I – Por aplicação da alínea b) ou da alínea c) do n.º 1 do artigo 1722.º do Código Civil é de considerar bem próprio do cônjuge herdeiro o bem que lhe foi adjudicado na partilha de herança, ainda que: 1) a adjudicação tenha implicado o pagamento de tornas; 2) o montante das tornas tenha sido superior ao valor da quota do cônjuge nos bens da herança; 3) as tornas tenham sido pagas com dinheiro da comunhão conjugal.
II – O edifico reconstruído e ampliado num terreno pertencente a um dos cônjuges, após a demolição de uma edificação nele existente, constitui bem próprio desse cônjuge, ainda que a reconstrução e a ampliação tenham sido pagas com dinheiro ou bens comuns.
III – É devida, no entanto, pelo cônjuge uma compensação ao património comum.
A requerida, cabeça-de-casal, apresentou a relação de bens.
O requerente reclamou, acusando a falta de relacionação de um prédio urbano (prédio inscrito na matriz sob o artigo 631.º da União das Freguesias de ..., correspondente ao artigo 509.º da freguesia de ...) e de contas bancárias.
Em relação à falta de relacionação do prédio urbano alegou:
• Que o imóvel foi adjudicado à cabeça-de-casal no inventário a que se procedeu por óbito do pai dela;
• Que à cabeça de casal, na qualidade de herdeira, cabia-lhe o quinhão de € 986,24 euros, tendo o prédio sido adquirido por € 6896,73 euros;
• Que a aludida verba foi adjudicada a BB, mediante o pagamento de tornas aos restantes herdeiros, no montante de € 5 911,48 euros;
• Que não constava do inventário que o pagamento das tornas tivesse sido feito com valores pertencentes apenas à interessada BB, devendo, assim, considerar-se que o referido imóvel foi adquirido a título oneroso;
• Que de acordo com o n.º 1 do artigo 1726.º do Código Civil, os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações;
• Que o referido prédio urbano, adquirido através de inventário, era composto por rés-do-chão com a superfície de 115,60 m2, e com o valor patrimonial de apenas € 6896,73, por ser um prédio já muito antigo, cujas paredes eram em tijolo sem reboco;
• Que após a sua aquisição, o casal procedeu à sua demolição, reconstrução e ampliação, demolindo todo o seu interior, só ficando no ar as paredes exteriores;
• Que actualmente o prédio é composto por rés-do-chão e 1.º andar, com a superfície coberta de 115,60 m2, com a área bruta privativa de 231,20 m2 e com o valor patrimonial de 41203,85 euros.
Em relação às contas bancárias, alegou que o casal era titular de contas na Caixa geral de Depósitos, agência de ..., cujos saldos ficaram na posse da cabeça-de-casal. Requereu se oficiasse à agência de ... da referida instituição de crédito para indicar o montante existente nas contas tituladas pela cabeça-de-casal, em 24 de Maio de 2017, a fim de figuraram na relação de bens.
Depois de deduzida a reclamação contra a relação de bens, o requerente do inventário, sob a alegação de que, por lapso, não havia reclamado contra a falta de relacionação de um plano poupança reforma (PPR) constituído pelo cabeça-de-casal na vigência do casamento, requereu, em 28-01-2022, se relacionasse, como título de crédito, tal PPR.
A cabeça-de-casal respondeu. Em relação à relacionação do imóvel (descrito na Conservatória do registo Predial de ... sob o n.º ..18, da freguesia de ...), alegou que se tratava de um bem próprio dela, cabeça-de-casal, em virtude de o ter adquirido na partilha dos bens deixados por óbito dos seus pais, estando a aquisição registada na Conservatória apenas em seu nome.
Em relação às contas bancárias alegou que, aquando do divórcio, não havia contas bancárias comuns, nem em Portugal, nem em França.
Em relação ao requerimento em que o requerente acusou a falta de relacionação do PPR, a cabeça-de-casal começou por alegar que tal requerimento era extemporâneo. De seguida, alegou que o PPR era um bem próprio dela, cabeça-de-casal, e que o seguro havia sido levantado no ano de 2017, ainda na constância do matrimónio.
Por despacho proferido em 17-02-2022, a Meritíssima juíza da 1.ª instância admitiu a reclamação contra a relação de bens na qual foi acusada a falta de relacionação do PPR.
Durante a inquirição de testemunhas que teve lugar em 25-02-2022, o interessado AA requereu o prazo de 10 dias para juntar aos autos o arrolamento dos bens que foi feito no processo de divórcio que correu termos em França, para ser novamente confrontada uma testemunha (CC) com as imagens dos bens, atendendo ao depoimento da testemunha.
A Meritíssima juíza da 1.ª instância deferiu o requerimento.
Em 7-03-2022, o requerente requereu a junção aos autos do arrolamento dos bens móveis do casal efectuado no processo de inventário que correu termos em França sob o número C117-.94, bem como a inquirição da testemunha CC.
Por despacho proferido em 8-03-2022, a Meritíssima juíza da 1.ª instância deferiu o requerimento.
Em 10-03-2022, a cabeça de casal opôs-se à junção do documento e à inquirição da testemunha.
Em 10-03-2022, a Meritíssima juíza da 1.ª instância manteve o despacho proferido em 8-03-2022.
No decurso da inquirição de testemunhas que teve lugar em 15-03-2022, o requerente requereu a junção aos autos de fotografias e requereu prazo para aditamento dos bens que constam do imóvel.
A cabeça-de-casal opôs-se.
A Meritíssima juíza do tribunal da 1.ª instância, admitiu a junção aos autos das fotografias.
A cabeça-de-casal arguiu a nulidade deste despahco.
Em 24-03-2022, o requerente requereu se aditasse à relação de bens 18 bens que constituíam o recheio do prédio urbano sito na Rua 1 em ..., ....
Por despacho proferido em 3-04-2022, a Meritíssima juíza do tribunal da 1.º instância indeferiu a arguição de nulidade do despacho proferido em 15 de Março de 2022 e admitiu a reclamação contra a relação de bens apresentada em 24-03-2022.
A cabeça-de-casal arguiu a nulidade do despacho que admitiu a reclamação contra a relação de bens.
Em 24-08-2022, a Meritíssima juíza do tribunal da 1.ª instância decidiu o incidente da reclamação de bens no seguinte sentido:
1. Determinou se relacionasse, como bem comum do casal, o imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo .09 da freguesia de ..., actual artigo .31 da União de Freguesias de ...;
2. Determinou se relacionasse, como passivo, o valor de 986,63 euros, correspondente ao crédito de compensação do requerente em relação à cabeça-de-casal, consistente no valor do quinhão hereditário que cabia à cabeça-de-casal, no inventário n.º 39/05.0TBCNT do tribunal judicial de ...,
3. Determinou se relacionasse, como bem comum do casal, a quantia global de € 13758 depositada na Caixa geral de Depósitos, na conta com o IBAN PT .... ... ... ... ..... ...57;
4. Determinou se relacionasse, como bem comum do casal, o Plano Poupança Reforma constituído na vigência do casamento, denominado Leve, em nome da cabeça-de-casal, apólice n.º ........12, junto do Grupo caixa geral de depósitos no valor de € 7346,58 euros, à data de 31-12-2012,
5. Determinou se relacionassem, como bens comuns, os seguintes bens aditados pelo requerente à relação de bens:
• Um tapete existente no hall de entrada, o valor de 10, 00;
• Um armário em madeira, um conjunto de 3 sofás, uma mesa pequena de centro, um móvel com uma televisão, uma carpete, um varão, dois cortinados, existentes na sala de estar, na posse do cabeça-de-casal, no valor de 240 euros,
• Um micro-ondas, um forno, uma placa de cozinha de indução, uma mesa e quatro bancos, existentes na cozinha, na posse da cabeça de casal, no valor de € 800,00.
• Um balde do lixo e um tapete de casa de banho, existentes na casa de banho do rés do chão, na posse da cabeça de casal, no valor de € 1,00.
• Um tapete, uma toalha, um cesto da roupa e um espelho existentes na outra casa de banho do rés do chão, na posse da cabeça de casal, no valor de € 1,00.
• Uma cama de casal com colchão e roupa de cama e duas mesas de cabeceira, tudo com mais de 15 anos, com candeeiros, uma cómoda com espelho, uma cadeira, uma secretária, varão e cortinados, e três tapetes existentes na suite do rés do chão, na posse da cabeça de casal, no valor de € 330,00;
• Três tapetes e uma toalha existentes na casa de banho com jacúzi que faz parte da suite do rés do chão, na posse da cabeça de casal, no valor de € 1,00.
• Um espelho e um tapete comprido e um vaso em ferro com flores, e um porta-fotografias, existentes no corredor do rés do chão, na posse da cabeça de casal, no valor de €1,00;
• Um espelho afixado na parede do corredor das escadas e um candeeiro, na posse da cabeça de casal, no valor de € 30,00;
• Uma cama de casal com colchão e roupa de cama, uma mesa de cabeceira com candeeiro, dois tapetes, um candeeiro de teto, e um varão existentes no quarto do 1º andar, na posse da cabeça de casal, no valor de € 300,00;
• Uma cama de casal com colchão e roupa de cama, duas mesas de cabeceira com candeeiros, um candeeiro de teto, um divã, dois tapetes redondos, um varão, uma mesa pequena, existentes na suite do 1º andar, na posse da cabeça de casal, no valor de € 300,00;
• Um cesto em verga de cor bordeaux, um conjunto de três prateleiras e uma toalha, existentes na casa de banho da suite do 1º andar, na posse da cabeça de casal, no valor de € 1,00;
• Dois tapetes de casa de banho, um cesto da roupa, uma prateleira, e dois candeeiros, existentes na casa de banho do 1º andar, na posse da cabeça de casal, no valor de €1, 00.
• Uma cama de casal com colchão e roupa de cama, duas mesas de cabeceira com candeeiros, um candeeiro de teto, dois tapetes, varão e cortinado, existentes no quarto do 1º andar, na posse da cabeça de casal, no valor de € 200,00;
• Uma cama de casal com colchão e roupa de cama, uma ventoinha, uma cómoda, uma mesa com televisão, varão e cortinado, existentes no quarto do 1º andar, na posse da cabeça de casal, no valor de. € 200,00;
• Um cilindro, um esquentador, uma prateleira, um aspirador, e oito cadeiras e diversos vasos em plástico existentes na garagem, na posse da cabeça de casal, no valor de € 132,00.
Apelação
A cabeça-de-casal, BB, não se conformou com a decisão e interpôs recurso de apelação pedindo:
• Se declarasse a nulidade dos despachos proferidos em 17-02-2022, 25-02-2022, 8-03-2022, 10-03-2022, 15-03-2022 e 3-04-2022 e que, em consequência, fossem retiradas da relação de bens a partilhar as verbas números 2 e 13 a 29;
• Se retirasse da relação de bens a partilhar a verba n.º 30 (prédio urbano) e se eliminasse a verba do passivo descrita sob A.
O tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão proferido em 14-03-2023, julgou procedente a apelação e decidiu:
a. Declarar a nulidade dos despachos datados de 17-02-2022, 25-02-2022, 8-03-2022, 10-03-2022, 15-03-2022 e 3-04-2022;
b. Alterar a sentença recorrida nos seguintes termos:
• Excluir da relação de bens as verbas 2, 13 a 29 do activo;
• Excluir da relação de bens a verba 30 do activo e a verba A do passivo.
Revista
O requerente do inventário, AA, não se conformou com o acórdão e interpôs recurso de revista, pedindo se revogasse o acórdão recorrido e se mantivesse a sentença proferida na 1.ª instância.
Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. O presente recurso de revista interposto do acórdão da Relação que declarou a nulidade dos despachos datados de 17-02-2022, 25-02-2022, 08-03-2022, 10-03-2022, 15-03-2022 e 03-04-2022, proferidos no decurso das diligências probatórias nos termos do art.º 1105º n.º 3 do C.P.C., e alterou a sentença recorrida, excluindo a maioria das verbas da relação de bens comuns do ex-casal, esvaziando-a e tornando a partilha praticamente inútil, desagrada ao recorrente.
2. Conforme se constata, a cabeça de casal não relacionou todos os bens comuns do ex-casal na relação de bens, conforme é sua obrigação nos termos do artigo 1097.º e 1098.º do C.P.C. Após o aditamento desses bens comuns pelo recorrente, que a própria admitiu existirem, veio reclamar dos despachos proferidos na sequência de diligências de prova, sem sucesso.
3. Com esta decisão, o acórdão da Relação de Coimbra viola o princípio da confiança, o princípio da igualdade de cônjuges, e torna o processo de inventário num processo penalizador para o cônjuge de boa fé, favorecendo o cônjuge faltoso.
4. O acórdão recorrido faz uma errada interpretação e aplicação dos pressupostos do artigo 1722.º, n.º 1 e n.º 2 b), e artigo 1726.º n.º 1 e n.º 2, do Código Civil, prejudicando o cônjuge de boa fé, e conforme ficou provado nos autos, o que mais contribuiu financeiramente para o património comum do casal.
5. Do acórdão resulta que, por força da nulidade dos despachos supra, foram excluídos da relação de bens as verbas 2, 13 a 29 e 30 do ativo, e a verba A do passivo, sem fundamento.
6. Quanto à verba n.º 2 da relação de bens, “Plano Poupança Reforma” (PPR), constituído pela cabeça de casal, denominado “Leve PPR” em nome da cabeça de casal, já havia sido reclamado na reclamação à relação de bens, que o tribunal oficiasse à Caixa Geral de Depósitos para vir aos autos indicar quais os montantes existentes em nome da cabeça de casal, única forma de obter essa informação, claramente tempestiva.
7. Não se verifica qualquer nulidade no despacho com a referência ......65 de 17/02/2022, uma vez que face ao requerimento tempestivo do recorrente, porque foi feito na reclamação à relação de bens, o despacho veio nesse sentido.
8. Não há qualquer preclusão do direito de obter informações tempestivamente solicitadas – o tribunal recorrido fez uma errada interpretação do disposto no artigo 1105º n.º 3 do CPC.
9. O interessado encontrou os documentos relativos ao referido PPR, veio requerer a sua junção e o seu aditamento, tendo em conta o princípio da boa colaboração com o tribunal.
10. O referido Plano Poupança Reforma (PPR) constituído durante a vigência do casamento (31.12.2012) celebrado em regime da comunhão de adquiridos é um bem comum, nos termos do artigo 1724.º al. b) do Código Civil (bem adquirido pelo cônjuge na constância do matrimónio), se não for exceptuado por lei, deve manter-se na relação de bens a partilhar.
11. As verbas indicadas na relação de bens sob os números 13 a 29 resultaram da produção de prova em sede de audiência, das declarações de parte prestadas pelo recorrente, que só pode confirmar a sua existência aquando da sua vinda a Portugal, apresentando fotografias desses bens móveis por si obtidas no dia 14 de Março de 2022 pelas 14h22m, véspera da diligência.
12. Não obstante, a cabeça de casal, confirmar a existência das verbas 13 a 29 como bens comuns, o douto acórdão veio agora excluí-los da relação de bens, alegadamente por força da violação do disposto no artigo 1105.º do CPC.
13. De que serve o processo de inventário, se perante a prova de que existem outros bens a partilhar, os mesmos são excluídos da relação de bens???
14. Atendendo às circunstâncias e ao momento em que foi confirmada a existência desses bens devem as respectivas verbas n.º 13 a 29 manter-se na relação de bens.
15. Do disposto no artigo 1105.º n.º 3 do CPC em momento algum se pode aferir, que caso as provas não sejam apresentadas antes das diligências probatórias, preclude o direito de as apresentar.
16. Contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, o imóvel relacionado sob a verba 30 é um bem comum do casal, foi adquirido por inventário em que à cabeça de casal, lhe cabia nessa herança, constituída apenas por esse imóvel inscrito na matriz sob o artigo 509.º da freguesia de ..., um quinhão de € 986,63 Euros correspondente a 1/7 e adquiriram os restantes 6/7 desse prédio pagando tornas aos demais herdeiros no montante de € 5911,48 Euros.
17. Esse prédio urbano - artigo 509.º - foi demolido, reconstruído e ampliado, em conjugação de esforços por ambos os cônjuges, na constância do matrimónio, de acordo com projecto, alvará de obras de construção da Câmara Municipal de ..., que deu origem ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 631º da União de Freguesias de .... Nos termos do alvará, a área de construção ascendeu a 153m2, em 2 pisos, com uma área de implantação de 116m2, e área bruta de construção de 231,18m2, com início a 20.02.2008 e fim a 18.02.2009 e com o valor de € 41203,85 Euros.
18. Ora, face aos elementos factuais que constam do processo, o que se verifica é que a prestação dos bens comuns naquela construção do novo prédio é significativamente superior à prestação dos bens próprios na contribuição para a aquisição/construção dessa casa. O prédio que existia à data da sua aquisição tinha o valor de € 6 896,73 euros. O valor correspondente à edificação da nova casa ascende a 41 203,85 euros. Por conseguinte há que considerar como bem comum o imóvel dos autos.
19. No regime de bens adquiridos, os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações – art.º 1726.º n.º 1 do C.C. Fica, porém, sempre salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão – art.º 1726.º n.º 2 do Código Civil.
20. Deve manter-se a verba n.º 30 da relação de bens constante da sentença do tribunal a quo, e consequentemente a verba A do passivo, anulando a decisão do acórdão recorrido, por errada interpretação e aplicação dos pressupostos de que a Lei faz depender a aplicação do disposto no artigo 1722.º n.º 1 b) e n.º 2 e do artigo 1726 n.º 1 e n.º 2 do Código Civil.
21. REVISTA EXCEPCIONAL - Subsidiariamente, o presente recurso deverá ser admitido como Revista Excecional, porquanto as questões acima identificadas assumem relevância social fundamental: a situação apresenta contornos indiciadores de que as soluções preconizadas pelo Tribunal da Relação de Coimbra possam constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto.
22. In casu, o presente Recurso é também absolutamente necessário para uma melhor aplicação do Direito, uma vez que o acórdão aqui em crise incorre em erro de interpretação, sendo certo que o erro de julgamento é gerador de violação de lei substantiva – artigo 1726.º n.º 1 e n.º 2 C.C.
23. Do acórdão recorrido resulta que o prédio urbano adquirido por sucessão, em parte pelo cônjuge na proporção de (1/7) correspondente ao seu quinhão e (6/7) adquirido pelo casal mediante o pagamento de tornas é um bem próprio da cônjuge nos termos do artigo 1722.º n.º 1 al. b) Código Civil, prédio esse inscrito na matriz sob o artigo 509º, composto por casa de habitação de rés do chão, com a área coberta de 115,60 m2 e área total de € 115,60 Euros, com o valor venal de € 6.896,73 Euros e situado em Rua 2, em ..., inscrito na matriz sob o artigo 509º da freguesia de ....
24. Não considerou o tribunal a quo que esse prédio foi demolido, reconstruído e ampliado, em conjugação de esforços pelos cônjuges, casados no regime da comunhão de adquiridos, de acordo com projecto, alvará de obras de construção da Câmara Municipal de ..., que deu origem a um novo prédio urbano, modificado, inscrito na matriz sob o artigo 631º da União de Freguesias de ..., e composto por casa de habitação de dois pisos, com a área de construção de 153m2, com uma área de implantação de 116m2, e área bruta de construção de 231,18m2, com início a 20.02.2008 e fim a 18.02.2009 e com o valor de € 41203,85 Euros.
25. Ora, face aos elementos factuais que constam do processo, o que se verifica é que a prestação dos bens comuns naquela construção do novo prédio é significativamente superior à prestação dos bens próprios na contribuição para a aquisição/construção. O prédio que existia à data da sua aquisição tinha o valor de e 6896,73 euros. O valor correspondente à edificação da nova casa ascende a e 41203,85 euros. Por conseguinte há que considerar como bem comum o imóvel dos autos.
26. O presente recurso de Revista Excecional é interposto tendo por fundamento o douto Acórdão da Relação do Porto, de 28-05-2013, Proc. 3255/08.9TJVNF-B.P1 de 28/05/2013 em que se sustentou a decisão recorrida cujo sumário se colhe: “I - Quando os cônjuges eram casados no regime da comunhão de adquiridos e procederam à construção de uma casa em prédio próprio da mulher, que integrou uma casa que anteriormente aí existia, é aplicável a este bem o regime previsto no art. 1726º do Código Civil. II - Verificando-se que a prestação dos bens comuns é superior à prestação dos bens próprios na contribuição para a aquisição/construção da casa deve esta ser considerada como bem comum. III - Porém, o proprietário do prédio, ao abrigo do n" 2 do art. 1726° do Cód. Civil, deve ser compensado pela deslocação que foi feita do seu património próprio para o património.
27. Cremos, com o devido respeito, que o tribunal recorrido não considerou o facto de, após a aquisição do prédio urbano em sede de inventário, o ex-casal ter pagado a demolição do referido prédio urbano – artigo 509º - a sua reconstrução e ampliação, demolindo todo o seu interior, só ficando no ar as paredes exteriores e que o prédio urbano que agora se partilha é um prédio urbano novo, modificado, resultando assim num novo prédio.
28. A decisão recorrida, ao considerar que o prédio adquirido por sucessão em parte com o quinhão do cônjuge mulher na proporção de 1/7 e em parte pelo casal na proporção de 6/7 é um bem próprio do cônjuge mulher, fez uma errada interpretação dos pressupostos do direito ao aplicar o artigo 1722º n.º 1, b) e n.º 2 do Código Civil, e considerar aquele bem como bem próprio do cônjuge mulher.
29. Até porque o referido prédio urbano foi objecto de demolição, reconstrução e ampliação pelo casal, verificando-se que a prestação dos bens comuns é superior à prestação dos bens próprios na contribuição para aquisição e (re)construção desse prédio urbano, devendo por isso ser considerado um bem comum ao abrigo do artigo 1726.º n.º 1 do Código Civil, devendo ser compensada a cônjuge mulher pela deslocação que foi feita do seu património para o património comum do casal – artigo 1726 n.º 2 do C.C.
30. Ao decidir como decidiu, violou o douto Acórdão recorrido o disposto nos artigos 1726.º n.º 1 e n.º 2 e 1724.º, alíneas a) e b), do Código Civil, artigos 1104.º, 1105.º, n.º 1 e n.º 2, ambos Código de Processo Civil.
A recorrida, BB, cabeça-de-casal, respondeu, sustentando que não era admissível recurso de revista, quer revista normal, quer revista excepcional. Para o efeito alegou em síntese:
• Que o recurso foi apresentado fora do prazo legal;
• Que o valor da causa (7 500 euros) não era superior à alçada do tribunal recorrido;
• Que o acórdão da Relação na parte em que declarou a nulidade dos vários despachos judiciais não admitia recurso porque o recurso não cumpria os requisitos do artigo 673.º do CPC;
• Que o recurso de revista não podia ser admitido com fundamento no artigo 674.º, n.º 1, alínea a), do CPC;
• Que a revista exepcional não era admissível por não estarem preenchidos os requisitos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 671.º do CPC.
Notificado, em cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 655.º, do CPC, para se pronunciar sobre a admissibilidade do recurso, o recorrente pediu se admitisse o recurso de revista normal e o recurso de revista excepcional. Para o efeito alegou em síntese:
• Que o recurso foi interposto dentro do prazo legal;
• Que a Meritíssima juíza fixou à causa o valor de 59 850,01 euros, superior à alçada do tribunal da Relação;
• Que o recurso cumpre os requisitos do art.º 673.º do CP, que remete para o art.º 671.º, n.º 2, a) do CPC;
• Que as alegações de recurso cumprem os requisitos do artigo 674.º CPC, referem as normas jurídicas violadas tanto no erro de interpretação e aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável, verificando-se claramente uma violação ou errada aplicação da lei do processo;
• Que o recurso de revista excepcional cumpre todos os requisitos previstos no artigo 672.º, n.º 1, do CPC;
O recurso suscita as seguintes questões:
• Saber se o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 1726.º, n.º 1 e n.º 2, e 1724.º, alíneas a) e b), ambos do Código Civil, e artigos 1104.º, 1105.º, n.º 1 e n.º 2, ambos Código de Processo Civil;
• Saber, em caso de resposta afirmativa à questão anterior, se o acórdão é de revogar e substituir por decisão que repristine a sentença proferida na 1.º instância.
Por sua vez, a resposta suscita a questão de saber se o recurso de revista é admissível.
Do ponto de vista lógico, a questão que importa conhecer, em primeiro lugar, é a de saber se o recurso é admissível, pois, em caso de resposta negativa, fica prejudicado o conhecimento do respectivo objecto.
Apreciação:
Pelas razões a seguir expostas, não procede a alegação de que o recurso foi interposto fora de prazo, nem a de que a decisão não admite recurso por o valor da causa ser inferior à alçada do tribunal recorrido.
Já procede a alegação, embora não pelas exactas razões invocadas pela recorrida, de que não cabe recurso de revista do acórdão, na parte em que declarou a nulidade dos despachos e que, em consequência dessa nulidade, excluiu dos bens a partilhar as verbas números verbas números 2 e 13 a 29.
Comecemos por expor as razões pelas quais não procede alegação de que o recurso foi interposto fora de prazo.
O prazo de interposição do recurso de revista era de 30 dias a contar da notificação do acórdão da Relação, por aplicação da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 638.º do CPC.
Considerando o disposto no artigo 248.º no CPC e o facto de o sistema informático ter certificado, como data da elaboração da notificação do acórdão ao recorrente, o dia 15 de Março de 2023, a notificação presume-se feita no dia 20 de Março de 2023. Na verdade, o 3.º dia posterior ao da elaboração da notificação (18 de Março de 2023) correspondeu a um sábado e de acordo com a parte final do artigo 248.º do CPC quando o 3.º dia posterior ao da elaboração da notificação não for dia útil, a notificação presume-se feita no primeiro dia útil seguinte, que, no caso, foi o de 20 de Março de 2023.
O prazo de 30 dias, contado a partir de 20 de Março de 2023, atingiu o seu termo precisamente na data em que o recurso foi interposto (28 de Abril de 2023), tendo em conta que tal prazo suspendeu-se durante as férias da Páscoa entre 2 e 10 de Abril de 2023 (Domingo de Ramos à Segunda Feira da Páscoa - artigo 28.º da Lei Orgânica do Sistema Judiciário) por força do n.º 1 do artigo 138.º do CPC.
Pelo exposto, é de concluir que o recurso foi interposto dentro do prazo legal.
No que diz respeito à alegação de que o recurso não era de admitir por o valor da causa ser inferior à alçada do tribunal recorrido, ela não procede porque parte de um pressuposto errado. Com efeito, ela labora no pressuposto de que o valor do incidente onde foi proferido o acórdão era de 7 500 euros, quando a 1.ª instância fixou em € 59 850,01 o valor de tal incidente.
Considerando este valor e a alçada do tribunal recorrido (30 000 euros – artigo 44.º, n.º 1, da Lei Orgânica do Sistema Judiciário), é de concluir que estão reunidas as condições gerais de recorribilidade previstas no n.º 1 do artigo 629.º do CPC.
Vejamos, agora, as razões pelas quais não cabe recurso de revista do acórdão, na parte em que declarou a nulidade dos despachos datados de 17-02-2022, 25-02-2022, 8-03-2022, 10- 03-2022, 15-03-2022 e 3-04-2022, e na parte em que, por força da declaração de tal nulidade, excluiu, dos bens a partilhar, as verbas números 2 e 13 a 29.
A recorrida alegou, para sustentar que o recurso não era admissível, que o acórdão da Relação, na parte acima identificada, versava matéria de carácter adjectivo e que o recurso não era admissível por não preencher os requisitos do disposto no artigo 673.º do CPC.
A alegação da recorrida de que o acórdão da Relação, na parte acima identificada, apreciou despachos que trataram de matéria de carácter adjectivo, no sentido de matéria respeitante à relação processual, deve ter-se por exacta. Com efeito:
• O despacho proferido em 17 de Fevereiro de 2022 indeferiu o requerimento da cabeça-de-casal no sentido de não ser admitida a reclamação contra a relação de bens apresentada pelo requerente em 28 de Janeiro de 2022, consistente no aditamento a tal relação de bens de um Plano Poupança Reforma;
• O despacho proferido em 25 de Fevereiro de 2022 deferiu o requerimento do ora recorrente no sentido de lhe ser concedido prazo para juntar aos autos o arrolamento dos bens efectuado no processo de inventário que correu termos em França entre ele e a cabeça-de-casal;
• O despacho proferido em 8 de Março de 2022 deferiu o requerimento do ora recorrente no sentido de ser admitida a junção aos autos do documento comprovativo do arrolamento dos bens móveis do casal efectuado no processo de inventário que correu termos em França e a inquirição de uma testemunha sobre a relação de bens constante do arrolamento;
• O despacho proferido em 10 de Março de 2022, motivado pela oposição da cabeça-de-casal à junção do arrolamento e à inquirição da testemunha, manteve a decisão proferida em 8 de Março de 2022;
• O despacho proferido em 15 de Março de 2022 deferiu, com oposição da cabeça-de-casal, um requerimento do ora recorrente no sentido de serem juntas aos autos fotografias por ele apresentadas e de lhe ser concedido prazo para aditar à relação de bens os bens que se encontravam no imóvel;
• O despacho proferido em 3 de Abril de 2022 indeferiu a arguição de nulidade dos despachos proferidos em 15-03-2022.
Como se vê pela indicação acabada de efectuar, os despachos que o acórdão recorrido declarou nulos traduziram-se ou na admissão de reclamações contra a relação de bens, no sentido de nela serem incluídos bens que não haviam sido relacionados pela cabeça-de-casal, ou na admissão da junção aos autos de documentos e na inquirição de testemunhas para prova dos factos alegados em tais reclamações.
Despachos com este conteúdo são de qualificar como despachos interlocutórios que versaram unicamente sobre a relação processual. São de considerar interlocutórios porque não puseram termo ao incidente no âmbito do qual foram proferidos (incidente da reclamação de bens). Versaram sobre a relação processual porque o que neles se apreciou foi uma questão de natureza processual, concretamente, a de saber se, depois de decorrido o prazo para o requerente, ora recorrente, reclamar contra a relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, as disposições reguladoras do processo de inventário lhe conferiam a faculdade de apresentar novas reclamações contra a relação de bens.
O regime dos recursos aplicável aos acórdãos da Relação que apreciem os mencionados despachos é o previsto no n.º 2 do artigo 671.º do CPC.
Resulta dele que os acórdãos podem ser objecto de revista nos casos em que o recurso é sempre admissível [alínea a), do n.º 2 do artigo 671.º do CPC], ou quando estejam em contradição com outro acórdão, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme (alínea b) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC).
Sucede que o recorrente não invocou, em relação à admissão do recurso contra a parte do acórdão que declarou a nulidade dos despachos acima identificados, nenhum dos mencionados fundamentos específicos de recorribilidade.
Invocou a contradição de julgados, mas como fundameno específico de recorribilidade de outro segmento do acórdão, o que revogou a decisão da 1.ª instância de incluir na relação dos bens a partilhar a verba n.º 30 (prédio urbano) e a relacionar a verba do passivo designada por letra A.
Pelo exposto conclui-se que não é admissível recurso de revista, ao abrigo do n.º 2 do artigo 671.º do CPC, do acórdão da Relação, na parte em que declarou nulos os despachos proferidos em 17-02-2022, 25-02-2022, 8-03-2022, 10-03-2022, 15-03-2022 e 3-04-2022 e na parte em que, em consequência dessa declaração de nulidade, revogou a decisão de incluir na relação dos bens a partilhar as verbas números 2 e 13 a 29.
Como não é admissível recurso de revista excepcional ao abrigo do artigo 672.º do CPC. Vejamos.
Segundo o n.º 1 deste preceito, excepcionalmente cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando se verifique algum dos pressupostos referidos nas alíneas a), b) e c).
O acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo 671.º é o que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância.
Bastaria tomar em consideração esta circunstância para afastar a admissibilidade da revista excepcional, visto que o acórdão recorrido revogou a decisão proferida na 1.ª instância.
Mas há ainda outra circunstância que o exclui do alcance da revista excepcional, concretamente, trata-se de acórdão que apreciou decisões interlocutórias que recaíram unicamente sobre a relação processual. Na verdade, os acórdãos da Relação tidos em vista pelo n.º 1 do artigo 672.º do CPC são os indicados no n.º 1 do artigo 671.º do CPC - acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto ao pedido ou reconvenção - em que o único obstáculo à admissão do recurso de revista é constituído pelo facto de terem confirmado sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente a sentença proferida na 1.ª instância.
Fora do alcance do n.º 1 do artigo 672.º do CPC estão, além de outros, os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual (n.º 2 do artigo 672.º do CPC).
Segue-se do exposto que o único segmento do acórdão recorrido que é passível de revista ao abrigo do n.º 1 do artigo 671.º do CPC é o constituído pela decisão de excluir dos bens a partilhar a verba n.º 30 (imóvel).
Na verdade, a decisão sobre a determinação dos bens a partilhar no processo de inventário é de considerar, para efeitos do n.º 1 do artigo 671.º, do CPC, como decisão que conhece do mérito da causa. Segue-se nesta matéria o entendimento afirmado no Acórdão do STJ proferido em 11-05-2023, no processo n.º 656/20.8T8VCDA.P1.S1., publicado em www.dgsi.pt, segundo o qual o recurso da decisão do incidente de reclamação de bens é uma decisão subsumível ao regime do n.º 1 do art.º 671.º do CPC.
A favor deste entendimento citam-se ainda os seguintes acórdãos do STJ que, embora não tenham suscitado expressamente a questão de saber se o acórdão da Relação que se pronuncia sobre a determinação dos bens a partilhar é uma decisão sobre o mérito da causa, admitiram recursos de revista interpostos contra acórdãos da Relação que decidiram sobre os bens a partilhar em processo de inventário: acórdão proferido em 22-02-2022, no processo n.º 359/16.8T8PTG-B.E1.S1, acórdão proferido em 13-10-2022, no processo n.º 32/22.8T8BRG-A.G1.S1 e acórdão proferido em 29-11-2022, no processo n.º 1530/20.3T8VNF.G1.S1, todos publicados em www.dgsi.pt.
A favor deste entendimento citam-se ainda Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, que escrevem a propósito: “Cumpre notar que a restrição à admissibilidade da revista que decorre do artigo 671.º, n.º 2, se reporta unicamente ao acórdão da Relação que incindam sobre decisões interlocutórias da 1.ª instância que recaiam sobre a relação processual. Ficam arredados deste regime outros acórdãos em que a Relação tenha reapreciado decisões da 1.ª instância sobre questões ligadas ao mérito, como é o caso, por exemplo, de decisões de dívidas da herança (arts. 1106.º e 1107.º) ou de decisões que tenham incidido sobre a definição dos direitos dos interessados directos na partilha (art.º 1110.º, n.º 2, al. a)). Afinal, nestas hipóteses, trata-se de decisões que, embora de natureza interlocutória, incidem sobre o mérito do inventário, ficando englobadas, por isso, na regra geral do art.º 671.º, n.º 1» [O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, página 140].
Diga-se, por fim, que fora do objecto do recurso está o segmento do acórdão que excluiu da relação de bens a verba A do passivo – crédito de compensação do requerente em relação à cabeça-de-casal, no montante de € 986,24, consistente no valor do quinhão hereditário que coube a esta última no âmbito do inventário n.º 39/05.0TBCNT, do Tribunal Judicial de .... Com efeito, a alegação do recorrente versa exclusivamente sobre a decisão de excluir dos bens comuns a partilhar a verba n.º 30 correspondente ao prédio urbano inscrito na matriz urbana sob o artigo 631 da União de Freguesias de ... (correspondente ao anterior artigo 509 da freguesia de ...) com o valor patrimonial de 40 594,03 euros.
Provados:
1. Requerente e requerida foram casados entre si, desde 30.06.2001, segundo o regime de comunhão de adquiridos.
2. O divórcio entre o requerente e a cabeça-de-casal correu os seus trâmites no Tribunal de Grande Instância de Pontoise, em França, tendo a ação respetiva sido instaurada a 24.05.2017, o despacho de não conciliação sido proferido a 14.12.2017 e a decisão de divórcio tomada a 19.12.2019.
3. Na referida decisão de divórcio foi consignado, além do mais, que a requerente, contrariamente ao cabeça de casal, esteve sem trabalhar durante três anos e que a situação financeira deste último era claramente mais favorável que a da requerente.
4. Nos termos do processo de inventário nº 39/05.0TBCNT, do Tribunal Judicial de ..., instaurado a 4.01.2005, por óbito de DD, foi arrolado, como verba única, o prédio urbano inscrito na matriz predial urbana n.º 509 da freguesia de ..., consistente em casa de habitação de rés-do-chão, com a área coberta de 115,60m2, sita na freguesia de ..., a confrontar de norte com rua, sul com EE, norte com caminho e poente com FF.
5. No âmbito do referido processo de inventário nº 39/05.0TBCNT, a aludida verba única foi adjudicada à aqui cabeça-de-casal, pelo valor de € 6 896,73, datando a sentença homologatória da partilha de 21.03.2007.
6. No âmbito do referido processo de inventário n.º 39/05.0TBCNT, à interessada BB, aqui cabeça de casal, na qualidade de herdeira, cabia-lhe um quinhão de € 986,24 Euros, correspondente ao seu quinhão hereditário, pagando tornas aos restantes herdeiros no montante de € 5 911,48.
7. O referido artigo 509 deu origem ao atual artigo 631 urbano da União de Freguesias de ....
8. O requerente veio de França à casa de habitação, sita na Rua 2 ...,..., e levou consigo: uma televisão, correspondente à verba 5 da relação de bens de 27.10.2021; uma máquina de lavar a roupa, correspondente à verba 8 da relação de bens de 27.10.2021; um móvel aparador de entrada com espelho, correspondente à verba 16 da relação de bens de 27.10.2021; cama de casal com colchão, correspondente à verba 14 da relação de bens de 27.10.2021.
9. O imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 509 da freguesia de ..., sito no Localização 3, em ..., foi sujeito a obras de reconstrução, nos termos do alvará de obras de construção n.º 047/2008, processo ..87/2007, da Câmara Municipal de ....
10. Nos termos do referido alvará, a área de construção ascendeu a 153 m2, em 2 pisos, com uma área de implantação de 116m2 e área bruta de construção de 231, 18m2, com início a 20.02.2008 e fim a 18.02.2009.
11. O referido prédio urbano era composto por prédio de rés-do-chão com a superfície de 115,60m2, e com o valor patrimonial de apenas € 6896,73 Euros, por ser um prédio já antigo, cujas paredes eram em tijolo sem reboco.
12. Após a adjudicação em sede de inventário n.º 39/05.0TBCNT, o ex-casal constituído pelos aqui interessados pagou a demolição do referido imóvel inscrito na matriz sob o art.º 509, a sua reconstrução e ampliação, demolindo todo o seu interior, só ficando no ar as paredes exteriores.
13. O imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 631 da União de Freguesias de ..., é composto por rés-do-chão e 1º andar, com a superfície coberta de 115,60m2, com a área bruta privativa de € 231,20m2, e com o valor patrimonial de € 41203,85 Euros.
14. À data de 24.05.2007, os aqui interessados eram titulares da quantia global de € 1137,58 depositada na conta com o IBAN PT .... ... ... ... ..... ...57, da Caixa Geral de Depósitos, S.A.
15. Os aqui interessados são titulares de um Plano de Poupança Reforma (PPR) constituído pela cabeça de casal na vigência do casamento, denominado “LEVE PPR” em nome da cabeça de casal, Apólice n. º 76/......12, junto do Grupo Caixa Geral de Depósitos, no valor de € 7 346,58 Euros, à data de 31.12.2012.
16. Estão na posse da cabeça de casal os seguintes bens móveis adquiridos pelo casal antes de 24.05.2017: Máquina de lavar louça, no valor de € 580,00; Máquina de secar roupa no valor de € 400,00; Ferro de engomar com central a vapor no valor de € 250,00; Aspirador Dyson no valor de € 550,00; Tábua de passar roupa no valor de € 60,00; Radiador de aquecimento a gás no valor de € 200,00.
17. Foram também adquiridos pelo ex-casal, constituído pelo requerente e cabeça-de-casal, antes de 24 de Maio de 2017, os seguintes bens: a) um tapete existente no hall de entrada, na posse da cabeça de casal, no valor de € 10, 00; b) um armário em madeira, um conjunto de 3 sofás, uma mesa pequena de centro, um móvel com uma televisão, uma carpete, um varão e dois cortinados, existentes na sala de estar, na posse da cabeça de casal, no valor de € 240,00; c) um micro-ondas, uma placa de indução, um forno do fogão, uma mesa e quatro bancos, existentes na cozinha, na posse da cabeça de casal, no valor de € 800,00; d) um balde do lixo e um tapete de casa de banho, existentes na casa de banho do rés do chão, na posse da cabeça de casal, no valor de € 1,00; e) um tapete, uma toalha, um cesto da roupa e um espelho existentes na outra casa de banho do rés do chão, na posse da cabeça de casal, no valor de € 1,00; f) uma cama de casal com colchão e roupa de cama e duas mesas de cabeceira, tudo com mais de 15 anos, com candeeiros, uma cómoda com espelho, uma cadeira, uma secretária, varão e cortinados, e três tapetes existentes na suite do rés do chão, na posse da cabeça de casal, no valor de € 330,00; g) três tapetes e uma toalha existentes na casa de banho com jacúzi que faz parte da suite do rés do chão, na posse da cabeça de casal, no valor de € 1,00; h) um espelho e um tapete comprido e um vaso em ferro com flores, e um porta fotografias, existentes no corredor do rés do chão, na posse da cabeça de casal, no valor de €1,00; i) um espelho afixado na parede do corredor das escadas e um candeeiro, na posse da cabeça de casal, no valor de € 30,00; j) uma cama de casal com colchão e roupa de cama, uma mesa de cabeceira com candeeiro, dois tapetes, um candeeiro de teto, e um varão existentes no quarto do 1.º andar, na posse da cabeça de casal, no valor de € 300,00; k) uma cama de casal com colchão e roupa de cama, duas mesas de cabeceira com candeeiros, um candeeiro de teto, um divã, dois tapetes redondos, um varão, uma mesa pequena, existentes na suite do 1.º andar, na posse da cabeça de casal, no valor de € 300,00; l) um cesto em verga de cor bordeaux, um conjunto de três prateleiras e uma toalha, existentes na casa de banho da suite do 1.º andar, na posse da cabeça de casal, no valor de € 1,00; m) dois tapetes de casa de banho, um cesto da roupa, uma prateleira, e dois candeeiros, existentes na casa de banho do 1.º andar, na posse da cabeça de casal, no valor de €1, 00; n) uma cama de casal com colchão e roupa de cama, duas mesas de cabeceira com candeeiros, um candeeiro de teto, dois tapetes, varão e cortinado, existentes no quarto do 1.º andar, na posse da cabeça de casal, no valor de € 200,00; o) uma cama de casal com colchão e roupa de cama, uma ventoinha, uma cómoda, uma mesa com televisão, varão e cortinado, existentes no quarto do 1º andar, na posse da cabeça de casal, no valor de. € 200,00; p) um cilindro, um esquentador, uma prateleira, um aspirador, e oito cadeiras e diversos vasos em plástico existentes na garagem, na posse da cabeça de casal, no valor de €132,00.
Não provados:
a. Que, por acordo, foram partilhados todos os bens móveis do casal existentes na casa de habitação de ambos, sita na Rua 2, ..., ...;
b. Que o requerente veio a Portugal com um camião e levou os seguintes bens para França, sem conhecimento ou consentimento da cabeça-de-casal, tendo-os retirado da casa sita na Rua 2, lugar e freguesia de ...: 1) Máquina de lavar louça, no valor de € 580,00; 2) Forno, no valor de € 400,00; 3) Placa de cozinha de indução, no valor de € 350,00; 4) Micro ondas, no valor de € 100,00; 5) Televisão no valor de € 1100,00; 6) Televisão no valor de € 900,00; 7) Televisão no valor de € 1000,00; 8) Máquina de lavar roupa no valor de € 400,00; 9) Máquina de secar roupa no valor de € 400,00; 10) Ferro de engomar com central a vapor no valor de € 250,00; 11) Aspirador Dyson no valor de € 550,0; 12) Tábua de passar roupa no valor de € 60,00; 13) Prateleira de secagem de roupa no valor de € 60,00; 14) Cama de casal com colchão no valor de € 600,00; 15) Radiador de aquecimento a gás no valor de € 200,00; 16) Móvel aparador de entrada com espelho no valor de € 500,00;
c. Que o requerente teve um acidente de viação e os bens móveis referidos em 8) dos factos assentes ficaram destruídos e foram para o lixo.
d. Que os bens móveis referidos em 8) dos factos assentes foram adquiridos há, pelo menos, 13 anos.
e. Que o requerente levou consigo um micro-ondas, uma placa de indução e um forno do fogão, tudo do referido imóvel inscrito na matriz sob o artigo 631.
f. Que foram os interessados quem comprou o móvel e o espelho com candeeiro existentes no corredor do 1.º andar, na posse da cabeça de casal, no valor de € 400,00.
g. Que foram os interessados quem comprou duas camas de bebé desmontáveis, duas cadeiras, 1 varão e cortinado e um candeeiro de parede, e um tapete, existentes no corredor do 1º andar, na posse da cabeça de casal, no valor de € 300,00, correspondentes à verba 17 do aditamento à reclamação contra a relação de bens de 24.03.2022.
h. Que a placa de indução e o forno de fogão foram levados pelo requerente.
i. Que a placa de indução, o forno de fogão, e a máquina de lavar roupa existentes no imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 631º da União de Freguesias de ... foram comprados pela cabeça-de-casal;
j. Que, ao nível da verba 6 do aditamento à reclamação de 24.03.2022, a televisão foi comprada pela cabeça-de-casal após Junho de 2017;
k. Que ao nível da verba 3 do aditamento à reclamação de 24.03.2022, o micro-ondas foi dado à cabeça-de-casal pela filha após o pai ter levado o existente inicialmente, após Junho de 2017; a placa de indução, o forno de fogão, e a máquina de lavar roupa, foram comprados pela cabeça-de-casal após o reclamante ter levado os aparelhos inicialmente existentes na casa.
O recurso de revista tem como fundamento a violação, pelo acórdão recorrido, do disposto nos artigos 1726.º, n.º 1 e n.º 2, e 1724.º, alíneas a) e b), ambos do Código Civil, e nos artigos 1104.º e 1105.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil.
A violação dos artigos do Código Civil foi imputada ao segmento do acórdão que excluiu dos bens a partilhar a verba n.º 30, por a ter considerado como bem próprio da cabeça-de-casal, ora recorrida. Por sua vez, a violação dos artigos do CPC foi assacada à parte do acórdão que declarou a nulidade dos despachos e que, em consequência, excluiu dos bens a partilhar as verbas números 2, 13 a 29 do activo.
Visto que não cabe recurso de revista deste último segmento do acórdão, a questão a que cumpre dar resposta é a de saber se, ao decidir que a verba n.º 30 era um bem próprio da cabeça-de-casal, o acórdão recorrido violou os artigos 1726.º, n.º 1 e n.º 2, e 1724.º, alíneas a) e b), ambos do Código Civil.
O acórdão sob recurso julgou que o prédio urbano era um bem próprio da cabeça-de-casal, afirmando, no essencial, o seguinte:
• Que a verba em questão foi adquirida por sucessão por morte do pai da cabeça-de-casal;
• Que, apesar de a cabeça-de-casal ter pagado tornas aos restantes interessados, não foi provada a proveniência do dinheiro utilizado em tal pagamento, sendo que era sobre o ora recorrente que recaía o ónus de provar que os valores utilizados provinham do património comum.
O recorrente impugnou a decisão com uma dupla linha argumentativa.
A primeira é constituída pela seguinte alegação:
• O prédio urbano em causa foi adquirido pela cabeça-de-casal em processo de inventário;
• À cabeça-de-casal cabia apenas o quinhão de 986,63 euros, correspondente a 1/7 da herança; os restantes 6/7 foram pagos em tornas aos demais herdeiros, no montante de € 5911,48 euros;
• A aquisição correu na constância do casamento, sem que se tenha feito menção da origem exclusiva do dinheiro que constitui o pagamento das tornas;
• Nos termos do artigo 1723.º, alínea c), conservam a qualidade de bens próprios os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou os valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição ou em documento equivalente, com intervenção de ambos;
• Havendo dúvidas sobre a comunicabilidade dos bens móveis, presumem-se comuns – artigo 1725.º do Código Civil - e mesmo relativamente a outro tipo de bens por força do artigo 1726.º do CC;
• A aquisição do prédio foi feita com a contribuição do cabeça-de-casal, no valor de e 986,63 euros, e com a contribuição do casal no valor de € 5911,48 euros.
A segunda linha é constituída pela seguinte alegação:
• O prédio urbano adquirido no processo de inventário foi demolido, reconstruído e ampliado, mediante recurso a meios financeiros e conjugação de esforços de ambos os cônjuges, na constância do matrimónio, sendo que quando foi adjudicado à cabeça-de-casal;
• O prédio actualmente existente em pouco ou nada se identifica com o que foi adquirido no inventário;
• O prédio tinha à data da aquisição o valor de € 6896,73 e actualmente tem o valor patrimonial de € 41 203,85 euros;
• A prestação dos bens comuns é significativamente superior à prestação dos bens próprios na contribuição para a aquisição/construção da casa;
• No regime da comunhão de adquiridos, os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e na outra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das prestações (artigo 1726.º, n.º 1), ficando, porém, sempre salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão (n.º 2 do artigo 1726.º).
A primeira linha argumentativa do recorrente remete-nos para a questão de saber se a adjudicação de bens a um dos cônjuges, na partilha de herança, mediante o pagamento de tornas, com dinheiro que fazia parte da comunhão conjugal, configura, para efeitos do n.º 1 do artigo 1726.º do Código Civil, uma situação de bens adquiridos em parte com dinheiro comum.
A resposta é negativa.
O preceito acima indicado tem em vista os casos em que o facto aquisitivo dos bens implicou o pagamento de dinheiro (como sucede no contrato de compra e venda) ou a entrega de bens (como acontece com a permuta) e tal foi feito em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns. É nestas hipóteses que os bens adquiridos revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações.
Nos casos em que, na partilha, são atribuídos bens ao herdeiro, que excedem a quota dele (herdeiro) na herança e em que, por virtude desse excesso, há lugar ao pagamento de tornas aos restantes herdeiros, a atribuição de tais bens não tem duas causas, concretamente, a sucessão por morte, quanto à quota no valor dos bens da herança, e a aquisição a título oneroso, quanto à parte que a excede.
A atribuição dos bens tem uma única causa e essa é a sucessão por morte, como decorre do artigo 2119.º do Código Civil, ao dispor que, “feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, sem prejuízo do disposto quanto a frutos”.
Como escreve Capelo de Sousa “… a nossa partilha hereditária tem um carácter marcadamente declarativo, limitando-se a determinar ou a materializar os bens que compõem o quinhão hereditário de cada herdeiro na herança até então indivisa, quinhão esse adquirido com a aceitação da herança, a qual… é retroagida ao momento da abertura da sucessão. Cada um dos herdeiros receberá directamente os seus direitos do defunto e não dos restantes co-herdeiros..." [Lições de Direito das Sucessões, Coimbra Editora, Limitada, 1980/1982, página 358].
É, assim, de afirmar que a adjudicação de bens aos herdeiros, na partilha da herança, tem sempre como causa a sucessão por morte, quer tais bens tenham valor igual à quota que lhe cabe no valor da herança quer tenham valor superior e implique, por tal razão, o pagamento de tornas aos restantes herdeiros. O mesmo se diga em relação às tornas. A causa delas também é a sucessão por morte e não a alienação onerosa da quota parte nos bens da herança.
Deste modo, tais bens, sendo atribuídos a herdeiro casado sob o regime da comunhão de adquiridos, são de considerar próprios dele por aplicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 1722.º ou da alínea c) do mesmo preceito, combinado com a alínea a) do n.º 2. Aplica-se a alínea a), na parte em que dispõe que são considerados próprios dos cônjuges os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão, no caso de a herança ter sido aberta depois do casamento. Vale a alínea c), combinada com a alínea a) do n.º 2, no caso de herança ter sido aberta antes da celebração do casamento.
No caso, o prédio adjudicado à cabeça-de-casal, ora recorrida, no inventário é de considerar bem próprio dela por aplicação da alínea c), combinada com a alínea a) do n.º 2 do artigo 1722.º do Código Civil, visto que, quando casou com o ora recorrente já era titular do direito à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu pai. Com efeito, este faleceu em 1 de Fevereiro de 2000 e a cabeça de casal casou-se com o ora recorrente em 30-06-2001.
Assim, embora o prédio urbano tenha sido adquirido na constância do casamento, há uma disposição própria (alínea c) do n.º 1 do artigo 1722.º do Código Civil) que o exclui da comunhão conjugal.
Pelo exposto, o acórdão recorrido não é de censurar quando decidiu que o prédio urbano adjudicado à cabeça-de-casal no inventário era de considerar bem próprio dela, podendo assinalar-se que está em conformidade com o que foi decidido por outros acórdãos do Tribunal da Relação, designadamente pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 9-01-2017, no processo n.º 2698/14.3TBVNG, pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido em 12-11-2020, no processo n.º 4660/19.0T8GMR.G1 [citado na decisão recorrida] e pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8-06-2022, no processo n.º 9306/19.4T8PRT.P2, todos publicados em www.dgsi.pt, nos quais se decidiu que o bem atribuído, em partilha ocorrida após o casamento, mas por virtude de direito próprio anterior, era de considerar bem próprio do cônjuge a quem o bem foi adjudicado ainda que: 1) tenha havido lugar ao pagamento de tornas aos restantes herdeiros; 2) o valor das tornas fosse superior ao quinhão hereditário; 3) o pagamento tenha sido feita à custa de bens comuns do casal.
Diga-se, por fim, que a circunstância de as tornas serem pagas com dinheiro da comunhão conjugal não é indiferente para a partilha dos bens do casal. Em tal hipótese, verifica-se o pagamento de uma dívida própria do cônjuge herdeiro com bens comuns do casal. E o pagamento de uma dívida própria de um dos cônjuges com bens comuns do casal determina, por aplicação do n.º 2 do artigo 1697.º do Código Civil, que a importância da dívida seja levada a crédito do património comum no momento da partilha.
Apreciemos, de seguida, a segunda linha argumentativa do recorrente.
Nesta, continuando a radicar a natureza comum do prédio no n.º 1 do artigo 1726.º do Código Civil, o recorrente invoca em abono da sua pretensão o facto de tal prédio, depois da adjudicação à cabeça-de-casal, ora recorrida, ter sido demolido, reconstruído e ampliado, em conjugação de esforços por ambos os cônjuges e de, em consequência dessa remodelação e ampliação, passar a ter um valor muito superior ao que tinha quando foi herdado.
Esta alegação remete-nos para uma questão controvertida na doutrina e na jurisprudência que é a de saber se um prédio urbano resultante da construção de um edifício num terreno de um dos cônjuges, com dinheiro e bens comuns do casal, é de qualificar como bem comum ou como bem próprio do cônjuge dono do terreno.
Segundo um entendimento, o prédio urbano é considerar bem comum do casal por aplicação do n.º 1 do artigo 1726.º do Código Civil.
Cita-se, na doutrina, como exemplo deste entendimento, Rita Lobo Xavier, que escreve a este propósito: “É possível encarar a casa construída como um bem adquirido na constância do casamento. O espírito do sistema da comunhão de adquiridos é o de que ingressem no património comum todos os ganhos alcançados pelos cônjuges, todos os seus bens que advierem aos cônjuges durante o casamento que não sejam exceptuados pela lei. Ou, nas palavras de Antunes varela, fazem parte da comunhão os bens que os cônjuges fizeram seus na constância do casamento a título oneroso”. Parece-me que a construção de uma casa estará abrangida por este conceito amplo de adquirido que prescinde de uma distinção baseada no fundamento jurídico da aquisição (Das Relações entre o Direito Comum e o Direito Matrimonial – A propósito das atribuições patrimoniais entre cônjuges”, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, vol. I, páginas 492 e 493).
Na jurisprudência do STJ cita-se, como exemplo do entendimento acima exposto, o acórdão proferido em 13-10-2022, no processo n.º 32/22.8T8BRG-A.G1.S1, publicado em www.dgsi.pt. Nele se decidiu que, no caso de os cônjuges, na constância do matrimónio, contraído no regime da comunhão de adquiridos, construírem uma casa sobre um terreno que apenas é propriedade de um deles, momento em que o terreno deixou de ter individualidade própria, passando a ser um prédio urbano, impunha-se reconhecer que, se a moradia mandada edificar pelos cônjuges fosse a parte mais valiosa comparativamente com o valor do terreno, esse prédio era bem comum de ambos os cônjuges, ficando sempre salvaguarda a compensação devida pelo património comum ao cônjuge proprietário do terreno, no momento da dissolução e partilha da comunhão.
Na Jurisprudência das Relações citam-se, a título exemplificativo do mesmo entendimento, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 12-10-2020, no processo n.º 2124/15.0T8LRA.C1 e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido em 30-06-2022, no processo n.º 32722.8T8BRG-A.G1, ambos publicados em www.dgspt.
Segundo outro entendimento, a edificação de obra (casa) por dois cônjuges, casados no regime de comunhão de bens adquiridos, em terreno próprio de um deles, constitui benfeitoria e dá lugar a um crédito de compensação (um crédito do património comum sobre o património próprio) com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, pois de outra forma haveria um injustificado enriquecimento sem causa.
Na jurisprudência do STJ, cita-se a título de exemplo, deste último entendimento, o acórdão proferido em 30-04-2019, no processo n.º 5967/17.T8CBR.S1 e o acórdão proferido em 29-11-2022, no processo n.º 1530/20.3T8VNF.G1.S1., publicado em www.dgsi.pt.
Na jurisprudência das Relações citam-se a título de exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 13-05-2014, no processo n.º 1068/08.7TBTMR-B.C1, e o acórdão da Relação de Coimbra, proferido em 12-07-2023, no processo n.º 155/236.6T8CBR.C1, ambos publicados em www.dgsi.pt.
A contradição jurisprudencial sobre a questão de saber se um uma obra edificada por dois cônjuges, casados no regime da comunhão de bens adquiridos, com dinheiro ou bens comuns, em terreno próprio de um deles é de qualificar como bem comum ou como bem próprio do cônjuge, dono do terreno, foi resolvida pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão n.º 9/2025, proferido em 25-06-2025, publicado no Diário da República n.º 174/2025, Série I, de 10-09-2025, no sentido de que “A obra edificada (casa de morada de família) por dois cônjuges, casados no regime da comunhão de bens adquiridos, com dinheiro ou bens comuns, em terreno próprio de um deles, constitui coisa nova que é bem próprio do cônjuge titular do terreno e dá lugar a um crédito de compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial”.
Seguindo esta jurisprudência, é de afirmar que a verba n.º 30, correspondente a um prédio urbano, composto por rés-do-chão e 1º andar, com a superfície coberta de 115,60m2, com a área bruta privativa de € 231,20m2, inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias de ... sob o art.º 631 é de considerar bem próprio da requerida, ora recorrida.
Na verdade, este prédio é o resultado da demolição de uma edificação existente, que constituía bem próprio da requerida, e da reconstrução dessa edificação e da sua ampliação no terreno que era bem próprio da requerida. Estamos, pois, perante a situação de facto tida em vista pelo acórdão uniformizador acima indicado: obra edificada por dois cônjuges, casados no regime da comunhão de bens adquiridos, com dinheiro ou bens comuns, em terreno próprio de um deles
Como decidiu, no entanto, o acórdão uniformizador, a atribuição ao cônjuge proprietário do terreno do direito exclusivo sobre a obra nele edificada com recurso a dinheiro ou bens comuns, constitui-o na obrigação de compensar o património comum com vista à reposição do equilíbrio contratual.
Por todo o exposto é a de manter o acórdão na parte em que excluiu dos bens a partilhar a verba n.º 30, sem prejuízo da compensação que é devida pela requerida ao património comum.
Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão de excluir dos bens a partilhar a verba n.º 30, sem prejuízo da compensação que é devida pela requerida ao património comum.
Responsabilidade quanto a custas:
Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de o recorrente ter ficado vencido, condena-se o mesmo nas custas do recurso.
Lisboa, 2 de Outubro de 2025
Relator: Emídio Santos
1.ª Adjunta: Ana Paula Lobo
2.ª Adjunta: Isabel Salgado