I - O erro da sentença arbitral estrangeira na resolução das questões que apreciou não constitui fundamento de recusa de reconhecimento das
sentenças arbitrais estrangeiras.
II - Não conduz a qualquer resultado incompatível com a ordem pública internacional do Estado português uma sentença arbitral estrangeira, como aquela que foi sujeita a revisão, que, no âmbito de um contrato de fornecimento, condena a parte que o rescindiu ilicitamente a indemnizar a outra parte pelos danos que a rescisão lhe causou.
Citada, a requerida opôs-se à confirmação da sentença. Para o efeito alegou, por um lado, a falta dos requisitos mencionados nas alíneas e) e f) do artigo 980.º do CPC e, por outro, que o resultado da acção onde foi proferida a sentença lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português.
O processo prosseguiu os seus termos e após apresentação das alegações pelas partes, foi proferido acórdão que, julgando procedente a acção, reconheceu e confirmou a sentença arbitral n.º 2369 de 19-12-2023, proferida em Londres pelo painel de árbitros da Refined Sugar Association.
Revista
A requerida não se conformou com a decisão e interpôs recurso de revista, pedindo se revogasse e se substituísse o acórdão por decisão que recusasse a revisão da sentença arbitral aqui sob apreciação, julgando improcedente a ação de revisão instaurada pela recorrida.
Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. O Tribunal arbitral julgou em violação da ordem pública (internacional) portuguesa.
2. A responsabilidade civil não é hipotética!!
3. Afirmar que a recorrida, que nada comprou (nem ao preço de Março, nem ao preço de Abril, nem a preço nenhum!) se empobreceu porque deixou de poder ser proprietária de x toneladas de açúcar a um determinado preço não tem cabimento com realidade nenhuma.
4. Em primeiro lugar porque a recorrida visava evidentemente revender aquele açúcar, portanto só poderia ter um prejuízo se, tendo tido necessidade de cumprir perante terceiros, tivesse também tido um sobrecusto na aquisição de açúcar numa data posterior àquela em que o Tribunal entendeu que se firmou o contrato (Março).
5. Simplesmente, resolvido o contrato pela recorrente, a recorrida nada comprou (a preço nenhum) e nada revendeu (a preço nenhum) portanto teve um prejuízo real de precisamente zero!
6. Esta afirmação do Tribunal a quo, supratranscrita, é um cenário verdadeiramente irreal, hipotético que não tem nenhuma adesão com qualquer realidade concreta.
7. E por ser assim não pode a recorrente conformar-se com o teor da decisão recorrida, desde logo com a atribuição de uma indemnização à recorrida fruto da violação pela ré de tal contrato e, em especial, a fixação o respetivo quantum indemnizatório.
8. Isto quanto à condenação – quantum em concreto – entende a ré que a forma como o Tribunal Arbitral chegou ao valor a indemnizar viola também princípios de ordem pública internacional do Estado Português.
9. O que o Tribunal a quo validou, mal
10. Tratou-se, na verdade, da consagração institucionalizada do mais grotesco enriquecimento sem causa!
11. É que o Tribunal Arbitral condenou a aqui recorrente no pagamento à recorrida, grosso modo, da quantia de 498.231 Dólares acrescida de juros com base, verdadeiramente, em nada.
12. Isto é, o Tribunal Arbitral, no fundo, admitiu que o contrato se concluiu numa determinada data, que foi incumprido pela recorrente numa data posterior e, no fundo, multiplicou o preço/ton de açúcar à data do pretenso incumprimento pelo volume de açúcar a adquirir.
13. Tratou-se, assim, o computo dos pretensos danos em que foi a recorrente condenada de um mero exercício académico por parte do Tribunal arbitral pelo qual ficcionou que a recorrida se viu obrigada a adquirir igual quantidade de açúcar a um preço mais caro fruto do pretenso incumprimento por parte da primeira.
14. E sendo assim inexiste prejuízo / dano que cumprisse ressarcir.
15. Ora, não serão necessários grandes desenvolvimentos para concluir que uma tal fixação de danos não é mais do que a grosseira violação da construção dogmática da figura da responsabilidade civil (entre nós) e a consagração judicial de verdadeiro enriquecimento sem causa.
16. Isto porque, não tendo a Recorrida alegado nem demonstrado ter-se visto obrigada a suprir o pretenso incumprimento da recorrente, consultando o mercado e aí adquirindo, de novo e a preço mais elevado, igual quantidade de açúcar, então a recorrida nada perdeu com o pretenso incumprimento.
17. Não pagou à recorrente o açúcar; como não pagou a quem quer que seja, porque simplesmente nada adquiriu (nem da recorrente nem de terceiro…).
18. E por ser assim não suportou qualquer dano fruto do pretenso incumprimento.
19. A responsabilidade contratual tem como pressupostos a verificação de um facto voluntário, da ilicitude, da culpa e de um nexo de causalidade entre facto e dano.
20. Impõe, pois, entre nós, a construção dogmática da responsabilidade civil contratual que: i) se verifique o um facto voluntário emergente de uma relação contratual ii) que exista culpa na verificação de tal facto; iii) que desse facto nasça um dano (devendo verificar-se verdadeiro nexo causal entre dano e facto).
21. A indemnização em dinheiro tem carácter subsidiário, tendo lugar apenas nas situações excecionalmente previstas no n.º 1 do artigo 566.º: i) quando seja inviável a reconstituição da situação anterior à lesão; ii) quando não repare integralmente o dano; iii) ou quando seja excessivamente onerosa para o devedor.
22. O certo é que, em qualquer caso, mesmo quando a solução passe pela indemnização, o respetivo valor deve ser fixado de modo tal que não seja superior ao dano efetivamente suportado pelo lesado.
23. Isto porque a indemnização não é mais do que a expressão pecuniária atribuível à reposição natural – isto é, o lesado nunca pode ficar em situação melhor nem pior do que a que teria se não existisse o facto danoso.
24. No caso, o dano concreto é zero, isto porque, antes e depois do pretenso incumprimento contratual a recorrida, pretensa lesada, esteve sempre na exata mesma situação.
25. Uma tal solução viola normas imperativas de direito do Estado Português.
26. Viola desde logo o artigo 483 do Código Civil – que limita a responsabilidade do lesante ao valor dos danos resultantes da violação
27. Viola o artigo 564 do Código Civil – que impõe que o dever de indemnizar abrange o prejuízo causado e os benefícios que o lesado deixou de auferir (no caso não existiu prejuízo nem o lesado alegou que deixou de auferir seja o que for).
28. Viola o artigo 566, nºs 1 e 2 do Código Civil – que determina, no essencial, que quando não seja possível a constituição natural, a indemnização em dinheiro visa, também ela, colocar o lesado na situação que estaria se não existisse a lesão (no caso o lesado ficou sempre na mesma situação, nada comprou, nada pagou!
29. Mais viola a proibição geral do enriquecimento sem causa, entre nós instituída, no artigo 473 do Código Civil.
30. Mas o Tribunal a quo conseguiu, num exercício extraordinário pleno de suposições, considerar que, afinal, quem enriqueceu foi a recorrente (pasme-se) e quem empobreceu foi a recorrida!
31. Todas as indicadas normas que, no fundo, têm o seu radical na ideia de justiça, como corolários da noção de que, em sociedade e em especial no âmbito do complexo relacionamento que se estabelece entre agentes económicos no comércio jurídico, devem as partes, antes de mais, atuar de boa fé.
32. Reconhecer validade à decisão em questão é absolutamente contrário à ordem Pública do Estado Português, constituindo uma violação inaceitável de princípios estruturantes do nosso ordenamento jurídico, princípios esses constitucionalmente consagrados.
33. A ordem pública é o complexo dos princípios e dos valores que informam a organização política, económica e social da Sociedade e que são, por isso e como tal, tidos como imanentes ao respetivo ordenamento jurídico.
34. Constitui expressão e instrumento do interesse público, do bem comum, tal como é definido naquela coletividade e corresponde geralmente aos grandes princípios consagrados na parte programática da respectiva constituição política (cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2010, 6ª ed., p.591).
35. Assim, do que vem dito, resulta que a decisão revidenda não poderá ser objeto de revisão por contender com o disposto no artigo 980, al. f) e artigo 56, nº 1, b, ii) da LAV também por estas razões.
36. O acórdão recorrido viola, por erro de aplicação ou interpretação, o disposto no artigo 980, al. f) do CPC e artigo 56, nº 1, b, ii) da LAV, 483, 562, 566 e 812 do CC e 22 da CRP.
A autora respondeu, sustentando a manutenção da decisão recorrida.
Saber se o acórdão recorrido, ao decidir que o reconhecimento da sentença arbitral estrangeira não conduzia a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português, violou, por erro de aplicação ou interpretação, o disposto no artigo 980.º, al. f) do CPC e artigo 56.º, n.º 1, b, ii) da LAV, os artigos 483.º, 562.º, 566.º e 812.º, todos do CC, e o artigo 22.º da CRP.
«Decisão Final
Sentença n.º 2369 de 19 de dezembro de 2023»
O Painel de Árbitros da Refined Sugar Association foi chamado a pronunciar-se enquanto Árbitros sobre um litígio entre:
LP GRACE PTE LTD Demandante (Comprador) v ENERGY ECP, UNIPESSOAL LDA Demandado (Vendedor) decorrente de um contrato n.°. EP-S...90 de 24 de março de 2023, LP Grace Pte. Ltd de Singapura ("LPG" ou "Comprador") acordou comprar, e a Energy ECP, Unipessoal Lda da Madeira, Portugal ("EP" ou "Vendedor") acordou vender 8100 t de Açúcar Cristal Branco Brasileiro em contentores de 300 x 20' para entrega EM CFR Nouakchott, Mauritânia (o "Contrato" ou o "Contrato 300 FCL").»
Após alguns considerandos:
«As Condições do Contrato.
1 O Contrato, que foi assinado em nome de ambas as partes e ao qual ambas as partes apuseram o selo da sua empresa, previa, na medida do necessário, o seguinte:
"3. QUANTIDADE:
8100 TONELADAS MÉTRICAS EM CONTENTORES DE 300 X 20 PÉS A SEREM CHEIOS COM CERCA DE 27 TM CADA
4. QUALIDADE:
AÇÚCAR CRISTAL BRANCO BRASILEIRO... COR 150 ICUMSA MAX
6. ORIGEM:
SANTOS, BRASIL
7. DESTINO:
CFR - NOUAKCHOTT, MAURITÁNIA
EXPEDIÇÃO:
MAIO - JUNHO DE 2023
O PRAZO DE EXPEDIÇÃO ESPECIFICADO NO PRESENTE É INDICADO SEM GARANTIA E ESTÁ SUJEITO ÀS CONDIÇÕES DE RESERVA DO NAVIO CONTRATADAS PELOS VENDEDORES PARA O TRANSPORTE DO PRODUTO ATÉ AO DESTINO, AS QUAIS SÃO AQUI INCORPORADAS QUANDO NÃO ESTIVEREM EM CONTRADIÇÃO COM OS TERMOS DO PRESENTE CONTRATO. OS VENDEDORES NÃO SERÃO RESPONSÁVEIS OU RESPONSABILIZADOS EM CASO DE QUALQUER ATRASO NA CHEGADA E/OU À CHEGADA E/OU DURANTE O CARREGAMENTO E/OU PARTIDA DO NAVIO NO PORTO DE CARGA; EM CASO DE ATRASO, O PERÍODO DE EXPEDIÇÃO SERÁ CONSIDERADO AUTOMATICAMENTE PRORROGADO PELO PERÍODO DE QUALQUER ATRASO. O PRESENTE CONTRATO MANTÉM-SE VÁLIDO ATÉ À SUA EXECUÇÃO PLENA E DEFINITIVA NOS TERMOS DA NOTA DE RESERVA INICIAL, SUJEITO A UMA ALTERAÇÃO E/OU UM PROLONGAMENTO DO PERÍODO DE EXPEDIÇÃO.
8. PREÇO:
PREÇO FINAL E FIXO DE 600,00 USD (SEISCENTOS DÓLARES) POR TONELADA MÉTRICA. CFR - NOUAKCHOTT, MAURITÁNIA. INCOTERM 2010.
(…)
O COMPRADOR DEVE ENVIAR INSTRUÇÕES DOCUMENTAIS PARA DOX@EP.COM.BR O MAIS TARDAR ATÉ 2 (DOIS) DIAS ÚTEIS APÓS O ENVIO DO CONTRATO ASSINADO.
10. PAGAMENTO:
5 % ANTECIPADAMENTE (in advance, no original) 5 % CONTRA CARREGAMENTO 90 % DA - DOCUMENTO CONTRA ACEITAÇÃO 7 DIA
NO CASO DE O COMPRADOR EXIGIR UM "CONHECIMENTO DE EMBARQUE EXPEDIDO", O PAGAMENTO DEVE SER EFETUADO 100 % ANTECIPADAMENTE
OS PAGAMENTOS EM ATRASO ESTÃO SUJEITOS A JUROS DE MORA À TAXA DE 12 % POR ANO.
OS ENCARGOS BANCÁRIOS DOS COMPRADORES SÃO POR CONTA DOS COMPRADORES. OS ENCARGOS BANCÁRIOS DOS VENDEDORES SÃO POR CONTA DOS VENDEDORES. OS VENDEDORES DEVEM RECEBER 100 % DO PREÇO FATURADO; SEM QUALQUER DEDUÇÃO DE ENCARGOS BANCÁRIOS DO BANCO DO COMPRADOR
NO CASO DE O COMPRADOR NÃO EFETUAR QUALQUER PAGAMENTO, O VENDEDOR TEM, AO SEU EXCLUSIVO CRITÉRIO, O DIREITO DE EXECUTAR QUALQUER UMA DAS SEGUINTES OPÇÕES NÃO EXAUSTIVAS:
(A) APLICAR QUAISQUER CUSTOS INCORRIDOS PELO VENDEDOR AO PREÇO DO CONTRATO E/OU RENEGOCIAR O PREÇO DO CONTRATO;
(B) RESCINDIR (terminate, no original) O ACORDO COM EFEITOS IMEDIATOS E VENDER A CARGA (SUJEITA AO CONTRATO) A OUTRA CONTRAPARTE À SUA ESCOLHA;
(C) PRORROGAR O PRAZO DE EXPEDIÇÃO ATÉ AO MOMENTO EM QUE O COMPRADOR CUMPRA AS SUAS OBRIGAÇÕES DE PAGAMENTO NOS TERMOS DO CONTRATO.
(…)
EM CASO DE NÃO RECEÇÃO DO MONTANTE ACORDADO, A EP COMMERCIAL INVALIDARÁ O CONTRATO E MANTERÁ A POSSE DA CARGA.
QUALQUER ADIANTAMENTO/DEPÓSITO RECEBIDO SERÁ UTILIZADO PARA COBRIR O CUSTO DA REVENDA DA CARGA E QUAISQUER OUTRAS PERDAS POSSÍVEIS.
11. PROPRIEDADE
A PROPRIEDADE DAS MERCADORIAS SÓ SERÁ TRANSFERIDA APÓS O VENDEDOR TER RECEBIDO O PAGAMENTO DAS MERCADORIAS EM CONFORMIDADE COM AS SUAS INSTRUÇÕES.
17. ARBITRAGEM
TODOS OS LITÍGIOS DECORRENTES DO CONTRATO SERÃO SUBMETIDOS À APRECIAÇÃO DA REFINED SUGAR ASSOCIATION DE LONDRES, PARA RESOLUÇÃO EM CONFORMIDADE COM AS REGRAS DE ARBITRAGEM DA ASSOCIAÇÃO.
18. GERAL
O PRESENTE CONTRATO ESTÁ SUJEITO ÀS REGRAS DA REFINED SUGAR ASSOCIATION, DE FORMA TÃO COMPLETA COMO SE AS MESMAS TIVESSEM SIDO EXPRESSAMENTE INSERIDAS NO PRESENTE CONTRATO, QUER AS PARTES SEJAM OU NÃO MEMBROS DA ASSOCIAÇÃO OU SEJAM ASSOCIADAS DA MESMA.
EM CASO DE INCOERÊNCIA ENTRE O CONTRATO E AS REGRAS DA ASSOCIAÇÃO APLICÁVEIS, PREVALECERÃO OS TERMOS E CONDIÇÕES DO CONTRATO"» (ênfases acrescentadas)
Em seguida, sob o título «Antecedentes Factuais», a sentença descreve: as trocas de comunicações escritas por mensagens via WhatsApp, entre empregados ou representantes das partes, e por email; um testemunho indireto da EP da chamada entre o Sr. AA e o Sr. BB a 4 de abril de 2023; e a correspondência entre CC e DD e entre EP e LPG.
Segue-se a pretensão da autora, e uma pormenorizada exposição (descrita no curso de 12 páginas) sobre as posições das partes relativas às seguintes questões:
i. Foi celebrado um contrato vinculativo?
ii. Existia um prazo para a LPG devolver o Contrato assinado?
iii. Existia um prazo para a LPG efetuar o pagamento antecipado de 5 %?
iv. Qual é o efeito jurídico da Fatura Pró-Forma e quais os requisitos que impôs?
v. Qual foi o efeito das trocas de mensagens WhatsApp e de e-mail e a EP renunciou a alguma condição de pagamento?
vi. Quando foi rescindido (terminated) o Contrato?
vii. Como devem ser avaliados os danos?
Nas seis páginas subsequente, o tribunal faz a sua apreciação do caso, dividida pelas seguintes questões:
a) Foi celebrado um contrato vinculativo?
b) Existia um prazo para a LPG devolver o Contrato assinado?
c) Existia um prazo para a LPG efetuar o pagamento antecipado de 5 %?
d) Qual era o efeito da Fatura Pró-Forma?
e) Houve uma violação do Contrato e, em caso afirmativo, quando?
f) Como devem ser avaliados os danos causados à LPG? [e não «pela LPG» como consta da tradução, a pergunta original How should LPG’s damages be assessed?, à letra, Como devem os prejuízos da LPD ser avaliados?]
Vamos reproduzir a análise jurídica do tribunal arbitral a que acabamos de fazer referência e o dispositivo da mesma sentença arbitral:
«CONSIDERAMOS E DECIDIMOS O SEGUINTE:
Foi celebrado um contrato vinculativo?
56. Analisámos cuidadosamente todos os elementos de prova que nos foram apresentados, incluindo as trocas contemporâneas de e-mail e de mensagens WhatsApp entre as partes. Neste contexto, verificámos que não havia dúvidas de que tinha sido celebrado um acordo vinculativo e que o Contrato passou a existir quando as partes acordaram os termos a 24 de março de 2023. O Sr. EE agradeceu à LPG pelo negócio e, na mesma noite, enviou o Contrato e a Fatura Pró-Forma.
57. Verificámos igualmente que, apesar de a EP pretender, compreensivelmente, que lhe fosse devolvida atempadamente uma cópia do contrato assinado, não havia provas de que isso constituísse uma condição prévia à entrada em vigor de uma obrigação vinculativa. Pelo contrário, verificámos que a devolução do Contrato assinado era uma mera formalidade e não tinha qualquer efeito sobre o acordo já alcançado entre o Sr. EE e a Sr.a FF. Verificámos igualmente que não existiam quaisquer elementos de prova que corroborassem o argumento da EP de que o facto de a LPG ter de efetuar o pagamento do adiantamento de 5 % à vista (mais um dia) constituía uma condição sine qua non ou uma condição prévia à entrada em vigor do contrato.
58. Para além do facto de o contrato não mencionar qualquer condição prévia, a correspondência não mencionava que o Sr. EE aguardava a devolução de um contrato assinado pela LPG (ou o pagamento do adiantamento de 5 %) antes de assumir qualquer compromisso contratual vinculativo. Efetivamente, a correspondência entre as partes na altura era inteiramente consistente com a nossa conclusão de que um Contrato vinculativo fora celebrado a 24 de março de 2023. Verificámos que não se tratava claramente, como a EP argumentava, de um mero "acordo para acordar".
59. Verificámos igualmente que o facto de o mercado do açúcar ter sido ou não volátil durante o período em causa era irrelevante, tal como o modus operandi da EP e de outras empresas comerciais. A questão era saber se as partes tinham assumido um compromisso vinculativo a 24 de março de 2023, o que concluímos que era claramente o caso. Na nossa opinião, a reação imediata da LPG ao WhatsApp da EP de 3 de abril de 2023, em que a Sr.a FF recordava ao Sr. EE que a LPG tinha uma encomenda confirmada e um contrato com a EP, era inteiramente justificada.
60. O Contrato, celebrado a 24 de março de 2023, incluía uma convenção de arbitragem escrita. Por conseguinte, ficámos convencidos de que tínhamos competência para apreciar o litígio que nos foi submetido (o que, aliás, não foi contestado nem pela LPG nem pela EP) e também de que as partes, ambas representadas por advogados, tinham tido várias oportunidades na arbitragem para apresentar os seus argumentos e documentação de apoio.
Existia um prazo para a LPG devolver o Contrato assinado
61. Analisámos cuidadosamente as alegações das partes e todos os elementos de prova que nos foram apresentados relativamente a esta questão. Neste contexto, verificámos que não havia um prazo específico acordado para que a LPG devolvesse o Contrato assinado com a EP, muito menos um prazo de um dia, como a PE nos pediu para constatar. Verificámos que nem o Contrato nem a Fatura Pró-Forma continham qualquer cláusula nesse sentido. Com efeito, tendo em conta que a devolução do Contrato assinado era uma mera formalidade, como constatámos, não seria expectável que as partes tivessem acordado qualquer prazo específico para a sua devolução.
62. Concordámos igualmente com a LPG que, se tivesse sido acordado um prazo para a devolução do Contrato assinado, era provável que o Sr. EE o tivesse referido na correspondência trocada nessa altura. No entanto, verificámos que, em nenhum momento antes de 6 de abril de 2023, a EP fez referência a qualquer prazo, ou ao termo de qualquer prazo, para a devolução do Contrato assinado.
63. Por exemplo, quando o Sr. EE enviou o Contrato e a Fatura Pró-Forma por PDF na noite de 24 de março de 2023 e por e-mail na manhã seguinte, a 25 de março de 2023, não fez qualquer referência a um prazo para a devolução do Contrato assinado. Quando a Sr.a FF sugeriu, a 27 de março de 2023, que a LPG voltaria a contactar a EP sobre o Contrato nesse dia ou no dia seguinte, o Sr. EE confirmou: "Não se preocupe". Do mesmo modo, na terça-feira, 28 de março de 2023, o Sr. EE perguntou se a Sr.a FF achava que a LPG poderia devolver o contrato assinado "esta semana". Verificámos que, embora o Sr. EE tenha perguntado educadamente se a LPG poderia devolver o contrato assinado no prazo de uma semana, não sugeriu que a Sr.a FF tivesse falhado ou estivesse prestes a falhar um prazo urgente (ou mesmo qualquer prazo).
64. Do mesmo modo, a 29 de março de 2023, o Sr. EE perguntou se a cópia assinada poderia ser recebida "ainda hoje." No entanto, quando a Sr.a FF respondeu que assinaria o contrato no dia seguinte e o devolveria, a resposta do Sr. EE foi "sim, por favor" Quando a Sr.a FF devolveu o Contrato assinado ao Sr. EE na noite de sexta-feira, 31 de março de 2023, este limitou-se a agradecer-lhe. Não fez qualquer tipo de comentário relativo a prazos ou atrasos e, em especial, não disse que a LPG tinha violado qualquer obrigação contratual no que respeita à devolução do Contrato assinado.
65. Só a 6 de abril de 2023, alguns dias depois de a Sr.a FF ter devolvido o Contrato assinado e depois de a LPG ter efetuado o pagamento do adiantamento de 5 %, é que a EP levantou a questão num e-mail em que alegava que "o prazo para a conclusão do negócio é de 1 dia (útil)."
Existia um prazo para a LPG efetuar o pagamento antecipado de 5 %?
66. A EP argumentou que, tal como refletido nos termos da Fatura Pró-Forma, que alegou ser complementar ao Contrato e que devia ser lido em conjunto com este, a LPG era obrigada a efetuar o pagamento dos 5 % iniciais no máximo um dia (ou dois dias, dada a diferença horária entre o Brasil e Singapura) após as partes terem chegado a acordo sobre as condições a 24 de março de 2023.
67. Analisámos atentamente os termos do Contrato e a disposição para o pagamento de 5 % «antecipadamente" com mais «5 % contra carregamento" e o saldo de 90 % "contra aceitação 7 dias". Constatámos que, embora as partes tivessem previsto um prazo para o pagamento do saldo de 90 % contra documentos de expedição, essa disposição não existia em relação ao primeiro adiantamento de 5 %. Não ficámos convencidos com argumento da EP de que, enquanto parte redatora, não se podia esperar que a EP considerasse todas as situações hipotéticas ao redigir o contrato. Verificámos que, tal como a LPG salientou, se a EP tivesse pretendido estabelecer um prazo específico para o pagamento do adiantamento de 5 %, poderia facilmente ter incluído essa disposição no Contrato, mas não o fez.
68. Também analisámos cuidadosamente as várias trocas de mensagens WhatsApp e de e-mail entre as partes. Neste contexto, verificámos que estes não eram coerentes com a afirmação da EP de que existia um prazo firme (e muito menos um prazo de um dia útil) para efetuar o adiantamento. Se tivesse sido acordado um prazo de um dia para o pagamento do adiantamento de 5 %, seria de esperar que o Sr. EE fizesse referência a esse prazo aquando do envio do contrato por WhatsApp a 24 de março de 2023 e por e-mail a 25 de março de 2023. Mas não mencionou qualquer prazo para o pagamento do adiantamento de 5 %.
69. Se o prazo para a LPG devolver o Contrato assinado e efetuar o pagamento do adiantamento de 5 % tivesse sido um dia útil a contar da data em que o Contrato e a Fatura Pró-Forma foram enviados pela EP para a LPG, então o prazo teria expirado a 27 de março de 2023. No entanto, nessa data, não houve qualquer menção em qualquer troca de mensagens WhatsApp sobre esse prazo ou sobre a sua validade. Além disso, numa troca de mensagens a 28 de março de 2023 (já depois do prazo de um dia), o Sr. EE pediu à Sr.a FF que o informasse sobre o pré-pagamento dos 300 contentores. No entanto, o que o Sr. EE não disse, nomeadamente, foi que o prazo para efetuar esse pré-pagamento já tinha expirado ou que estava prestes a expirar. Em resposta à indicação da Sr.a FF, a 28 de março de 2023, de que a LPG tentaria remeter os 5 % para a EP nessa semana, o Sr. EE respondeu "Não se preocupe, querida" Não mencionou qualquer problema com o facto de a Sr.a FF tentar efetuar o pagamento antecipado nessa semana (ou seja, por volta do final de março ou início de abril de 2023). Ele não levantou qualquer objeção ao que ela propôs.
70. Além disso, no seu e-mail de 31 de março de 2023, a Sr.a FF indicou que a LPG iria "... tentar enviar o adiantamento de 5 % na próxima semana". Mais uma vez, o Sr. EE não levantou qualquer objeção quanto ao facto de a LPG se ter atrasado no pagamento ou não ter cumprido qualquer prazo para pagar o adiantamento de 5 %. Na verdade, não fez qualquer objeção.
71. Na nossa opinião, se tivesse sido acordado um prazo de um dia para efetuar o pagamento do adiantamento de 5 %, é inconcebível que o Sr. EE não tivesse exercido bastante pressão para o pagamento nas suas respostas de 28 e 31 de março de 2023. Efetivamente, esperávamos que tivesse avisado claramente a LPG de que o tempo era fundamental e que era essencial que o pagamento fosse feito sem demora
No entanto,
71. Sr. EE não reagiu dessa forma, o que considerámos inteiramente coerente com o facto de não existir um prazo imediato ou iminente para a LPG efetuar o pagamento antecipado de 5 %. Só depois de a LPG ter efetuado o pagamento antecipado, a 6 de abril de 2023, é que a EP enviou um e-mail à LPG declarando: "Foi acordado um pagamento antecipado no âmbito da negociação, mas o pagamento efetivo foi recebido a 06/04, com um atraso de doze dias".
72. Concordámos igualmente com a LPG quanto ao facto de o alegado modus operandi da EP e a sua explicação quanto à razão para impor um prazo de um dia para que a LPG efetuasse o pagamento do adiantamento de 5 % relativo ao Contrato FCL 300 podia ser conciliado com a posição da EP relativamente ao contrato 15 FCL, em que acordou o pagamento 100 % em numerário contra documentos digitalizados.
73. Por todas estas razões, concluímos que não existia um prazo contratual de um dia a contar da celebração do contrato 300 FCL para a LPG efetuar o pagamento antecipado.
Qual foi o efeito da Fatura Pró-Forma?
74. Passámos então à Fatura Pró-Forma. No que se refere ao estatuto e ao conteúdo desse documento, não conseguimos chegar a acordo com a EP quanto ao seu significado. Considerámos que o documento essencial, e o que prevaleceu, era o próprio Contrato
75. Verificámos que a Fatura Pró-Forma resumia as condições do Contrato no que diz respeito ao Produto de base a expedir, Quantidade, Embalagem, Porto de Carregamento, Porto de Destino, Período de Expedição e Incoterm. A Fatura PróForma repetia então exatamente a primeira linha da cláusula de pagamento, a saber "5 % antecipadamente, 5% contra carregamento, 90 % Documento DA"
76. Verificámos que a parte principal da Fatura Pró-Forma que continha disposições relevantes para além das condições do Contrato era a parte que continha as instruções de pagamento (referindo-se a uma conta do Citibank de Nova Iorque), o pedido para que o número da fatura fosse mencionado no campo "Referência do Beneficiário" e o cálculo dos dois primeiros pagamentos de 5 % (243 000,00 USD cada) e o montante total devido (4 860 000 USD). Verificámos que o objetivo da Fatura Pró-Forma era fornecer um número de referência e os dados da conta a utilizar pela LPG ao realizar um pagamento via Swift (como a LPG fez a 6 de abril de 2023). Constatámos igualmente que a Fatura Pró-Forma não se referia apenas ao primeiro adiantamento de 5 %.
77. Analisámos cuidadosamente as provas que nos foram apresentadas e as alegações das partes quanto ao significado e ao efeito das palavras "Validade: 1 dias", que constavam por baixo do resumo das condições de pagamento e por cima do cálculo dos dois pagamentos de 5 %. Neste contexto, não pudemos aceitar o argumento da EP de que se tratava de uma disposição que exigia que a LPG efetuasse o pagamento do adiantamento de 5 % no prazo de um dia.
78. Analisámos com muita atenção a redação "Validade*" da Fatura Pró-Forma, mas não ficámos convencidos de que tivesse o efeito que a EP nos pediu que constatássemos que tinha. Já verificámos que, se as partes quisessem prever um prazo de pagamento para o primeiro adiantamento de 5 % deste tipo, poderiam facilmente tê-lo feito. Essa cláusula poderia, por exemplo, estabelecer que a LPG era obrigada a efetuar o pagamento antecipado de 5 % no prazo de (ou no máximo até um determinado número de dias a contar de um ponto de partida claramente definido, quer se tratasse da data do acordo sobre as condições ou de qualquer outro momento.
79. No entanto, na nossa opinião, do ponto de vista semântico, é difícil perceber que uma disposição que indica "Validade: 1 dias" na Fatura Pró-Forma se destinasse a constituir um prazo de pagamento contratual. Esta opinião foi reforçada pelo facto de a redação "Validade: 1 dias" surgir imediatamente a seguir à cláusula "Condições de pagamento" (que mencionava três tranches separadas: 5 %, 5 % e 90 %) e imediatamente antes da secção de cálculo, utilizando o preço unitário CFR de 600,00 USD e definindo valores para o "Montante Antecipado", "Montante Contra Carregamento" e "Montante Total Devido", concluiu que não havia nada que sugerisse que a cláusula "Validade: 1 dias" se aplicava a apenas uma das três tranches de pagamento resumidas na frase acima (ou seja, ao adiantamento de 5 %), ou mesmo qualquer boa razão para concluir que se aplicava a qualquer pagamento. Por conseguinte, considerámos que não constituía um prazo de pagamento. (Também considerámos que os argumentos relacionados com o alegado erro tipográfico na disposição "Validade" não tinham qualquer relevância).
80. Na nossa opinião, do ponto de vista do bom senso comercial, era muito mais provável que a disposição "Validades" se referisse ao período de validade da proposta apresentada pela EP à LPG a 24 de março de 2023. Para chegar a esta conclusão, baseámo-nos no facto de a validade de outras ofertas feitas aproximadamente na mesma altura pela EP à LPG (incluindo a oferta do Sr. EE ao Sr. GG a 23 de março de 2023) ser de 1 dia. Verificámos também que uma disposição de validade deste tipo não era invulgar num mercado de produtos de base flutuante como o do açúcar. Isto também era consistente com o comportamento das partes na altura. A Sr.a FF respondeu muito rapidamente e, seguramente, no prazo de um dia, à oferta do Sr. EE feita a 24 de março de 2023.
81. Para chegar a esta conclusão, tomámos igualmente em consideração o facto de a Fatura Pró-Forma da EP enviada à LPG relativamente ao carregamento de 15 FCL de abril de 2023 conter uma disposição idêntica "Validade: 1 dias", apesar de não ter sido efetuado qualquer adiantamento de 5 % (ou outra percentagem) relativamente a esse carregamento, uma vez que as condições de pagamento foram acordadas em 100 % CAD. Neste contexto, a menção "Validade: 1 dias" não significava claramente a datalimite para o pagamento de um adiantamento pela LPG, uma vez que este não fora efetuado. Houve uma violação do Contrato e, em caso afirmativo, quando?
82. Tendo em conta a nossa conclusão de que existia um contrato vinculativo a 24 de março de 2023 e que não existia um prazo para a LPG devolver o contrato assinado, concluímos que não houve qualquer incumprimento do contrato por parte da LPG ao devolver o contrato assinado, tal como fez, a 31 de março de 2023.
83. Analisámos cuidadosamente as discussões entre as partes a 3 e 4 de abril de 2023. Neste contexto, considerámos que, apesar de o Sr. EE ter indicado nas suas mensagens de 3 e 4 de abril de 2023 que era provável que houvesse um problema com a execução do Contrato, só a 6 de abril de 2023, após a receção do pagamento do adiantamento de 5 % da LPG, é que a EP notificou claramente por escrito que o Contrato seria doravante considerado nulo, que a EP só estava disposta a executar o Contrato "sob novo preço e condições" e que a EP devolveria o adiantamento de 5 %.
84. Considerámos que, no contexto de um Contrato CFR para contentores celebrado a 24 de março de 2023, que previa o envio em maio/junho de 2023, e na ausência de qualquer prazo contratual expresso para o pagamento do adiantamento de 5 %, era perfeitamente razoável que a LPG efetuasse esse adiantamento de 5 % quando o fez, a 6 de abril de 2023, altura em que considerámos que o Contrato ainda existia.
85. (Tendo em conta a nossa conclusão de que não era exigido à LPG que devolvesse o contrato assinado e/ou que efetuasse o pagamento do adiantamento de 5 % no prazo de um dia, como alegado pela EP, e que, por conseguinte, não existia qualquer infração por parte da LPG, não era necessário considerar se tinha havido qualquer renúncia por parte da EP.) BC.
86. Considerámos igualmente que, uma vez que não se tratava de uma situação em que o comprador não tivesse efetuado qualquer pagamento, as opções previstas na cláusula 10 do Contrato não eram aplicáveis e a EP não podia invocar a cláusula 10.
87. Assim, concluímos que as ações da EP ao considerar o contrato nulo a 6 de abril de 2023, reembolsando subsequentemente o adiantamento, que tinha sido corretamente efetuado nos termos do Contrato, e recusando-se a entregar o açúcar nos termos contratuais acordados, foram ilícitas e violaram o Contrato. Não podemos concordar com a alegação da EP de que tinha o direito de rescindir o contrato, mesmo que a sua razão para o fazer fosse a evolução do mercado.
Como devem ser avaliados os danos causados [à] LPG?
88. Analisámos cuidadosamente as alegações apresentadas por ambas as partes a este respeito. Neste contexto, concordámos com a LPG que a abordagem correta, partindo do princípio de que existia um mercado (o que verificámos que existia), era avaliar os danos com referência ao preço a que o açúcar podia ser comprado no mercado, sem referência a outros fatores externos. Também concordámos com a LPG que era irrelevante o facto de a LPG poder ter concordado em vender o açúcar a um terceiro por um preço superior ou inferior ao preço de mercado.
89. Especificamente, considerámos que a abordagem correta era a estabelecida por Wilby & Tettenborn, que consistia em tratar o comprador como se tivesse mitigado a sua perda comprando no mercado no momento do incumprimento. Isto também era consistente com o raciocínio em Bunge vs. Nidera.
90. Por conseguinte, considerámos que, nestas circunstâncias, a abordagem a adotar deveria consistir em analisar a situação da LPG no momento do incumprimento da EP. Depois de analisar cuidadosamente as várias opções, verificámos que a data de incumprimento era 6 de abril de 2023, data em que a EP tinha deixado claro que ".... este contrato é doravante considerado nulo..."
91. Tivemos em conta a concessão da LPG nas suas alegações de que, se a data da violação fosse 6 de abril de 2023, "o montante dos danos seria diferente porque o preço dos futuros a 6 de abril de 2023 era de 23,61, equivalente a 664,50 USD por tonelada"
CONSIDERAMOS E DECIDIMOS O SEGUINTE:
92. A EP pagará à LPG a quantia principal de 498 231 USD, calculada com base no preço de liquidação a 6 de abril de 2023 para o Açúcar NY#11 de maio de 2023 (a data em que verificámos que o Contrato foi rescindido) e deduzindo desse valor o preço de liquidação a 24 de março de 2023 (a data em que o Contrato foi celebrado):
23,61 - 20,82 = 2,79 x 22,04622 = 61,5089538 USD = 61,51 USD por tonelada, mantendo o mesmo prémio físico para ambas as datas. Com base na quantidade contratual de 8100 t, isto geriu um cálculo de danos de 61,51 x 8100 t = 498 231 USD.
TAMBÉM CONSIDERAMOS QUE:
93. A EP pagará à LPG juros simples a partir de 1 de junho de 2023 até à data da presente Decisão, à taxa de 7,5 % (sete e meio por cento) por ano, sendo esta taxa baseada, aproximadamente, na Secured Overnight Financing Rate ("SOFR") durante o período relevante, acrescida de 2 %. Considerámos também que os juros devem ser concedidos à taxa de juro da sentença, a contar do dia imediatamente a seguir à data da Decisão até à data do pagamento.
94. Considerámos também que, dado que a LPG tinha conseguido recuperar os danos, embora num montante inferior ao que tinha pedido, este era um caso adequado em que os custos deveriam acompanhar o evento.
POR CONSEGUINTE, DECIDIMOS E ORDENAMOS QUE:
95. A EP pague à LPG
(i) o montante principal de 498 231 USD; e
(ii) juros simples sobre o referido montante principal a uma taxa de 7,5 % (sete e meio por cento) por ano a partir de 1 de junho de 2023 até à data da presente Decisão; e
(iii) juros simples à taxa de 8 % (oito por cento) por ano a partir do dia imediatamente seguinte à data da presente Decisão até ao pagamento. DECIDIMOS E ORDENAMOS AINDA QUE:
96. A EP pague imediatamente à LPG as custas judiciais da LPG relativas à presente Decisão Final, que serão avaliadas numa base padrão pelo Supremo Tribunal inglês se não houver acordo.
97. A EP pague as custas da Associação relativas à presente Decisão Final, na condição de que, se a LPG tiver pagado a totalidade ou parte dessas custos em primeira instância, tenha direito ao seu reembolso imediato pela EP.
98. Fixamos as custas da presente Decisão Final em 24 300,00 £, excluindo o Imposto sobre o Valor Acrescentado.»
Descritos os factos, passemos à resolução da questão acima enunciada: saber se o acórdão recorrido, ao decidir que o reconhecimento da sentença arbitral estrangeira não conduzia a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português, violou o disposto no artigo 980.º, al. f) do CPC, artigo 56.º, n.º 1, b, ii) da LAV, artigos 483.º, 562.º, 566.º e 812.º, todos do Código Civil, e artigo 22.º da CRP.
A resposta a esta questão é negativa.
Segundo a recorrente, o reconhecimento da sentença arbitral estrangeira ofende a ordem pública internacional do Estado português porque a sentença a condenou a pagar à autora, ora recorrida, uma indemnização com fundamento na rescisão ilícita de um contrato de fornecimento de açúcar, quando, na realidade, a ruptura contratual não causou qualquer dano, prejuízo, à autora. Na tese da recorrente, a sua condenação no pagamento de indemnização sem que existissem danos a reparar violou as seguintes normas imperativas do ordenamento jurídico português: artigos 483.º, 564.º, 566.º, n.ºs 1 e 2, e 473.º, todos do Código Civil.
Ao alegar no sentido exposto, o que a recorrente alega, em substância, é que a decisão a rever incorreu em erro na decisão sobre a indemnização. Este erro consistia no seguinte: resultava dos preceitos acima indicados que só havia lugar a indemnização quando existissem danos a ressarcir e a ré, ora recorrente, foi condenada no pagamento de indemnização apesar de a autora, ora recorrida, não ter sofrido quaisquer danos com a rescisão ilícita do contrato de fornecimento de açúcar.
A alegação da recorrente não colhe contra o acórdão recorrido porque o erro da sentença arbitral estrangeira na resolução da questão da indemnização não constitui fundamento de recusa de reconhecimento das sentenças arbitrais estrangeiras.
Segundo o artigo 55.º da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV) aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, “Sem prejuízo do que é imperativamente preceituado pela Convenção de Nova Iorque de 1958, sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras, bem como por outros tratados ou convenções que vinculem o Estado português, as sentenças proferidas em arbitragens localizadas no estrangeiro só têm eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, se forem reconhecidas pelo tribunal estadual português competente, nos termos do disposto no presente capítulo desta lei”.
Os fundamentos de recusa do reconhecimento de sentença arbitral estrangeira estão previstos no artigo 56.º, n.º 1, da citada Lei. Entre eles figura, na subalínea ii) da alínea b), a recusa de reconhecimento quando este conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português.
Ao dizer que o reconhecimento e a execução de uma sentença arbitral proferida numa arbitragem localizada no estrangeiro só podem ser recusados com os fundamentos aí enunciados, decorre do n.º 1 do artigo 56.º o seguinte com relevância para a apreciação da questão acima enunciada: em primeiro lugar, os fundamentos de recusa do reconhecimento nele previstos são taxativos; em segundo lugar, tais fundamentos contendem apenas com questões formais e ou processuais, não com o mérito da decisão a rever.
A interpretação acabada de expor sobre a natureza formal do sistema de revisão das sentenças arbitrais estrangeiras foi afirmada no acórdão do STJ proferido em 14 de Março de 2017, no processo n.º 103/13.1YRLSB.S1., publicado em www.dgsi.pt. e por autores como Dário Moira Vicente que, na anotação ao artigo 56.º da Lei da Arbitragem Voluntária, escreve: “Os fundamentos de recusa do reconhecimento enunciados neste preceito têm caráter exaustivo. Exclui-se, além disso, qualquer revisão de mérito da sentença arbitral” (Lei da Arbitragem Voluntária Anotada, 5.ª Edição, revista e atualizada, 2021, Almedina, página 212).
O mesmo se diga do sistema de revisão de sentenças estrangeiras previsto no Código de Processo Civil, para onde também remete a recorrente ao imputar ao acórdão recorrido a violação da alínea f) do n.º 1 do artigo 980.º do CPC, ou seja, do preceito que tem redacção semelhante à da subalínea ii) da alínea b) do n.º 1 do artigo 56.º da LA e que prevê como requisito negativo da confirmação da sentença estrangeira que ela não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem jurídica internacional do Estado Português.
Também aqui se trata de interpretação afirmada em várias decisões do STJ, como sucedeu no acórdão proferido em 27 de Abril de 2017, no processo n.º 93/16.YRCBR.S1 e no acórdão do STJ proferido em 15-05-2025, no processo n.º 1355/24.7YRLSB.S1, ambos publicados em www.dgsi.pt e por autores como Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ao escreverem em anotação ao artigo 978.º do CPC, o seguinte a este propósito: “O sistema português de revisão de sentença estrangeiras visa o reconhecimento meramente formal, o que significa que os tribunais competentes, em princípio, se limitam a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não interferindo no fundo ou mérito da causa” (Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Almedina, página 423).
Segue-se do exposto que, quando verifica oficiosamente ou mediante a alegação da parte contra a qual a sentença é invocada se o reconhecimento dela conduz a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português, o tribunal não procede a novo exame do mérito da causa, não vai indagar se a sentença a rever errou na resolução das questões de facto e de direito submetidas à sua apreciação.
O que o tribunal irá fazer é verificar se o acolhimento da decisão na ordem jurídica, tal como foi proferida, conduz concretamente a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português. Socorrendo-nos das palavras do acórdão do STJ proferido em 15-05-2025, no processo n.º 1355/24.7YRLSB.S1, publicado em www.dgsi.pt. “... a ofensa da ordem pública internacional do Estado Português deve avaliar-se em concreto, isto é, através da comparação entre os princípios da ordem pública internacional e os resultados do reconhecimento da decisão judicial estrangeira”.
Sobre a ordem pública internacional diremos o seguinte.
O Código de Processo Civil não diz o que se deve entender por ordem pública internacional do Estado português, nem dá exemplos de tais princípios. Tem cabido à doutrina e à jurisprudência a densificação ou concretização deste conceito.
Socorrendo-nos das palavras de Rui Manuel Moura Ramos sobre o conceito e a noção de ordem pública internacional, trata-se de um “conceito indeterminado” e de “uma noção funcional”. “De um conceito indeterminado ou cláusula geral porque permite tomar em conta as circunstâncias particulares do caso concreto, transferindo para o juiz a tarefa de concretizar a disposição legal no momento da sua aplicação, o que é característica dos sectores abertos do direito. De uma noção funcional porque ela é indefinível a não ser pela função que lhe cabe desenvolver na ordem jurídica: impedir que a aplicação de certas regras ou o reconhecimento de determinadas sentenças (judiciais ou arbitrais) possam, num caso particular, pôr em causa aspectos essenciais da ideia de direito do sistema jurídico do foro” [Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 14 de Março de 2017, no processo n.º 103/13.1YRLSB, publicada na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 146, n.º 4003, Março-Abril de 2017, páginas 284 a 306].
Nas palavras de Baptista Machado, a ordem pública internacional do Estado Português é constituída “pelos princípios essenciais que fundamentam e garantem o bom funcionamento das instituições basilares da ordem jurídica portuguesa (artigo 22.º, do Código Civil)” - (Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 121º, páginas 269).
Este é também o sentido que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem dado à cláusula da ordem pública internacional como o atestam as seguintes decisões: o acórdão do STJ proferido em 23 de Fevereiro de 2012, no processo n.º 15/11.3YRCBR, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XX Tomo I/2012, páginas 93 a 97; o acórdão do STJ proferido em 26 de Maio de 2009, no processo n.º 43/09, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XVII, Tomo II/2009, páginas 73 a 77; acórdão do STJ, proferido em 24 de Abril de 2018, no processo n.º 137/17.7YRPRT, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XXVI Tomo I/2018 páginas 138 a 144; o acórdão do STJ proferido em 22-04-2021, no processo n.º 78/19.3YRLSB.S1, o acórdão do STJ proferido em 23-09-2021, no processo n.º 2247/20.4YRLSB.S1, ambos publicados em www.dgsi.pt.
No caso, avaliar em concreto se o acolhimento da sentença arbitral na ordem jurídica portuguesa conduz a um resultado manifestamente incompatível com ordem pública internacional do Estado português significa o seguinte. Trata-se de saber se a sentença, que decidiu condenar a ré, ora recorrente, no pagamento de uma indemnização à autora, ora recorrida, com fundamento no facto de aquela ter rescindido ilicitamente o contrato de fornecimento de açúcar e de, com essa rescisão lhe ter causado a ela, ré, danos (consistente na diferença entre o preço do açúcar numa determinada data - data em que o contrato foi rescindido - e o preço na data em que o contrato foi liquidado) é, em grau manifesto, incompatível com, para usarmos as palavras de Baptista Machado acima transcritas, “princípios essenciais que fundamentam e garantem o bom funcionamento das instituições basilares da ordem jurídica portuguesa.
A resposta é inequivocamente negativa. Uma sentença arbitral estrangeira, como aquela que foi sujeita a revisão, que, no âmbito de um contrato de fornecimento, condena a parte que o rescindiu ilicitamente a indemnizar a outra parte pelos danos que a rescisão lhe causou está em conformidade com a ordem jurídica portuguesa, designadamente com o disposto no artigo 798.º do CC, segundo o qual o devedor que falta culposamente ao cumprimento da sua obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.
Pelo exposto, é de manter o acórdão recorrido.
Decisão:
Nega-se a revista e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.
Responsabilidade quanto a custas:
Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a recorrente ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas custas do recurso.
Lisboa, 2 de Outubro de 2025
Relator: Emídio Santos
1.º Adjunto: Fernando Baptista de Oliveira
2.ª Adjunta: Ana Paula Lobo