RESPONSABILIDADE PELO RISCO
RESPONSABILIDADE CIVIL
CULPA DO LESADO
CULPA EXCLUSIVA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
INTERPRETAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
DANO MORTE
VÍTIMA
Sumário


Ainda que se interprete actualisticamente o artigo 505.º do CC, estando demonstrado que o acidente se deveu exclusivamente à conduta – gravemente culposa – do lesado, não é possível equacionar a hipótese de concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo.

Texto Integral



ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrentes: AA e Outros

Recorrida: Fidelidade Companhia de Seguros, S.A.

1. Nos presentes autos foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Julga-se a acção parcialmente procedente e condena-se a ré:

A) A pagar aos Autores o montante de 16.500€ (dezasseis mil e quinhentos euros) a título de compensação pelo dano morte e a lesão do correspondente direito à vida;

B) A pagar aos Autores o montante de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros) a título de compensação pelo dano não patrimonial sofrido pela vítima entre o momento do acidente e o momento da morte (dano intercalar);

C) A pagar a cada um dos Autores o montante de 4.500,00€ (quatro mil e quinhentos euros) a título de compensação pelos danos não patrimoniais próprios de cada um;

Tudo num total de 45.000,00€ (quarenta e cinco mil euros).

Do mais pedido, absolve-se a ré”.

2. Tendo a ré Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., interposto recurso de apelação independente e os autores AA e Outros recurso subordinado, veio o Tribunal da Relação do Porto proferir Acórdão em que se decidiu:

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação:

1- Julgar procedente o recurso interposto pela ré e, consequentemente, revogam a sentença recorrida que substituem por outra que julga a ação totalmente improcedente, com custas a cargo dos autores.

2- Julgar improcedente o recurso subordinado”.

3. Inconformados com este Acórdão, vieram AA, BB, CC, DD, EE e FF interpor recurso de revista, a título conclusivo, pode ler-se:

1-Os AA. reconhecem que a sua falecida mãe contribuiu para a ocorrência do atropelamento que a vitimou,

Todavia,

2-Apesar da pouca prova, parece aos recorrentes que resulta dos factos apurados que a culpa pela produção do acidente deveria ser fixada em partes iguais para a vítima e o veículo atropelante.

3-Dos factos provados, interpretados com as regas da experiência comum e deles retirando as ilações necessárias, temos que:

a) O veículo QM tinha de vir a circular a velocidade superior a 30km/h;

b) Que o condutor circulava distraído e alheado de restante trânsito de pessoas e veículo,

c) Que quando a falecida GG se encontrava já a cerca de 2 metros do passeio – sensivelmente a meio da hemi faixa de rodagem –,

d) Surge o veículo QM, cujo condutor, apesar da travagem, não conseguiu evitar o embate com a parte frontal do seu veículo na GG,

e) Projectando a vítima a 3,40m.

4-Mesmo que o tribunal decidisse – como decidiu – que a culpa pela produção do acidente era da falecida GG, sempre existiria responsabilidade pelo risco próprio do veículo automóvel.

5-Não pode imputar-se à malograda vítima uma culpa grave ou grosseira pela produção do acidente.

6-A falecida GG tinha 92 anos de idade e por força da natureza humana era uma pessoa mais vulnerável e certamente com as suas capacidades – visão, audição, coordenação, atenção e outras - mais diminuídas.

7-Apurou-se que:

a)A vítima era uma idosa, com 92 anos de idade,

b) Por motivo não apurado entrou da hemi faixa de rodagem,

c) Sensivelmente a meio da hemi faixa de rodagem foi embatida (ou embateu) pela frente de um veículo que aí circulava,

d) O veículo era um ligeiro de mercadorias – Renault Master -, tipo forgão, que tinha um atrelado a reboque,

e) Que a via se situa dentro de uma localidade, onde a velocidade recomendada é de 30km/h,

f) Que a vítima é impulsionada para a frente do veículo, onde cai a 3,40m da viatura, batendo com a cabeça no chão, e que,

g) Na sequência das lesões sofridas acabou por falecer.

8-Não se apurou o concreto motivo pelo qual a vítima entrou na hemi faixa de rodagem por onde circulava o veículo atropelante: se a tentativa de atravessar a via se algum desequilíbrio.

9-Não pode fazer-se, salvo o devido respeito, um juízo de culpa grave ou grosseira no comportamento da falecida GG que não quis, certamente, provocar o seu próprio atropelamento.

10-O Tribunal de Primeira Instância entendeu que a vítima não agiu com culpa grave e, por isso, decidiu – depois de fazer a devida ponderação – pela concorrência de culpa da vítima e do risco próprio da circulação do veículo, fixando a proporção em 70% para a vítima e 30% para o veículo.

11-Aos recorrentes parece-lhes mais ajustada uma concorrência entre culpa e risco de 50% para cada.

12-O Tribunal da Relação, de cujo Acórdão ora se recorre, entendeu que, havendo culpa da vítima, não pode haver concorrência entre culpa e risco, absolvendo a R. do pedido.

13-Entendemos que o risco próprio da circulação do veículo contribuiu para a produção do acidente, considerando, além do mais: as características de via, as características e comportamento da vítima e as características do veículo e a projecção de que a vítima foi alvo e ainda as lesões que o impacto com o veículo lhe provocaram e que levaram à sua morte.

14-Por justo, e efectuada a devida ponderação face às concretas circunstâncias do caso, parece-nos que a repartição - mesmo em sede de responsabilidade objectiva – da responsabilidade pela produção do acidente entre o risco de circulação do veículo e peão em partes iguais é a solução mais adequada.

16-A mais recente Jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a fazer uma interpretação actualista do artº 505º do C.C., de forma a permitir que, mesmo no caso de culpa da vítima (se não grosseira e grave), possa haver concorrência de culpa e responsabilidade pelo risco próprio da circulação de veículos automóveis.

17-Ao não repartir a responsabilidade pela produção do acidente entre a culpa da lesada e o risco da circulação do próprio veículo atropelante, e ao considerar que havendo culpa da vítima não pode existir concorrência entre culpa e risco, o Tribunal da Relação não fez a devida interpretação (mais actualista e de acordo com a jurisprudência mais recente) do normativo contido no artº 505º do código civil.

18-Apesar de ainda não ter consagração em termos de direito positivo no nosso país (ao contrário de outros) a qualidade de vítima vulnerável (como são, nomeadamente os peões ou idosos) tende a merecer maior proteção legislativa e judicial.

19-Deve, pois, ser revogado o Acórdão da Relação do Porto, proferindo-se decisão no sentido de permitir que a concorrência entre culpa e risco, mesmo considerando que a malograda vítima agiu com culpa.

20-A falecida GG, com 92 anos de idade, sem que motivo fosse apurado, entrou na hemi faixa de rodagem, foi atropelada, sendo projectada a 3,40m, o que lhe provocou lesões que determinaram a sua morte.

21-Os AA. perderam a sua querida mãe num acidente “estúpido” e por explicar…”.

4. A ré apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do Acórdão recorrido.

5. Por despacho do Tribunal da Relação do Porto foi determinada a subida do recurso a este Supremo Tribunal.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a única questão a decidir, in casu, é a de saber se o risco próprio do veículo contribuiu para a produção do acidente, devendo haver lugar a uma repartição da responsabilidade.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1 - No dia 29 de Junho de 2022, na Rua 1, União de Freguesias de Perafita, Lavra e Santa Cruz do Bispo, concelho de Matosinhos, pelas 12:00 horas, ocorreu um acidente de viação.

2 - No acidente foram intervenientes:

- Um Veículo Ligeiro de Mercadorias, matrícula ...-...QM, marca RENAULT modelo MASTER, propriedade de “C..., Lda”, conduzido por HH;

- Um peão, GG, nascida em D/M/1929, mãe dos Autores.

3 - O local do sinistro configura uma reta, com boa visibilidade,

4 - O tempo estava seco e o piso em bom estado.

5 - A via onde ocorreu o sinistro é uma via “dentro de localidades”,

6 - Cuja velocidade recomendada é de 30 km/h

7 - Onde existem vários edifícios afetos à habitação,

8 - Sendo um local com alguma afluência de utentes.

9 - O QM, que tinha um atrelado a reboque, circulava pela direita da faixa de rodagem, no sentido Norte-Sul.

10 - A uma velocidade não superior a 30 km/horários.

11 – GG ia a pé, pelo passeio do lado direito atento o mesmo sentido do veículo, aproximando-se da casa com o nº de polícia 939.

12 – A 44 metros da passadeira mais próxima.

13 – Nesse momento, sem que nada o fizesse prever, e por motivo não apurado, GG entrou na faixa de rodagem destinada à circulação de veículos.

14 – Isto no momento em que o QM chegava ao mesmo ponto

15 – O condutor do QM travou.

16 – GG bateu com ambas as mãos no capô do QM e devido ao solavanco do carro causado pela travagem é impulsionada para diante da viatura.

17 - Cai a 3,40m da viatura batendo com a cabeça no chão.

18 - Com a chegada dos bombeiros e do INEM, GG foi imobilizada em plano duro e com colar cervical.

19 - Após, foi transportada de urgência para o Hospital de São João do Porto.

20 - À entrada apresentava-se politraumatizada com trauma cranioencefálico e ferida no couro cabeludo, amaurose esquerda e pupila direita miótica, otorragia direita.

21 - Foram ministrados cuidados médicos e medicação intravenosa,

19 - A mãe dos Autores acabou por não resistir a tais lesões, vindo a falecer às 16 horas.

20 - Em 01.07.2022 foi sujeita a autópsia médico-legal, resultando de tal perícia a verificação das seguintes lesões ao nível da cabeça:

Partes moles: Presença de infiltração sanguínea da face interna do couro cabeludo na região parietal, occipital e temporal direita e do musculo temporal direito.

Ossos da Cabeça- Abóbada: Presença de fraturas lineares interessando toda a sutura lambdoide bilateralmente, osso parietal e ambos os ossos temporais, com topos ósseos infiltrados de sangue.

Ossos da Cabeça-Base: Presença de fratura (em dobradiça) do osso temporal bilateralmente, intersectando o andar médio bilateralmente e cruzando a linha média posteriormente à sela turca, com infiltração sanguínea dos topos ósseos. Presença de traço de fratura linear, no andar posterior à direita, com infiltração sanguínea dos topos ósseos.

Meninges: Presença de hemorragia subdural à esquerda. Presença de hemorragia subaracnoídea generalizada, mais marcada à esquerda e a nível do cerebelo.

Encéfalo: Forma normal, circunvoluções cerebrais muito alargadas e sulcos rasos, alterações compatíveis com edema do encéfalo; com congestão.

Tecido encefálico com aspeto macroscópico edemaciado e congestionado e presença de foco de contusão a nível da face inferior de ambos os lobos frontais e da face inferior do lobo temporal esquerdo, atingindo o córtex e parênquima. Presença de focos de contusão ao nível dos gânglios da base ocupando uma área de 0,3 cm de maior diâmetro, e a região cortical do lobo occipital direito. Ventrículos de tamanho diminuído, com revestimento liso e brilhante e líquor sanguinolento no seu interior. Vasos da base íntegros sem ateromatose. Peso: 1060g;

21 - As lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas supra descritas foram causa direta e necessária da morte que sobreveio à mãe dos Autores.

22 - A mãe dos autores era uma pessoa com vigor, energia e força física, ativa e saudável, para a idade que tinha

23 - Era uma pessoa feliz, dinâmica, sociável, dedicada à família e amigos,

24 - Caminhava vários quilómetros todos os dias.

25 - Fazia as compras diariamente e era visita frequente no cemitério.

26 - E muito considerada no meio onde vivia e no seio do seu círculo de conhecidos.

27 - GG amanhava um terreno que possuía até uns meses atrás, o que deixara de fazer por insistência dos filhos que entendiam não se adequar ao seu estado físico.

28 - Também uns meses antes deixara de fazer aulas de hidroginástica.

29 - Antes do sinistro os Autores mantinham com a mãe contacto diário,

30 - Que lhes dedicava amor e afeto,

31 - A morte de GG causou e continua a causar aos Autores, seus filhos, muita dor, muito sofrimento, muita e profunda tristeza, consternação e uma saudade eterna.

32 - A proprietária do veículo ...-...QM havia transferido a responsabilidade pelos danos causados nos seus passageiros e a terceiros, para a companhia seguradora ora demandada - Fidelidade, Companhia de Seguros S.A. -, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº .......31.

33 - O condutor do QM estava a trabalhar para a proprietária do veículo por si conduzido, de quem é gerente.

E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido:

1 - GG iniciou a travessia da faixa de rodagem com intenção de atingir o passeio do outro lado da via.

2 - Foi embatida pelo veículo quando se encontrava perto do eixo da faixa de rodagem.

3 - Ficou no chão, inanimada, a uma distância superior a 3,40 metros do QM

4 - O QM circulava a uma velocidade superior a 30km/h

5 - O QM seguia a uma distância de meio metro da berma.

6 - Não tendo o respetivo condutor travado ou abrandado a velocidade de que vinha animado.

7 - Circulava distraído e alheado ao restante trânsito de pessoas e veículos.

8 - Durante o tempo que mediou entre a ocorrência do acidente e a morte, a mãe dos Autores sentiu intensas dores e sofrimento e a angústia própria da súbita e inesperada finitude.

O DIREITO

O Tribunal a quo decidiu que o acidente se devia unicamente à conduta da vítima e, como tal, excluiu a responsabilidade pelo risco.

Pode ler-se no Acórdão recorrido a título de fundamentação:

Analisando a matéria de facto provada e não provada, não ficam dúvidas de que a culpa pela ocorrência do acidente se ficou a dever exclusivamente à conduta da infeliz vítima.

Por outro lado, nada resulta dos autos e, nomeadamente, dos factos apurados, no sentido de que tenha existido qualquer contribuição proveniente dos riscos próprios do veículo, que possa considerar-se, ainda que minimamente, como causal do sinistro.

Não podemos deixar de ter em conta que a concorrência do risco próprio do veículo não é automática, sob pena de haver responsabilidade sempre que tenha intervenção uma viatura automóvel.

No caso, o veículo circulava pela hemifaixa de rodagem destinada à sua circulação; circulava a baixa velocidade, tanto que, tendo a vítima invadido a faixa de rodagem de forma inesperada, ainda assim, o condutor conseguiu imobilizar o veículo, sem que sequer se tenha provado que chegou a embater na vítima.

Como refere o Senhor Juiz a quo, citando o Acórdão do STJ de 01/06/2017, disponível em www.dgsi.pt:

«Compete ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, ativo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente».

No entanto, não podemos concordar com a decisão recorrida quando conclui que “Qualquer que seja a razão, a idade avançada tornando-a uma pessoa mais vulnerável, atenua a responsabilidade de GG.”.

Até podíamos aceitar que assim fosse, se o condutor interveniente não tivesse atuado de forma absolutamente respeitadora das regras estradais, circulando a velocidade tão baixa que, apesar do inesperado aparecimento da vítima na faixa de rodagem, conseguiu parar o veículo sem chegar a embater na Senhora, como se retira do relatório de autópsia.

E, assim, também não podemos concordar com a decisão recorrida, quando aí se diz que “Mais, não é possível desconsiderar o risco de circulação do veículo. Porque GG foi projectada a 3,40m da viatura. É a força cinética do veículo, mesmo que baixa, que a atira ou empurra para trás levando a que caísse no solo. Vindo a falecer por causa das feridas na cabeça.”, e que “Não se consegue, assim, formular um juízo de culpa grave da lesada que exclua a responsabilidade pelo risco fruto do facto de ser uma pessoa mais vulnerável do que as restantes. Logo, entende-se que com a sua culpa concorre o risco do veículo”.

Ao contrário do que parece ser a posição do tribunal recorrido, entendemos que a interpretação do art. 505.º do CC, não pode exigir que o lesado culpado tenha atuado com culpa grave, para excluir a concorrência da sua culpa e do risco próprio da utilização do veículo.

Consideramos que deve, antes, ser interpretado no sentido de que, para haver lugar a concorrência entre a culpa do lesado e os riscos próprios do veículo, a contribuição do lesado para a ocorrência do acidente não seja devida a uma culpa qualquer, ou seja, que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura, como é posição do STJ, nos termos referidos supra.

No caso, provada a culpa exclusiva da vítima na produção do acidente e não se verificando qualquer contribuição adequada a causar esse mesmo acidente, proveniente dos riscos próprios do veículo, fica afastada a possibilidade de ponderar a concorrência entre a culpa do lesado e o risco do veículo interveniente no acidente.

Assiste, assim, razão à ré/recorrente, devendo ser revogada a sentença recorrida, e a ação ser julgada totalmente improcedente.

Face ao ora decidido, improcede necessariamente o recurso subordinado, quanto à pretensão de alteração em termos de decisão de direito”.

Não pode deixar de se acompanhar a decisão do Tribunal a quo. Os factos provados indicam que o infeliz acidente se deu exclusivamente ao factor da conduta – gravemente culposa – da vítima. Sendo uma pessoa medianamente capaz e sensata, apesar da sua idade (cfr. factos provados 22 a 28), só assim se pode qualificar a sua entrada na faixa de rodagem destinada à circulação de veículos (cfr. facto provado 13).

De acordo com a factualidade provada, o QM circulava pela direita da faixa de rodagem, no sentido Norte-Sul, a uma velocidade não superior a 30 km/horários (cfr. factos provados 9 e 10), GG ia a pé, pelo passeio do lado direito atento o mesmo sentido do veículo, a poucas dezenas de metros da passadeira mais próxima (cfr. factos provados 11 e 12) e, sem que nada o fizesse prever, e por motivo não apurado, entrou na faixa de rodagem destinada à circulação de veículos (cfr. facto provado 14), no momento em que o QM chegava ao mesmo ponto (cfr. facto provado 14), tendo o condutor do QM travado (cfr. facto provado 15).

Acresce que, ao contrário do que dizem os recorrentes, não é possível dizer-se que o Tribunal recorrido “entendeu que, havendo culpa da vítima, não pode haver concorrência entre culpa e risco” (cfr. conclusão 12). A tese da concorrência de culpa e risco foi considerada e admitida pelo Tribunal; aquilo que sucedeu foi, simplesmente, que se considerou que, in casu, o risco não havia contribuído de todo para a produção do acidente, o que é uma coisa bem diferente.

Se não veja-se o que se diz no Acórdão impugnado:

(…) o art. 503.º, nº 1, do Código Civil dispõe que:

“1 - Aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.”.

O art. 505.º do mesmo diploma legal, por sua vez, prevê que:

“Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.”.

E assim sendo, poder-se-ia concluir que havendo culpa do lesado, ficaria excluída a responsabilidade pelo risco.

Admitimos, contudo, como na sentença recorrida se diz, que a jurisprudência tem vindo a fazer uma interpretação atualista desta norma, negando que uma qualquer culpa do lesado afaste a responsabilidade pelo risco (sublinhado nosso), pelo que, a existência do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo automóvel, terá de ser apreciada em concreto.

Neste sentido, foi decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-02-2024, Processo 313/18.5T8GMR.G1.S1, disponível me dgsi.pt, onde se diz que:

“I - Deve seguir-se a orientação jurisprudencial do STJ quanto à interpretação actualista do art. 505.º do CC, no sentido de acolher a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo automóvel.

II - Porém, admissibilidade da concorrência não é automática só porque o interveniente no acidente tenha sido um veículo, exigindo-se um juízo de adequação sobre a imputação objectiva do acidente.

III - Provando-se a culpa exclusiva do lesado na produção do acidente e não se verificando qualquer contribuição causalmente adequada proveniente dos riscos próprios do veículo, fica afastada a possibilidade de ponderar a concorrência entre a culpa do lesado e o risco do veículo interveniente no acidente.”.

Como se refere nesse mesmo acórdão, através do Ac. STJ de 05/6/2012, Proc. nº 100/10.9YFLSB, acessível na base de dados da dgsi, consolidou-se no Supremo Tribunal de Justiça uma interpretação do art. 505.º do Código Civil no sentido de que não implica “uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efetivo do veículo (e respetiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa”.

E mais se diz nesse acórdão que “A tese do concurso do risco do responsável com a culpa do lesado suscitou um reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia pedindo pronúncia sobre a interpretação a dar à 3ª Diretiva Automóvel – art.1º-A – e se ela se opõe ao segmento do direito nacional interpretado no sentido de impedir assim que concorresse com a culpa do menor a responsabilidade pelo risco por parte do veículo ligeiro, vindo esse tribunal, em acórdão de 09 de Junho de 2011 a decidir que “A Diretiva 72/166/CEE do Conselho de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Diretiva 90/232/CEE do Conselho de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título de seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano.”

A adoção desta posição do TUE resulta clara no Acórdão do STJ de 12.12.24, processo 326/20.7T8BGC.G1.S1 (Ana Paula Lobo), no qual se refere que “Sem que a legislação europeia, que tem vindo a dispensar especial atenção às vítimas vulneráveis, nomeadamente em sede da obrigatoriedade do seguro automóvel, ou nacional tenha traçado qualquer critério de repartição da culpa em situações similares, cremos possível, ainda assim, seguir as linhas de orientação interpretativa do Tribunal de Justiça da União Europeia constante dos acórdãos Candolin, Ferreira Santos, Ambrósio Lavrador e Marques Almeida, todos disponíveis in www.curia.eu, no sentido de que a indemnização da vítima apenas poderá ser limitada com base numa apreciação individual, e seguindo um critério de proporcionalidade. Na presente situação não estamos em face de uma culpa leve e desculpável do lesado, um mero descuido ou precipitação, ainda que se trate de um jovem com apenas 16 anos. O comportamento que adoptou é muito grave e perigoso para qualquer peão, em qualquer situação, sobretudo para a vida e a integridade física dos peões, por muito que pesem humanamente as consequências daí advindas.”.

Ora, tendo em conta a posição que resulta dos acórdãos citados, e ao contrário do que se considerou na sentença recorrida, entendemos não se verificar no caso em apreciação, o exigido juízo de adequação sobre a imputação objetiva do acidente aos riscos próprios da utilização do veículo”.

Dê-se aqui, apesar de tudo, atenção ao artigo 505.º do CC.

Dispõe-se neste preceito:

Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo nº 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.

Fazendo uma breve referência à história da norma, dir-se-á que, numa primeira fase, ela foi interpretada no sentido de que bastava o acidente ser imputável, em termos de culpa ou mesmo de mera causalidade, ao próprio lesado ou a terceiro para ficar excluída a responsabilidade pelo risco1.

Paulatinamente, porém, esta interpretação foi sendo posta em causa, firmando-se, em alternativa, tanto na doutrina como na jurisprudência, a tese da admissibilidade do concurso da culpa do lesado com o risco do veículo2. De acordo com ela, a responsabilidade pelo risco só deve ser afastada quando o acidente for imputável, em exclusivo, ao próprio lesado ou a terceiro ou resultar, em exclusivo, de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo3.

Ilustrativo desta nova orientação é o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.06.2017, Proc. 1112/15.1T8VCT.G1.S1, em cujo sumário pode ler-se:

“[o] regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Compete ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente4.

Mas veja-se ainda, dando relevância à situação, que é a dos presentes autos, em que o acidente se deve em exclusivo ao comportamento do lesado, o Acórdão deste Supremo Tribunal, proferido 5.05.2022, no Proc. 5080/18.0T8MTS.P1.S1, de cujo sumário consta, sinteticamente:

I – O art. 505.º do Código Civil deve ser objecto de uma interpretação actualista, admitindo-se o concurso da culpa do lesado com o risco do veículo.

II — Face à interpretação actualista do art. 505.º do Código Civil, a exclusão da responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art. 503.º restringe-se aos casos em que haja dolo ou por culpa grave do lesado, ou em que o facto do lesado deva considerar-se como causa exclusiva do acidente”.

Para a concretização do volte face contribuiu decisivamente o Direito europeu, sobretudo as iniciativas legislativas visando a harmonização das legislações nacionais relativas ao seguro automóvel. Reflectindo uma preocupação crescente com a protecção das vítimas de acidentes de viação ou adoptando a “perspectiva da vítima”, as Directivas 72/166/CEE, do Conselho, de 24.04.72 (Primeira Directiva), 84/5/CEE, do Conselho, de 30.12.83 (Segunda Directiva), 90/232/CEE, do Conselho, de 14.05.90 (Terceira Directiva), 2000/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16.05.00 (Quarta Directiva) e 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11.05.2005 (Quinta Directiva) (esta transposta parcialmente para a ordem jurídica interna pelo DL nº 291/07 de 21.08) – codificadas desde 2009 na Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16.092009 – alteraram, de facto, o quadro de referências do intérprete. O Tribunal de Justiça da União Europeia teve também um contributo importante, ao deixar claro que se impunha, neste contexto, a interpretação do Direito interno conforme ao Direito europeu5. Fez isto, desde logo, através do Acórdão Katja Candolin, de 30 de Junho de 2005, Processo C-537/036, e, despois, através do Acórdão Elaine Farrell, de 19 de Abril de 2007, Processo C-367/057 8 9.

Voltando ao caso dos autos, é visível que o Tribunal não só conhecia a história do artigo 505.º do CC como teve em conta a interpretação progressista ou actualista da norma; o que, simplesmente, entendeu foi que o acidente era única e exclusivamente imputável à vítima.

Num caso em tudo semelhante ao presente concluiu-se em Acórdão desta 2.ª Secção do Supremo Tribunal, proferido em 17.12.2019 no Proc. 6610/16.7T8GMR.G1.S2:

Estando demonstrado que o acidente se deveu exclusivamente à conduta do lesado, não é, evidentemente, possível equacionar a hipótese de concurso da culpa do lesado com responsabilidade pelo risco (e, designadamente, considerar a aplicabilidade do artigo 505.º do CC, na interpretação actualista) (…)”.

E mesmo que se entenda que “o problema da exclusão da responsabilidade [não é] uma pura questão de nexo de causalidade” e que “o mero facto objetivo de ter dado ‘causa’ ao acidente não permite uma decisão valorativamente fundamentada; [que] tem de ser tida em conta a situação da pessoa concreta do lesado”, já que “[u]m acto ‘culposo’ do lesado não merece a mesma valoração que um ato não ‘culposo’; e o grau de censurabilidade da conduta da vítima tem de ser tido em conta para saber em que medida a coletividade dos automobilistas deve suportar os encargos com a indemnização10, não se altera a solução.

É que, como se disse, ao entrar na faixa de rodagem destinada à circulação de veículos (cfr. facto provado 13), GG expôs-se com culpa grave a um perigo sério objectivo, sendo, consequentemente, o factor causal do risco do veículo anulado pela conduta especialmente censurável da lesada.

Como também se disse, a valoração da conduta da lesada (ponderação da capacidade e de outras circunstâncias relevantes) é consentida pela factualidade provada, da qual decorre que GG era uma pessoa com vigor, energia e força física, ativa e saudável, para a idade que tinha, era uma pessoa dinâmica, caminhava vários quilómetros todos os dias, fazia as compras diariamente e era visita frequente no cemitério e, até há pouco tempo, fazia aulas de hidroginástica e amanhava um terreno que possuía, o que deixara de fazer por insistência dos filhos. (factos provados 22 a 28).

A decisão do Acórdão recorrido afigura-se, em suma, como sendo a decisão correcta e, assim sendo, não pode deixar de ser confirmada.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se, na íntegra, o Acórdão recorrido.


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Custas pelos recorrentes.

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Lisboa, 2 de Outubro de 2025

Catarina Serra

Maria da Graça Trigo

Orlando Nascimento (vencido nos termos de declaração de voto que se segue)


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Vencido por entender que a matéria de facto fixada pelas instâncias relativamente às circunstâncias do evento danoso demonstra claramente que o condutor do veículo ligeiro de mercadorias, ...-...QM, violou o princípio geral relativo a regulação de velocidade de veículos estabelecido no art.º 24.º do Código da Estrada (C.E.) - ”… regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características … do veículo, à carga transportada, …e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente” e violou a previsão especial de velocidade moderada imposta pelo art.º 25.º, n.º 1, als. c) e e) do mesmo C. E. - “1 - Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade: c) Nas localidades ou vias marginadas por edificações; e) À aproximação de utilizadores vulneráveis”.

Com efeito, em relação à primeira dessas normas, o veículo ligeiro de mercadorias era composto pelo veículo em si mesmo e pelo reboque a que se reportam o n.º 1, do art.º 110.º e o n.º 3 do art.º 111.º, do C.E. (facto provado sob o n.º 9, … que tinha um atrelado a reboque…).

Tendo a via em que ocorreu o evento o limite máximo de 30 km/h (facto provado sob o n.º 6) o veículo seguia a velocidade não apurada não superior a esses 30 km/h (facto provado sob o n.º 10). Devendo o condutor imobilizar o veículo nas circunstâncias relativas à vítima a que se reporta o facto sob o n.º 13 (…sem que nada o fizesse prever, e por motivo não apurado, … entrou na faixa de rodagem destinada à circulação de veículos), apesar de ter travado (facto sob o n.º 15), não imobilizou o veículo com reboque, entrou em solavanco, embateu na vítima e projetou-a para diante, com queda a 3,40 m e embate com a cabeça no chão (factos provados sob os n.ºs 16 e 17).

O condutor do veículo violou também o disposto no art.º 25.º, n.º 1, als. c) e e) que lhe impunham “Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados (os 30 km/h a que se reporta o facto provado sob o n.º 6), o condutor deve moderar especialmente a velocidade c) Nas localidades ou vias marginadas por edificações; e) À aproximação de utilizadores vulneráveis.

A via encontra-se dentro de localidade (facto provado sob o n.º 5), sendo ladeada por edifícios afetos a habitação (factos provados sob os n.ºs 7 e 11), tendo alguma afluência de utentes (facto provado sob o n.º 8), a vítima com 91 anos seguia pelo passeio (factos provados sob os n.ºs 2 e 11), a via era uma reta, com boa visibilidade, o tempo estava seco e o piso em bom estado (factos provados sob os n.ºs 3 e 4).

Com a violação de tais preceitos do C. E. o condutor do veículo não o conseguiu imobilizar em face do comportamento da vitima a que se reporta o facto sob o n.º 13, embateu na vítima, projetou-a sobre o solo, assim contribuindo, em termos de nexo de causalidade (em concausalidade), para o evento danoso, ferimentos e morte da vítima.

Dispondo o n.º 1, do art.º 483.º, do C. Civil que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”, o certo é que o mesmo preceito legal, como o Código Civil em que se insere, não define o conceito de mera culpa a que se reporta como pressuposto da obrigação de indemnizar nele estabelecida.

Não obstante, porque de elaboração posterior e por corresponder aos desenvolvimentos doutrinais e jurisprudenciais mais recentes, não podemos deixar de aqui fazer apelo ao conceito de negligência plasmado no art.º 15.º, do C. Penal.

Dispõe o art.º 15.º, al. a), do C. Penal, sob a epígrafe “Negligência” que “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto … mas actuar sem se conformar com essa realização;”.

Ora, o condutor do veículo não adoptou o cuidado que lhe era imposto pelas normas estradais citadas, nos termos já referidos, não podendo deixar de se lhe prefigurar como possível, que uma cidadã idosa, que seguia pelo passeio, numa localidade, por qualquer circunstância de sua vontade ou estranha à sua vontade, entrasse na faixa de rodagem.

E é esta, aliás, também a esfera de proteção das normas estradais antes referidas relativas à regulação de velocidade, as quais contêm em si mesmas dois pressupostos essenciais, a saber, a perigosidade da circulação automóvel e a vulnerabilidade dos cidadãos que dela são próximos.

Em face do avistamento no passeio lateral à via de criança/s ou idoso/s como no caso acontece, entre outros utilizadores vulneráveis dessa via ou, pelo menos, de cidadãos em relação aos quais, pelas circunstâncias de idade, se podem esperar comportamentos desadequados à circulação automóvel, realidade social consabidamente perigosa, não pode o condutor deixar de regular a velocidade do veículo, em ordem a prevenir/reduzir essa mesma perigosidade.

Tivesse o condutor do veículo dado cumprimento a tais preceitos e o comportamento da vítima a que se reporta o facto sob o n.º 13, poderia não ter determinado, nem o embate entre esta e o veículo, a projeção e o embate no pavimento da via, a que se reportam os factos sob os números 16 e 17, nem a sua morte, a que se reportam os números 16 a 20 e 19 a 21 (estes em repetição) sendo que um hipotético embate lateral com/no veículo, possível em face dos factos provados sob os números 13 e 14, não apresentaria as consequências danosas em causa nos autos.

Tendo a ação do condutor contribuído para o evento danoso, como exposto, concederia, pois, a revista, não por uma concorrência entre culpa e risco, mas partindo de uma concausalidade para o evento danoso entre o condutor e a vítima na proporção de 50%.

Orlando Santos Nascimento

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1. Cfr., por todos, na doutrina, Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, Coimbra, Almedina, Coimbra, 2000 (10ª edição), pp. 675-678, e Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, pp. 517-518. Cfr. na jurisprudência, os Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 26.09.96, Proc. 15/96, de 10.12.96, Proc. 517/96, de 5.06.97, Proc. 1/97, de 10.02.98, Proc. 443/97, de 18.11.99, Proc. 765/99, de 7.06.01, Proc. 1462/01, de 9.10.03, Proc. 2761/03, de 6.11.03, Proc. 03B3525, de 2.11.04, Proc. 04A3457, de 12.04.05, Proc. 05A714, de 29.11.05, Proc. 3236/05, de 24.01.06, Proc. 3941/05, de 31.01.06, Proc. 4089/05, de 18.04.06, Proc. 6A701, de 22.06.06, Proc. 06B1862, de 9.09.08, Proc. 1952/08, de 6.11.08, Proc. 08B3331, de 1.07.10, Proc. 3756/06.3TBSTS.P1.S1, e de 25.11.10, Proc. 12175/09 [todos com sumários disponíveis em “A culpa nos acidentes de viação na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça – Sumários de Acórdãos de 1996 a Setembro de 2014”, Gabinete de Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça Assessoria Cível (disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2017/10/culpanosacidentesdeviao1996asetembrode2014.pdf)].

2. Explica bem a mudança de orientação Gregório Silva Jesus [“Infracções estradais causais nos acidentes de viação”, in: Direito Estradal, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, Outubro de 2016, p. 72 (disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/e_book_direito_estradal.pdf)]: “[a] interpretação rígida do art. 505.º, no sentido da recusa do concurso risco do veículo-conduta do lesado, é compreensível nos anos mais recuados perante um sistema de responsabilidade pelo risco especialmente preocupado na protecção dos detentores de veículos de circulação terrestre numa época se m a “segurança” do seguro obrigatório. Mas com a obrigatoriedade de contratação de um seguro de responsabilidade civil como pressuposto da circulação de veículos terrestres a motor, o surgimento, por influência comunitária, de um conjunto de diplomas expansivos da própria responsabilidade pelo risco, a afirmação noutros sectores de actividade da responsabilidade concausal entre o risco e o facto culposo do lesa do, o reflexo das sucessivas directivas comunitárias sobre o seguro de responsabilidade civil automóvel alargando o seu âmbito, e a referência de outros ordenamentos jurídicos europeus sobre acidentes de vi ação mais preocupados com a tutela dos lesa dos mais frágeis, é incontroverso que se assiste a um poder oso movimento jurídico alargando a finalidade tutelar da responsabilidade pelo risco inspiradora da necessidade de se encetar uma interpretação actualista e moderna, de encetar uma inversão de rumo com uma interpretação menos rígida dos preceitos legais aplicáveis, que, como se escreveu no Acórdão de 4/10/07, 'seja penetrada de uma lufada de ar fresco, sensível às novas linhas de força da relação entre o risco dos veículos e a fragilidade de certos participantes no tráfego e que conduza à tutela destes últimos, dos lesados mais frágeis'”.

3. Em rigor, o precursor deste novo entendimento foi Adriano Vaz Serra, “Conculpabilidade do prejudicado”, in: Boletim do Ministério da Justiça, 1959, n.º 86, pp. 155 e s. Seguiram-se-lhe, entre outros, J. G. de Sá Carneiro, “Responsabilidade civil e criminal por acidente de viação”, in: Revista dos Tribunais, 1965, pp. 72-73, e 1967, pp. 439 e s., Francisco Pereira Coelho, Obrigações – Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra, 1967, pp. 169 e s., Jorge Sinde Monteiro, Estudos sobre a responsabilidade civil, Coimbra, 1983, pp. 73-74 (e nota 2016), João Calvão da Silva, “Anotação ao Acórdão do STJ de 1 de Março de 2001 [Acidentes de viação. Concorrência do risco com a culpa do lesado (art. 505.º): limites máximos de responsabilidade objectiva (art. 508.º) e montantes máximos obrigatórios de seguro; indemnização e juros de mora (arts. 566.º, n.º 2, e 805.º, n.º 3)]”, in: Revista de Legislação e de Jurisprudência, 2001, n.ºs 3924 e 3925, pp. 115 e s., José Carlos Brandão Proença, A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Coimbra, Almedina, 1997, pp. 206 e s., e pp. 811 e s., e “Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e conduta do lesado: a lógica do 'tudo ou nada'? – Anotação ao Acórdão do STJ de 6.11.2003; proc. 565/03”, in: Cadernos de Direito Privado, 2004, n.º 7, pp. 25 e s., Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 2006 (10-ª edição), p. 639 (nota 1), António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, VIII – Direito das ObrigaçõesGestão de negócios, enriquecimento sem causa, responsabilidade civil, Coimbra, Almedina, 2017, p. 676, e Maria da Graça Trigo, “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação», in: Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, volume II, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2015, pp. 495 e s. No plano jurisprudencial, numa primeira fase, podem indicar-se como mais emblemáticos, o (pioneiro) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4.10.07, Proc. nº 07B1710, e, algum tempo depois, o Acórdão do mesmo Tribunal de 5.06.12, Proc. 100/10.9YFLSB [ambos com sumários disponíveis em “A culpa nos acidentes de viação na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça – Sumários de Acórdãos de 1996 a Setembro de 2014”, cit.]. Mais recentemente, destacam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1.06.2017, Proc. 1112/15.1T8VCT.G1.S1, de 28.03.2019, Proc. 954/13.7TBPMS.C1.S1, e de 17.10.2019, Proc. 15385/15.6T8LRS.L1.S1 (todos disponíveis em http://www.dgsi.pt).

4. Sublinhados do Acórdão.

5. Apesar de não estar em causa, rigorosamente, a harmonização dos regimes de responsabilidade civil automóvel, concluem Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandez [“O porteiro e a lei - A propósito da possibilidade de interposição de recurso do despacho de reenvio prejudicial à luz do direito da união europeia”, in: Julgar, 2011, n.º 14, pp. 121-122 (disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2014/07/06-DEBATER-Alessandra-Oliveira-et-al-Interposi%C3%A7%C3%A3o-de-recu.pdf] que “o Tribunal de Justiça não deixa de salientar a obrigação de os Estados-Membros garantirem que a responsabilidade civil aplicável segundo o seu direito nacional esteja coberta por um seguro conforme àquelas Directivas Os Estados-Membros devem, pois, exercer as suas competências nesta matéria respeitando o Direito da União Europeia existente, não podendo as disposições nacionais que regulam as indemnizações devidas por sinistros resultantes da circulação de veículos privar as referidas Directivas do seu efeito útil”. As autoras enaltecem a iniciativa de reenvio prejudicial feito, no domínio desta temática, pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 20.01.2009, Proc. 08A38087 (cfr. Alessandra Silveira / Sophie Perez Fernandez, “O seguro automóvel. Considerações sobre a posição do Tribunal de Justiça da União Europeia em sede de reenvio prejudicial (a propósito do Acórdão Ambrósio Lavrador de 2011), in: Cadernos de Direito Privado, 2011, n.º 34, pp. 7 e s.).

6. Cfr., em especial, considerandos 27 e 28. O Acórdão está disponível em http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf;jsessionid=9ea7d2dc30dd9e3ab79589c94a64b186891f6aa286f4.e34KaxiLc3qMb40Rch0SaxuPb3z0?docid=59869&pageIndex=0&doclang=PT&mode=&dir=&occ=first&part=1&cid=638030).

7. Cfr., em especial, considerando 34. O Acórdão está disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62005CJ0356&from=DE.

8. Para uma síntese destas e outras decisões paradigmáticas do Tribunal de Justiça da União Europeia e do seu significado cfr. José Carlos Moitinho de Almeida, “Seguro Obrigatório Automóvel: O Direito Português face à Jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias», in: Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2007, n.º 7, pp. 55 e s. (também disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/moitinhoalmeida_seguroobrigatorio.pdf). Conclui o autor que “[r]esulta, pois, incompatível com o direito comunitário a interpretação do artigo 505.° do Código Civil segundo a qual, verificando-se culpa do lesado e sendo a respectiva conduta causa do acidente é excluída a responsabilidade pelo risco consagrada no artigo 503.°, n.°1, bem como o artigo 570.° do mesmo Código que permite, em tal caso, a exclusão da indemnização”.

9. Para uma análise de fundo sobre o impacto da legislação e da jurisprudência do Tribunal de Justiça na interpretação da disciplina do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel cfr. Jorge Sinde Monteiro, “Da Legislação Europeia sobre o Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel e sua repercussão no regime dos Acidentes Causados por Veículos. A propósito dos Acórdãos Ferreira Santos, Ambrósio Lavrador (e o.) e Marques de Almeida, do TJUE”, in: Revista de Legislação e de Jurisprudência, 2013, n.º 3977, pp. 82 e s. Na mesma linha e merecendo destaque (designadamente pela data da sua publicação recente) cfr. Jorge Sinde Monteiro, Acidentes de viação – Adaptação do Código Civil à legislação e jurisprudência da União Europeia, Coimbra, Almedina, 2024, esp. pp. 41-82.

10. Cfr. Jorge Sinde Monteiro, Acidentes de viação – Adaptação do Código Civil à legislação europeia e jurisprudência da União Europeia, cit., pp. 162-163 (interpolação nossa) (cfr. ainda pp. 273-299). Cfr. ainda com interesse para o tema do concurso do risco com a culpa do lesado, Maria da Graça Trigo, “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação”, Direito e Justiça, volume 2, N.º especial – Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, 2025, pp. 467-497.