RECURSO DE REVISTA
PROVA DOCUMENTAL
ESCRITURA PÚBLICA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
COMPRA E VENDA
IMOVEL
FORMA DO CONTRATO
ERRO DE DIREITO
Sumário


Em obediência ao disposto no art.º 364.º do Código Civil a venda de um imóvel apenas pode provar-se por documento autêntico ou documento autenticado.

Texto Integral

Recorrente: Cláusula Ilustre, L.dª, ré

Recorridos: AA

BB, autores


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I – Relatório

I.1 –

Cláusula Ilustre, L.dª, ré, apresentou recurso de revista do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 11 de Março de 2025, que julgou parcialmente procedente a apelação, revogou a decisão recorrida na parte que condenou os AA. “d) a pagar à Ré, a título de prejuízo sofrido pela desvalorização do imóvel, em quantia a liquidar posteriormente, correspondente à diferença entre o preço prometido comprar (190.000,00€) e o valor pelo qual foi adquirido por terceiros, nunca podendo exceder a quantia peticionada a esse título pela Ré (40.000,00€).”, mantendo-a no mais.

A recorrente apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

1. O TR fez uma errada aplicação da lei aos factos.

2. O facto dado como provado no ponto 35 da douta sentença não tinha que se provado documentalmente até porque não o podia ser.

3. São realidades distintas dizer-se que o melhor preço que se conseguiu foi de “X” de dizer que a promessa de venda ou venda foi de “X”, sendo que numa não tem nem pode provar por documento, na outra apenas pode ser provado por documento.

4. Não pode ser provado por documento o que ainda não tem suporte documental.

5. O ponto 35 dos factos dados como provados tinha que ser mantido porquanto o tribunal de primeira instância não errou ao dar tal facto como assente.

6. Errou o TR ao entender que a mera afirmação de que o melhor preço obtido foi o de “X” tinha que ser provado documentalmente.

7. Ao ter relegado para liquidação em execução de sentença a determinação do prejuízo que a recorrente tenha efectivamente sofrido forçou a que seja dado cumprimento à exigência de demonstração documental de um facto que apenas pode ser provado por documento.

8. Deve assim o douto acórdão do TR ser revogado na parte em que manda retirar o ponto 35 dos factos dados como provados e revoga parte da sentença.

9. O douto acórdão do TR violou o disposto no art.º 364 do Código Civil

10. Só revogando o douto acórdão na parte em que altera a sentença proferida em primeira instância poderá ser feita JUSTIÇA!

Não foram apresentadas contra-alegações.


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

O recurso é admissível nos termos do disposto no art.º 671, n.º 1 do Código de Processo Civil.

I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:

1. Prova documental.

I.4 - Os factos

O tribunal de 1.ª instância considerou provados e relevantes para a decisão da causa os seguintes factos:

1. Os AA. vivem como marido e mulher, e antes de 28 Junho 2021 acordaram comprar um imóvel para habitar, tendo-se deslocado, para o efeito, à Imobiliária “A..., Lda”;

2. Em 28 de Junho de 2021, os AA. celebraram com a Ré um contrato promessa de compra e venda mediante o qual a Ré prometeu vender e os AA. prometeram comprar, com destino à sua habitação própria e permanente, o prédio urbano correspondente a casa de habitação composta de rés do chão, dependências e logradouro, sito na Rua 1, freguesia de ..., concelho de Leiria, descrita na 2º CRP de Leiria sob o nº ..72, e inscrita na matriz predial urbana da dita freguesia sob o artigo nº P-..35, com origem no urbano nº .32 da mesma freguesia de ... (Cláusulas 1ª e 2ª do contrato);

3. Na data da celebração do contrato, o prédio ainda estava em construção, e não tinha Licença de Habitação nem Certificado energético (Cláusula 1ª do contrato);

4. O preço estipulado era de 190.000,00€, que seria pago da seguinte forma:

- 2.0000,00€, a título de sinal e princípio de pagamento, na data da celebração do contrato promessa;

- 15.000,00€, a título de reforço de sinal, no prazo de 60 dias após a celebração do contrato promessa;

- 173.000,00€, no acto de celebração da escritura pública ou documento particular autenticado (Cláusula 2ª do contrato);

5. Nos termos do contrato promessa outorgado, o título de compra e venda seria celebrado no prazo máximo de 120 dias, ou de 60 dias após a emissão da Licença de Utilização, podendo tal prazo ser prorrogado, por acordo das partes e mediante realização de adenda ao referido contrato (Cláusula 3ª, nºs 1 e 5 do contrato);

6. Os promitentes compradores (AA.) vincularam-se a marcar a escritura e a avisar a promitente vendedora por carta registada com aviso de recepção, enviada para a morada constante do contrato, com a antecedência mínima de 15 dias em relação à data da sua realização, devendo a Ré, atempadamente, enviar-lhes toda a documentação necessária para a referida escritura (Cláusula 3ª, nºs 2 e 4 do contrato);

7. Nos termos estipulados, caso os AA. não cumprissem com o referido em 5, a Ré poderia marcar a referida escritura, devendo avisar os promitentes compradores, através de carta registada com aviso de recepção enviada para a morada constante do contrato, com uma antecedência mínima de 8 dias em relação à respectiva data (Cláusula 3ª, nº 3 do contrato);

8. Ajustaram as partes, no referido contrato, que todas as notificações que venham a ser necessárias fazer na sua vigência, deveriam ser feitas para as moradas neles indicadas, devendo a comunicação de novas moradas de qualquer uma delas ser sempre efectuada por carta registada com aviso de recepção, bastando este envio para demonstrar tal notificação, “ou seja, se realizou a interpelação daqueles para a realização da escritura, sendo este o caso” (Cláusula 8ª do contrato);

9. O contrato promessa foi celebrado com a intervenção da mediadora imobiliária "A..., Lda.”;

10. A 18 de Agosto de 2021, AA. e Ré, em (1ª) adenda ao referido contrato, ajustaram que os primeiros entregariam à segunda o montante de 1.500,00€ até ao dia 28/08/2021, e o montante de 13.500,00€ até ao dia 28/09/2021 a título de reforço de sinal;

11. Em 14 de Janeiro de 2022, AA. e Ré, em (2ª) adenda ao referido contrato, ajustaram que naquela data os primeiros entregavam à segunda o valor de 12.000,00€, sendo 2.000,00€ a título de reforço de sinal e 10.000,00€ a título de caução, sendo este último valor devolvido pela Ré aos AA. no dia da outorga da escritura pública ou documento particular autenticado;

12. Ajustaram ainda, em tal (2ª) adenda, que apesar de ainda não ter ocorrido a transmissão do imóvel objecto do contrato, a Ré autorizava os AA. a poder “utilizar o prédio objecto do presente negócio jurídico”;

13. Os AA., nos termos estipulados, transferiram para a conta da Ré as quantias de 2.000,00€ (em 28/06/2021), de 1500,00€ (em 20/08/2021), de 13.500,00€ (em 26/09/2021), de 2.000,00€ (em 19/01/2022) a título de sinal – e de 10.000,00€ (em (18/01/2022) a título de caução;

14. Em 29 de Dezembro de 2021, o Autor BB vendeu o imóvel de que era proprietário (sito ..., Leiria) e onde vivia com a Autora AA na data da celebração do contrato promessa;

15. E pelo menos desde 30 de Dezembro de 2021, os AA. passaram a utilizar o imóvel prometido comprar como sua habitação, o que solicitaram à Ré, ao que esta acedeu, entregando-lhes as respectivas chaves;

16. Os AA., para adquirir o imóvel objecto do contrato promessa, pretenderam obter financiamento junto da Caixa de Crédito Agrícola e do Banco Santander;

17. A Caixa de Crédito Agrícola, em “Relatório de Avaliação” datada de 13/05/2022, prestou a seguinte informação:

«(…) - Pressupostos especiais: A documentação e o projecto apresentados e o alvará de licença de obras de alteração apresentam incoerências que necessitarão de ser clarificadas, tendo por objectivo a sua harmonização e compatibilização, designadamente descrições, áreas por tipo de uso e actualização da própria documentação.

- Reservas de análise: Encontrando-se o limite da construção no limite do lote, existindo três aberturas de vãos de janelas no sue limite poente e não se encontrando registado a favor do prédio nenhum direito de servidão de vistas, condiciona-se o presente relatório de avaliação e o valor proposto para a propriedade à apresentação de documento que comprove que a referida parcela de terreno existente a poente do prédio é pública ou de apresentação de averbamento a favor do prédio do direito de abertura dos respectivos vãos. Pretende-se salvaguardar a eventual redução do valor da garantia na possibilidade de oposição do prédio confinante à abertura dos referidos vãos (…)”;

18. A Caixa de Crédito Agrícola aprovou o financiamento dos AA., ficando a aguardar os documentos referentes às reservas emitidas;

19. Em data não apurada os AA. tentaram obter financiamento junto do Banco Santander, que também os alertou que havia um erro na descrição das áreas do imóvel prometido vender;

20. Após a celebração do contrato promessa a Ré diligenciou junto da Câmara Municipal de Leiria pela obtenção da Licença de Utilização do imóvel;

21. A Licença de Utilização foi aprovada em 05/09/2022 e emitida em 30/09/2022;

22. A Ré, após a obtenção da Licença de Utilização, informou os AA. da sua emissão;

23. Já na posse da Licença de Utilização, os AA. informaram a Ré que o Banco onde estariam a pedir financiamento exigia que a licença fosse rectificada para que nela constasse a área de 120 m2 e não de 154 m2;

24. A Ré acedeu ao pedido dos AA. e diligenciou junto da Câmara Municipal pedindo o averbamento da correcção da área, o que veio a acontecer em 09/12/2022;

25. Os AA. foram informados dessa rectificação e não procederam à marcação da escritura;

26. A Ré, perante o referido em 25, e face ao silêncio dos AA., como tinha interesse em realizar a venda, diligenciou pela marcação da escritura para o dia 30/01/2023, enviando aos AA. carta registada com A/R datada de 12/01/2023, enviada no dia seguinte para a morada dos AA. que constava no contrato promessa e respectivos aditamentos;

27. A carta foi devolvida ao remetente da Ré;

28. No dia 06 de Fevereiro de 2023, os AA. entregaram ao mandatário da Ré, no escritório deste, as chaves do imóvel prometido vender, tendo, pelo menos nessa data, retirado os seus pertences e nela deixado de habitar (doc. fls. 79);

29. Em 23/02/2023, a Ré remeteu nova carta aos AA., para outra morada, que aí foi recebida em 28/02/2023;

30. No dia 22/02/2023 os AA enviaram à Ré a carta constante de fls. 58, informando a Ré que a escritura não tinha sido realizada por falta de entrega de documentação da Ré e que tinham procedido à entrega das chaves no escritório do respectivo mandatário, solicitando a devolução do sinal em dobro até ao dia 01 de Março 2023;

31. Em 24/02/2023, a Ré respondeu aos AA. nos termos da carta constante a fls. 59, informando que não havia qualquer incumprimento da sua parte, dado terem sido disponibilizados todos os documentos que lhes haviam sido solicitados, que foram os AA. que não procederam à marcação da escritura no prazo definido nem compareceram à que foi marcada pela Ré, pelo que não havia fundamento para a devolução do sinal, considerando o contrato resolvido por incumprimento imputável aos AA;

32. A Ré, na sequência da utilização da casa pelos AA., teve de proceder à sua pintura, no que despendeu 3.044,25€;

33. A renda mensal de uma casa idêntica à do contrato promessa nunca seria inferior a 500,00€/mês;

34. A casa objecto do contrato promessa foi entregue aos AA. em Dezembro 2021 como nova, por força das obras nela realizadas;

35. Depois de ter resolvido o contrato promessa com os AA. a Ré procurou vender a casa a outrem, o que conseguiu, mas por força dos sinais de uso da mesma, em virtude da utilização deles feita pelos AA., fê-lo por um preço inferior ao do contrato promessa celebrado com os AA., não concretamente apurado. (eliminado).


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Factos considerados não provados:

i. que o contrato foi assinado sem reconhecimento das assinaturas das partes, por a Ré ter indicado não ser necessário tal reconhecimento;

ii. que os AA. passaram a habitar o imóvel logo após a celebração do contrato promessa, em Junho 2021;

iii. que dele saíram exactamente no dia 03/12/2022, retirando todos os pertences nessa data e comunicando à Ré;

iv. que durante o ano de 2022, antes da emissão da licença de utilização (em 30/09/2022) pediram diversa documentação à Ré, que lhes estava a ser solicitada pelo Banco para avançar com o crédito à habitação, por terem sido alertados para o erro na área do imóvel;

v. que a Ré nunca diligenciou pela rectificação da área do imóvel no serviço de Finanças e no registo predial para que a escritura de compra e venda fosse realizada;

vi. que deixaram a casa nas devidas condições, como nova.

vii. que aquando da celebração do contrato promessa, os AA. ressalvaram a obtenção de financiamento bancário para a conclusão do negócio;

viii. que a Ré tivesse conhecimento que os AA. iriam recorrer a financiamento para a respectiva aquisição;

ix. que apesar de não terem recebido a carta de 12/01/2023 enviada pela da Ré, os AA. não tivessem conhecimento da marcação da escritura para o dia 30/01/2023;

x. que para a marcação da escritura fosse necessária a licença de utilização rectificada;

xi. que a escritura não pôde ser realizada pelo facto a Ré não ter diligenciado pela rectificação da área no Serviço de Finanças;

xii. que foi falta de correcção da área do imóvel junto das entidades competentes pela Ré que impediu a concessão do financiamento aos Autores pela Caixa de Crédito Agrícola;

xiii. que os AA. ficaram sem ter casa para viver, tendo sido obrigados a residir durante algum tempo em casa dos seus pais, por virtude do incumprimento da Ré;

xiv. que os AA., vendo que a Ré não lhes iria vender o imóvel, passaram a viver em estado de ansiedade, entraram em pânico, passando várias noites sem dormir, tendo sido obrigados a recorrer a apoio dos familiares e de psicóloga;

xv. que o preço obtido pela Ré com a venda da casa foi de 150.000,00€;

xvi. que o teor da carta referida em 29 fosse idêntico ao teor da carta referida em 26.


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II – Fundamentação

1. Prova documental

O Tribunal recorrido considerou que o facto do n.º 35 deveria ser eliminado do elenco dos factos provados dado reportar-se à venda de um imóvel sem que existisse nos autos prova documental de ter sido aquela realizada.

Contrariamente ao que pretende a recorrente, naquele ponto da matéria de facto não se considera provado que a ré só conseguiu obter uma oferta de compra do imóvel por certo valor, mas refere-se que vendeu o imóvel por esse valor.

O contrato de compra e venda de imóveis é um contrato formal para cuja validade se exige a realização de escritura pública ou documento particular autenticado - art.º 875.º do Código Civil – sendo aquela um documento autêntico – art.º 363.º, n.º 2 do Código Civil -. Estando em causa um contrato formal - contrato de compra e venda de imóvel - em que a lei exige, como forma da declaração, um documento autêntico – escritura pública de compra e venda – ou um documento autenticado, este contrato só pela exibição de um desses documentos pode ter-se por provado – art.º 364.º, n.º 1 do Código Civil -.

Não enferma, pois, o acórdão recorrido de qualquer erro de direito, tendo procedido a correcta aplicação do disposto no art.º 364.º do Código Civil o que determina a sua confirmação, na parte objecto de recurso.

Improcede, pois, a revista.


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III – Deliberação

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista .

Custas pela recorrente.


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Lisboa, 2 de Outubro de 2025

Ana Paula Lobo (relatora)

Emídio Francisco Santos

Fernando Baptista de Oliveira