical, fez uma abertura no umbigo e, já sob visão direta, introduziu os dois trocares executando uma abertura de 10 mm na fossa ilíaca direita e de 5 mm na fossa ilíaca esquerda. Relativamente ao encerramento da incisão do umbigo, recorreu à técnica da posição dos bordos na fáscia e também que encerrou a abertura da fossa ilíaca direita, encerramento que tinha que ser efetuado atenta a sua dimensão, recorrendo a técnica idêntica à usada na abertura do umbigo. Do lado esquerdo, dado que a abertura apresentava apenas 5 mm, não procedeu a tal encerramento (21.00 a 23.30).

Já nas declarações que prestou a 29-05-2023, reiterou que a cirurgia decorreu sem complicações, que encerrou a porta (abertura resultante da incisão) umbilical, esclarecendo que as portas com dimensão superior a 10 mm são encerradas não só ao nível da pele mas também da aponevrose (tecido que separa cavidade abdominal do tecido celular subcutâneo). Referiu ainda que nos outros pontos, as incisões eram inferiores a 1cm pelo que apenas se encerrou a pele (minutos 5.00 a 6.40).

Verifica-se efetivamente uma discrepância nas declarações da autora porquanto em 11-01-2023 refere expressamente ter encerrado, também ao nível da aponevrose, a incisão da fossa ilíaca direita, e nas declarações que prestou em 29-05-2023 refere realidade contrária (ausência de encerramento atenta a sua dimensão).

Ora, apesar de tal desacerto, julgamos ser de realçar, tanto mais que foi afirmado pela ré em ambas as sessões, que as aberturas iguais ou superiores a 10 mm tinham que forçosamente ser encerradas.

Consequentemente, em face da dimensão da incisão na fossa ilíaca direita (1 cm, como resulta do relatório da autópsia), impunham as legis artis o seu encerramento ao nível da aponevrose.”

Mais, quanto ao depoimento da testemunha Dra. OO, o Tribunal a quo referiu o seguinte:

“Aliás, a testemunha OO, médica que auxiliou na intervenção em causa, também descreveu a técnica usada na intervenção, designadamente a execução de três incisões (na fossa ilíaca esquerda/na fossa ilíaca direita/e na zona supra púbica). Quanto ao encerramento das incisões, referiu que por norma nas incisões de 5 mm não é preciso fazer correção ao nível da aponevrose, mas nas superiores a 10mm é necessário encerrar ao nível da aponevrose. Referiu, de forma clara e consistente, que ao nível do umbigo e da fossa ilíaca direita, o encerramento foi executado ao nível da aponevrose, por se tratarem de incisões de 10 mm, o que não sucedeu ao nível da incisão na fossa ilíaca esquerda (minutos 8.00 a 10.00).”

Por fim e em resultado da análise conjugada de todos estes meios de prova, conclui a Relação o seguinte:

“Ora, conjugando todos estes meios de prova, julga este Tribunal de recurso ser de partir da observação do médico legista quanto à dimensão das feridas operatórias, que observou e que definiu como sendo de 1 centímetro nas fossas ilíacas esquerda e direita, e de 0,5 cm na zona periumbilical. Trata-se, efetivamente, de dado objetivo, observado após o óbito, constituindo um dado relevante para o médico legista, tanto mais que no relatório de autópsia se conclui pela herniação do intestino na ferida cirúrgica direita, o que pressupõe a sua correta observação.

Como se referiu, o facto de nesta ferida cirúrgica direita não terem sido detetados vestígios de sutura, por si, não implica a automática consideração de que aquela incisão não tenha sido encerrada ao nível da aponevrose, tanto mais que a operação ocorrera sete dias antes, em 22-03-2016 (o relatório de autópsia a está datado de 29-03-2024). Das primeiras declarações da ré DD e do depoimento da testemunha OO resulta que foi encerrada ao nível da aponevrose a incisão efetuada na fossa ilíaca direita, em conformidade com os procedimentos médicos obrigatoriamente estabelecidos para incisões daquela dimensão, e que, consequentemente, são sempre observados. Assim, afigura-se ser de afirmar que o encerramento foi efetuado, na incisão da fossa ilíaca direita, ao nível da aponevrose, cumprindo complementar, em conformidade, o facto provado nº 66.”

Do acabado de referir, pode pois afirmar-se que a Relação analisou de modo crítico e rigoroso a prova produzida nos autos, e que a fundamentação que utilizou, e que esteve na base da decisão que determinou a modificação operada no facto provado nº66, cumpriu os deveres processuais que lhe eram impostos.

Ou seja, tendo em conta a remissão feita pelo legislador no artigo 662.º, nº 3 para o artigo 607.º do CPC, a Relação não deixou de proceder à análise crítica das provas produzidas na 1.ª instância, extraindo, quando foi caso disso, ilações das presunções judiciais e das presunções legais e formando, nas matérias submetidas à livre apreciação da prova, uma prudente convicção autónoma – e fundamentada -sobre tais provas (art.º 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC).

Como antes já vimos, nas suas alegações os Autores também defendem que a Relação “fez uso da presunção judicial usando as regras da experiência comum, para dar como provado, que tinha sido suturada a incisão cirúrgica/ferida operatória, como impõem as leges artis que seja suturada”.

Afirmam ainda que “o uso da presunção judicial neste facto 66º, configurou uma violação das regras probatórias com o desrespeito pelo art.º 349.º do CC e 655.º CPC”, revelando “um raciocínio que evidencia um ilogismo manifesto e ilegal”.

E concluem dizendo que tal se traduz em “um mau uso, uso indevido e excessivo dos poderes que lhe são conferidos no artigo 662º CPC”.

Não têm no entanto razão nesta sua alegação, como já de seguida verificaremos.

Assim, podemos desde logo afirmar que ao reapreciar a matéria de facto que está vertida no facto provado n.º 66, e ao alterar a redacção do mesmo ponto, o Tribunal recorrido não fez de todo uso de uma presunção judicial.

Se não vejamos:

Segundo decorre do disposto no art.º 349.º do CC, as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tiram de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.

Sabe-se, igualmente, que no caso da presunção judicial (artigo 351.º do CC), “o funcionamento da presunção fica na disponibilidade do julgador”.

Ora na decisão recorrida e contrariamente ao que afirmam os Autores, a Relação não partiu de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.

Assim e como se verifica, considerou-se que o encerramento (ao nível da aponevrose) da incisão da fossa ilíaca direita ficou provado pelo depoimento da testemunha Dra. OO, a médica que também participou na cirurgia, depoimento este que foi conjugado com o relatório de autópsia, com o Parecer Técnico e, parcialmente, com as declarações de parte da 2.ª Ré.

Deve pois concluir-se que não estamos perante um facto desconhecido (que carecesse de ter sido provado através de uma presunção judicial): ou seja, o aludido encerramento (ao nível da aponevrose) da incisão na fossa ilíaca direita foi confirmado pelo depoimento prestado pela testemunha Dra. OO, em conjugação com os restantes meios de prova acabados de referir.

A este propósito tem pois razão a Ré Lusíadas S.A. quando nas suas contra alegações afirma não existir qualquer norma jurídica que impeça que o facto em causa seja provado através de prova testemunhal.

E também quando defende, que “tendo a Relação fundado a sua decisão na alteração da resposta que deu à matéria factual na prova testemunhal indicada relativamente a esta facticidade, o STJ está impedido de sindicar o julgamento que a Relação fez sobre este ponto da matéria de facto considerada provada na demanda”.

Ora já vimos todos que a Relação não deixou, também de apreciar alguma da restante prova produzida, fazendo referência, entre o mais, ao facto de não ter sido possível ao Dr. MM, médico-legista, localizar a sutura na incisão da fossa ilíaca direita.

Não deixou ainda de considerar as contradições encontradas nas declarações de parte da 2.ª Ré o que no entanto não pode levar a afirmar que o facto de não ter sido identificada a referida sutura não equivale a concluir tendo por base o depoimento prestado pelo supra identificado médico legista, que não houve encerramento da incisão da fossa ilíaca direita ao nível da aponevrose.

A este propósito cumpre ainda referir o que foi dito pela Sr.ª. Perita, (Dr.ª NN) nos esclarecimentos que prestou e segundo a qual tendo a autópsia sido realizada sete dias depois da cirurgia, tal circunstância torna mais provável que as suturas já não estivessem visíveis ou, até, que os fios se tivessem, entretanto, rompido.

Concluindo, o encerramento (ao nível da aponevrose) da incisão na fossa ilíaca direita foi provado não por presunção judicial, mas directamente por prova testemunhal (depoimento da Dra. OO) e complementarmente pela restante prova produzida antes melhor identificada.

Não colhe pois a alegação dos Autores quanto ao suposto “mau uso” da presunção judicial por parte da Relação, devendo por isso e nesta parte, ser negado provimento ao recurso interposto.

Agora quanto à alegada violação, pelo Tribunal recorrido, da lei substantiva em matéria de consentimento informado.

Segundo os Autores, a Relação “cometeu erros de interpretação da lei substantiva em matéria do consentimento informado”, uma vez que os factos provados n.ºs 27, 28, 34, 35, 36, 68, 69 e 70 e o facto não provado i) “permitem apurar e decidir, que a EE não foi devidamente esclarecida acerca dos riscos daquela intervenção laparoscópica”.

Por se afigurar relevante, recordamos aqui o que a tal propósito foi feito constar na sentença proferida pela 1ª instância.

Assim:

Como foi acima referido, os Autores fundam também a sua pretensão na violação do dever de informar.

Invocam que nenhuns esclarecimentos foram prestados pela 2.ª Ré no que diz respeito a laparoscopia e seus riscos e complicações (sendo igualmente violação grosseira por parte do Hospital 1.º Réu).

Entendem assim o Autores que verificada a violação grosseira do consentimento informado, são ilícitos os actos e procedimentos médicos praticados.

Cumpre apreciar.

A acção de responsabilidade civil médica pode fundar-se, para além do erro médico, também na violação do consentimento informado, em que o bem jurídico tutelado é o direito à autodeterminação nos cuidados de saúde.

A obrigação de informação também constitui elemento essencial da leges artis, assumindo autonomia, visto que esta particular regra de comportamento médico visa a tutela da autodeterminação.

O dever de informação e o consentimento informado têm consagração legal, nomeadamente, na Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (publicada no Diário da República – 1.ª Série - de 3 de Janeiro de 2001), na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 3.º), na Constituição da República Portuguesa (artigos 25.º e 26.º), no artigo 70.º do Código Civil, no Código Deontológico da Ordem dos Médicos (artigos 44.º e 45.º), e na Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 48/99, de 24 de Agosto, alterada pela Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro).

Hoje é entendimento incontroverso que sobre o médico recai um dever de informação e de obtenção de consentimento informado, sendo que o consentimento obtido só será valido se for livre e esclarecido. Dever que surge para neutralizar (ainda que sem eliminar) a assimetria de informação que tipicamente caracteriza a relação médico-paciente Dever de informação esse – que perdura ao longo de toda a relação contratual – que deve obedecer cumulativamente aos princípios da simplicidade e da suficiência, visando o esclarecimento.

Sendo o dever de informação um dos requisitos da licitude da actividade médica, todavia, o seu conteúdo é “elástico”.

Quanto ao conteúdo do dever de informação, cita-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Janeiro de 2014 (disponível em www.dgsi.pt): “O conteúdo do dever de informação é elástico, não sendo, nomeadamente, igual para todos os doentes na mesma situação. Abrange, salvo ressalvas que aqui não interessam, e além do mais, o diagnóstico e as consequências do tratamento. Estas são integradas pela referência às vantagens prováveis do mesmo tratamento e aos seus riscos; não se exigindo, todavia, uma referência à situação médica em detalhe; nem a referência aos riscos de verificação excepcional ou muito rara, mesmo que graves ou ligados especificamente àquele tratamento.”.

O dever de informação perdura ao longo de toda a relação contratual e deve obedecer cumulativamente aos princípios da simplicidade e da suficiência, visando o esclarecimento.

Haverá, assim, que analisar caso a caso, se esse dever foi cumprido, pois a sua afirmação variará em função de cada situação concreta.

O ónus da prova do consentimento deve recair sobre o médico ou a instituição de saúde, uma vez que o consentimento funciona como causa de exclusão da ilicitude e a adequada informação é pressuposto da sua validade, logo matéria de excepção, como facto impeditivo.

Todavia, esse ónus não é ilimitado e terá como fronteira, desde logo, a não imposição de uma prova diabólica, de factos negativos.

Assim, não poderá exigir-se ao médico a demonstração de que o consentimento obtido teve por fonte a prestação de uma informação que não compreendeu um determinado rol de riscos, mas apenas por estes serem imprevisíveis, irrazoáveis ou não significativos, para que o mesmo seja causa de exclusão da ilicitude da sua conduta e, nessa medida, impedimento para a sua responsabilização pelos danos que acabaram por se verificar.

Pelo contrário, não poderá deixar de ser o doente/lesado a alegar e demonstrar que o risco de cuja verificação resultaram os danos era um dos riscos previsíveis, razoáveis e significativos que lhe deviam ter sido transmitidos.

Dito isto, impõe-se analisar as duas situações (temporais) focadas pelos Autores.

a) antes da realização dos procedimentos cirúrgicos:

Estamos num domínio de casuísmo da avaliação jurisdicional, que depende necessariamente dos factos concretos de cada caso, não havendo uma fórmula jurídica abstracta que resolva todos os problemas da prática judiciária. O problema aqui colocado é o do dever de informação dos riscos graves de uma cirurgia por laparoscopia, mas raros.

Ficou provado que a ocorrência de complicações pós-operatórias de herniação, pela ferida operatória da parede abdominal nas incisões realizadas numa cirurgia laparoscópica é muito rara, mas está descrita e que são raros os casos descritos de necrose intestinal associado a hérnia via porta de trocar, não existindo incidência publicadas (factos provados em 68 e 69).

A doutrina e a jurisprudência têm entendido (vide, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Setembro de 2020) que a intensidade e a extensão dos deveres de informação do médico dependem das circunstâncias do caso concreto. Essa informação deve ser completa para evitar uma imagem parcelar, distorcida, da realidade, ou que induza o paciente a desvalorizar ou a menorizar os riscos. Assim, o médico deve explicitar ao paciente, com um grau suficiente de particularização, a natureza e os riscos associados ao tipo de tratamento proposto.

Conforme explicitado no mencionado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (de 8 de Setembro de 2020), “Os riscos relevantes para o cumprimento do dever de prestar informação completa são aqueles em que, em abstracto, o paciente pode vir a incorrer considerando o concreto tratamento em causa. Quanto a estes, a forma extrema que possam apresentar deve, em princípio, ser comunicada em virtude da relevância de que se reveste para a decisão do paciente”.

No caso concreto e face à raridade da possibilidade de herniação pela ferida operatória da parede abdominal nas incisões realizadas numa cirurgia laparoscópica e que são raros os casos descritos de necrose intestinal associado a hérnia via porta de trocar, não existindo incidência publicadas, podemos concluir que esses riscos de complicações da cirurgia por laparoscopia são tão baixos que não era exigível à 2.ª Ré que os detalhasse à Autora.

Assim, tendo em conta que EE faleceu devido a uma herniação e necrose intestinal - que foram a causa da sua morte – e sendo esses riscos raros e não existindo incidência publicada, é de concluir que a informação prestada a EE cumpriu o mínimo indispensável à tomada da decisão, não se verificando, pois, violação do dever de informação e que o consentimento não haja sido informado.

b) aquando da alta:

Os Autores fundamentam a sua pretensão também na violação do dever de informação ao não ter informado EE dos riscos associados à alta hospitalar precoce, sem esta ter defecado.

Ora, nesta parte, em primeiro lugar não resulta da factualidade apurada que a alta hospitalar tenha sido precoce.

Em segundo lugar, não resulta do carreado nos autos que o facto de ter alta hospitalar – no caso da cirurgia à qual foi submetida EE (o que não se pode dizer de outras cirurgias, nomeadamente as relativas directamente ao aparelho digestivo / trato intestinal) - sem ter defecado acarretasse riscos para a saúde ou até para a vida de EE.

Assim, não havendo riscos associados os mesmos não poderiam ser informados a EE, pelo que não se pode concluir pela violação do dever de informação ou do consentimento informado.

Pelo que ficou dito, não se pode imputar ao 1.º Réu e à 2.ª Ré qualquer responsabilidade por violação do consentimento informado / dever de informação.

*

Faltando nas duas vertentes (violação dos deveres de cuidado e violação do consentimento informado) o pressuposto da ilicitude, não se procede à análise dos restantes pressupostos para o apuramento da responsabilidade civil dos Réus.”


*


No âmbito do recurso de apelação interposto pelos Autores, veio a Relação dizer o seguinte:

Enquadrando juridicamente a pretensão indemnizatória dos autores, salienta-se que a presente ação foi configurada com base na alegação de responsabilidade de ambas as rés primitivas, tendo por base violação do dever deontológico de esclarecimento, erro no diagnóstico, erro quanto à terapia proposta, violação das legis artis na realização do procedimento cirúrgico do qual veio a resultar o óbito da esposa e mãe dos autores, e erróneo procedimento/acompanhamento pós-operatório.

Como refere Miguel Teixeira de Sousa, “o ponto de partida para qualquer ação de responsabilidade médica é assim o da desconformidade da concreta atuação do agente no confronto com aquele padrão de conduta profissional que o médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes (…)”. Refere ainda o citado autor que “age com culpa (…) o médico que viole os deveres objetivos de cuidado, agindo de tal forma que a sua conduta deva ser pessoalmente censurada e reprovada (…) culpa a ser apreciada (…) pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso”, em face dos critérios consagrados nos artigos 487º, nº 2 e 799º, nº 2, CC, no âmbito, respetivamente, da responsabilidade extracontratual e da responsabilidade contratual.

Não oferece controvérsia a subsunção do litígio ao instituto da responsabilidade civil contratual, em consonância com o que vem defendendo a doutrina e a jurisprudência. De facto, é claramente predominante a orientação de que a regra é a da responsabilidade contratual do médico, correspondendo a responsabilidade extracontratual do médico a uma exceção que, em geral, ocorre em situações em que o médico tem de atuar com urgência, em que não foi colhido o acordo ou o consentimento do doente quanto à sua atuação ou à sua intervenção – Ac RP de 10/2/2015. A este propósito, refere o Conselheiro Henriques Gaspar : “A relação médico/doente há-se enquadrar-se na figura conceitual do contrato (…) o médico só é responsabilizado extracontratualmente se atuou à margem de um acordo existente entre o médico e o doente, o que acontece em situações de urgência em que não foi possível obter o acordo”.

De todo o modo, em qualquer uma das suas modalidades, a responsabilidade civil assenta sempre na verificação de determinados pressupostos, que são o facto; a ilicitude; a imputação subjetiva do facto ao lesante (culpa); o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Só a reunião destes elementos poderá, pois, constituir o lesante na obrigação de indemnizar o lesado, quer a sua responsabilidade provenha de um facto ilícito extracontratual ou de um contrato.

A distinção entre ambas as responsabilidades no domínio médico não assume natureza meramente académica, porquanto as regras estabelecidas ao nível do ónus da prova (cfr. artigos 799º, nº 1/487º, nº 1, CC), dos prazos de prescrição (309º/498º) ou da atenuação da indemnização em caso de mera culpa (494ºCC), consagradas para cada um dos tipos de responsabilidade, poderão determinar diversas soluções práticas.

Certo é que, no domínio da medicina privada, em regra existe responsabilidade contratual, dado que a prestação de cuidados de saúde por entidades privadas assenta em contrato de prestação de serviços celebrado entre a entidade que os oferece (proponente) e o doente – Ac RC de 17/5/2016.

Ora, batendo-se os autores/recorrentes pela responsabilização civil das rés com base, por um lado, na violação do dever deontológico de esclarecimento, e por outro lado, na violação das legis artis médicas ao nível do diagnóstico, escolha da terapia (cirúrgica), realização do procedimento cirúrgico e procedimento/acompanhamento pós-operatório, devemos acompanhar o entendimento jurídico da primeira instância em face da factualidade provada (subsequente à impugnação julgada em segunda instância). Na realidade, as alterações operadas nesta instância de recurso à matéria de facto provada não importam decisão jurídica diversa da proferida pelo Tribunal recorrido. Não apenas resulta da factualidade provada a considerar que a segunda ré cumpriu o seu dever deontológico de esclarecimento, como ainda não se apurou qualquer violação das legis artis na sua atuação, ao nível do diagnóstico, da eleição da terapia (cirúrgica), da realização desta e do acompanhamento posterior.

Por conseguinte, atingindo-se a mesma conclusão jurídica afirmada na sentença de primeira instância, importa julgar improcedente o recurso.”

A propósito deste tema, inúmeras decisões têm sido proferidas por este Supremo Tribunal, entre as quais e porque se revelam de particular interesse, destacamos as seguintes, todos publicados em www.dgsi.pt.:

- O Acórdão de 01.10.2024, no processo nº26936/15.6T8PRT.P2.S2., relatado pela Conselheira Maria Clara Sottomayor, onde no seu respectivo sumário se fez constar o seguinte:

“IV. O consentimento, enquanto causa de exclusão da ilicitude da intervenção médica, constitui um facto impeditivo do direito da pessoa lesada, cuja prova compete aos médicos, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil.

V. O consentimento dos pacientes tem de ser livre e esclarecido para gozar de eficácia: se o consentimento não existe ou é ineficaz, a atuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada.”

- O Acórdão de 19.09.2024, no processo nº17587/16.9T8LSB.L1.S1, relatado pela Conselheira Paula Leal de Carvalho, onde no respectivo sumário se fez constar o seguinte:

I. A violação culposa, pelo prestador dos cuidados de saúde, dos deveres de informação e de obtenção do consentimento informado por parte do paciente relativamente a ato médico (no caso, intervenções cirúrgicas) é suscetível de o fazer incorrer em responsabilidade civil, sendo responsável pela reparação dos danos decorrentes de tais atos, em relação aos quais se verificou a violação dos mencionados deveres.

II. É ao prestador dos cuidados de saúde que compete o ónus da prova (enquanto exceção perentória impeditiva do direito do autor, ut cfr. art. 342.º, n.º 2 do CC) do cumprimento do dever de informação e da existência do consentimento informado do paciente acerca dos riscos do ato médico.”

- O Acórdão de 14.03.2024, no processo nº20769/18.5TBPRT.P1.S1, relatado pelo Conselheiro Fernando Baptista, onde no respectivo sumário se fez constar o seguinte:

“V. O direito do paciente à informação e ao consentimento livre e esclarecido são expressões do direito ao consentimento informado enquanto informed choice. A autodeterminação nos cuidados de saúde implica, não só que o paciente consinta ou recuse uma intervenção determinada heteronomamente, mas também que disponha de toda a informação relativa às diversas possibilidades de tratamento (ut art. 5.º da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina ou Convenção de Oviedo - CDHBio).

VI. O conteúdo do dever de informação abrange o diagnóstico e as consequências do tratamento. Estas são integradas pela referência às vantagens prováveis do mesmo e aos seus riscos, embora se não exija uma referência à situação médica em detalhe, nem a referência aos riscos de verificação excepcional ou muito rara, mesmo que graves ou ligados especificamente àquele tratamento.

VII. Ao autor apenas se impõe alegar genericamente a violação do consentimento informado por banda do médico, pois é ao prestador do cuidado de saúde que compete o ónus da prova (enquanto excepção peremptória impeditiva do direito do autor, ut cfr. art. 342.º, n.º 2 do CC) da existência do consentimento informado do paciente acerca dos riscos. Ou seja: de acordo com a orientação dominante, compete, via de regra, à instituição de saúde e/ou ao médico provar que prestou ao paciente as informações devidas e adequadas para que este pudesse livre e esclarecidamente exercer o seu direito de autodeterminação sobre o próprio corpo e sobre os serviços de saúde. Recaindo, assim, sobre a instituição de saúde e/ou o médico o risco de uma falta ou deficiência de informação.”

Regressando ao caso concreto, importa ter como relevantes a seguinte matéria de facto que da instância anterior vem dada como provada:

“26. No dia 21 de Março de 2016, EE teve uma consulta de anestesia nas instalações do 1.º Réu.

27. EE foi cabalmente esclarecida sobre a cirurgia a realizar, nomeadamente sobre o tipo de procedimento e os respectivos riscos próprios, nomeadamente os mais frequentes e os mais graves.

28. EE prestou, por escrito, o seu consentimento à realização da intervenção cirúrgica.

29. E prestou o seu consentimento por escrito à administração da anestesia.”

Ora o que também resulta dos autos é que contrariamente ao que vem alegado pelos Autores nas suas alegações de recurso, a resposta afirmativa à matéria acabada de citar, não se fundamentou apenas na prova documental produzida, designadamente no documento com o título “Consentimento informado para actos médicos, cirúrgicos/MCDT’s”, junto pela 1ª Ré, Lusíadas S.A. com a sua contestação.

Isto porque se verifica que a decisão proferida sobre tais factos teve também por base as declarações de parte prestadas pela 2ª Ré, DD.

Neste sentido é relevante recordar o que a tal propósito consta na decisão proferida pela Relação e cujos segmentos mais relevantes passamos agora a transcrever:

“Já das suas declarações de parte resulta que transmitiu à paciente que a cirurgia era suscetível de gerar problemas intestinais, oclusões, o que fez designadamente no momento da assinatura do consentimento. Tal informação foi por si transmitida quer nas consultas (designadamente na pré-operatória), quer no decurso da ecografia, apenas não tendo advertido para a possibilidade da morte, embora a mesma esteja sempre latente, dado o stress que tal informação causa aos doentes e o facto de a cirurgia apresentar riscos baixos (minutos 9.40 a 10.00 e 12.00 a 13.30).”.

O certo é que, para além da consonância das declarações da ré com as regras de normalidade da vida, dado que qualquer cidadão com uma instrução média quando se submete a cirurgia exige ser esclarecido acerca das suas implicações, é decisivo o teor do consentimento informado subscrito pela EE (documento junto pela ré Lusíadas, SA na sua contestação como documento nº 1). E da sua leitura resulta que a paciente recebeu a informação necessária para aferir das implicações da intervenção cirúrgica, o que inviabiliza a consideração como não provada de tal matéria”.

(…)

Da motivação resulta que a prova de tal facto [facto provado n.º 28] resultou do documento junto pela ré Lusíadas, SA na sua contestação como documento nº 1, que consta de fls. 232 do suporte físico do processo.”

Ora, de tal documento, datado de 22-03-2016, consta expressamente: “Confirmo que expliquei ao doente (…) de forma adequada e inteligível, a condição clínica do doente, os tratamentos propostos, os potenciais benefícios e prejuízos, as alternativas possíveis, a previsibilidade de êxito da sua aplicação, possíveis problemas relacionados com a recuperação e possíveis resultados da decisão de não realização dos tratamentos”. Das declarações prestadas pela ré DD resulta que tal documento, elaborado pela instituição hospitalar e do qual constava informação sumária, era subscrito pelo paciente, a quem o médico, previamente, informava verbalmente acerca do procedimento cirúrgico e suas implicações, o que também sucedeu relativamente a EE.

Assim, a subscrição de tal documento, de leitura simples, a par com as informações que lhe foram transmitidas pela médica, não pode deixar de evidenciar que EE deu o seu consentimento à intervenção cirúrgica em causa, o que inviabiliza que a matéria em questão transite para os factos não provados.”

Sabemos todos que segundo a doutrina mais seguida, a análise da verificação de consentimento informado depende da situação concreta, devendo o julgador, perante os elementos de facto que tem, ao seu dispor, perceber se a informação quanto aos riscos prestada, permitiu, ou não, que o paciente se pudesse autodeterminar com toda a informação de que necessitava (neste sentido e entre outros cf. André Gonçalo Dias Pereira, “O dever de esclarecimento e a responsabilidade médica”, Responsabilidade civil dos médicos, Coimbra Editora, 2006, pág. 435-497.)

Segundo o mesmo autor, “ [A] mera assinatura de um documento escrito em si não é prova suficiente e informações adequadas (embora reforce a posição do prestador de cuidados de saúde). Uma conversa pessoal é necessária para que o paciente seja aconselhado dos diversos riscos. As informações devem ser fornecidas em linguagem compreensível e com tempo suficiente para que o paciente possa fazer uma escolha informada.” (cf. Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, 1ª edição, Coimbra Editora, pág. 466).

Segundo a Relação, no caso dos autos, a resposta a tal interrogação teve que ser afirmativa, concluindo que a paciente EE foi esclarecida sobre os riscos mais frequentes, mais graves e, bem assim, sobre os riscos acrescidos que a sua condição médica prévia comportava na realização da laparoscopia.

Mais ainda, que foi feita prova que a mesma paciente foi esclarecida, por mais que uma vez, sobre o procedimento cirúrgico e todos os riscos associados ao mesmo e que, quando assinou o documento antes melhor identificado o fez de modo livre e esclarecido.

Perante esta prova, considerou pois a Relação que não se verificou qualquer violação, pelas Rés, dos deveres de prestação de informação e, portanto, do consentimento informado, entendimento que os Autores agora questionam.

Vejamos, pois, do fundamento de tal pretensão.

É consabido que em regra e mesmo quando está em causa o controle do uso de presunções judiciais pela Relação “está vedado ao tribunal de revista a indagação do erro intrínseco à própria apreciação crítica das provas produzidas em regime de prova livre (neste sentido o Acórdão do STJ de 29.09.2016, proferido no processo n.º 286/10.2TBLSB.P1.S1, relatado pelo Conselheiro Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt.).

A este propósito ver também o que decidido no Acórdão do STJ de 25.11.2014, no processo nº 6629/04.0TBBRG.S1, relatado pelo Conselheiro Pinto de Almeida, publicado em www.dgsi.pt., onde ficou a constar o seguinte:

“Pois bem, a respeito desta questão, constitui jurisprudência corrente que "é lícito aos tribunais de instância tirarem conclusões ou ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, e fazer a sua interpretação e esclarecimento, desde que, sem a alterarem, antes nela se apoiando, se limitem a desenvolvê-la"[…].

Ao STJ está, porém, vedado o uso de presunções judiciais para dar como assentes factos deduzidos de outros factos julgados provados […].

Com efeito, fora dos casos previstos na lei, o Supremo apenas conhece de matéria de direito (art.º 26º da LOFTJ de 1999 e actual art.º 46º da LOSJ), prescrevendo o art.º 682º nº 2 do CPC que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no nº 3 do art.º 674º.

Daí que, por regra, fora das situações aí previstas – ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova – o Supremo não possa sindicar o juízo efectuado pela Relação para inferir presuntivamente determinado facto.

Tem sido entendido, na verdade, que o Supremo só pode sindicar o uso de presunções judiciais pela Relação para averiguar se ela ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados […].

(…)

Tem sido mesmo afirmado que "nesta área, o mais que o Supremo está autorizado a fazer é suprimir o facto presumido". Mas isto, como se referiu, "só no caso de haver sido violada pela 2ª instância qualquer norma legal disciplinadora do instituto"[…].”

Face a tudo o que antes deixamos referido, impõe-se concluir que não estamos nos autos perante “erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa” decorrente de “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova“ (cf. o disposto no nº3 do art.º 674º do CPC).

Ou seja, nenhuma razão existe que permita, como requerem os Autores, a reponderação por parte deste Supremo Tribunal da decisão de facto proferida pela Relação nomeadamente no que toca ao facto inscrito no supra referido ponto 27.

Considera-se ainda que na decisão proferida, a Relação não cometeu erros de interpretação da lei substantiva em matéria de consentimento informado, não estando por isso em causa o fundamento de revista previsto no artigo 674º, nº1, alínea a), do CPC.

Quanto à alega violação das legis artis médicas por parte da 2ª Ré, mostra-se relevante trazer à colação o que de forma clarividente consta do Acórdão do STJ de 16.01.2025, no processo nº1476/17.2T8LSB.L1.S1, relatado pelo Conselheiro Emídio Santos, publicado em www.dgsi.pt.

Assim e citando:

É a jurisprudência e a doutrina que têm vindo a preencher o conceito de cumprimento defeituoso para efeitos do artigo 798.º do Código Civil. No domínio dos contratos de prestações de serviços médicos, a jurisprudência e a doutrina têm considerado que a prestação de tais serviços é defeituosa quando for levada a cabo com violação de deveres de cuidado a que o prestador está obrigado, nomeadamente com violação das leges artis.

É o que se colhe no acórdão do STJ proferido em 26-04-2016, processo n.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1. publicado em www.dgsi.pt ao escrever-se: “A responsabilidade no âmbito do contrato de prestação de serviços depende da prova duma situação que traduza incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação. E, tratando-se, como é o caso, de prestação de serviços médicos, a responsabilidade médica, por negligência, por violação das leges artis, tem lugar quando, por indesculpável falta de cuidado, o médico deixe de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, face à sua formação e qualificação profissional, lhe eram de exigir: a violação do dever de cuidado pelo médico traduz-se precisamente na preterição das leges artis em matéria de execução da sua intervenção”.

É o que se colhe também no acórdão do STJ proferido em 23-03-2017, processo n.º 296/07.7TBMCN.P1.S1, publicado em www.dgsi.pt, ao escrever: “Já no domínio das obrigações de meios, tem-se entendido que impende sobre o credor lesado (paciente) provar ….a falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente requerido pelas leges artis, como pressuposto da ilicitude, incumbindo, por seu turno, ao devedor o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento a fim de ilidir a presunção de culpa”.

É ainda o que se colhe também por exemplo no acórdão do STJ proferido em 12-01-2022, no processo n.º 1616/11.5TVLSB.L1.S1.,também publicado em www.dgsi.pt ao relacionar a prestação médica defeituosa com “o emprego de um menor grau de cuidado ou de não implementar todo o quadro de conhecimentos disponíveis”.

E é ainda o que se colhe no acórdão do STJ proferido em 2-05-2024, no processo n.º 2313/14.5T8LSB.L1.S1, também publicado em www.dgsi. ao escrever: “… só com a violação do dever de cuidado – avaliado em função de um padrão médio de comportamento, mediatizado pelas referidas “legis artis” – é que, independentemente das consequências, mais ou menos graves, para o doente, e numa análise neutra a posteriori, teremos um erro juridicamente relevante, base para um ilícito de natureza pessoal e uma responsabilidade subjectiva e com conteúdo ético…”.

Na doutrina, André Gonçalo Dias Pereira escreve a este propósito: "... a prova do incumprimento passa pela demonstração de que o médico não agiu de acordo com as leges artis (Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Coimbra Editora, 1.ª Edição, Fevereiro de 2015, página 708).

Ainda na doutrina, escreve Carlos Ferreira de Almeida: “Em relação à obrigação principal considera-se que o cumprimento é defeituoso quando seja desconforme com as leis da arte médica, de harmonia com o estádio de conhecimentos da ciência ao tempo da prestação dos cuidados de saúde” (Os Contratos Civis de Prestação de Serviços Médicos, Direito da Saúde e Bioética, Associação Académica da faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1996, páginas 116 e 117).

Ainda na doutrina escreve Rute Teixeira Pedro: “… em regra, o incumprimento imputável ao médico apresenta uma configuração que não se reconduz nem a um atraso na implementação dos actos devidos, nem à sua omissão irremediável. Trata-se com frequência de situações em que o médico realiza a prestação assumida, mas fá-lo de forma deficiente, já que, em virtude de empregar um menor grau de cuidado ou de não implementar todo o quadro de conhecimentos disponíveis, provoca danos à pessoa, e indirectamente ao património do doente. A especificidade destas situações é a de que nelas o incumprimento deriva, não de uma pura violação negativa do seu dever de prestar (…), mas de vícios defeitos ou irregularidades da prestação efectuada” (A Responsabilidade Civil do Médico, Centro de Direito Biomédico, Coimbra Editora, 2008, página 110).

Esta interpretação está em conformidade:

- Com o artigo 4º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, segundo o qual “Qualquer intervenção na área da saúde, incluindo a investigação, deve ser efectuada na observância das normas e obrigações profissionais, bem como das regras de conduta aplicáveis ao caso concreto”;

- Com o artigo 135.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Médicos segundo o qual “O médico deve exercer a sua profissão de acordo com a leges artis com o maior respeito pelo direito à saúde das pessoas e da comunidade”;

- Com o artigo 150.º, n.º 1 do Código Penal, segundo o qual “As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física.”

Regressando ao caso concreto, impõe-se dizer que temos como adequadas as considerações que a propósito do alegado pelos Autores foram feitas pela 1ª instância e que agora aqui recordamos:

“Cumpre apreciar cada uma das situações invocadas pelos Autores:

a) no diagnóstico da situação clínica de EE:

Neste ponto, nada consta da matéria de facto apurada da qual resulte que a 2.ª Ré tenha chegado a um diagnóstico errado ou deficiente relativamente à situação da paciente EE.

Assim, o diagnóstico efectuado pela 2.ª Ré da situação clínica de EE – quisto do ovário direito não especificado e hérnia umbilical – teve por base os resultados de vários exames realizados, em especial uma ecografia pélvica endovaginal, da qual resulta a existência de um “quisto de 18 mm, provavelmente de etiologia do paraovário com projecções papilares da cápsula, sem vascularização” e uma RM pélvica que cpncluiu por um “Nódulo de pequenas dimensões anexial direito, com aparente componente de gordura aparentemente benigno, a merecer controlo evolutivo”.

Quanto à hérnia, não havendo factos que reconduzam a cirurgia da hérnia ao falecimento de EE, não importa aqui fazer qualquer tipo de referência, sendo certo também que não existem dados (factos) provados suficientes quanto a esta matéria.

Pelo exposto, podemos concluir com segurança que não se verificou qualquer erro de diagnóstico por parte da 2.º Ré correspondendo a avaliação da médica à efectiva situação clínica de EE.

b) na escolha da terapêutica adequada:

Também quanto a esta questão, da matéria de facto provada resulta que existiam, face à situação clínica de EE, duas opções terapêuticas, sendo uma delas a cirurgia laparoscópica.

Assim, não se pode afirmar, como afirmam os Autores que houve um erro na escolha da terapêutica.

Deste modo, era necessário proceder ao tratamento do quisto do ovário direito diagnosticado e sendo uma massa anexial detectada no período da pós-menopausa deve ser considerada anormal e faz parte da boa prática médica proceder à sua investigação diagnóstica.

Comparando os riscos globais do tratamento expectante e do tratamento laparoscópico, era aceitável cada uma delas, no caso da EE (factos provados em 10 e 11), independentemente de o método ter sido escolha da paciente dou da médica (sendo no caso concreto, ficou apurado que a escolha foi da paciente).

c) na realização dos procedimentos cirúrgicos:

Não resulta da matéria de facto provada qualquer violação da legis artis por parte da 2.ª Ré no procedimento cirúrgico.

Assim da factualidade apurada não podemos concluir que a 2.ª Ré deveria ter tido procedimentos diferentes, procedimentos esses que seriam os mais adequados/ os mais aconselhados/ os descritos como os ideais, no caso concreto, ou seja, não há elementos factuais que demonstram a desconformidade objectiva entre os actos praticados e as leges artis.

d) no acompanhamento pós-operatório, em especial, ao nível da decisão da alta hospitalar:

Também nesta parte, não resulta da factualidade apurada uma errada decisão da 2.ª Ré em conceder alta hospitalar a EE, sendo que a questão focada pelos Autores de a mesma ter saído do hospital sem defecar não é um critério para a decisão (ou não) de alta hospitalar.

Pelo exposto, não se pode afirmar, como afirmam os Autores, que houve uma errada decisão da 2.ª Ré em conceder alta a EE no dia 23 de Março de 2013, por volta das 20H00M, sem ter defecado.

e) no acompanhamento após a alta de EE:

De toda a factualidade apurada, não pode o Tribunal concluir que houve violação das regras aquando ao acompanhamento de EE após a sua alta.

Assim, apenas no dia 24 de Março (2 sms enviados pelo Autor marido) e no dia 26 de Março é que houve comunicação por parte do Autor marido da situação da esposa EE.

Dessas comunicações, no dia 26, a 2.º Ré aconselhou, em primeiro lugar, a ir ao Hospital Lusíadas (o que não resulta provado que o Autor marido tenha feito) e na segunda chamada, por volta das 19h43, aquando de uma descrição da situação já grave, a 2.ª Ré disse para chamar o 112 para EE ser levada ao Hospital 1.

Não podemos concluir da sucessão de factos apurados que a 2.ª Ré pudesse (face às informações fornecidas) ter dado outros conselhos que não os que deu, sendo certo que os Autores haviam alegado mais comunicações e outras informações que não lograram provar.”

Ora como já deixamos antever, nenhuma razão encontramos para não aderir a tal entendimento.

Aliás, foi também esta a opinião da Relação quando, mesmo alterando muito pontualmente a decisão de facto, acompanhou a mesma decisão afastando a verificação no caso de qualquer violação das legis artis na actuação da 2ª Ré, quer ao nível do diagnóstico, quer quanto à terapia (cirurgia) que foi adoptada e respectiva realização, quer por fim no que toca ao acompanhamento posterior da paciente dos autos.

A ser assim e valendo como valem as razões - de facto e de direito - que estiveram na base de tais decisões não vislumbramos qualquer fundamento que permita a condenação dos Réus no pedido indemnizatório peticionado pelos Autores.

Ou seja, também aqui não colhem os argumentos recursivos do seu recurso.


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III. Decisão:

Pelo exposto, nega-se a revista e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.


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Custas a cargo dos autores/recorrentes (art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).

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Notifique.

Lisboa, 2 de Outubro de 2025

Relator: Carlos Portela

1º Adjunto: Orlando dos Santos Nascimento

2ª Adjunta: Ana Paula Lobo