DANO BIOLÓGICO
DÉFICE FUNCIONAL
DANO PATRIMONIAL
DANO NÃO PATRIMONIAL
DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Sumário


SUMÁRIO (elaborado nos termos do art. 663 nº 7 do CPC):

I. O défice funcional permanente - vulgo dano biológico – vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais; é um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, susceptível de afectar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas, determinando perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro, perda essa eventualmente agravável em função da idade do lesado.
II. Tal dano tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral. Depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade.
III. Não sendo possível determinar o valor exacto deste dano, tal avaliação terá de ser efectuada recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566 º n.º 3 do CC. Isto é, a equidade terá de ser sempre um elemento essencial no cálculo deste dano, independentemente de se considerar o dano biológico numa vertente meramente patrimonial, mais ou menos patrimonial ou até... como um tertium genus.
IV. Na determinação do seu quantum indemnizatório, deve ter-se em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, face ao que dispõe o art. 8°, n° 3, do CC, fazendo-se a comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, sem se perder de vista a sua evolução e adaptação às especificidades do caso concreto – não podendo, assim, o dano biológico ser indemnizado por obediência a tabelas rígidas, de forma que a uma mesma pontuação em pessoas de idade aproximada tenha de corresponder necessariamente a fixação do mesmo valor a ressarcir.
V. Tendo o autor, à data do acidente, 56 anos de idade, exercendo a profissão de cozinheiro e tendo ficado afectado por um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 17 pontos, compatível com a atividade profissional habitual, mas implicando esforços suplementares, atendendo aos valores que vêm sendo atribuídos pela jurisprudência para casos similares, entende-se justa e adequada a indemnização de €45.000,00 arbitrada pelo défice funcional permanente, na sua dimensão patrimonial.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível


I – RELATÓRIO

AA veio propor contra Generali, Companhia de Seguros, S.A, acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, peticionando a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 257.500,00, acrescida de juros de mora legais desde a citação e até integral pagamento.

Articula, em síntese, que foi vítima de acidente de viação, tendo sofrido danos de vária ordem.


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Devidamente citada, contestou a Ré alegando que a ação deveria ser julgada em função da prova a produzir em audiência de julgamento, com as necessárias consequências legais.

Mais requereu que, depois de ouvida a parte contrária, fosse admitido o chamamento, como interveniente principal, da Seguradora Fidelidade Companhia de Seguros, S.A..


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Admitido o incidente e citada a interveniente veio a mesma pedir a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 61.770,06 € e dos valores que, entretanto, venham a ser liquidados por conta da provisão matemática existente, e que venham a ser objecto de ampliação do pedido, acrescida dos respectivos juros de mora, contados desde a citação até total e efectivo pagamento.

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Em resposta, veio a Ré alegar que o pedido da interveniente fosse julgado em função da prova a produzir em audiência de julgamento, com as necessárias consequências legais.

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Por requerimentos, respectivamente, de 22/07/2024 e de 14/11/2024, veio a interveniente ampliar o pedido nos montantes de 10.483,55 € e de 1.383,90 €, a que deveriam acrescer os juros legais nos termos já peticionados.

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A final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Julga-se a ação parcialmente procedente e condena-se a ré FIDELIDADE-COMPANHIA DE SEGUROS S.A. a pagar:

- ao autor AA 103.998,35€ (cento e três mil novecentos e noventa e oito euros e trinta e cinco cêntimos) acrescidos de juros de mora, à taxa legal contados desde esta data sobre 100.000,00€ (cem mil euros) e desde a citação sobre o restante;

- à interveniente GENERALI, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A, 73.637,51€ (setenta e três mil seiscentos e trinta e sete euros e cinquenta e um cêntimos) acrescidos de juros de mora à taxa legal, contados desde a notificação de cada um dos pedidos parcelares sobre as respetivas quantias.

Do mais pedido pelo autor, absolve-se a ré.

Custas pelo autor e pela ré na proporção do decaimento.

Notifique”.


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Não se conformando com o assim decidido, Autor e Ré interpuseram recurso de apelação, vindo a Relação do Porto, em acórdão, a proferir a seguinte

“IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta parcialmente procedente por provada e, consequentemente, revogando a decisão recorrida condenar a Ré, GENERALI, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A a pagar ao Autor/apelante a quantia de € 154.285,07 (cento e cinquenta e quatro mil duzentos e oitenta e cinco euros e sete cêntimos) quinhentos euros) acrescida de juros moratórios legais civis, contados desde prolação do presente acórdão sobre o montante de € 145.000,00 (cento e quarenta e cinco mil euros) até efetivo e integral pagamento e desde a citação sobre a quantia de € 9.285,07 (nove mil duzentos e oitenta e cinco euros e sete cêntimos).

No mais mantém-se a decisão recorrida.”


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Inconformada com o assim decidido, vem a Ré GENERALI SEGUROS, S.A., interpor recurso de revista para o Supremo tribunal de Justiça, apresentando alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES

I. A R./recorrente discorda do douto ac. do TRP, desde logo no que se refere á alteração da matéria de facto provada dos pontos 25 e 32;

I. A R./recorrente discorda do douto ac. do TRP, desde logo no que se refere á alteração da matéria de facto provada dos pontos 25 e 32;

II. Não obstante se saiba que, por via de regra (artigo 674º, nº 3 do CPC), os poderes do STJ são reduzidos e excepcionais nessa parte, certo é que também entende a recorrente que haverá margem para voltar a «olhar» para o uso dos poderes concedidos à 2ª Instância em matéria de alteração da decisão de facto, bem como se esta violou ou não normas de direito processual (cfr. nomeadamente, o disposto no artigo 662º do CPC);

III. Ora, in casu, entende a recorrente que assim sucede, tanto quanto a um (ponto 25 dos factos provados), como em relação ao outro (ponto 32 dos factos provados);

IV. Com efeito, e em relação ao ponto 25, nada justificava aquele aumento de € 850,00 para € 1.200,00, mesmo que com a junção dos documentos a se alude no ac., uma vez que faltou explicar/provar pelo A. por que razão(ões) nos meses de Verão (julho a outubro de 2019) e previsivelmente de maior actividade para o ramo da restauração o salário (sempre ilíquido, é certo) baixou para os referidos € 850,00 e precisamente no mês do sinistro (novembro de 2019) voltou a subir para os € 1.200,00;

V. E faltou também explicar/provar (o A., é claro), como bem se nota na decisão de 1ª instância (estranhando, com propriedade, tais «movimentos» que não se afiguram coerentes/normais) a «relação»/compatibilização (pelo menos aparentemente inexistente) com as informações que se colhem dos documentos respeitantes ao IRS do A. e às suas contribuições para a Segurança Social;

VI. Pelo que, nesse aspecto, e atendendo à falta manifesta de prova coerente e credível (uma inequívoca e muito mal explicada espécie de interrupção da «fita do tempo», com retoma mais adiante, exactamente por altura do sinistro) por parte de quem a ela estava obrigado, bem como á inexistência designadamente de um documento superveniente que mostrasse que as «coisas» afinal aconteceram assim, conclui-se que andou mal o douto ac. do TRP, que não tinha motivo válido para «mexer» naquela matéria de facto, assim violando o já mencionado artigo 662º, nº 1 do CPC;

VII. Pelo que defende a R./recorrente a reposição da resposta da 1ª Instância nesta parte, embora, como se percebe dos documentos, devendo constar dessa resposta que aquela quantia de € 850,00 de rendimento mensal do A. era ilíquida;

VIII. Do mesmo modo, e pela mesma razão «legal», também se conclui que é injustificada (o TRP não devia intervir nessa parte, não se impunha de maneira alguma que o fizesse) quanto ao DFPIF-P que decidiu aumentar de 16 para 17 pontos;

IX. Com efeito, o raciocínio da 1ª Instãncia não é bizarro, muito menos «aberrante», particularmente no que tange a valorar o primeiro relatório quanto à possibilidade, com esforços acrescidos – é certo – de o A. poder continuar a desempenhar a sua profissão, a que acresce que é de afastar (e nisso coincidem as Instâncias) o depoimento da esposa do A., que se trata esta de prova «técnica», mais ainda numa área tão sensível e seguramente subjectiva (porventura bem mais que muitas outras) da psiquiatria forense, seja do ponto de vista de quem avalia, seja do ponto de vista de quem é avaliado, e nada nos diz que aquela diferença de 1 ponto e todos os itens que o ac. do TRP enumera não tivessem sido devidamente analisados (pelo contrário, dir-se-ia mesmo) pelo primeiro relatório (é curioso, aliás, que se extraia do douto ac. do TRP que “(…) da leitura atenta de ambos os referidos relatórios não se retiram elementos objetivantes que justifiquem essa diferença pontual na valorização do apontado défice funcional permanente da integridade físico psíquica.”) (sublinhado nosso; carregado no original);

X. Defende, por isso, a recorrente que seja repristinada a resposta da sentença da 1ª Instância a este ponto 32 da matéria de facto provada, dado que, uma vez mais, o douto ac. do TRP não devia (não havia motivo para tal) ter intervindo também nesta parte.

Segue-se que

XI. Discorda também a R./recorrente da circunstância de o ac. do TRP ter decidido subir de € 20.000,00 para € 70.000,00 a indemnização ao A. pelo chamado dano biológico, para tal tendo incorrido em dois lapsos de raciocínio/cálculo, i. e., que o ordenado médio mensal seria em 2021 de € 1.294,10 (superior ainda, e muito curiosamente, ao montante de € 1.200,00 aludido que entendeu dar como provado) e que a esperança média de vida a considerar para o A. seria de 81 anos;

XII. Pois bem, confundiu-se, por um lado, ganho médio mensal (o tal valor de € 1.294,10) com remuneração média mensal (e esta era, em 2021, de € 1.082,80, como a referida – no ac. – Pordata no-lo mostra) – o que não é uma e a mesma «coisa» - e, por outro, com perdão da expressão, «levou-se tudo a eito», considerando como esperança média de vida aquela que é aplicável ao conjunto da população, homens e mulheres (mais uma vez, a mesma Pordata, como decorre mais detalhadamente do corpo destas alegações, esclarece que a esperança média de vida para os homens – e é esta que pode ser considerada – é afinal de 78,1 anos);

XIII. Ora, ainda que a título de mero exemplo, percebe-se que se utilizar os dados correctos (ainda que se entenda – porque não é líquido, como se vê dos recibos – que o montante a considerar de rendimento mensal nem sequer será aquele de € 895,00, mas antes o líquido de € 691,50), mesmo considerando aquele montante de € 1.082,40 x 14 meses x 16% x 22 anos (até aos 78 anos), chega-se a um valor bem inferior (€ 53.360,34) àquele a que chegou o ac. do TRP (e, naturalmente, se a este se aplicar o «desconto» de antecipação que se impõe e que a recorrente entende que não dever ser menos de ¼ ou 25%, então o montante a considerar – e a temperar com a equidade – será de € 40.020,25);

XIV. Contudo, como referido, feitas as mesmas contas (x 14 meses x 16% x 22 anos) com o valor líquido mencionado de € 691,50 que se entende ser o correcto, então o montante apurado «em cru» será de € 34.077,12 (e isto sem o «desconto», pois assim sendo, seguindo a mesma lógica, já estamos a falar de € 25.557,84, no fim de contas, curiosamente, bem perto do valor fixado pela 1ª Instância);

XV. Por isso, lançando mão do «tempero» da equidade, entende a R. que o montante a considerar não deverá superior a € 30.000,00 a este título de dano biológico (cfr. acs. do TRL de 11.11.2014 e do STJ de 21.01.2016 e de 29.10.2019).

Dito isto,

XVI. Discorda ainda a R./recorrente da quantia fixada ao A. a título de danos não patrimoniais (€ 75.000,00), certo que inferior em € 5.000,00 àquela fixada pela 1ª Instãncia (€ 80.000,00), mas, na sua opinião, muito além do ponto até onde deveria ter ido e revelando, ademais, sempre com o devido respeito, que a equidade não foi a «melhor»;

XVII. Na verdade, e como dito na apelação, vistos os factos relevantes a ter em conta como indeclinável «auxiliar» dessa decisão (factos provados nºs. 5 a 22 e 26 a 37, com as alterações que agora e pelas razões avançadas se justificam), constata-se que o montante arbitrado, e salvo sempre o respeito devido, peca por nitidamente excessivo e desajustado, atendendo não apenas à aludida factualidade que vem dada como provada, mas também aos parâmetros que vêm sendo seguidos pela nossa mais recente jurisprudência em situações análogas;

XVIII. Além disso, e juntando às decisões mencionadas naquele recurso de apelação (que mantêm, por assim dizer, a sua «actualidade») ainda os doutos acs., ambos deste STJ,de 30.01.2025 (António Barareiro Martins; proc. nº 3343/21.6T8PRT.P1.S1) e de 17.09.2024 (António Magalhães; proc. nº 2481/20.7T8BRG.G1.S1), a R./recorrente continua a entender, por comparação com essas decisões, que o montante arbitrado (agora e antes an 1ª Instância), e salvo sempre o respeito devido, peca por nitidamente excessivo;

XIX. É que em todos esses apontados exemplos jurisprudenciais, seja em termos «absolutos», seja em termos proporcionais, «lida-se» com situações bem mais gravosas que aquela do A. e vistas, aliás, por diversos prismas (alguns cumulativos até);

XX. E mesmo quando p. ex. um dos dados a reter (o DFPIF-P) é inferior àquele do A. destes autos, como sucede nas situações analisadas pelos acs. do STJ de 16.01.2024 e o ainda mais recente de 30.01.2025 (e esta de forma muito marginal, diga-se), é possível, feita a necessária comparação e «proporção», chegar exactamente a idêntica conclusão, qual seja a de que a decisão da 1ª Instância é, a esse nível, desajustada, porque excessiva, da factualidade dada como provada e, obviamente, violadora da equidade;

XXI. Porque, pelo menos de algum modo, elucidativo e bem assim porque se entende ser um indicador válido, acresce que se reitera que tal montante fixado pelo douto ac. do TRP é ainda bem superior àquele que o legislador entendeu que seria ajustado nomeadamente para efeitos de apresentação de proposta razoável e que se encontra com o auxílio da portaria n. 377/2008, de 26.05, entretanto alterada pela portaria 679/2009, de 25.06;

XXII. Assim, tendo mais uma vez em consideração todos esses relevantes dados/factos, mantém a R. a opinião que os danos não patrimoniais do A. devem ser compensados com não mais de € 45.000,00, assim se configurando uma decisão mais justa e mais equitativa, porque mais consentânea com a prova que os autos consentem;

XXIII. O douto acórdão recorrido violou, salvo o devido respeito, o disposto nos artigos 496.º, 562.º, 564.º e 566.º do Código Civil, bem como o previsto no artigo 662º do CPC, devendo ser revogado e alterado nos moldes defendidos nestas linhas.

Por último, sem prescindir, e por mera cautela de patrocínio,

XXIV. Na hipótese de se entender (o que se admite tão-só para efeitos deste raciocínio) que deverá ocorrer uma redução dos montantes respeitantes tanto ao dano biológico, como ao dano não patrimonial fixados pelo douto ac. do TRP, mas para valores superiores aos aqui avançados pela R./recorrente, pede-se, por mera cautela, que este Tribunal ad quem fixe, dentro desses acima mencionados parâmetros, os montante sque entenda que mais se justificam no caso concreto.

Contra-alegou o Autor Recorrido, pugnando pela manutenção do decidido na Relação.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes as questões a decidir:

Alteração da matéria de facto quanto aos pontos 17 (défice funcional permanente da integridade físico-psíquica: entendendo a Recorrente que deve manter-se nos 16 pontos por que optou a sentença e não nos 17 fixados pela Relação) e 25 (salário mensal do Autor: entende a Recorrente que deve manter-se o decidido na sentença – que o A. auferia o salário mensal de €850,00 – , “mas com a precisão de que aquela quantia de € 850,00 se trata de salário ilíquido”, e não o decidido na Relação de que “À data do acidente o Autor auferia o vencimento mensal base ilíquido de € 1.2000”);

Indemnização pelo défice funcional permanente - vulgo dano biológico.

Indemnização pelos danos não patrimoniais.


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III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. FACTOS PROVADOS

É a seguinte a matéria de facto provada (fixada na Relação após impugnação em recurso):

1 - No dia 08/11/2019, cerca das 22 horas, na A4, concelho de Matosinhos, ocorreu um acidente de viação.

2 - Em tal acidente foram intervenientes o veículo de matrícula V1 e o veículo de matrícula V2.

3 - O Autor conduzia o veículo de matrícula JH, pela A4, no sentido Matosinhos/ Águas Santas.

4 - E ao aproximar-se do Km 2, em Matosinhos, foi embatido pelo veículo V2, que circulava naquela autoestrada em contramão.

5 - Em consequência do acidente o Autor sofreu diversas lesões, entre elas, fratura da 9.ª à 11.ª costelas esquerdas tratadas conservadoramente; fratura cominutiva subtrocantérica esquerda com extensão diafisária tratada cirurgicamente; fratura marginal do rebordo do acetábulo esquerdo tratada conservadoramente; lesão meniscal no joelho esquerdo tratada cirurgicamente; traumatismo dentário, nomeadamente lesão das peças 15, 14, 13, 12, 11, 21, 22, 23, 24, 25 e 36, substituídos por implantes e coroas implanto-suportadas.

6 - Do local do acidente foi transportado pelo INEM para o Hospital de S. João no Porto, onde foi admitido no serviço de urgência como doente politraumatizado.

7 - E nesta unidade hospital ficou internado, desde 09/11/2019 a 28/11/2019, na unidade de medicina intensiva.

8 - Tendo posteriormente sido encaminhado para o serviço de ortopedia, onde ficou internado até 03/12/2019.

9 - Após a alta hospitalar passou a ser seguido na Fidelidade, Companhia de Seguros S.A., por acidentes de trabalho.

10 - Teve alta dos serviços clínicos dessa seguradora em 03/03/2021.

11 - O Autor deambula com claudicação à esquerda.

12 – Tem edema na perna esquerda.

13 - Cicatrizes cirúrgicas na face externa da anca e coxa esquerda.

14 - E desconforto quando está de pé, sentado ou de cócoras.

15 - Tem alterações de humor.

16 - E crises de ansiedade.

17 - Mantém acompanhamento psicológico,

18 - Desconforto nas relações sexuais.

19 - Ficou encarcerado no veículo 3 horas.

20 - Esteve mais de 4 meses dependente de terceira pessoa.

21 - Passou por momentos de angústia e sofrimento durante o período de internamento e tratamentos.

22 - O Autor nasceu em D/M/1963.

23 - Trabalhava como cozinheiro num restaurante de uma sociedade de que era sócio-gerente.

24 – Mas desempenhava, quando necessário, todas as tarefas inerentes ao funcionamento de um restaurante.

25 - À data do acidente o Autor auferia o vencimento mensal base ilíquido de € 1.2000 (alteração da Relação)

26 - A data da consolidação médico-legal das lesões é 02/03/2021.

27 - O período de Défice Funcional Temporário Total foi de 27 dias.

28 - Período de Défice Funcional Temporário Parcial de 454 dias.

29 - Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total de 456 dias.

30- Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial de 25 dias.

31 - Quantum Doloris grau 3/7.

32 - Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 17 pontos, com provável existência de Dano Futuro (alteração da Relação).

33 - Dano Estético Permanente no grau 3 /7.

35 - Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer grau 3/7

36 – O Autor apresenta repercussão permanente na atividade sexual fixada em 1/7 (alteração da Relação).

37 - As sequelas, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

38 - À data dos factos estava transferida para a ré a responsabilidade civil emergente do risco de circulação do veículo com a matrícula V2, por via do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ........46.

39 - A FIDELIDADE-COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. celebrou um contrato de seguro de acidentes de trabalho com J..., Lda titulado pela Apólice nº AT......24

40 - Tal contrato de seguro encontrava-se em vigor à data do sinistro, ou seja, em 08.11.2019.

41 - Contrato de seguro celebrado na modalidade de prémio fixo e donde constava como trabalhador o A. AA, nas funções de Gerente Comercial.

42 - Por força da participação de sinistro, a Interveniente procedeu, no âmbito da apólice de seguro de Acidentes de Trabalho, a diversos pagamentos ao A., sob o ponto de vista laboral e a entidades que prestaram serviços médicos, medicamentosos, hospitalares e de diagnóstico ao sinistrado, a saber:

- I.T.A. com internamento de 09.11.2019 a 03.12.2019 liquidados diretamente ao sinistrado 542,57 €;

- I.T.A. de 04.12.2019 a 02.03.2021 liquidados diretamente ao sinistrado. 9.332,36 €;

- Despesas médicas, consultas médicas do sinistrado 45.551,42 €;

- Despesas com elementos auxiliares de diagnóstico realizados ao sinistrado para tratamento 279,96 €;

- Despesas com honorários médicos e cirurgias realizadas pelo sinistrado 2.633,65 €-Despesas com transportes para tratamento realizados pelo sinistrado 565,05€;

- Despesas com aparelhos e próteses necessárias ao tratamento do sinistrado € 50,00;

- Despesas com auxílio de 3ª pessoa 1.815,05 €.

43 – Na ação especial emergente de acidente de trabalho foi atribuída ao autor uma incapacidade parcial permanente de 31,043%.

44 - Desde janeiro de 2022 até julho de 2024, a Interveniente, procedeu ao pagamento ao sinistrado de pensões no montante global de 9.246,64 €.

45 - De despesas médicas, hospitalares, de tratamento e farmacêuticas, a Interveniente liquidou às entidades que prestaram tais cuidados, a quantia de 1.236,90 €.

46 - E em função das lesões sofridas pelo sinistrado/A. tem uma previsão de assistência vitalícia do montante de 101.908,60 €.

47 - Desde julho de 2024 até novembro de 2024, a Interveniente, procedeu ao pagamento ao sinistrado de pensões no montante global de 1.053,90€.

48 - De despesas médicas, hospitalares, de tratamento e farmacêuticas, a Interveniente liquidou às entidades que prestaram tais cuidados, a quantia de 330,00 €.

49 - A Interveniente detém ainda uma provisão matemática para o presente sinistro de 35.673,59 €.


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Factos não provados

Não se provou que:

A – O autor apresenta dismetria ou desvio axial dos membros inferiores.

B - Mantém acompanhamento psiquiátrico

C - Esteve com um colete cervical durante mais de 4 meses.

D – As sequelas são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual.

E – (eliminada pela Relação).

F - O autor tem uma incapacidade para o exercício da profissão habitual (IPATH).


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

Analisemos as questões suscitadas na revista.

Da alteração da matéria de facto quanto aos pontos 17 (défice funcional permanente da integridade físico-psíquica: entendendo a Recorrente que deve manter-se nos 16 pontos por que optou a sentença e não nos 17 fixados pela Relação) e 25 (salário mensal do Autor: entende a Recorrente que deve manter-se o decidido na sentença – que o A. auferia o salário mensal de €850,00 – , “mas com a precisão de que aquela quantia de € 850,00 se trata de salário ilíquido”, e não o decidido na Relação, de que “À data do acidente o Autor auferia o vencimento mensal base ilíquido de € 1.2000”).

Sustenta, em suma, a Recorrente que a Relação, ao alterar a decisão da matéria de facto, nos sobreditos termos, fez mau uso do disposto no nº1 do artº 662º do CPC.

Sem razão, porém, salvo o devido respeito.

Dispõe aquele nº 1 que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”.

Como é consabido, a intervenção do STJ no âmbito da matéria de facto visa garantir, essencialmente, o cumprimento de normas de direito probatório material, sendo irrecorríveis as decisões da Relação tomadas a abrigo dos n.ºs 1 e 2, do art. 662.º do CPC (cfr. art. 662.º, n.º 4, do CPC).

Sem embargo, porém, como refere ABRANTES GERALDES1, “esta delimitação não é totalmente rígida. Com efeito, é admissível recurso de revista quando sejam suscitadas questões relacionadas com o modo como a Relação aplicou as normas de direito adjectivo conexas com a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, maxime quando seja invocado pelo recorrente o incumprimento de deveres previstos no art. 662º” ou quando se trate de “sindicar a decisão da matéria de facto nas circunstâncias referidas no art. 674º, nº 3, e apreciar criticamente a suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada e não provada em conexão com a matéria de direito aplicável, nos termos do art. 682º, nº 3.

Assim, no domínio da matéria de facto, e para além da eventual violação de normas de direito probatório material, o STJ pode sindicar o mau uso que a Relação tenha feito dos poderes que lhe são conferidos nos termos do disposto no art. 662.º do CPC, enquanto norma de direito adjectivo.

Certo é, porém, que a este Supremo Tribunal está vedada a pronúncia quanto à valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador2.

A propósito dos poderes da Relação no domínio da matéria de facto, escreveu, com toda a pertinência, o STJ, em acórdão de 08-02-20223: “o art. 662.º do CPC, consagrando o duplo grau de jurisdição no âmbito da motivação e do julgamento da matéria de facto, estabiliza os poderes da Relação enquanto verdadeiro tribunal de instância, proporcionando ao interessado a reapreciação do juízo decisório da 1ª instância (nomeadamente com o apoio da gravação dos depoimentos prestados, juntamente com os demais elementos probatórios que fundaram a decisão em primeiro grau) para um efectivo e próprio apuramento da verdade material e subsequente decisão de mérito. Sempre com a mesma amplitude de poderes de julgamento que se atribui à 1ª instância (nos termos da remissão feita pelo art. 663º, n.º 2, para o art. 607.º, que abrange os seus nºs 4 e 5, do CPC) e sem qualquer subalternização - inerente a uma alegada relação hierárquica entre instâncias de supra e infra-ordenação no julgamento - da 2.ª instância ao decidido pela 1ª instância quanto ao controlo sobre uma decisão relativa ao julgamento de uma determinada matéria de facto, precipitado numa convicção verdadeira e justificada, dialecticamente construída e independente da convicção de 1ª instância.4.

No presente caso, o que se constata é que a Recorrente discorda da valoração das provas levadas a cabo pelo tribunal da Relação, por considerar que a prova produzida não justificava decisão diversa da tomada pelo tribunal da 1.ª instância (concretamente, no que respeita ao salário base do Autor).

Como ressalta do exposto supra, o tribunal da Relação pode e deve proceder à reavaliação da prova produzida, com a valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação, dispondo de inteira autonomia para firmar a sua própria convicção.

Porém, parece claro, face à leitura do acórdão recorrido, que a Relação, no uso dos seus poderes, reapreciou a prova produzida de forma cuidada, tendo por referência os elementos probatórios (maxime documentais) constantes nos autos, não se vislumbrando que o tenha feito em violação do disposto no n.º 1 do art. 662.º do CPC.

Efectivamente:

Quanto ao ponto 25 dos factos provados (salário base ilíquido do Autor), escreveu-se no acórdão recorrido:

“… respigando os recibos de vencimento que foram juntos aos autos quer com a petição inicial quer com o requerimento de 07/03/2022, o que se verifica é que, efetivamente, apenas nos meses de julho, agosto, setembro e outubro de 2019 é que o vencimento mensal base ilíquido do apelante foi de €850,00, tendo nos meses de fevereiro a junho e novembro de 2019 até 31/01/2022 sido de € 1.2000 sendo, pois, legítimo, face à evidência do valor probatório dos documentos em causa e que não foram objeto de impugnação, concluir que, à data do acidente (08/11/2019), o apelante auferia um vencimento mensal base ilíquido de € 1.200.”5.

Dessa forma, procedeu à alteração do ponto 25 dos factos provados, dando como provado que “À data do acidente o Autor auferia o vencimento mensal base ilíquido de € 1.2000”.

Nada a censurar, portanto. A Relação apreciou a documentação carreada aos autos, conjugada com a demais prova produzida, formando, em conformidade, a sua convicção, esta que o STJ, in casu, não pode questionar, não se almejando que os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impusessem decisão diversa (ut nº1 do cit artº 662º CPC).

Quanto ao ponto 17 dos factos provados (défice funcional permanente da integridade físico-psíquica):

Valem, mutatis mutandis, as considerações acabadas de tecer, não se vendo razão para não aceitar a decisão da Relação em alterar a pontuação do défice funcional permanente da integridade física do Autor de 16 para 17 pontos.

Justifica assim a Relação:

“Alega o apelante que a percentagem do referido défice funcional permanente da Integridade Físico-Psíquica deve ser fixada em 17 pontos.

Sustenta esta sua alteração no segundo relatório pericial do IML.

Como se evidencia dos autos no primeiro relatório pericial elaborado pelo IML em 14/12/2022 foi atribuído ao Autor Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica fixável em 16 pontos.

No segundo relatório pericial, elaborado pelo IML com data 26/04/2024, foi atribuído ao apelante, a esse nível, Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica fixável em 17 pontos.

Perscrutando ambos os relatórios verifica-se que a divergência percentual na atribuição do referido défice se situa na circunstância de, no primeiro dos relatórios de psiquiatria forense datado de 24/10/2022 elaborado pelo IML, ter sido valorizado o défice funcional permanente da integridade físico psíquica em 5 pontos, enquanto no segundo, datado de 30/10/2023 ter sido, tal défice, valorizado em 6 pontos.

Ora, da leitura atenta de ambos os referidos relatórios não se retiram elementos objetivantes que justifiquem essa diferença pontual na valorização do apontado défice funcional permanente da integridade físico psíquica.

Acontece que, a nosso ver, como se refere no segundo dos relatórios periciais:

- o apelante foi exposto a um acontecimento traumático que envolveu uma séria ameaça de morte e sentimento de medo intenso, angústia, desamparo e horror;

- o referido acontecimento traumático é re-experienciado de forma persistente;

- existe um comportamento de evitamento de estímulos associados com o trauma;

- o apelante apresenta hiperativação autonómica desencadeada pela descrição do evento;

- a perturbação causa-lhe mal-estar significativo no funcionamento social;

- a perturbação é de natureza crónica, atendendo ao tempo decorrido desde o acidente.

Como, assim, a nosso ver, afigura-se mais consentânea com esta realidade traumatizante de que sofre o apelante de forma crónica a valorização que nele foi feita deste défice funcional.”.

De novo, a Relação firmou – justificando devidamente – a sua própria convicção, com sustento nos elementos probatórios carreados aos autos, e que nos não merece qualquer censura.


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DA INDEMNIZAÇÃO PELO DÉFICE FUNCIONAL PERMANENTE – VULGO DANO BIOLÓGICO

O ac. do TRP subiu a indemnização fixada ao A., a título de dano biológico (melhor dito, do Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica), de € 20.000,00 pela 1ª Instância para € 70.000,00.

Discorda a Recorrente, pois considera, além do mais, que essa indemnização é muito superior àquelas que vêm sendo fixadas pela nossa jurisprudência “em casos em que os lesados padecem de sequelas idênticas e noutros de sequelas mais gravosas, sendo, no entanto, muitíssimo mais novos do que a recorrida.”.

É sabida a dificuldade que representa a tarefa de encontrar uma solução justa para cada caso, visto que cada questão tem a sua particularidade, o que vale por dizer que não há dois casos idênticos.

Porém, é claro que as indemnizações fixadas a este título devem aproximar-se em casos semelhantes, sob pena de não serem justas, por tratarem de maneira diferente situações idênticas. O que impõe atentar nas decisões jurisprudenciais proferidas em casos idênticos ou com alguns pontos de contacto.

Entende a Recorrente que a indemnização a fixar pelo Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de que o Autor ficou a padecer com o acidente dos autos se deve situar num valor máximo de 30.000,00, por “mais consentâneo com o dano biológico permanente de que o recorrido padece (16 pontos) e não esquecendo, ademais, a sua idade relevante (56 anos) e, obviamente, ainda o seu rendimento”.

Apreciando.

Em causa está, portanto, aferir da quantificação indemnizatória ao Autor pelo (comumente designado) Dano biológico (que foi fixado em 17 pontos) – cuja designação mais apropriada se nos afigura, como dito, ser a de défice funcional permanente (dano que não impede o Autor de exercer a sua actividade profissional habitual, é certo, mas que exige esforços suplementares – facto provado jjj)).


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Como é sabido, o controlo da fixação equitativa da indemnização é admitido, no recurso de revista, por este Supremo Tribunal de Justiça, cabendo-lhe averiguar “se estavam preenchidos os pressupostos normativos do recurso à equidade; se foram considerados as categorias ou os tipos de danos cuja relevância é admitida e reconhecida; se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram considerados os critérios que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, deveriam ser considerados; e se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram respeitados os limites que, de acordo com a legislação e com a jurisprudência, deveriam ser respeitados”6.

Sem prejuízo, “vem sendo reiteradamente sublinhado pelo STJ, o juízo de equidade de que se socorrem as instâncias na fixação de indemnização, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade (arts. 566.º, n.º 3, do CC, e 674.º, e 682.º, do CPC)”7.

Ou ainda, em suma:

“Quando o cálculo da indemnização haja assentado decisivamente em juízos de equidade, ao Supremo não compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, já que a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto sub juditio8.


*


Diverge a jurisprudência quanto à classificação, ou melhor, à natureza do vulgarmente chamado dano biológico (o decorrente da incapacidade permanente sem reflexo profissional): se um dano meramente patrimonial, se um dano moral, se um tertium genus. E procuram os vários arestos, cada um à sua maneira, justificar o quantum indemnizatório arbitrado para estes danos geradores de incapacidade permanente que se não repercutam directamente na capacidade de ganho do lesado (na medida em que não implicam uma diminuição da retribuição, embora implicando esforços acrescidos, ou, então, porque o lesado está fora do mercado de trabalho, como ocorre com desempregados, crianças, reformados).

O designado, dano biológico tem suscitado especiais perplexidades na relação com a dicotomia tradicional da avaliação de danos patrimoniais versus danos não patrimoniais, por poder incidir numa, noutra ou em ambas as vertentes.

Este dano vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais9. É um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, susceptível de afectar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas. Determina perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro, perda essa eventualmente agravável em função da idade do lesado. Poderá exigir do lesado esforços acrescidos, conduzindo-o a uma posição de inferioridade no mercado de trabalho10. Ou, por outras palavras, é um dano que se traduz na diminuição somático-psíquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre.

Ora, o dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral; tanto pode ter consequências patrimoniais como não patrimoniais. Ou seja, depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade. Tem a natureza de perda ‘in natura’ que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar11.

Como quer que seja visto ou classificado este dano, o certo é que o mesmo é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial. É indemnizável em si mesmo, independentemente de se verificarem consequências para o lesado em termos de diminuição de proventos.

Também ARMANDO BRAGA12 observa que “A jurisprudência (que cita em notas de rodapé e a págs. 133 e 134) tem considerado que a incapacidade permanente parcial para o trabalho constitui em si mesma um dano patrimonial, mesmo nos casos em que a vítima prossiga a sua actividade profissional habitual e sem que se verifique diminuição da retribuição.”.

Assim, é entendimento pacífico que mesmo as pequenas incapacidades ainda quando não impliquem directamente uma redução da capacidade de ganho, constituem sempre um dano patrimonial indemnizável (seja de natureza patrimonial, seja como dano não patrimonial – ou, se quisermos, classificado naquele tertium genus), dada a inferioridade em que o lesado se encontra na sua condição física, quanto à resistência e capacidade de esforço.

Com efeito, uma incapacidade permanente parcial não se esgota na incapacidade para o trabalho, constituindo em princípio um dano funcional, mas sempre, pelo menos, um dano em si mesmo que perturba a vida da relação e o bem-estar do lesado ao longo da vida. Pelo que é de considerar autonomamente esse dano, distinto do referido dano patrimonial, não se diluindo no dano não patrimonial, na vertente do tradicional pretium doloris ou do dano estético.

Por outro lado, convém ter presente que a determinação de indemnizações por dano biológico obedece a juízos de equidade assentes numa ponderação casuística, à luz das regras da experiência comum, que, já supra deixámos dito, não se reconduzem, rigorosamente, a questões de direito ou à aplicação de critérios normativos estritos para que está vocacionado o tribunal de revista13. Apesar disso e como bem se observa no Ac. deste Tribunal de 2/6/2016, na revista nº 3987/10.1TBVFR.P1.S1, relatado por Tomé Gomes, «caberá a este tribunal sindicar os limites de discricionariedade das instâncias, no recurso à equidade, mormente na busca de uniformização dos critérios jurisprudenciais, de modo a garantir o respeito pelo princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, nos termos proclamados no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição e conforme o disposto no n.º 3 do artigo 8.º do CC».

Esta a linha de orientação a seguir na presente decisão.

O Autor ficou com um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 17 pontos, com provável existência de Dano Futuro, sendo que, embora as sequelas, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, sejam compatíveis com o exercício da atividade habitual, implicam, porém, esforços suplementares.

É, obviamente, um dano merecedor de ser ressarcido.

Ora, como tem sido amplamente decidido, maxime por este mais alto Tribunal, o critério para a fixação do valor não deve estar limitado pelo uso de fórmulas matemáticas, antes terá de ser encontrado através da equidade.

A atribuição de indemnização por perda de capacidade de ganho (dano biológico patrimonial), segundo um juízo equitativo, tem-se baseado em função dos seguintes fatores principais: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, como em profissão ou atividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações; a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da atividade profissional habitual do lesado, assim como de atividades profissionais ou económicas alternativas, tendo em consideração as competências do lesado14.

Por outro lado, na determinação do quantum indemnizatório deve ter-se em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, face ao que dispõe o art. 8°, n° 3, do CC, fazendo-se a comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, não se perdendo de vista a sua evolução e adaptação às especificidades do caso concreto.

Ainda por outro lado, não se pode olvidar ser entendimento pacífico que as normas da Portaria n.º 377/2008, de 26/05, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, não são vinculativas para a fixação, pelos Tribunais, de indemnizações por danos decorrentes de responsabilidade civil em acidentes de viação, devendo «os valores propostos ( ... ) ser entendidos como o são os resultantes das tabelas financeiras disponíveis para a quantificação da indemnização por danos futuros, ou seja, como meios auxiliares de determinação do valor mais adequado, como padrões, referências, factores pré-ordenados, fórmulas em forma abstracta e mecânica, meros instrumentos de trabalho, critérios de orientação, mas não decisivos, supondo sempre o confronto com as circunstâncias do caso concreto e, tal como acontece com qualquer outro método que seja a expressão de um critério abstracto, supondo igualmente a intervenção temperadora da equidade, conducente à razoabilidade já não da proposta, mas da solução, como forma de superar a relatividade dos demais critérios. Os valores indicados, sendo necessariamente objecto de discussão acerca da sua razoabilidade entre o lesado e a entidade que deverá pagar, servirão apenas como uma referência, um valor tendencial a ter em conta, mas não decisivo», assumindo um carácter instrumental15.

E têm sido muitas as decisões que nos últimos tempos têm sido prolatadas sobre esta temática (inter alia, cfr. o ac. do STJ, proferido no processo nº 96/18.9T8PVZ.P1.S1, relatado pelo aqui relator)

No caso sub judice, até podíamos simplificar e, simplesmente, incluir o dano aqui em apreciação na indemnização que, a seguir, se vai fixar por danos morais.

Contudo, seguindo a posição maioritária da jurisprudência e por uma questão de rigor, dado que o dano biológico é distinto do dano não patrimonial (artigo 496.º do Código Civil) que se reconduz à dor, ao desgosto, ao sofrimento de uma pessoa que se sente diminuída fisicamente para toda a vida, entendemos (tal como se fez na decisão recorrida) ser de autonomizar, como dano patrimonial futuro, esse maior esforço que o Autor terá de efectuar ao longo da sua vida activa. E não sendo possível determinar o valor exacto do dano ora em causa, tal avaliação terá de ser efectuada, como referido, recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566 º n.º 3 do CC.

Isto é, a equidade terá de ser sempre um elemento essencial no cálculo do dano aqui sob apreciação, independentemente de se considerar o dano biológico numa vertente meramente patrimonial, mais ou menos patrimonial ou... como um tertium genus.

Estando em causa o dano biológico sem reflexo na capacidade de ganho, apenas impondo um maior esforço, a acarretar um dano funcional que perturba a vida de relação e bem-estar do Autor, para o cálculo da respectiva indemnização, há, portanto, que fazer apelo aos supra aludidos juízos de equidade, tendo em consideração, designadamente, a esperança de vida do Autor, o grau de incapacidade permanente de que ficou a padecer e a sua actividade profissional.

Como visto, a Relação considerou justo e equilibrado para ressarcir este dano o montante de € 70.000,00 (setenta mil euros).

Será que andou bem?

Como referido, há que seguir aqui os padrões indemnizatórios seguidos pela jurisprudência (e compreende-se, perfeitamente, a necessidade de haver uma possível uniformização de critérios valorativos neste domínio – imperativo, aliás, de cariz constitucional), devendo-se fazê-lo segundo um critério actualístico e evolutivo, de modo a não abalar critérios minimamente uniformes e, em última análise, o princípio da igualdade na aplicação do Direito16.Sempre, porém, tendo em consideração as particularidades e especificidades do caso concreto.

A pergunta que se impõe é, então esta: no acórdão recorrido, a indemnização fixada a título de dano biológico não se afastou dos valores médios que este STJ vem atribuindo em casos de igual ou aproximada pontuação de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica? E foi fixada atendendo, como se impõe, à especificidade da situação concreta sob análise, ponderando, globalmente, mas de forma casuística, todas as circunstâncias envolventes?

No sumário elaborado no Ac. deste STJ, de 29-10-20, 111/17, relatado pela Consª. Maria da Graça Trigo, escreveu-se: “de acordo com a jurisprudência do STJ, a atribuição de indemnização por perda de capacidade geral de ganho, segundo um juízo equitativo, tem variado, essencialmente, em função dos seguintes fatores: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho - antes da lesão -, tanto na profissão habitual, como em profissão ou atividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências. A que acresce um outro fator: a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da atividade profissional habitual do lesado, assim como de atividades profissionais ou económicas alternativas (tendo em conta as qualificações e competências do lesado)”17.

Para além disso, neste e noutros casos, como é jurisprudencialmente pacífico, não poderão deixar de ser considerados as sequelas das lesões sofridas na realização de todas as tarefas, pois também aí se revela uma maior dificuldade na sua execução que encontra a sua causa principal no acidente de viação.

Assim vem sendo considerado em numerosos outros arestos deste Supremo Tribunal de Justiça, sendo exemplos os Acs. de 3-11-16, 1971/12, 16-12-20, 6295/16 ou de 25-2-21, 3014/1418.

Ora, provado está, nomeadamente, que:

- O Autor tinha 56 anos à data do acidente.

- Trabalhava como cozinheiro num restaurante de uma sociedade de que era sócio-gerente.

– Mas desempenhava, quando necessário, todas as tarefas inerentes ao funcionamento de um restaurante.

- À data do acidente o Autor auferia o vencimento mensal base ilíquido de € 1.2000

- Tem um défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 17 pontos.

- As sequelas são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

A que deve acrescer – para além da esperança média de via do Autor (como tem afirmado o Supremo Tribunal de Justiça, o limite temporal relevante da incapacidade de ganho a atender na fixação equitativa da indemnização é constituído pela esperança média de vida, pois “a afectação da capacidade tem repercussões negativas ao longo de toda a vida, tanto directas como indirectas”. Citam-se, a título exemplificativo, o acórdão do STJ proferido em 12-01-2022, processo n.º 6158/18.5T8SNT.L1.S1. e o acórdão do STJ proferido em 30-03-2023, no processo n.º 15945/18.3T8PRT.P1.S1. ambos publicados em www.dgsi.pt.)19 – um outro factor, igualmente a ponderar, como se observa no Ac. do STJ de 11-11-21 (Abrantes Geraldes): o grau de culpa do condutor do veículo a que as normas que regulam a responsabilidade civil e a fixação de indemnizações atribuem relevo. Sendo que (como resulta do ponto 4-dos factos provados) o acidente foi causado por culpa exclusiva do condutor do veículo de matrícula veículo V2.

Apelando, então, à jurisprudência do STJ, temos que os valores arbitrados a tal título – que, naturalmente, variam substancialmente em função da factualidade específica em causa – andam à volta dos aludidos nos exemplos que seguem:

- Acórdão do STJ de 21/01/2016, processo 1021/11.3TBABT.E1.S1, no qual foi fixada a indemnização de €32.000,00 pelo dano biológico de um jovem de 27 anos que ficou portador de sequelas que lhe conferiram uma IPG de 16 pontos envolvendo claudicação da marcha e rigidez da anca direita, com limitações da marcha, corrida e todas as actividades físicas que envolvam os membros inferiores e determinando alteração relevante no padrão de vida pessoal;

- O Acórdão do STJ de 29/10/2019, processo 7614/15.2T8GMR.G1.S1 atribuiu uma indemnização de €36.000,00 a um lesado com 34 anos e com um DFPIF-P idêntico àquele do A. (16 pontos).

- No Ac. do STJ, Revista de 03.07.2018, Procº 36/12.9T2STC, Autor com 44 anos de idade e 7 pontos de défice funcional permanente, foi fixada a indemnização de 40.000,00€;

- STJ, Revista de 25.10.2018, Procº 2416/16.1T8BRG – 48 anos de idade, 8 pontos, dano não patrimonial 40.000,00€.

- Ac. do STJ de 06.12.2017, Proc 559/10.4TBVCT.G1.S1 - 31 anos, 2 pontos, 111 dias ITA, Traumatismo cervical, Medicada com analgésicos e anti-inflamatórios, a necessitar sempre de analgésicos 15 dias por mês, tendo andado 2 meses com colar cervical, fez fisioterapia até abril de 2009 (acidente dez./2008), Dano moral 15.000,00€;

- Ac. STJ de 06.12.2017, Procº 559/10.4TBVCT.G1.S1 – IPG de 2 pontos, 31 anos de idade e RMMG – fixou-se em 20.000,00€ a indemnização;

- STJ, Revista de 6.12.2018, Procº 652/16.0T8GMR.G1.S2 – 40 anos de idade, 10 pontos, 60.000,00€ pelo dano biológico;

- STJ, Revista de 08.02.2018, Procº 6570/16.4T8VNG – 56 anos de idade, 10 pontos, 70.000,00€ pelo dano biológico;

RG de 30.05.2019, Procº 1760/16.2T8VCT.G1 - 4 pontos, 48 anos de idade, salário de 635,07€ -15.000,00€ pelo dano biológico;

STJ de 05.05.2020, Procº 30/11.7TBSTRE1.S1 - 5 pontos, 34 anos de idade, salário de 900€ -25.000,00€ pelo dano biológico20;

Ponderando todos estes elementos, julga-se assertiva, por equilibrada, fixar a indemnização pelo défice funcional permanente na integridade física do autor em quarenta e cinco mil euros (45.000,00).

DA INDEMNIZAÇÃO PELOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS

Também discorda a Recorrente na indemnização arbitrada no acórdão recorrido, que reduziu em € 5.000,00 (para os € 75.000,00) a indemnização/compensação de € 80.000,00 fixada na sentença.

Sobre estes danos, escreveu-se no ac. prolatado no Processo do STJ nº 3062/22.6T8VCT.G1.S1, também relatado pelo aqui relator:

« Em causa estão, agora, prejuízos que não atingem em si o património, não o fazendo diminuir nem frustrando o seu acréscimo. Ofendem bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico, insusceptíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro. A ofensa objectiva desses bens tem em regra um reflexo subjectivo na vítima, traduzido na dor ou sofrimento, de natureza física ou de natureza moral.

Os danos não patrimoniais podem consistir em sofrimento ou dor, física ou moral, provocados por ofensas à integridade física ou moral duma pessoa, podendo concretizar‑se, por exemplo, em dores físicas, desgostos por perda de capacidades físicas ou intelectuais, vexames, sentimentos de vergonha ou desgosto decorrentes de má imagem perante outrem, estados de angústia, etc., reflectindo, mais ou menos, melhor ou pior, manifestações de perturbações emocionais.

Nesta categoria de danos se compreendem todos aqueles que afectam a personalidade moral, nos seus valores específicos21 tais como “as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização” 22.

Como é consabido, apenas devem ser atendidos os danos não patrimo­niais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil).

Dano grave não terá que ser considerado apenas aquele que é “exorbitante ou excepcional”, mas também aquele que “sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da banalidade. Um dano considerável que, no seu mínimo espelha a intensidade duma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação” 23.

Para a dor moral ou psíquica é impossível estabelecer escalas peremptórias: dentro do critério da gravidade, seguir‑se‑ão os ensinamentos da experiência humana em termos de afectividade e sentimento, segundo um prudente arbítrio de indemnização. Nestes danos interfere em especial a natureza e intensidade do sofrimento causado e a sensibilidade do lesado e duração da dor.

A avaliação da sua gravidade tem de aferir‑se segundo um padrão objectivo, e não à luz de factores subjectivos24, sendo, nessa linha, orientação consolidada na jurisprudência, “com algum apoio na lei”, que as simples contrariedades ou incómodos apresentam “um nível de gravidade objectiva insuficiente para os efeitos do n.º 1 do art. 496.º” 25.

Não deve ser descurada a Doutrina e a Jurisprudência que vêm soprando sempre novos ventos de justiça sobre este campo indemnizatório, nomeadamente, o anunciado sentimento de que “a indemnização ou compensação deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista”26.

Neste particular, tem sido salientado que o dano não patrimonial não se reconduz a uma única figura, tendo vários componentes e assumindo variados modos de expressão, abrangendo:

i. o chamado quantum (pretium) doloris, que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária, com tratamentos, intervenções cirúrgicas, internamentos, a analisar através da extensão e gravidade das lesões e da complexidade do seu tratamento clínico;

ii. o “dano estético” (pretium pulchritudinis), que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima;

iii. o “prejuízo de distracção ou passatempo”, caracterizado pela privação das satisfações e prazeres da vida, vg., com renúncia a actividades extra-profissionais, desportivas ou artísticas;

iv. o “prejuízo de afirmação social”, dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica), integrando este prejuízo a quebra na “alegria de viver”;

v. o prejuízo da “saúde geral e da longevidade”, em que avultam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valoriza as lesões muito graves, com funestas incidências na duração normal da vida;

vi. os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida;

vii. o prejuízo juvenil “pretium juventutis”, que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida, privando a criança das alegrias próprias da sua idade;

viii. o “prejuízo sexual”, consistente nas mutilações, impotência, resultantes de traumatismo nos órgãos sexuais;

ix. (ix) o “prejuízo da auto-suficiência”, caracterizado pela necessidade de assistência duma terceira pessoa para os actos correntes da vida diária, decorrente da impossibilidade , de se vestir, de se alimentar27.

Presente neste domínio deverá estar a consideração do melindre que a “quantificação”/valoração de tais danos sempre acarreta, procurando traduzir-se em quantia certa de coisa fungível (a mais fungível das coisas), o que por natureza é insusceptível de mensuração e de redução a uma expressão numérica, não tendo cabimento uma reparação por equivalente, encerrando óbvias dificuldades a tradução em números do que por definição não tem tradução matemática, procurando ter-se em conta todo o cortejo de dores e sofrimentos padecidos, por vezes, o corte abrupto dos sonhos e das ambições, dos projectos de vida, bem como o reflexo, o rebate da perda de autonomia de vida em diversos aspectos, com todas as consequentes limitações, sob múltiplas formas, da vivência do demandante e os efeitos imediatos e mediatos de todas as sequelas das lesões sofridas.

Neste campo, em que não entram considerações do “ter” ou “possuir”, “perder”, ou “ganhar”, mas do “ser”, “sentir”, ou “sonhar”, não rege a teoria da diferença, nem faz sentido o apelo ao conceito de dano de cálculo, pois que a indemnização/compensação do dano não patrimonial não se propõe remover o dano real, nem há lugar a reposição por equivalente.

Efectivamente, em bom rigor, a única condição de compensabilidade dos danos não patrimoniais é a sua gravidade, o que lhes confere um carácter algo indeterminado e de difícil quantificação. Seria, por isso, em vão tentar-se apurar o respectivo quantum compensatório com base em factores aparentemente objectivos, devendo reconhecer-se ao julgador margem para valorar segundo critérios subjectivos (na perspectiva do lesado), isto é, “à luz de factores atinentes à especial sensibilidade do lesado [como] [a] doença, a idade, a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais28. A equidade é aqui, em rigor, o único recurso do julgador29, ainda que não descurando as circunstâncias que a lei manda considerar (cfr. artigo 496.º, n.º 4, do CC).».

Dito isto, e regressando ao caso sub judice, temos que o Autor:

- Deambula com claudicação à esquerda.

– Tem edema na perna esquerda.

- Tem cicatrizes cirúrgicas na face externa da anca e coxa esquerda

- … e desconforto quando está de pé, sentado ou de cócoras.

- Tem alterações de humor

- … e crises de ansiedade.

- Mantém acompanhamento psicológico.

- Tem desconforto nas relações sexuais.

- Ficou 3 horas encarcerado no veículo.

- Esteve mais de 4 meses dependente de terceira pessoa.

- Passou por momentos de angústia e sofrimento durante o período de internamento e tratamentos.

- O quantum doloris é de grau 3/7.

- O dano Estético Permanente é de grau 3 /7.

- Ficou com repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer em grau 3/7.

– Apresenta repercussão permanente na atividade sexual fixada em 1/7.

Ponderando este quadro factual, cremos ser exagerada – por não consentânea, justa e equilibrada com a gravidade das lesões do recorrido – a compensação por esta categoria de danos fixada na decisão recorrida, a qual nos parece em desconformidade com os valores usualmente arbitrados pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, nomeadamente em situações de gravidade substancialmente superior (ut artigo 566.º, nº 3 do Cód. Civil).

Efectivamente, há que ponderar cuidadosamente a factualidade provada, observar as regras de Direito aplicáveis e alicerçar a sua decisão em critérios razoáveis, recorrendo (como deve ser) à equidade e ponderando os valores que têm sido atribuídos pela jurisprudência - desta forma tendo a preocupação, que deve ser partilhada pelos tribunais, por forma a servir o propósito ínsito no artigo 8.º, n.º 3, do CC, da uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito.

Como tal, considerando os factos provados, a jurisprudência e os critérios legais, cremos que se não justifica o montante ali arbitrado a título de danos não patrimoniais, por manifestamente exagerado.

Exemplificativamente, pode ver-se os valores arbitrados nos seguintes acs.: TRG de 13.02.2014, processo n. 114/10.9TBPTL.G2; da 2ª Secção Cível, do STJ, datado de 23.02.2012 e proferido no âmbito do processo n. 31/05.4TAALQ.L2.S1, também do STJ de 14.06.2011, aqueloutro do STJ (proc. nº 5466/15.1T8GMR.G1.S1), de 07.09.2020, do TRG de 16.01.2025 (proc. nº 2578/21.6T8VCT.G1), do TRP de 3.11.2023 (proc. nº 1548/21.9T8PVZ.P1), este confirmado pelo ac. do STJ, com data de 30.04.2024 (proc. nº 1548/21.9T8PVZ.P1.S1), o do TRP de 17.06.2024 (proc. nº 107/21.0T8ETR.P1), os do TRP de 23.09.2024 (proc. nº 1388/17.0T8OVR.P1) e de 07.10.2024 (proc. nº 14893/19.4T8PRT.P1); ainda os Acs. do STJ de 16.01.2024 (proc. nº 15898/16.2T8LSB.L1.S1) de 30.01.2025 (proc. nº 9073/21.1T8PRT.P1.S1); ac. do STJ de 30.01.2025 (proc. nº 3343/21.6T8PRT.P1.S1- que fixou, a este título, a quantia de € 35.000,00 para um lesado com 28 anos com um DFPIF-P de 14 pontos) e ac. do STJ de 17.09.2024 (proc. 2481/20.7T8BRG.G1.S1 – que decidiu atribuir a indemnização/compensação de € 90.000,00 a uma lesada com 17 anos de idade e com um DFPIF-P de 35 pontos, ou seja, mais do dobro, portanto, daquele do A. destes autos).

Tudo ponderado, temos como equitativo e justo fixar a indemnização ao Autor, a título de danos não patrimoniais no montante de quarenta e cinco mil euros (€45.000,00).


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, conceder parcialmente a revista, fixando-se em quarenta e cinco mil euros (45.000,00) a indemnização pelo défice funcional permanente na integridade física do autor e, outrossim, no mesmo montante (de quarenta e cinco mil euros - 45.000,00) a indemnização ao Autor a título de danos não patrimoniais, montantes acrescidos de juros moratórios à taxa legal, como referido no ac. recorrido, no mais se mantendo o acórdão pela Relação.

Custas na proporção de vencidos.

Lisboa, 02.10.2025

Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Emídio Santos (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Isabel Salgado (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

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1. In Recursos em Processo Civil, 6.ª edição, Almedina, p. 358.

2. Neste sentido, veja-se, ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, Almedina, 6.ª edição, págs. 415 a 418 e, entre outros, os Acórdãos do STJ de 14-09-2021 (Revista n.º 864/18.1T8VFR.P1.S1 - Manuel Capelo), de 26-11-2020 (Revista n.º 11/13.6TCFUN.L2.S1 - Maria da Graça Trigo), de 16-12-2020 (Revista n.º 277/12.9TBALJ-B.G1.S1 - Rijo Ferreira) e de 17-12-2020 (Revista n.º 7228/16.0T8GMR.G1.S1 - Fátima Gomes), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

3. Proc. n.º 807/17.0T8STS-B.P1.S1 (Ricardo Costa), disponível em www.dgsi.pt.

  Os destaques são nossos.

4. Destaque nosso.

5. Ac.S.T.J. 14/1/2021, pº 644/12.8TBCTX.L1.S1.

6. Cfr. Ac.S.T.J. 17/5/2018, pº 952/12.8TVPRT.P1.S1.

7. Ac.S.T.J. 28/10/2010, pº 272/06.7TBMTR.P1.S1.

8. Ver, v.g., Ac. do STJ, de 20.05.2010, Processo n° 103/2002.L1.S1; e Ac. do STJ, de 26.01.2012, Processo n° 220/2001-7.S1, onde se faz uma resenha histórica do surgimento do conceito dano biológico e da sua construção, ambos in www.dgsi.pt.

9. Cfr. ac. do S.T.J., de 2-12-2013, in http://www.dgsi.pt.

10. Ver Ac. do STJ de 27/10/2009, in http://www.dgsi.pt.

11. “A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Civil Extracontratual”, pág. 132.

12. Veja-se, a este propósito, a título exemplificativo, o acórdão do STJ, de 04/06/2015, relatado por Maria dos Prazeres Beleza, no processo n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, em que se referem outros acórdãos anteriores do mesmo Tribunal e disponível in http://www.dgsi.pt/jstj .

13. Neste sentido, os Acs. do STJ de 29/10/2019 e de 14/09/2023, disponíveis em www.dgsi.pt.

14. V.g., Ac. do STJ, de 25.02.2009, Raul Borges, Processo na 3459/08, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, pode ver-se, entre outros: Ac. do STJ. De 07.07.2009. Processo nº 205/07.3GTLRA.Cl; Ac. do STJ, de 18.03.2010, Santos Carvalho, Processo n° 1786/02.3SILSB.L1.S1; Ac. do STJ, de 14.09.2010, Ferreira de Almeida, Processo n° 797/05.ITBSTS.PI; Ac. do STJ, de 17.05.2012, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo n° 48/2002.I.2.S2; Ac. do STJ, de 07.02.2013, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo n° 3557/07.ITVLSB.L1.S1; Ac. da RP, de 20.03.2012, Manuel Pinto dos Santos, Processo n° 571/l0.3TBLSD.Pl; Ac. da RP, de 15.01.2013, Vieira e Cunha, Processo n° 1949/06.2TVPRT.Pl; e Ac. da RG, de 12.01.2012, Manuel Bargado, Processo n° 282/09.2TCGMR-A.Gl, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

15. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem defendido que o recurso à equidade “não afasta a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso. O não afastamento, pela sindicância do juízo equitativo, da necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, ilustra a tendencial uniformização de critérios na fixação judicial dos montantes indemnizatórios, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto – Cf. Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de maio de 2019 (Maria dos Prazeres Beleza), proc. n.º 2476/16.5T8BRG.G1.S2; de 8 de junho de 2017 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), Proc. n.º 2104/05.4TBPVZ.P1.S2 e ainda acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de dezembro de 2017 proc. n.º 559/10.4TBVCT.G1.S1; de 28 de janeiro de 2016, proc. n º 7793/09.8T2SNT.L1.S1; de 6 de abril de 2015, proc. n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para os acórdãos de 28 de outubro de 2010, proc. n.º 272/06.7TBMTR.P1.S1, e de 5 de novembro de 2009, proc. n.º 381-2002.S1m estes in www.dgsi.pt.

16. Destaque nosso.

17. Consultáveis in www.dgsi.pt.

18. Relativamente ao tempo de vida põe-se a questão considerar apenas o ‘tempo de vida activa’ (ou seja, até à idade da reforma) ou em toda a sua extensão. A redução ao ‘tempo de vida activa’ tem por base a ideia de que após a reforma a vítima deixaria de auferir rendimento; mas tal ideia é manifestamente infundada porquanto não só o reformado pode continuar a exercer uma actividade que lhe garanta rendimentos como, naturalmente, substituiria o seu salário por uma pensão de reforma (de que se viu privado porquanto com a perda de rendimentos deixou de fazer as correspondentes contribuições para a segurança social, sendo a perda dessa pensão mais um dano futuro indemnizável). Entende-se, assim, que deve ser considerado todo o tempo provável de vida, que actualmente se situa nos 78,3 anos para os homens portugueses (exemplificativamente: Ac. STJ de 05.05.2020, Procº 30/11.7TBSTR.E1.S1; STJ de 12.07.2018, Procº 1842/15.8T8STR.E1.S1; Ac. da RG de 30.05.2019, Procº 1760/16.2T8VCT.G1; da RC de 22.01.2019, Procº 342/17.6T8CBRC1, todos em www.dgsi.pt.).

19. No Ac. da RG de 15.02.2018, Procº 535/14.8TBPTL.G1 - 59 anos, 10 pontos, salário de 728€ - fixou-se a indemização pelo dano biológico em 40.000€.

20. Dario Martins de Almeida, in Manual de Acidentes de Viação, Livraria Almedina, 3.ª ed., p. 271.

21. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, volume I, Livraria Almedina, 7.ª ed., p. 595.

22. Cfr. o Ac. do STJ de 4.3.2008, Proc. 08A164, in www.dgsi.pt.

23. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 9.ª ed., p. 628.

24. Cfr. Ac. do STJ de 12.10.1973, BMJ, 230.º, p. 107.

25. Ac. STJ de 25‑7‑2002, in CJ cit., p. 134.

26. Assim, o Ac. do STJ de 25.11.2009, proc. 397/03.0GEBNV.S1, www.dgsi.pt.

27. Cfr. Maria Manuel Veloso, “Danos não patrimoniais”, in: Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, volume III – Direito das Obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 506.

28. Para a pergunta sobre em que consiste a equidade “não há resposta fácil nem unívoca”, mas parece possível dizer “que a decisão segundo a equidade (…) pode conferir peso a quaisquer argumentos sem se preocupar com a sua autoridade e relevância face às aludidas fontes (do sistema). É campo ilimitado do 'material', do 'razoável', do 'justo', do 'natural'”. Cfr. Manuel A. Carneiro da Frada, “A equidade ou a 'justiça com coração' – A propósito da decisão arbitral segundo a equidade”, in: Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, p. 656 e pp. 675-676 (interpolação nossa).