ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
DELIBERAÇÃO
COMUNICAÇÃO
NULIDADE
PRISÃO PREVENTIVA
DESCONTO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
MEDIDA DA PENA
Sumário

Não há qualquer nulidade quando a deliberação sobre a alteração não substancial dos factos descritos na acusação foi previamente tomada pelo Tribunal Colectivo, mas a sua comunicação foi efectuada no dia designado
para a leitura do acórdão, em audiência, pela Juíza Presidente do Colectivo.
Não há alteração substancial dos factos se do julgamento resultou apenas a prova de pormenores relativos a mais alguns comportamentos violentos do arguido para com a vítima, enquadráveis na prática do mesmo crime de violência doméstica, protelado no tempo.
Não existe omissão de pronúncia se no acórdão não se procedeu ao desconto dos dias de prisão preventiva na pena aplicada ao recorrente, pois o momento próprio para se determinar o desconto dos dias de prisão preventiva é o da liquidação da pena, excepto quando tiver sido aplicada pena anterior e posterior de diferente natureza.
Não impugna correctamente a matéria de facto o recorrente que se limita a apresentar uma lista de meios de prova que, no seu entender, impunham decisão diversa, mas sem articular esses meios de prova com os factos que em concreto pretendia ver provados e sem dizer que factos seriam esses.
Só em caso de desproporcionalidade manifesta na fixação da pena ou de necessidade de correcção dos critérios da sua determinação, atenta a culpa e as circunstâncias do caso concreto, é que o Tribunal de 2ª Instância deve alterar a espécie e o quantum da pena.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1– Relatório

No processo nº 1654/23.5T9FAR do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Central Criminal de … - Juiz …, por acórdão datado de 19/03/2025, decidiu-se:

“a) Qualificar os factos imputados ao arguido na acusação como três crimes de violação, cada um p. e p. pelo art. 164º, nº 1, al. a) do Código Penal como três crimes de violação, cada um p. e p. pelo art. 164º, nº 2, al. a) do Código Penal.

b) Declarar que, por falta atempada do exercício do direito de queixa, o Mº Pº não tem legitimidade para o procedimento criminal pela prática dos dois crimes de violação a que se refere a factualidade provada em 27 dos factos provados (factos ocorridos entre 24 de fevereiro de 2022 e 08 de maio de 2023).

c) Quanto ao crime de violação, p. e p. pelo art. 164º, nº 2, al. a) do Código Penal, atinente aos factos ocorridos em janeiro de 2023, absolver o arguido AA da agravação a que alude o art. 177º, nº 1, al. b) do Código Penal.

d) Condenar o arguido, AA, pela prática, como autor material, de um crime de violação, p. e p. pelo art. 164º, nº 2, al. a) do Código Penal (factos ocorridos em janeiro de 2023), na pena de 4 anos de prisão.

e) Condenar o arguido, AA, como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º n.º 1 alínea b) do Código Penal e punido, por força da parte final do nº 1 desse artigo, com a pena prevista no art. 164º, nº 2 do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;

f) Efetuado o cúmulo jurídico das penas referidas em d) e e), condenar o arguido na pena única de 6 (seis) anos de prisão.

g) Condenar o arguido na pena acessória de proibição de contactos com BB, prevista no art. 152º, nº 4 do Código Penal, pelo período de 3 anos e 6 meses. (…)”.

*

Desta decisão veio o arguido interpor recurso, para o que formulou as seguintes conclusões:

“a. O Recorrente discorda da douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, nos seguintes pontos:

i. Nulidade por violação da competência do Tribunal Colectivo no âmbito da comunicação da alteração não substancial de factos.

ii. Nulidade por falta de indicação e concretização dos meios de prova de onde resulta objectivamente a indiciação de novos factos com relevo para a decisão, ao arrepio das garantias de defesa do Arguido.

iii. Nulidade por Condenação do Arguido por factos diversos dos constantes no despacho de Acusação.

iv. Nulidade decorrente da omissão de pronúncia sobre questão que o Tribunal a quo estava obrigado a apreciar – preterição do poder-dever do Tribunal a quo de pronunciar-se sobre a suspensão da pena aplicada ao Arguido uma vez verificado o requisito da medida da pena.

v. Da Impugnação da Matéria de Facto Julgada Provada

a. Erro notório na apreciação da prova, por desconsideração da confissão parcial e do arrependimento e atitude contrita do Arguido, ora Recorrente, a partir das declarações prestadas em sede de audiência de julgamento, que não foram consideradas como tal e contraditadas por nenhum meio de prova

vi. Da Impugnação da Matéria de Direito

a. Integração de factos imputados na acusação publica como crimes autónomos de violação – cuja punibilidade do Arguido foi afastada por inexistência tempestiva de queixa da Ofendida – como crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º do Código Penal, ainda que com a pena aplicável a crime de violação, segundo um critério enviesado de oportunidade para a condenação do Arguido, ao arrepio das garantias de defesa do mesmo, o que significa também uma violação do Artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa

b. Violação flagrante do princípio in dubio pro reo, o que significa também violação do artigo 127.º do Código de Processo Penal e que se projecta na condenação do Arguido pelo crime autónomo de violação e, ainda, na condenação do Arguido pelo crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) do Código Penal com a pena prevista no artigo 164.º, n.º 2 do Código Penal.

c. Medida concreta da pena aplicada ao Arguido

1. Da Impugnação da decisão de determinação da pena aplicada

2. Aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão aplicada porque legal e formalmente admissível ao Arguido nos termos do disposto no artigo 50.º e seguintes do Código Penal.

b. O Tribunal a quo veio comunicar a alteração não substancial dos factos, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, participando, com exclusão de qualquer outro, o(a) Meritíssimo(a) Juiz Presidente do Tribunal Colectivo e cuja diligencia versou exclusivamente na comunicação dos factos alterados ao Arguido, ao arrepio e em violação grosseira das regras da competência do Tribunal Colectivo que se encontram previstas no artigo 14.º do Código de Processo Penal e cuja preterição, atento a que apenas se encontra singularmente proferido pelo(a) Meritíssimo(s) Juiz Presidente do Tribunal Colectivo, faz incorrer aquele acto de nulidade insanável, o que aqui expressamente se invoca nos termos consignados na al. e) do artigo 119.º e n.º 1 do artigo 32.º, todos do Código de Processo Penal.

c. A alteração (não substancial) dos factos decorre da estrutura acusatória do processo penal, cfr. disposto no artigo 32.º n.º 5 do Constituição da Republica Portuguesa, conciliando, por um lado o poder (autónomo) de investigação do julgador e que este se reporte ao objecto processual que lhe é oferecido na acusação publica e, por outro lado, que o exercício desse poder se contenha nos limites desse objecto. A regulação da alteração dos factos que constituem objecto do processo (penal), pretende conferir ao Arguido uma extensão garantística dos seus direitos de defesa. Uma tal interpretação não se mostra compatível com as chamadas “decisões-surpresa”, propondo ao Arguido a possibilidade efectiva de contraditar as imputações que lhe são dirigidas – ab initio ou renovadas.

As garantias de defesa efectiva do Arguido são directamente proporcionais à extensão e teor dos elementos concretamente comunicados. Ao proferir o seguinte despacho: “Igualmente da prova produzida resultou indiciada a seguinte factualidade que constitui alteração não substancial dos factos descritos na acusação e que, nos termos do disposto no art. 358º, nº 1 do CPP, igualmente se comunica ao arguido (...)”, é evidente que a mera alusão genérica, abstrata e indefinida do Tribunal a quo a “igualmente da prova produzida”, não confere ao Arguido, ora recorrente, os elementos necessários e elementares para o exercício do seu direito efectivo de defesa relativamente aos novos factos agora comunicados.

d. A comunicação da alteração (não substancial) dos factos deve permitir ao Arguido contraditar os elementos de prova (já) produzidos e, ordem a eventualmente, redefinir a sua defesa, oferecendo, para o efeito outros meios de prova que possam abalar os indícios até então existentes e aqueles cuja alteração lhe foi posteriormente comunicados, devendo tal comunicação abranger, à luz das garantias do seu efectivo direito de defesa, tal qual se encontra plasmado no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, “não só o facto ou factos objeto da alteração, mas também a indicação ou concretização dos meios de prova de onde resulta a indiciação dos novos factos com relevo para a decisão”, só desta concretização é possível ao Arguido identificar o objeto da sua defesa e contraditar os meios de prova (já) produzidos, oferecendo, querendo, outros meios de prova até então não suscitados e cuja preterição faz incorrer aquela comunicação de nulidade insanável, o que aqui expressamente se invoca nos termos consignados na al. e) do artigo 119.º e n.º 1 do artigo 32.º, todos do Código de Processo Penal.

e. O Arguido, ora Recorrente, foi condenado efectivamente pelos factos aditados/alterados pelo Tribunal a quo e comunicados nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 358.º do Código de Processo Penal. Em matéria de alteração de factos, o que constitui nulidade é a condenação por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e condições dos artigos 358.º e 359.º, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo Código, o que corresponde a uma nulidade da sentença que só depois de proferida é que se sabe se se verifica ou não. A eventual reação do Arguido, sindicando a nulidade da alteração não substancial dos factos pelo Arguido é manifestamente prematuro porquanto a alteração tem carácter provisório havendo de ser, depois, sujeita a contraditório, à produção de prova e à deliberação, então com carácter definitivo, cabendo antes da decisão final, ao Arguido apenas o direito que se defender dos novos factos.

f. A alteração (não substancial) dos factos realizada pelo Tribunal a quo, repercute-se de forma grosseira fora dos pressupostos dos artigos 358.º ou 359.º do Código de Processo Penal e, por conseguinte, padece de nulidade que apenas pode ser suscitada em sede de recurso da decisão que poe termo ao processo, porquanto comunicação da alteração tem um caracter manifestamente provisório e transitório, estando sujeita ao principio do contraditório, à produção de prova e à deliberação do Tribunal a quo.

g. O Arguido foi efectivamente condenado por factos que não vinham descritos no despacho de acusação, decorrentes do aditamento/alteração comunicada pelo Tribunal a quo fora dos casos previsto pelo artigo 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, aliás factualidade essa (e outra) capaz de sustentar uma nova qualificação jurídica imputada ao Arguido, circunstancia que não existia na acusação levaram a que a posição do arguido/defesa não seja sustentável e consequentemente a que o Tribunal a quo impute a prática dos crimes e condene o Arguido, como fez em sede de acórdão condenatório.

h. As alterações comunicadas, assumem um tal protagonismo em sede da decisão condenatória que a transformam de tal maneira e cuja circunstância se repercute essencial para o enquadramento e garantias de defesa do Arguido, ora Recorrente e, ainda, veiculam “recortes da vida” manifestamente inexactos, imprecisos e temporalmente indefinidos, que dever-se-ão ter por não escritos, ao arrepio do direito de contraditório que de outra forma ficaria irremediavelmente prejudicado e das garantias de defesa do Arguido, nos termos do disposto no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

i. Foram ainda aditados factos totalmente novos, cuja factualidade constava no libelo acusatório – “A filha do arguido, no decurso da proibição de contactos do arguido com CC, solicitou à mesma que depusesse nos autos no sentido de as suas anteriores declarações não corresponderem à verdade.”, e que relacionam uma pessoa, que não teve qualquer intervenção no decurso do Processo, não tendo sido sequer inquirida na fase de inquérito nem tão pouco teve qualquer intervenção nas subsequentes fases do processo.

j. Contanto que a acusação omissa quanto aos elementos integradores dos crimes imputados ao arguido, não pode tal falta ser colmatada por “aditamento”, como fez o Tribunal a quo com a comunicação efetuada de alteração de factos, em virtude de tal “aditamento” consubstanciar uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, uma vez que é esse “aditamento” que completa a acusação/pronuncia e lhe confere o conteúdo “incriminatório”. O processo penal português assenta numa estrutura acusatória, imposta pelo preceito constitucional plasmado no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República portuguesa, em virtude do qual os poderes de cognição do Tribunal estão rigorosamente limitados aos objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação. Assim, não podendo o juiz formular alterações aos factos para completar, retificar ou deduzir uma nova acusação, como fez o Tribunal a quo, ao arrepio dos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal.

k. A alteração dos factos introduzida pelo Tribunal a quo, na medida em que inovou frontalmente o libelo acusatório, veio fragilizar manifestamente a defesa do Arguido, ora Recorrente, e nessa medida, constitui uma alteração substancial dos factos, a qual é ilegal e nula, na medida em que constitui uma alteração substancial dos factos, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 359.º do Código de Processo Penal, estando tal decisão ferida irremediavelmente de nulidade.

l. O Arguido, ora Recorrente encontra-se sujeito ao estatuto coativo de prisão preventiva desde 27/10/2023. A decisão ora recorrida foi proferida e depositada pelo Tribunal a quo em 19/03/2025.

Ora, o Arguido encontrava-se sujeito ao estatuto coativo de prisão preventiva há mais de 440 (quatrocentos e quarenta) dias. O hiato temporal que o Arguido, ora Recorrente teve privado da sua liberdade, designadamente por cumprimento do estatuto coativo que lhe vem sendo imposto, desconta por inteiro à pena que lhe foi aplicada pelo Tribunal a quo. A execução da pena de prisão está erigido na ótica da prevenção de crimes pelo agente e orienta-se fundamentalmente na reintegração social do condenado/recluso e na sua reintegração na vida comunitária. A suspensão da pena de prisão encontra respaldo legal nos artigos 50.º a 57.º do Código Penal, sendo “susceptível de abarcar todas e quaisquer penas de prisão aplicadas em medida não superior a 5 anos, havendo um poder-dever do tribunal suspender a execução das penas enquadradas nesse limite, quando “atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, [se] concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. (...). O Tribunal a quo condenando o Arguido conforme a decisão que ora se recorre, na pena de 6 (seis) anos de prisão, atento ao período de cumprimento de prisão preventiva e todas as circunstâncias de depõe manifestamente a favor do Arguido, por si só, deveria ter ponderado a aplicação do instituto da suspensão da pena de prisão.

m. A ponderação da suspensão da pena de prisão aplicada ao Arguido, uma vez verificado o requisito da medida da pena – 5 anos de prisão – é um poder-dever do julgador e impunha-se ao Tribunal a quo, tendo a aplicação deste instituto sido frontal e expressamente requerida pelo Arguido, atento todas as circunstâncias de depõe efectivamente a favor do Arguido, designadamente mas não unicamente, o arrependimento sincero, a confissão parcial dos factos, a personalidade, as condições sociais, inserção social, familiar e labora do Arguido, bem como o enquadramento socioeducativo, comportamental e recursos pessoais e sociofamiliares do mesmo e, bem assim, a ausência de antecedentes criminais por crimes da mesma natureza, o que constitui uma nulidade por omissão de pronuncia do Tribunal a quo.

n. É legalmente inadmissível ao Tribunal a quo, deslocar e introduzir factos integrados no libelo acusatório enquanto crimes autónomos de violação, e condenar o Arguido quanto a esses factos por crime diverso, uma vez verificada a inadmissibilidade legal da integração daquela factualidade no tipo de crime de violação – tal qual se encontrava configurado no libelo acusatório –, sob a ótica e critério de oportunidade para a condenação do Arguido, havendo subordinação a ligar/desligar ao crime de violência doméstica, sem qualquer nexo ou critério legalmente admissível.

o. A inadmissibilidade legal – por inexistência de queixa tempestiva pela Ofendida –, do enquadramento de factos enquanto crime de violação, obsta a que o Tribunal a quo, possa segundo um critério de mera oportunidade possa vir, verificada esse obstáculo legal, condenar o Arguido pelos mesmos factos por outro crime, ainda que com a pena aplicada ao crime que não pôde porventura condenar, em virtude da verificada ilegitimidade do Ministério Público para a acção penal quanto àqueles factos, designadamente condenar o Arguido pela prática de um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º n.º 1 alínea b) do Código Penal e punido, por força da parte final do nº 1 desse artigo, com a pena prevista no art. 164º, nº 2 do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, na medida em que introduziu factualidade que expressamente a subsume a outro tipo de crime de constava no libelo acusatório enquanto crime autónomo, pondo a descoberto a defesa do Arguido que ficou irremediavelmente comprometida e desajustada em face do novo enquadramento jurídico-legal formulado pelo Tribunal a quo.

p. Uma tal posição do tribunal a quo [melhor descrita em 14. e 15.], concretiza um tal horizonte de surpresa que não foi sequer prognosticado por qualquer dos intervenientes processuais, entre os quais o Arguido, cujo exercício da sua defesa ficou irremediável e visivelmente comprometido, ao arrepio das garantias de defesa previstas no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

q. O Arguido sempre negou a prática dos crimes de violação de que vinha acusado, afigurando-se a prova quanto a estes crimes manifestamente insuficiente e duvidosa para sustentar uma pena pesadíssima como aquela que vem plasmada na decisão ora recorrida, i. e., na pena de 5 (cinco) anos de prisão e na pena de 4 (quatro) anos de prisão relativamente ao crime autónomo de violência, na medida em que valorou a palavra da Assistente com exclusão de qualquer outro elemento sequer indiciário que corrobore a narrativa da mesma.

r. Inexiste qualquer elemento que confira suporte à narrativa da Assistente – pense-se, a titulo e mero exemplo: no depoimento de uma testemunha com quem a Assistente tenha confidenciado algum dos factos integradores do crime de violação, o depoimento do filho de Assistente com quem ela vivia a quem pudesse ter confidenciado algum facto integrador do crime de violação e/ou presenciado algum desse(s) facto(s), um relatório de perícia e/ou relatórios clínicos que ateste a pratica do crime de violação, mensagens de texto, vulgo SMS, ou comunicações remetidas em plataforma whatsaap ou outra(s) que confiram sustentação à narrativa da Assistente, que se mostra manifestamente inverosímil, quer pela ausência de qualquer elemento sequer indiciário que as suporte, quer na manutenção das rotinas da Assistente, hábitos de vida, contactos com o Arguido, relação de namoro sem coabitação, contactos com familiares e amigos do Arguido e comuns, frequência em espaços públicos e convívios com o Arguido e, bem assim, não se coibindo de permitir as visitas e a pernoita do Arguido na sua casa – que o poderia facilmente impedir atento a que o Arguido não dispunha de acesso ao interior da sua casa senão quando permitida pela Assistente.

s. A visita e permanência do Arguido na casa do Assistente era permitida e consentida pela Assistente e na presença do filho daquela, que ali residia e que não atestou qualquer comportamento anómalo e/ou estranho sequer integrador de qualquer ilícito penal, razão pelo qual, entre outras, o Tribunal a quo, deveria ter tido algumas reservas ao fazer incluir nos factos dados como provados a versão integral da Assistente.

t. Os depoimentos das testemunhas DD e EE, FF e de GG, alias os primeiros filhos da Assistente, corroboram a boa relação entre o Arguido e a Assistente e, por si , só deveriam impor uma duvida séria e fundamentada do Tribunal a quo, na confiança e veracidade que atribuiu às declarações da Assistente, existindo uma enormíssima disparidade entre a versão da Assistente e os depoimentos de ambos os filhos da mesma.

u. As declarações para memoria futura da Assistente e as declarações prestadas pela mesma em sede de julgamento no que concerne às relações sexuais não consentidas, são irremediavelmente incompatíveis com as circunstâncias anterior, contemporâneas e posteriores à alegada pratica dos factos por parte da Assistente, que continuou a consentir as visitas do Arguido à sua morada de residência, a relação de namoro entre ambos, a pernoita do Arguido na sua morada de residência, os encontros entre ambos em locais e espaços públicos e os convívios do casal.

v. Uma acusação publica da natureza da que veio a ser imputada ao Arguido, coloca-o numa posição manifestamente vulnerável, porquanto ao negar, como negou a prática dos crimes de violação de que vinha acusado, vê o seu depoimento ser tingido e apreciado pelo Tribunal a quo sem qualquer valor, criando-lhe uma situação de inversão do ónus da prova. Ao Arguido ao negar a prática dos factos, é-lhe imposta a necessidade de fazer prova do facto negativa, prova essa de difícil ou melhor, excessivamente difícil de ser produzida.

w. A credibilidade das declarações prestadas pela Assistente poderá ser aferida com a produção da prova pericial requerida pelo Arguido, em sede de contestação, e liminarmente rejeitada pelo Tribunal a quo, ao arrepio das garantias de defesa do Arguido, que uma vez mais se viu confrontando com a necessidade de fazer prova negativa, aliás já apodada pelo Supremo Tribunal de Justiça como prova do diabo, sobre factos que não cometeu.

x. Maior seria a dúvida que se imporia ao Tribunal sobre as circunstâncias de modo das ocorrências, designadamente o não consentimento da Assistente relativamente à pratica das relações sexuais e intimidade com o Arguido e, ainda mais, e mais fundamentada, séria e favorável ao Arguido, ora Recorrente, deveria essa dúvida ter sido considerada, aplicando-se o princípio do in dúbio pro reo, sendo inevitável concluir que o Tribunal a quo, violou irremediavelmente o princípio do in dúbio pro reo, no que respeita à pratica dos crimes de violação de que vem acusado e condenado pelo crime autónomo, quer ainda o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, ao não apreciar a prova disponível da acordo com as regras da logica e da experiencia comum.

y. As declarações do Arguido e das mesmas se terem mostrado na globalidade consentâneas com a demais prova produzida, daí decorrendo a sua plausibilidade e credibilidade, considerando até que as mesmas implicaram necessariamente a confissão dos factos ilícitos pelo Arguido, ora recorrente, a verdade é que, não se vislumbra aceitável, a desproporcionalidade da pena aplicada com a ilicitude e culpa do Arguido. Na determinação da medida da pena aplicada ao Arguido, ora recorrente, a fixação de uma pena de 6 (seis) anos de prisão é manifestamente excessiva e desfasada, e viola o artigo 70.º e seguintes do Código Penal, desde logo porque foi manifestamente enviesada a concreta medida da pena aplicada pela pratica do crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º n.º 1 alínea b) do Código Penal e punido com a pena prevista no artigo 164º, nº 2 do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.

z. A factualidade que foi enxertada ao crime de violência doméstica e que contamina a concreta medida da pena aplicada – “com a pena prevista no art. 164º, nº 2 do Código Penal” – foi manifestamente afastada pelo facto de quanto aos factos em mérito o Ministério Público não ter legitimidade para prosseguir com a acção penal, nos termos do disposto no artigo 49.º do Código de Processo Penal, sendo a mesma nula e ilegal.

aa. No caso em mérito não foram efectivamente ponderadas as condições sociais, inserção social, familiar e labora do Arguido, bem como o enquadramento socioeducativo, comportamental e recursos pessoais e sociofamiliares do mesmo, manifestamente imprescindíveis e necessários para a fixação da concreta medida da pena nos termos do artigo 70.º e seguintes do Código Penal.

bb. A pena, na sua execução, deverá sempre ter um carácter ressocializador e pedagógico e deverá constituir resposta às exigências de prevenção, tendo em conta na sua determinação certos fatores que, não fazendo parte do tipo legal de crime, tenham relevância para aquele efeito, estejam esses fatores previstos ou não na lei e sejam eles favoráveis ou desfavoráveis ao agente - artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.

cc. Ao aplicar uma pena privativa da liberdade ao Arguido, sem cuidar de apurar as condições pessoais, inserção social, familiar e laboral, bem como, o enquadramento socioeducativo e demais elementos de caracterização pessoal, comportamental, recursos pessoais e sociofamiliares do Arguido, o Tribunal “a quo” não andou bem, porquanto não cuidou de determinar as concretas exigências de prevenção, sobretudo as exigências especiais de prevenção.

dd. A medida da pena aplicada ao Arguido, ora recorrente, afigura-se injusta e ilegal, por se afigurar excessiva, superando em muito a adequação, necessidade e proporcionalidade exigidas na determinação da medida da pena a aplicar ao ora recorrente perante a sua concreta contribuição e participação para a prática dos factos apurados partir de toda a prova produzida, que ainda que seja reputada de essencial, deverá ser determinada a partir da sua medida de culpa mediana.

ee. A postura do Arguido, ora recorrente, a assunção da sua responsabilidade, sem menorização do seu papel em sede declarações prestadas na qualidade de arguido, a dinâmica relacional, social e familiar do Arguido, ora recorrente, que surge pautada por consistentes sentimentos de pertença e de cooperação familiar, a inserção laboral do Arguido, ora recorrente, que nas actuais circunstâncias de tempo é caracterizada como estável e douradora, a inserção social do Arguido, aqui recorrente, designadamente o facto do ora recorrente ter o seu quotidiano estruturado primacialmente pela actividade laboral, e pela vida familiar, que surge em termos sociocomunitários positivamente referenciado, inexistindo indicadores de comportamentos de risco, o facto do ora recorrente apresentar juízo critico sobre o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora, o facto do Arguido, ora recorrente, contar com um consistente suporte da rectaguarda do seu agregado familiar, o facto do ora recorrente, não ter antecedentes criminais relevantes, por crimes da natureza pelos quais foi condenado, impunha que a pena de prisão efectiva, efectuado o cúmulo jurídico, de 6 (seis) anos de prisão na pena única de 6 (seis) anos de prisão aplicada ao ora recorrente, é excessiva, e violadora dos pressupostos orientadores da fixação e escolha da medida das penas e bem assim dos critérios de prevenção geral e especial que convoca o caso sub judice e, bem assim, viola grosseiramente os artigo 70.º e seguintes, artigo 40.º e 50.º, todos do Código Penal, devendo a mesma ser substituída por outra que condene o Arguido pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pela al. b), n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal, numa pena não superior a 2 (dois) anos de prisão suspensa na sua execução, ainda que sujeito a regime de prova.

ff. A pena aplicada ao Arguido de prisão efectiva fixada em 6 (seis) anos de prisão, é legal e formalmente admissível a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do disposto no artigo 50.º e seguinte do Código Penal, descontado o hiato temporal que o ora Arguido se encontra em cumprimento do estatuto coativo de prisão preventiva – desde 27/10/2023. Ao ter aplicado a pena de prisão efectiva de (seis) anos, o Tribunal “a quo” não andou bem porquanto violou, salvo o devido respeito, grosseiramente, o disposto no artigo 50.º e seguintes do Código Penal, contando que nas circunstâncias de tempo da prolação da decisão o Arguido já tinha cumprido mais de 440 dias de prisão preventiva.

gg. A idade do arguido, a confissão parcial do libelo acusatório, importando a sua autoincriminação e, consequentemente, a sua responsabilidade penal, a ausência de antecedentes criminais e de premeditação, a sua inserção social, a sua inserção familiar e laboral, não pode o Tribunal a quo decidir conforme decidiu, designadamente não ponderando sequer a aplicação da suspensão da pena de prisão aplicada. Sopesando as exigências de prevenção geral e especial e as necessidades de reintegração do agente, plasmadas no supramencionado artigo 40.º do Código Penal, entende-se adequado, condenar o arguido ora Recorrente, pela prática do crime de violência doméstica, numa pena não superior a 2 (dois) anos de prisão suspensa na sua execução, ainda que sujeito a regime de prova.”

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O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnado pelo seu indeferimento e pela manutenção da decisão recorrida, para o que formulou as seguintes conclusões:

“1. A lei processual não impõe que a comunicação de alterações não substanciais e/ou de alterações da qualificação jurídica seja efectuada pelo Tribunal Colectivo, nada impedindo que seja efectuada pelo Juiz Presidente, desde que resulte de prévia deliberação do Tribunal, como ocorreu nos autos.

2. O artigo 358.º do Código de Processo Penal não impõe que tal comunicação seja acompanhada da indicação dos meios de prova em que a mesma se fundamente.

3. A alteração de factos efectuada não redunda numa transformação dos factos da acusação em factos que consubstanciem crimes diversos, no aditamento de factos com repercussão ao nível do limite máximo das molduras penais aplicáveis, ou o acrescento de matéria que transforme em crime factos que não o eram. Trata-se assim de uma alteração não substancial, admissível nos termos dos artigos 358.º e artigo 1.º, alínea f), a contrario, ambos do Código de Processo Penal.

4. Atenta a pena concretamente fixada, superior a 5 anos de prisão, era legalmente inadmissível a suspensão da execução da pena, pelo que não se impunha ao tribunal a pronúncia sobre a possibilidade de tal suspensão.

5. Uma vez que o recorrente não especificou as concretas passagens da prova gravada que impusessem decisão diversa sobre a matéria de facto, dever-se-á considerar excluída do objecto do recurso a matéria de facto julgada provada e não provada, sem prejuízo das consequências que para a mesma possam abstractamente advir do conhecimento dos vícios decisórios invocados em recurso, ou de outros de conhecimento oficioso.

6. Da decisão recorrida não resulta patente que tenham sido violadas regras de experiência comum ou aplicados juízos ilógicos ou arbitrários. Pelo contrário, a convicção do julgador foi explanada de forma lúcida e lógica, justificando a decisão proferida, que é plenamente coerente.

Não se verifica assim o vício de erro notório na apreciação da prova.

7. A circunstância de o arguido não poder ser autonomamente, e em concurso efectivo, ser condenado por factos que integrariam a prática de crime de violação, por quanto a estes não ter sido tempestivamente exercida queixa, não impede que tais factos sejam valorados no âmbito da punição pela prática do crime de violência doméstica, que tem natureza pública, aplicando-se a moldura correspondente ao crime de violação por força do artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal.

8. Resulta patente do acórdão recorrido a expressiva convicção do tribunal de que se encontrava demonstrada a factualidade levada à matéria de facto provada, não sendo possível apontar em lado algum qualquer hesitação ou expressão dubitativa quanto à verificação dos factos que acaba por imputar ao arguido. Assim, inexistindo dúvidas no espírito do julgador quanto à matéria de facto, não havia que proceder a qualquer juízo em benefício dos arguidos, não tendo sido violada a presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo.

9. As penas parcelares e a pena única fixada obedecem aos critérios legais dos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, respeitam o princípio da culpa, e não são de todo excessivas.

10. Pelo exposto, julgando improcedente o recurso e mantendo na íntegra a decisão recorrida farão Vossas Excelências justiça.”

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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância.

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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.

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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.

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2 – Objecto do Recurso

Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt).

À luz destes considerandos, são as seguintes as questões de que cumpre conhecer:

- Violação da competência do Tribunal Colectivo no âmbito da comunicação da alteração não substancial de factos;

- Falta de indicação dos meios de prova de onde resulta a indiciação de novos factos;

- Condenação por factos diversos dos constantes do despacho de acusação;

- Omissão de pronúncia;

- Erro notório na apreciação da prova;

- Erro de julgamento;

- Violação do princípio in dubio pro reo;

- Erro na qualificação jurídica, no que respeita à moldura penal aplicável;

- Medida da pena;

- Suspensão da execução da pena de prisão aplicada.

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3- Fundamentação:

3.1. – Fundamentação de Facto

A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:

Discutida a causa, consideram-se provados os seguintes factos:

1. AA conheceu a vítima CC no início de 2021 e iniciaram uma relação de namoro em Setembro de 2021.

2. AA e CC nunca coabitaram juntos, apenas frequentavam a casa um do outro, onde tomavam refeições juntos e mantinham relações sexuais.

3. AA e CC não têm filhos em comum.

4. Os problemas entre AA e CC surgiram depois do início da guerra na Ucrânia, ou seja, após 24 de Fevereiro de 2022, sendo até então a vivência no geral agradável.

5. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde a altura referida em 4, o arguido proibiu CC de sair com amigas, controlando o tempo que ela levava a chegar a casa desde que saía do trabalho e insistindo após para ela ir para sua casa, o que aconteceu com uma periodicidade quase diária.

6. Isso aconteceu mesmo quando, em março de 2022 a mãe, irmã e sobrinhos de CC vieram da Ucrânia, em que, após um período em que ficaram na casa daquela, passaram a residir em outro local, enviando o arguido muitas mensagens àquela, a questionar onde estava, se ela se deslocava a casa dos familiares.

7. Uma vez em que se deslocou à praia com os familiares, o arguido telefonou a CC a saber onde estava e mesmo após ela dizer que seriam apenas 20 minutos com os familiares, disse que a ia buscar e que não lhe podia fazer isso, tendo ela acabado por sair da praia.

8. Em data não concretamente apurada, mas no mês de Maio ou Junho de 2022, CC, na companhia do arguido, encontrou-se num café com um sobrinho, que viera da ….

9. A determinada altura, o arguido disse a CC que não queria estar ali e para irem para casa, tendo CC referido que queria ficar, pois não via o sobrinho há dois anos, tendo ele dito “não, vamos para casa, vamos pra casa”.

10. Quando saíram do café, AA, enquanto conduzia o seu veículo com CC no interior, ao invés de a levar para casa, levou esta para lugar não concretamente apurado, mas na zona de … – …, a hora não concretamente apurada, mas entre as 23h00 ou 24h00, e imobilizou o veículo em lugar ermo onde existia uma ponte.

11. AA, enquanto se dirigia para este local, disse a CC ”vais ver o que é que te vou fazer, vais ver o que te faço”.

12. AA tinha na sua posse uma faca com lâmina, que exibiu a CC, dizendo-lhe “vamos”, questionando ela para onde, e dizendo ele “vamos, há ali uma ponte”.

13. CC estava em pânico, a chorar, e acreditava, seriamente, que AA a ia matar, tendo implorado para falar com os filhos, tendo depois começado a pedir desculpa e a dizer para irem para casa.

14. Em momento temporal não concretamente apurado, AA disse-lhe “tu já não vais para casa hoje”.

15. CC manteve-se a pedir desculpa, abraçar o arguido e pedir para irem para casa, repetindo ele “não peças porque hoje não vais para casa”, “tu já sabes o que sou capaz, agora não posso deixar-te ir para casa para tu contares a alguém”, mas acabando a certa altura por dizer que iam para casa, indo CC a conduzir, por sua sugestão.

16. Nessa noite, AA e CC acabaram por dormir juntos em casa desta.

17. Em uma outra ocasião, em que se deviam deslocar de carro para casa de um amigo, o mesmo deslocou-se por um caminho que ela não conhecia, dizendo a CC “não fiz no outro dia, vou fazer agora”, levando-a a supor que ele a iria matar, o que a levou a abrir a porta do carro para saltar, tendo ele puxado a mesma pelo cabelo, imobilizado o carro mais à frente e dito “o que fazes? vamos para casa de um amigo”.

18. Após a situação descrita em 10 a 15, sempre que AA desejava que CC fosse ter com ele ou pretendia algo desta e não era correspondido por CC, este passou a dizer-lhe (por mensagem ou conversa) que ia fazer o que não fez na outra noite, que ela sabe aquilo de que ele é capaz, e que se ela fosse à polícia, ele podia ir preso, mas diria aos seus amigos para a matarem, tendo uma ocasião em que falaram da situação da ponte o mesmo dito “tu viste os meus olhos”.

19. CC, com medo de AA, acabou por ceder a maioria das vezes aos pedidos deste e ir ter com ele quando este o exigia e quando não cedia não conseguia dormir, sempre à espera que o arguido pudesse telefonar-lhe.

20. Como as ameaças acima aludidas eram uma constante por parte de AA, CC vivia diariamente em pânico e com receio que este cumprisse as ameaças, limitando a sua vida.

21. Com medo, a ofendida nunca contou o sucedido a ninguém.

22. Uma ocasião temporalmente não apurada, o arguido disse à ofendida que tinha de o ir buscar, que lhe iria enviar a localização, tendo-o ido buscar a … e, no regresso, tendo-lhe ela dito que chegaram e que podia ir para casa, o arguido, após referir que estava tudo bem, começou a desferir pontapés no espelho retrovisor do veículo de CC, que acabou por abandonar o local.

23. Nessa sequência, o arguido começou a mandar mensagens a CC a dizer que se ela não voltasse já sabia o que ele lhe fazia.

24. Em data não concretamente apurada, mas no período da Páscoa de 2022, no interior de viatura conduzida pelo arguido, este agarrou pelos cabelos de CC e projetou a cabeça desta contra o volante da viatura, no qual embateu.

25. Como consequência direta e necessária da conduta de AA, CC sofreu dores e ficou com um hematoma no sobrolho esquerdo.

26. Noutra ocasião, em data não apurada, por a ofendida não atender logo a sua chamada telefónica (a mesma começara a trabalhar em um novo local, pelo que deixou o telemóvel no silêncio), pelas 18h00 ou 19h00, por telefone disse a CC que ia a casa dela e mataria os seus filhos.

27. Em data não concretamente apurada, mas entre o dia 24 de fevereiro de 2022 e o dia 08/05/2023, em duas ocasiões, que ocorreram tanto na residência de AA, Rua …, em …, como na de CC, depois de lhe bater com chapadas após ela dizer que não queria e enquanto a mesma chorava, obrigou CC a manter com ele relações sexuais contra a vontade desta, introduzindo o pénis na sua vagina e na sua boca até ejacular.

28. Em uma outra ocasião em que CC se encontrava menstruada, em Janeiro de 2023, o arguido forçou penetração vaginal e oral, introduzindo alternativamente o seu pénis na boca da ofendida e na sua vagina, enquanto a agarrava pelos cabelos, com força, ao mesmo tempo que a ofendida chorava.

29. Em data não concretizada, após período de três dias em que a ofendida permaneceu na residência de uma amiga comum, o arguido pediu-lhe para ela voltar, que disse que não ia voltar a fazer o mesmo e quando ela anuiu e o acompanhou a casa dele, aí chegados, o mesmo encostou-lhe uma faca ao corpo e disse-lhe que estava à espera há três dias para fazer aquilo, tendo a ofendida acreditado que a mataria e tendo feito um corte no dedo, ao tentar desviar a faca.

30. No dia 8 de Maio de 2023, CC, por se encontrar muito assustada e não ser contactada por AA, foi durante quinze dias para a casa do filho em …, bem como alterou o número de telemóvel.

31. No dia 8 de Maio de 2023, AA, utilizando o contacto telefónico n.º …, ainda antes da alteração do referido número, telefonou, pelos menos, 26 (vinte e seis) vezes para a ofendida, a qual não atendeu as chamadas.

32. Sabendo que a mesma não desejava o contato do arguido, e utilizando o aludido número telefónico, a partir das 20.00h até às 20.29h, enviou 15 (quinze) mensagens à ofendida, ordenando-lhe que atendesse o telemóvel, e com o conteúdo em língua …, designadamente dizendo-lhe “atende, eu não estou a brincar, tu sabes”, “CC, tu não te vais esconder a vida toda, acredita”, “tu conheces-me”, “eu não brinco nunca. Atende e explica o que aconteceu”, “CC, atende antes que eu faça um escândalo amanhã no trabalho, sabes que eu sou capaz de o fazer. Atende.”

33. Após, o arguido começou a ligar e enviar elevado número de mensagens a EE, filho mais velho de CC, por forma a que convencesse esta a reatar o relacionamento consigo, o que fez mesmo após EE lhe dizer que CC não queria estar com ele, tendo EE acabado por bloquear o número do arguido, que após passou a ligar ou enviar mensagens a partir de outros números, tendo também se deslocado pessoalmente, pelo menos duas vezes ao local de trabalho de EE.

34. No dia em que CC regressou à sua residência, o arguido passou junto à mesma, apercebendo-se que ela já aí se encontrava, tendo de imediato aquela, por ver o arguido, contactado o filho EE, que de imediato contactou o arguido.

35. AA pediu a EE para falar com CC, que a pedido do filho, a quem o arguido transmitiu que pretendia apenas ficar amigo de CC, acedeu encontrar-se com AA e por intermédio daquele, combinaram um encontro num café perto da casa desta, na presença de EE.

36. Quando se encontraram, cerca de 10 dias após o regresso de CC à sua residência, a pedido do arguido afastaram-se um pouco de EE para falarem e no decorrer da conversa, AA disse a CC que pretendia reatar a relação com esta, tendo-lhe pegado na mão e abraçado a mesma, tendo CC lhe dito que não queria estar novamente com ele.

37. Após estarem separados, CC via, quase diariamente, a viatura de AA a passar à porta de casa da sua residência.

38. Uma ocasião CC estava a estacionar o carro e quando ainda se encontrava dentro da sua viatura, foi abordada por AA, que entrou na mesma.

39. CC esteve de baixa médica desde dia 09 de maio de 2023, porque não se sente bem pela violência psicológica, física e sexual que tem sofrido por parte de AA, tendo emagrecido cerca de 10 quilos.

40. Em data não concretamente apurada, mas após a separação do casal, o arguido esperou por CC junto à sua residência, tendo puxado a mesma pelo cabelo para o interior da viatura daquela e conduzido a mesma até à zona da …, onde imobilizou a viatura, tendo CC convencido o mesmo a irem beber café, o que fizeram em posto de abastecimento de combustível.

41. No dia 10 de Julho de 2023, pelas 21h48m, CC acionou o serviço de Teleassistência da …, pois, momentos antes, ao chegar junto da sua residência, deparou-se com AA a fazer-lhe uma espera no interior de uma viatura, a qual se encontrava estacionada frente à entrada do prédio onde reside, concretamente na Praceta …, em …, tendo ele saltado para a frente da viatura dela, que por isso não conseguia estacionar.

42. Quando os agentes da PSP de … abordaram AA, este disse-lhe que queria conversar com a sua “mulher”, sendo que CC ficou com muito medo com o facto de AA poder perceber que a presença dos agentes da PSP no local resultara de ela ter acionado o mecanismo da teleassistência, insistindo com os agentes para dar explicações àquele.

43. Não obstante a ida ao local pelos agentes da PSP de … e após estes terem abandonado o local da ocorrência, AA voltou à residência de CC, tocou na campainha, mas como esta não abriu, foi embora.

44. AA sabia que CC não quer manter o relacionamento com este, mas não aceitou o fim da relação.

45. CC não quer que AA de aproxime dela e dos seus filhos.

46. No dia 31 de Julho de 2023, na sequência de emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito, foi o arguido sujeito a primeiro interrogatório judicial, tendo-lhe sido aplicadas as medidas de coacção de proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida, não permanecer, nem se aproximar da residência da vítima a, pelo menos, 300 metros de distância, e apresentações bissemanais, a realizar às terças e quintas-feiras no OPC da área da sua residência, entre as 10.00h e as 22.00h.

47. O arguido ficou ciente de todo o conteúdo das medidas de coacção impostas.

48. Porém, no dia 11 de Setembro de 2023, o sistema de monitorização eletrónica por geolocalização registou os seguintes incumprimentos decorrentes do afastamento do arguido (enquanto portador de um DIP – dispositivo de identificação pessoal – vulgo, pulseira eletrónica) em relação à UPM, durante várias horas:

- 25ago23 das 15:56h às 16:43h;

- 29ago23 das 08:24h às 10:17h;

- 01set23 das 07:55h às 18:51h;

- 06set23 das 07:48h às 23:39h;

- 08set23 das 12:29h às 12:36h, das 13:09h às 13:27h, das 13:41h às 13:56h e das 15:46h às 00:44h (de 09set23).

49. Com esta conduta (não transporte da unidade de posicionamento móvel (UPM)), sempre que o arguido se afastava do equipamento – UPM - a equipa ficava sem qualquer informação referente ao seu paradeiro e/ou situação atual.

50. Também ocorreram incumprimentos decorrentes da violação da zona de exclusão em redor da casa da vitima (ou zona de proibição), com caráter regular, alguns dos quais entradas e saídas no mesmo minuto.

51. Sempre que ocorreram incumprimentos ou anomalias a vítima foi informada pelos técnicos desta equipa da DGRSP e durante o contato CC, revelou desconforto, receando pela sua segurança.

52. AA não colaborava com os técnicos da equipa de Vigilância Eletrónica da DGRSP, designadamente não atendia as tentativas de contato efetuadas, facultou número de telemóvel que não funcionava e nem sequer atendia as chamadas efetuadas para a UPM (unidade de posicionamento móvel) que lhe foi entregue no dia 01ago2023.

53. No dia 22 de setembro de 2023, o sistema de monitorização eletrónica por geolocalização registou os seguintes incumprimentos decorrentes do afastamento do arguido (enquanto portador de um DIP – dispositivo de identificação pessoal – vulgo, pulseira eletrónica) em relação à UPM, durante várias horas:

- 13set23 das 13:22h às 15:32h e das 19:21h às 10:13h (de 14set23)

- 16set23 das 14:13h às 04:18h (de 17set23)

- 17set23 das 14:46h às 16:33h

- 18set23 das 09:41h às 09:53h e das 11:14h às 11:20h

- 20set23 das 15:38h às 16:28h

- 21set23 das 10:06h às 02:46h (de 22set23) registaram inúmeros afastamentos, alguns, com períodos superiores a 1 hora.

54. Com esta conduta (não transporte da unidade de posicionamento móvel (UPM)), sempre que o arguido se afastava do equipamento – UPM – a DGRSP ficava sem qualquer informação referente ao seu paradeiro e/ou situação actual do arguido.

55. No dia 10 de outubro de 2023, o sistema de monitorização eletrónica por geolocalização registou os seguintes incumprimentos decorrentes do afastamento do arguido (enquanto portador de um DIP – dispositivo de identificação pessoal – vulgo, pulseira eletrónica) em relação à UPM, durante várias horas:

- 26set23 das 11:19h ás 20:04 e das 20:50h às 22:31h

- 27set23 das 22:18h às 01:47h (de 28set23)

- 28set23 das 09:05h às 23:50h

- 02out23 das 07:45h às 21:07h

- 03out23 das 07:40h às 12:17h e das 12:52h ás 19:14h

- 04out23 das 21:12h às 23:21h

- 05out23 das 18:12h às 00:24h (de 06out23)

- 06out23 das 07:50h às 09:47h, das 10:09h às 10:39h e das 10:56h às 12:46h

- 07out23 das 11:08h às 11:14h e das 15:34h às 18:59h

- 08out23 das 01:19h à 01:27h, das 11:32h às 13:11h e das 13:32h às 17:04h

56. No dia 07out23 das 22:39h às 22:43h o sistema de monitorização registou uma violação da zona de exclusão fixa em redor da casa da vitima.

57. Com os descritos incumprimentos, foi promovido o agravamento do estatuto coativo do arguido e, em 27 de Outubro de 2023, submetido a novo interrogatório judicial.

58. Na referida diligência foi aplicada ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva.

59. Enquanto o arguido se encontrava sujeito à medida de coação de proibição de contactos com VE, a filha do arguido contatou CC, solicitando à mesma que depusesse nos autos sentido de as suas anteriores declarações não corresponderem à verdade.

60. Após a sujeição a prisão preventiva, o arguido não contactou com CC.

61. CC sente-se assustada, com medo e insegura com o comportamento de AA, teme pela sua vida e integridade física e vida, pois tem medo que ele concretize as ameaças que lhe dirigiu e limita, assim, a sua liberdade de ação.

62. Com as condutas acima descritas, agiu o arguido com o propósito logrado de maltratar CC, ciente da relação que mantinham, aterrorizando-a ao maltratá-la fisicamente, atingindo-a no corpo e na saúde, sabendo ainda que as expressões que lhe dirigiu eram adequadas a causar-lhe receio para a vida e integridade física, o que representou e concretizou.

63. Com as condutas descrita nos artigos 27 e 28, agiu o arguido com o propósito firmado de satisfazer os seus instintos libidinosos e infligir ofensas sexuais a CC, com quem matinha uma relação, constrangendo-a a manter com ele relações sexuais, mediante cópula e introduzindo o seu pénis na vagina e na boca de CC, sempre contra a sua vontade e sem o seu consentimento, tendo utilizado força como forma de colocar esta em posição de a impedir de resistir para concretizar os seus intentos, o que representou e concretizou.

64. O arguido estava ciente que CC se opunha a tais práticas sexuais, ao que foi indiferente, aproveitando-se da sua superioridade física, sabendo que, ao fazê-lo, colocava em causa a liberdade sexual desta.

65. O arguido agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

66. O arguido percebe mal a língua portuguesa e os diálogos entre o mesmo e a ofendida eram mantidos em língua …, dominada por ambos.

67. Aquando da instalação dos mecanismos de controlo à distância, as explicações sobre a forma de funcionamento do equipamento foram transmitidas ao arguido em língua portuguesa e inglesa, idioma não dominado pelo mesmo.

Da contestação do arguido

68. Não obstante não tenham fixado residência em comum, o arguido e CC recebiam amigos e família, tanto na casa de residência da ofendida como na casa do Arguido, sita na freguesia de …, concelho de ….

69. Até à fixação do actual estatuto coativo de prisão preventiva, o ora Arguido encontrava-se a viver na …, …, … que o arguido manteve.

70. A mesma corresponde a uma construção em alvenaria, que se encontra provida completamente de bens e equipamentos, fornecimento dos serviços de água, eletricidade, gás e telecomunicações.

71. Aí o Arguido dispõe de quarto próprio – ali vivendo sozinho – e de uma ambiência familiar estável e serena.

72. Até às circunstâncias de tempo da detenção, o Arguido desempenhava a atividade profissional de mecânico e motorista, auferindo um rendimento mensal e sucessivo.

73. O arguido não mantém qualquer contacto com a ofendida, verbalizando não pretender retomar contacto com a mesma ou qualquer familiar a esta nuclear.

74. Nas circunstâncias de tempo da anteriores à sua detenção, o aqui Arguido já não mantinha qualquer relação com a Ofendida nos presentes autos.

75. Não mantém qualquer contacto, directa ou por interposta pessoa, com a Ofendida nos presentes autos.

76. O Arguido tem tido um comportamento em ambiência prisional disciplinado e ordeiro

Das condições pessoais do arguido

77. Em maio, junho, julho/2023 -, AA residia, sozinho, em habitação de tipologia V1, arrendada havia pelo menos 3 anos, alguns meses após migrar para Portugal.

78. No ínterim referido, foi indicado período de convivência com o então cônjuge (sua concidadã), atribuindo o arguido a rutura marital ao entretanto estabelecimento de relação amorosa com a ofendida, bem como curto períodos de convivência com a única descendente do arguido (de uma outra relação), na atualidade com cerca de 16 anos de idade e residente na …, junto da avó materna.

79. O arguido tem mantido a referida morada, com o recurso a amigos (inclusive, a subarrendamento do espaço), dado o valor económico da renda e por pretender continua a residir em Portugal.

80. AA é o segundo elemento de uma fratria de dois de um agregado familiar cuja dinâmica relacional foi caracterizada como isenta de especial conflitualidade.

81. Ainda ao nível psicoafectivo, o arguido teve a vivência de duas relações matrimoniais significativas: cerca de 5 anos com a mãe da descendente (tendo a rutura ocorrido por motivos de “traição” da então companheira, com abandono da menor) e cerca de 9 anos com o cônjuge, com quem viveu 2 anos em Portugal.

82. O período de convivência marital com a mãe de descendente (de nacionalidade …) pautou-se por períodos de distanciamento por motivos laborais e os sentimentos para com a ofendida suplantaram a relação conjugal que mantinha então.

83. O arguido denota adequada vinculação à descendente, bem como projeto de consolidação da sua situação económico-laboral em Portugal por forma a proporcionar à mesma, quadro de bem-estar, inclusive e, Portugal.

84. O arguido não sabe identificar eventuais problemas na relação com a ofendia, para além daquela “se ter desligado”.

85. AA detém habilitações literárias ao nível do 9º de escolaridade, após o que iniciou atividade laboral remunerada, maioritariamente (e com referência a período de 3 anos de trabalho na …), como manobrador de máquina (agrícolas ou outras), adquirindo, nesse âmbito, experiência na área de mecânica.

86. Em Portugal, o arguido registou percurso laboral regular (hábitos de trabalho), desenvolvendo tarefas de mecânica automóvel, conforme solicitações de amigos, vizinhos e como motorista (transporte de trabalhadores de empresa com atividade na apanha de laranja) em 2022/2023.

87. À data da presente reclusão, havia cerca de 3 meses que AA trabalhava, com vínculo laboral, na área de reparação/manutenção de equipamentos e veículos automóveis (desenvolvendo ainda trabalhos de cofragem), na empresa “…”. A referida entidade patronal caracterizou o comportamento do arguido como adequado (em termos de assiduidade, pontualidade e de interação com os demais trabalhadores), sendo enfatizado os seus conhecimentos na área de manutenção/reparação de máquinas ou veículos automóveis como uma mais-valia.

88. No contexto descrito, HH, sócio-gerente referida empresa disponibilizou-se para reintegrar o arguido, quando em meio livre.

89. Ao nível económico, e à data da reclusão, o arguido movimentava-se num quadro económico compatível com a satisfação das suas necessidades básicas/despesas de manutenção, assente no vencimento mensal na ordem do ordenado mínimo nacional, o que consubstanciava uma remuneração mais otimizada relativamente ao período em que trabalhou como motorista (transporte de trabalhadores de empresa com atividade na apanha de laranja), em 2022/2023.

90. Com despesas fixas mensais estimadas em cerca de 607 Euros (referentes à renda da habitação no valor de 250 Euros, apoio à descendente no valor de 200 Euros e custos com água, energia e comunicações num total de cerca de 150 Euros), o arguido recorria ao desenvolvimento de trabalhos extras (manutenção/reparação de viaturas automóveis), para amigos, conhecidos, como forma de aumentar os seus proventos.

91. Ao nível social, não é conhecida história de recurso à violência, como forma de resolução de diferendos, salientando-se a disponibilidade da senhoria para assegurar a habitação (sendo que nos primeiros meses de reclusão, verificaram-se rendas por regularizar), quer a disponibilidade dos amigos do arguido contactados no sentido de manterem o enquadramento habitacional em causa.

92. Pese embora as referências a situações de consumo excessivo de bebidas alcoólicas, protagonizadas pelo arguido, quando em contexto de convívio social, AA não surgiu associado a padrão aditivo de risco.

93. AA priorizou a penosidade da sua situação jurídico-penal/reclusão (nomeadamente em termos da desorganização económico laboral), sem referência à penosidade/stress emocional vivenciado pela ofendida.

94. Contudo, o arguido afirma, reiteradamente, “já não amar (…) ter esquecido CC”, encontrando-se focalizado no seu processo de reinserção social e, por conseguinte, disponibilizando-se para o normativo cumprimento de eventual medida que venha a ser aplicada, nomeadamente direcionada para a proibição de quaisquer contactos com a ofendida.

95. A ofendida ainda mantém consistentes sentimentos de receio pela sua segurança, denotando ansiedade e stress emocional.

96. AA denota agora compreensão e/ou arrependimento relativamente ao incumprimento das obrigações subjacentes à medida de coação de afastamento e proibição de contactos com a ofendida (com vigilância eletrónica) aplicada nos autos.

97. Em meio prisional, o arguido tem usufruído de apoio consistente, traduzido nas visitas dos dois amigos (concidadãos), sendo que mantém contacto, regular, com a filha que permanece na ….

98. Tendo na globalidade, durante a reclusão, registado um comportamento coadunante com as normas vigentes no Estabelecimento Prisional, proximamente a 20/11/2024, o arguido, registou processo disciplinar, o que remete para a ainda dificuldade em cumprir normativamente obrigações/regras preestabelecidas.

99. O arguido é considerado pelos que o conhecem como uma pessoa trabalhadora e ordeira.

100. Por sentença proferida em 30/01/2024, no processo abreviado nº 735/22.7…, do J… do Juízo Local Criminal de …, transitada em jugado em 29/02/2024, foi o arguido condenado pela prática, em 09/09/2022, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, nº 1 do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 5,5, num total de 330€ e na pena acessória de proibição de conduzir, pelo período de 4 meses.

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Factos não provados

Da acusação

1. Em data não concretamente apurada, mas no mês de Junho de 2022, CC foi visitar os seus familiares à ….

2. Quando CC se encontrava naquele país, AA telefonou a esta para regressar a Portugal, tendo esta recusado.

3. Após, AA enviou a seguinte mensagem para o telemóvel de CC “Se não voltares para casa eu mato-te.

4.Quando CC voltou a falar com AA, disse-lhe que não queria manter a relação com ele.

5. Os factos descritos em 10 dos factos provados ocorreram pela 01h00.

6. Na ocasião referida em 12 dos factos provados, o arguido disse diretamente a CC que a ia levar para a matar, tendo-se provado ter usado as expressões descritas em 12 dos factos provados.

7. A faca referida em 12 dos factos provados era de abertura automática.

8. A viatura referida em 23 dos factos provados era do arguido.

9. Na situação descrita em 23 dos factos provados foi no tablier que CC embateu.

10. Os factos descritos em 23 dos factos provados ocorreram no caminho de … para …, local de residência de AA.

11. Em data não concretamente apurada, mas em Fevereiro de 2023, no caminho de … para …, local de residência de AA, no interior da viatura deste, quando regressavam de uma festa, este desferiu cinco bofetadas na face de CC.

12. Como consequência direta e necessária da conduta de AA, CC sofreu dores e escoriações no lábio superior.

13. Em data não concretamente apurada, mas entre 24 de Fevereiro e 31 de Dezembro de 2022, na residência de AA, Rua …, em …, concretamente na marquise junto à entrada da habitação, no decorrer de uma discussão por motivo não concretamente apurado, AA apertou o pescoço de CC.

14. Em Outubro de 2022, AA telefonou a CC a perguntar onde ela estava, tendo esta respondido que estava em casa.

15. Porém, AA disse que era mentira e que estava junto do carro dela no caminho para …, mas o carro dela estava estacionado à porta de casa.

16. Neste seguimento, AA disse CC que ia dia a casa desta, que a matava a ela e aos filhos.

17. Na ocasião referida em 28 dos factos provados, o arguido obrigou a ofendida a despir-se.

18. Os factos descritos em 34 dos factos provados ocorreram no dia 14 de Maio de 2023.

19. Numa ocasião, o arguido abriu o capot do carro da ofendida e desligou a bateria.

20. No seguimento da conversa referida em 35 dos factos provados, AA disse a CC que “Se não ficas comigo, não ficas com mais ninguém. Eu posso ir preso, mas eu mato-te”.

21. Foi no dia 10 de Junho de 2023 e junto ao Mercado de … que ocorreu a situação descrita em 37 dos factos provados.

22. Neste seguimento, AA questionou CC “O que se passa para não ficares comigo?”, ao qual esta respondeu “Como é que dizes isso com todo o mal que já me fizeste” e que retorquiu “Eu já percebi tudo. Eu já não volto a fazer-te mal”.

23. Foi cerca de trinta minutos depois que o arguido tocou à campainha da ofendida.

24. O arguido ofendeu CC na sua honra e consideração.

Da contestação do arguido

25. Em momento algum da relação de ambos (ou fora dela), o Arguido constrangeu a Ofendida a praticar consigo actos sexuais.

26. O Arguido encontra-se, nas actuais circunstâncias de tempo, manifestamente determinado em prosseguir uma vida pacata, ordeira e conducente pelo dever ser jurídico.

27. A habitação arrendada pelo arguido é um apartamento com dois quartos - T2).

28. É verdadeira intenção do arguido não voltar a ter qualquer contacto com a ofendida ou seus familiares.

*

3. Motivação da decisão de facto:

O tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade.

Concretamente, revelaram-se fundamentais para criar a convicção do Tribunal, os seguintes meios de prova:

A generalidade dos factos da acusação dados como provados, atinentes à relação do casal constituído pela mesma e arguido, mostra-se apenas relatado por CC, em declarações para memória futura (transcritas a fls. 335 a 395 e cujo auto consta de fls. 283 e CD a fls. 396) e em audiência (aqui quanto a factos posteriores àquelas declarações), tendo sido negados pelo arguido, que apenas reconheceu a factualidade atinente à existência da relação com CC, a ausência de coabitação e de filhos comuns entre o casal e, bem assim, ao encontro tido com aquela num café, onde tentou a reconciliação.

Não obstante essa circunstância, ou seja, de a generalidade das situações descritas nos factos provados terem sido relatadas por CC e negados por AA, a existência dessa comumente referida “palavra contra palavra” não tem a virtualidade de gerar a dúvida razoável sobre a ocorrência dos factos, dúvida que, em obediência ao princípio in dúbio pro reo, conduziria o julgador a considerar não provados esses factos.

Tal não significa que, ab initio, a palavra de um tenha um valor probatório superior à do outro.

O que se verifica é que as declarações prestadas por CC se mostram reforçadas por outros elementos probatórios, que lhe conferem consistência.

Assim, desde logo as mensagens que se mostram transcritas a fls. 294 a 296 (com tradução a fls. 489), que o arguido reconheceu serem da sua autoria, sem que tenha logrado fornecer qualquer explicação quanto ao seu teor e print de registo de chamadas de fls. 297 a 301.

Note-se que entre as expressões usadas se contam aquelas que a ofendida refere que eram usadas pelo arguido no sentido de ela saber aquilo de que ele era capaz. É manifesto que, para que assim sucedesse, ou seja, para que a mesma soubesse aquilo de que o arguido era capaz, ele já teria de ter adotado condutas para com a ofendida de que lhe adviesse esse conhecimento sobre aquilo de que o arguido era capaz de fazer se a mesma não atendesse o telefone.

É certo que apenas se mostram transcritas as mensagens atinentes ao dia 08 de maio de 2023 e não quaisquer outras, bem como é certo que até esse dia a ofendida nada disse a terceiros, mormente familiares ou amigos sobre as condutas do arguido de que era vítima.

Porém, sobre esses aspetos, a ofendida esclareceu que devido ao medo que tinha do arguido, face às ameaças que o mesmo lhe dirigia e demais comportamentos adotados, mormente a situação da ponte, decidiu, por forma a proteger os seus filhos, aguentar sozinha e não contar a ninguém. Daí que se esforçasse por aparentar uma relação normal com o arguido e que, mesmo quando questionada por familiares sobre se estava tudo bem na relação com o arguido, responder positivamente e dizer que a relação era um assunto dela e para não se meterem (isso mesmo resultou da conjugação das declarações prestadas pela mesma, como dos depoimentos dos seus filhos, as testemunhas EE e DD, que questionaram a mãe, obtendo essas respostas).

Tal postura adotada pela ofendida apenas se alterou quando, devido a ameaças de morte aos filhos, se verificou um crescendo do medo que sentia, no sentido de recear não só que o mesmo lhe fizesse algo a si, como aos seus descendentes, tendo sido então que decidiu telefonar ao filho EE, já maior de idade e que residia em … e relatar ao mesmo as ameaças de que era vítima (o que foi relatado pelo mesmo no seu depoimento).

Note-se ainda que a reforçar as declarações de CC se mostra a conduta que o arguido adotou para com o filho da mesma, EE após esse dia, em que a ofendida mudou de número de telefone e desinstalou aplicações, para evitar ser contactada telefonicamente pelo arguido, bem como se ausentou da sua residência, sita em …, para se deslocar para a residência do filho, sita em …. Assim, a partir desse, coo relatou EE, que não demonstrou qualquer tipo de animosidade para com o arguido, este, na impossibilidade de contactar diretamente CC, passou a contactar EE insistentemente, por causa de CC, com quem queria contactar. A esse respeito, EE esclareceu que não obstante tenha dito e reforçado ao arguido que a mãe já não queria o relacionamento com o mesmo, os telefonemas e mensagens por parte do arguido eram de tal modo repetidas, persistindo ele sempre no mesmo assunto, que EE bloqueou o contacto telefónico do arguido, passando ele a ligar de outros números, que também ia bloqueando e ele ligando de outros, sucessivamente, tendo chegado a comparecer no seu local de trabalho.

Por outro lado, assim que CC regressou à sua residência a Faro, o arguido apercebeu-se de imediato, por passar junto à sua casa, o que igualmente foi relatado por EE, que disse ter a mãe telefonado ao mesmo de imediato, relatando esse facto, tendo ele ligado ao arguido, que aparentava estar embriagado, o que igualmente lhe havia sido relatado pela mãe. E que após esse regresso arguido lhe pediu para se encontrar com a mãe, a fim de que ficassem amigos, o que ela a pedido do filho acedeu, tendo esse encontro, em que EE acompanhou a mãe, como o mesmo relatou e foi reconhecido pelo próprio arguido, este, contrariamente ao que dissera a EE, no sentido de que apenas pretendia ficar amigo da ofendida, pediu para falar com ela a sós e tentou de imediato convencê-la a reatar o relacionamento (o que foi reconhecido pelo mesmo), abraçando-a e agarrando nas suas mãos, ficando ela constrangida (o que foi relatado por EE).

Ora, contrariamente ao referido pelo arguido, que desvaloriza totalmente a sua conduta, referindo que o seu único erro foi amar a ofendida e não entender porque queria pôr fim à relação, já que a mesma não apresentou razão para o efeito, sendo que em seu entender estava tudo bem entre ambos, a conduta adotada pelo arguido e descrita por EE denota antes como o arguido era persistente na sua intenção de manter de qualquer forma a relação com CC, mesmo contra a sua vontade e coo pretendia controlar a sua vontade e conduta, reforçando claramente as declarações prestadas por esta quanto aos episódios ocorridos apenas entre os dois, sem a presença de terceiros.

Mas a versão da ofendida mostra-se ainda reforçada pela situação que foi presenciada pelo agente da PSP II. Assim, esta testemunha, autor do aditamento de fls. 183, esclareceu que na sequência de ter sido acionado o botão de pânico da teleassistência (a fls. 79 a 80 dos autos consta relatório de emergência referente ao acionamento da teleassistência), se deslocaram para junto da residência da ofendida, onde encontraram a mesma e o arguido, que disse que a mesma era sua “mulher” (que foi reconhecido pelo mesmo) e que insistia em falar com a mesma e em não se ir embora, o que acabou por fazer apenas após alguma insistência, sustentando que não entendia a língua portuguesa. E ainda que a ofendida tivesse confirmado que o arguido não compreende bem a língua portuguesa, o agente da PSP foi claro no sentido de que o arguido insistia em falar com a ofendida. Mas ainda mais do que a descrição da conduta adotada pelo arguido, reforçou ainda mais a versão da ofendida a descrição que a testemunha fez da conduta adotada por CC, referindo que a mesma, que o agente afastou do arguido assim que chegou ao local, se mostrava aterrorizada com medo que o arguido percebesse que a mesma tinha acionado o botão de pânico, pedindo para falar com ele para lhe dar uma explicação, por forma a que o mesmo não percebesse.

Também o comportamento adotado por CC descrito pelos seus filhos é de molde a reforçar a sua conduta. Assim, referem que depois de a mãe ter relatado o que se passava com o arguido e se terem deslocado a …, a mesma demonstrava muito medo do arguido e chorava muito. EE referiu também que a mãe estava sempre “stressada e nervosa” emagreceu imenso, tendo perdido entre 10 a 15 kg. Também DD refere que chegou a ver a mãe com uma marca no olho e relatou a diferença de comportamento adotado pela progenitora na ocasião da relação com o arguido e na atualidade (então a mesma passava o tempo fechada no quarto, por vezes não confecionava refeições e não tomavam as refeições juntos também muitas vezes, o que ora não sucede).

Acresce ainda que EE referiu que quando a família da progenitora veio da …, em um jantar de família na casa da ofendida, em que esteve presente, começaram a jantar e o arguido a abraçar a mãe e a insistir para irem dormir, que não queria estar ali (conduta idêntica à que a ofendida diz que o arguido adotou no dia em que se encontrava com o sobrinho no café e em que insistiu em ficar a falar com ele e na sequência da qual ele a levou para a ponte e que também reforça a descrição efetuada pela ofendida, quanto à situação em que se encontrava com a mãe e irmã na praia e que teve de abandonar, por insistência do arguido; e se é certo que a mesma não relatou à família o que se estava passar, mesmo nesse dia, a testemunha EE disse que na ocasião em que a família residiu com a ofendida, a tia lhe relatou que achava que o arguido batia na mãe, ainda que questionada pelo filho, insistisse para que não interferissem na relação com o arguido, que era assunto dela).

Por fim refira-se, quanto ao uso da faca nessa situação, que foi reconhecido pelo próprio arguido que transportava consigo uma faca, que usava profissionalmente, sendo que nas suas declarações para memória futura, a ofendida também disse, quanto à descrição da faca, que era uma faca das que se usam nas obras (a este respeito desde já se refira que a mesma nas explicações dadas quanto à faca, acaba por não confirmar que fosse de ponta e mola).

Tudo o ora descrito, incluindo de forma significativa, o estado em que ficou a ofendida e supra descrito e que se alterou após cessarem as condutas do arguido, quando coativamente no âmbito dos presentes autos forçado a tal, é de molde a reforçar de forma significativa a versão da ofendida quanto aos factos que descreve e que não foram presenciados por terceiros, sendo perfeitamente compatível com as regras da experiência comum a explicação indicada por CC quanto a não ter relatado os factos de que se encontrava a ser vítima assim que os mesmos surgiram e ao longo de um período longo e ao facto de se esforçar por aparentar que mantinha uma relação normal.

Daí que seja normal que as testemunhas GG e FF, respetivamente amigo do arguido e do ex casal formado com a ofendida e senhoria do arguido, não tenham relatado quaisquer factos que comprovem a versão da ofendida. Assim, ainda que aquele descreva viagem a … com o casal, a realização de churrascos e outros eventos em que a ofendida e o arguido aparentavam uma relação normal e em que ambos ingeriam bebidas alcoólicas, a ocorrência de tais eventos foi reconhecida pela própria ofendida nas declarações para memória futura e são percetíveis no âmbito do esforço encetado pela mesma para agradar ao arguido e manter a relação, por medo do que o mesmo lhe pudesse fazer. Esse esforço, de resto não é inédito no âmbito deste tipo de criminalidade, sendo antes muito comum, como resulta da experiência profissional, que mulheres vítimas de comportamentos violentos e ameaças por parte de cônjuges, companheiros ou namorados, mantenham ocultados de terceiros esses comportamentos por longos períodos. Essa é, de resto, uma das razões habituais para que as condutas se arrastem e se reiterem neste tipo de crime. Daí que também seja comum neste tipo de crime (tanto de violência doméstica, como de violação) que inexistam testemunhas presenciais dos factos (ou da sua maioria no primeiro), já que precisamente são crimes em que os factos são habitualmente praticados sem a presença de terceiros, sem que isso possa significar uma total desproteção para as vítimas desses tipos de crimes, no sentido de que inexistindo testemunhas não pudessem os factos dar-se como provados se negados pelo arguido.

É claro que, por outro lado, também não se pode olvidar o direito de defesa do arguido e que também este não pode ficar refém de meras declarações da vítima, totalmente desacompanhadas de outros meios de prova, sob pena da possibilidade de condenações injustas, fundadas em depoimentos que podem ter na sua génese meras intenções de vingança. O equilíbrio entre os direitos de vítima e arguido tem, sim que ser encontrado na existência de outros meios de prova, além do mero depoimento da vítima, que reforcem este e que, in casu, como já supra referido, se verifica de várias formas, tal como acabado de descrever.

Uma última nota quanto aos factos atinentes a relações de natureza sexual não consentida descritas na acusação e negados pelo arguido, que a ofendida na descrição que faz desses factos nas declarações para memória futura, ainda que revelando dificuldade em se pronunciar quanto aos mesmos, fazendo-o com alguma insistência sobre a descrição, não tem dúvidas de que foram pelo menos três as situações que apelida de mais graves em que ocorreram relações sexuais não consentidas e com uso de violência física. Essa violência física, que não respeita à penetração propriamente dita, descreve a mesma que dizia que não queria e que chorava e que o arguido lhe batia com chapadas. Que esta situação foi diferente em uma das situações, única que logrou precisar aproximadamente em termos temporais, em que a ofendida reforça o facto de se encontrar menstruada, porquanto o arguido, mesmo nesse estado da ofendida, alternava entre relações de cópula vaginal e sexo oral, pegando-a pelos cabelos. Ainda que, repita-se, a descrição não seja fluida e seguida, tal resulta claro da análise da totalidade das declarações prestadas, nas instâncias do Mmº Juiz de Instrução e a instâncias do Mº Pº.

No que respeita à factualidade descrita em 46 a 58 dos factos provados, o decidido funda-se no teor do auto de primeiro interrogatório judicial de arguido, de onde resulta que esteve acompanhado de intérprete, sendo certo que o próprio arguido em audiência reconheceu ter ficado ciente de que estava proibido de contactar com a ofendida e de se aproximar da sua residência; mandado de libertação de fls. 154 e auto de interrogatório judicial subsequente, de fls. 213 a 222; e informações e relatórios de incidentes da DGRS de fls. 152, 172 a 173, 177 a 178, 184 a 185, 191 a 192, sendo que o arguido nas suas declarações confirmou que se encontrava ciente de que se encontrava proibido de contactar a ofendida e que o mecanismo que lhe foi entregue visava controlar que o mesmo cumpria essa proibição. O arguido referiu, no entanto, quanto ao afastamento da UPM e falta de carregamento, que apesar de saber que tinha que usar o dispositivo da UPM, não sabia a que distância podia estar do equipamento, sendo que às vezes o deixava no interior da viatura enquanto trabalhava, assim como disse que não sabia que tinha que informar o seu novo contacto telefónico à DGRSP e que o equipamento também servia para estabelecer contacto telefónico com o arguido. A esse respeito, inquirida a testemunha JJ, que colocou no arguido o mecanismo de controlo à distância (vigilância eletrónica), o mesmo, não recordando do arguido ou da colocação do mecanismo no mesmo, referiu que quando os arguidos não dominam a língua portuguesa, lhes é entregue um documento com explicações de funcionamento do equipamento apenas em língua portuguesa e que são dadas explicações em língua inglesa, já que não se fazem acompanhar de intérprete. Assim, ainda que o arguido tenha sido assistido de intérprete no interrogatório, ficando ciente da medida de coação aplicada, como ele reconhece, já quanto ao exato funcionamento do aparelho, a versão apresentada pelo arguido, em face do relato desta testemunha, não pode ter-se por contrariado, ainda que o arguido soubesse que tinha que carregar o equipamento e que devia estar contactável pela DGRSP, o que se mostrava inviabilizado pela troca de telemóvel.

Quanto à factualidade descrita em 59 a 61 e 66 dos factos provados, fundou-se no relato de CC e a descrita em 67 dos factos provados, no depoimento de Fábio Galante e nas declarações do arguido.

Quanto à factualidade descrita em 62 a 65 dos factos provados, o decidido funda-se na conjugação da demais factualidade dada como provada, com as regras da experiência comum face ao facto de o arguido não apresentar características inferiores ao homem médio.

Por fim, refira-se, quanto à condenação sofrida pelo arguido, que foi valorado o CRC de fls.. 699 a 701 e quanto às condições de vida e personalidade do arguido (factos extensivos à contestação), foi valorado o relatório social de fls. 636 e ss., declarações do arguido e o depoimento das testemunhas de defesa supra referidas.

Por fim, quanto aos factos não provados, o decidido funda-se na circunstância de a ofendida não os ter descrito ou não ter descritos de forma suficientemente clara para que se considerem provados.

Quanto aos factos não provados da contestação, o decidido funda-se na circunstância de não ter resultado demonstrada essa factualidade ou de ter resultado demonstrado o contrário. Mormente quanto à intenção do arguido de não voltar a contactar a ofendida ou seus familiares, não obstante a afirmação do arguido nesse sentido, a negação da generalidade dos factos por parte do mesmo, com falta, portanto, de assunção dos factos que se deram como provados, não é de molde a que se possa concluir por uma verdadeira alteração da conduta do arguido, no que respeita à sua intenção em relação à ofendida (sendo certo que o mesmo como foi relatado pela ofendida e EE, chegou a dizer que não pretendia reatar a relação com a mesma, com vista a conseguir chegar à fala com a ofendida e, após, quando só na presença da mesma, a voltar a insistir por isso, até mediante ameaça).”

*

Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido nos seguintes termos:

“ O Ministério Público acusa, nos termos do artigo 283.º do Código de Processo Penal, e, para julgamento em Processo Comum e em Tribunal Coletivo:

AA, filho de … e de …, natural da …, nascido a …1990, divorciado, mecânico, titular do passaporte n.º …, com residência Rua …, n.º …, em …,

1. AA conheceu a vítima CC há cerca de três anos e iniciaram uma relação de namoro em Setembro de 2021.

2. AA e CC nunca coabitaram juntos, apenas frequentavam a casa um do outro.

3. AA e CC não têm filhos em comum.

4. Os problemas entre AA e CC surgiram depois do início da guerra na Ucrânia, ou seja, após 24 de Fevereiro de 2022.

5. Em data não concretamente apurada, mas no mês de Junho de 2022, CC foi visitar os seus familiares à ….

6. Quando CC se encontrava naquele país, AA telefonou a esta para regressar a Portugal, tendo esta recusado.

7. Após, AA enviou a seguinte mensagem para o telemóvel de CC “Se não voltares para casa eu mato-te”.

8. Quando CC voltou a falar com AA, disse-lhe que não queria manter a relação com ele.

9. Em data não concretamente apurada, mas no mês de Junho de 2022, AA, enquanto conduzia o seu veículo com CC no interior, levou esta para lugar não concretamente apurado, mas na zona de … – …, por volta 01h00m, e imobilizou o veículo em lugar ermo onde existia uma ponte.

10. AA, enquanto se dirigia para este local, disse a CC que a ia levar para a matar.

11. AA tinha na sua posse uma faca de abertura automática, tendo CC acreditado nas palavras que lhe dirigiu.

12. Quando AA chegou ao local supra, pelas 1h00m, ordenou a CC para sair do veículo e disse-lhe “Vamos ali para a ponte”.

13. CC estava em pânico, a chorar, e acreditava, seriamente, que AA a ia matar e implorou-lhe pela vida dizendo “Dá-me uma chance. Eu não fiz nada de mal”.

14. Neste seguimento, AA disse-lhe “Não, não, tu já não vais hoje para casa”.

15. CC continuou a implorar a AA par não a matar e ele acabou por dizer que iam para casa.

16. Nessa noite, AA e CC acabaram por dormir juntos em casa desta.

17. Após este dia, sempre que AA deseja que CC vá ter com ele ou pretende algo desta, e não é correspondido por CC, este diz-lhe “Acabo o que não fiz na outra noite” e “Eu mato-te e saio de Portugal”.

18. CC, com medo de AA, acaba por ceder aos pedidos deste e vai ter com ele quando este o exige.

19. Já ocorreram situações em que CC deixa de confecionar o jantar para o filho e tem de sair de casa rápido, pela pressão e ameaça que AA lhe faz.

20. Como as ameaças acima aludidas são uma constante por parte de AA, CC vive em pânico e com receio que este cumpra as ameaças, bem como limita a sua vida.

21. Após o aludido episódio, sempre que era contrariado, o arguido dizia à ofendida que faria o que não havia terminado naquele dia, e que se ela fosse à polícia, ele podia ir preso, mas diria aos seus amigos para a matarem.

22. Com muito medo, diariamente, a ofendida nunca contou o sucedido a ninguém.

23. Em data não concretamente apurada, mas no período da Páscoa do ano 2022, no caminho de … para …, local de residência de AA, no interior da viatura deste, este agarrou pelos cabelos CC e começou a projetar a cabeça desta contra o tablier da viatura, no qual embateu.

24. Como consequência direta e necessária da conduta de AA, CC sofreu dores e ficou com um hematoma no sobrolho esquerdo.

25. Em data não concretamente apurada, mas em Fevereiro de 2023, no caminho de … para …, local de residência de AA, no interior da viatura deste, quando regressavam de uma festa, este desferiu cinco bofetadas na face de CC.

26. Como consequência direta e necessária da conduta de AA, CC sofreu dores e escoriações no lábio superior.

27. Noutra ocasião, em data não apurada, por a ofendida não atender logo a sua chamada telefónica, disse que mataria os filhos dela.

28. Em data não concretizada, após período de três dias em que a ofendida permaneceu na residência de uma amiga, quando a contatou presencialmente encostou-lhe uma faca ao corpo e disse-lhe que estava à espera há três dias para fazer aquilo, tendo a ofendida acreditado que a mataria.

29. Em data não concretamente apurada, mas entre 24 de Fevereiro e 31 de Dezembro de 2022, na residência de AA, Rua …, em …, concretamente na marquise junto à entrada da habitada, no decorrer de uma discussão por motivo não concretamente apurado, AA apertou o pescoço de CC.

30. Em Outubro de 2022, AA telefonou a CC a perguntar onde ela estava, tendo esta respondido que estava em casa.

31. Porém, AA disse que era mentira e que estava junto do carro dela no caminho para …, mas o carro dela estava estacionado à porta de casa.

32. Neste seguimento, AA disse CC que ia dia a casa desta, que a matava a ela e aos filhos.

33. CC para não ser contactada pelo AA, foi durante quinze dias para a casa do filho em …, bem como alterou o número de telemóvel.

34. No dia 8 de Maio de 2023, AA, utilizando o contacto telefónico n.º …, telefonou, pelos menos, 26 (vinte e seis) vezes para a ofendida, a qual não atendeu as chamadas.

35. Sabendo que a mesma não desejava o contato to arguido, e utilizando o aludido contato telefónico, a partir das 20.00h até às 20.29h, enviou 15 (quinze) mensagens à ofendida, ordenando-lhe que atendesse o telemóvel, e com o conteúdo em língua …, designadamente dizendo-lhe “atende, eu não estou a brincar, tu sabes”, “CC, tu não te vais esconder a vida toda, acredita”, “tu conheces-me”, “eu não brinco nunca. Atende e explica o que aconteceu”, “CC, atende antes que eu faça um escândalo amanhã no trabalho, sabes que eu sou capaz de o fazer. Atende.”

36. No dia 14 de Maio de 2023, AA descobriu que CC já tinha regressado à sua residência.

37. Então, AA combinou um encontro com CC num café perto da casa desta.

38. Quando se encontravam neste local e no decorrer da conversa, AA disse a CC que pretendia reatar a relação com esta, tendo CC lhe dito não queria estar novamente com ele.

39. Neste seguimento, AA disse a CC que “Se não ficas comigo, não ficas com mais ninguém. Eu posso ir preso, mas eu mato-te”.

40. Em data não concretamente apurada, mas entre o dia 24 de fevereiro de 2022 e o presente, em três ocasiões, na residência de AA, Rua …, em …, depois de lhe bater, obrigou CC a despir-se e manter com ele relações sexuais contra a vontade desta, designadamente introduzindo o pénis na sua vagina e na sua boca até ejacular.

41. Uma dessas ocasiões ocorreu em Janeiro de 2023, em que o arguido forçou penetração vaginal e oral, introduzindo alternativamente o seu pénis na boca da ofendida e na sua vagina, enquanto a agarrava pelos cabelos, com força.

42. Durante o descrito a ofendida chorava.

43. AA não permitia que CC saísse com amigas.

44. CC via, quase diariamente, a viatura de AA a passar à porta de casa da sua residência.

45. CC está de baixa médica desde dia 09 de maio de 2023, porque não se sente bem pela violência psicológica, física e sexual que tem sofrido por parte de AA.

46. No dia 10 de Junho de 2023, CC estava a estacionar o carro junto ao mercado de …, e quando ainda se encontrava dentro da sua viatura, foi abordada por AA.

47. Neste seguimento, AA questionou CC “O que se passa para não ficares comigo?”, ao qual esta respondeu “Como é que dizes isso com todo o mal que já me fizeste” e que retorquiu “Eu já percebi tudo. Eu já não volto a fazer-te mal”.

48. No dia 10 de Julho de 2023, pelas 21h48m, CC acionou o serviço de Teleassistência da …, pois, momentos antes, ao chegar junto da sua residência, deparou-se com AA a fazer-lhe uma espera no interior de uma viatura, a qual se encontrava estacionada frente à entrada do prédio onde reside, concretamente na Praceta …, em ….

49. Quando os agentes da PSP de … abordaram AA, este disse-lhe que queria conversar com a sua “mulher”.

50. Não obstante a ida ao local pelos agentes da PSP de … e após estes terem abandonado o local da ocorrência, AA voltou à residência de CC, cerca de trinta minutos depois, tocou na campainha, mas como esta não abriu, foi embora.

51. Num desses dias, abriu o capot do carro da ofendida e desligou a bateria.

52. AA sabe que CC não quer manter o relacionamento com este, mas não aceita o fim da relação.

53. CC não quer que AA de aproxime dela e dos seus filhos.

54. No dia 31 de Julho de 2023, na sequência de emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito, foi o arguido sujeito a primeiro interrogatório judicial, tendo-lhe sido aplicadas as medidas de coacção de proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida, não permanecer, nem se aproximar da residência da vítima a, pelo menos, 300 metros de distância, e apresentações bissemanais, a realizar às terças e quintas-feiras no OPC da área da sua residência, entre as 10.00h e as 22.00h.

55. O arguido ficou ciente de todo o conteúdo das medidas de coacção impostas.

56. Porém, o arguido incumpriu reiteradamente o estatuto coactivo a que se encontrava submetido.

57. Com efeito, no dia 11 de Setembro de 2023, a DGRSP informou que o sistema de monitorização eletrónica por geolocalização registou os seguintes incumprimentos decorrentes do afastamento do arguido (enquanto portador de um DIP – dispositivo de identificação pessoal – vulgo, pulseira eletrónica) em relação à UPM, durante várias horas:

- 25ago23 das 15:56h às 16:43h;

- 29ago23 das 08:24h às 10:17h;

- 01set23 das 07:55h às 18:51h;

- 06set23 das 07:48h às 23:39h;

- 08set23 das 12:29h às 12:36h, das 13:09h às 13:27h, das 13:41h às 13:56h e das 15:46h às 00:44h (de 09set23).

58. Com esta conduta (não transporte da unidade de posicionamento móvel (UPM)), sempre que o arguido se afastava do equipamento – UPM - a equipa ficava sem qualquer informação referente ao seu paradeiro e/ou situação atual.

59. Ainda nesta comunicação, a DGRSP deu conta de incumprimentos decorrentes da violação da zona de exclusão em redor da casa da vitima (ou zona de proibição), com caráter regular, alguns dos quais entradas e saídas no mesmo minuto.

60. Sempre que ocorreram incumprimentos ou anomalias a vítima foi informada pelos técnicos desta equipa da DGRSP e durante o contato CC, revelou desconforto, receando pela sua segurança.

61. Assim, informou a DGRSP que AA não colaborava com os técnicos da equipa de Vigilância Eletrónica da DGRSP, designadamente não atendia as tentativas de contato efetuadas, facultou número de telemóvel que não funcionava e nem sequer atendia as chamadas efetuadas para a UPM (unidade de posicionamento móvel) que lhe foi entregue no dia 01ago2023.

62. No dia 22 de setembro de 2023, a DGRSP informou novamente que o sistema de monitorização eletrónica por geolocalização registou os seguintes incumprimentos decorrentes do afastamento do arguido (enquanto portador de um DIP – dispositivo de identificação pessoal – vulgo, pulseira eletrónica) em relação à UPM, durante várias horas:

- 13set23 das 13:22h às 15:32h e das 19:21h às 10:13h (de 14set23)

- 16set23 das 14:13h às 04:18h (de 17set23)

- 17set23 das 14:46h às 16:33h

- 18set23 das 09:41h às 09:53h e das 11:14h às 11:20h

- 20set23 das 15:38h às 16:28h

- 21set23 das 10:06h às 02:46h (de 22set23) registaram inúmeros afastamentos, alguns, com períodos superiores a 1 hora.

63. Com esta conduta (não transporte da unidade de posicionamento móvel (UPM)), sempre que o arguido se afastava do equipamento – UPM – a DGRSP ficava sem qualquer informação referente ao seu paradeiro e/ou situação actual do arguido.

64. Sendo que a DGRSP reiterou a informação acima mencionada de incumprimento.

65. No dia 10 de outubro de 2023, reiterou a informação, informando que o sistema de monitorização eletrónica por geolocalização registou os seguintes incumprimentos decorrentes do afastamento do arguido (enquanto portador de um DIP – dispositivo de identificação pessoal – vulgo, pulseira eletrónica) em relação à UPM, durante várias horas:

- 26set23 das 11:19h ás 20:04 e das 20:50h às 22:31h

- 27set23 das 22:18h às 01:47h (de 28set23)

- 28set23 das 09:05h às 23:50h

: 266746853 Mail: evora.tr@tribunais.org.pt

- 02out23 das 07:45h às 21:07h

- 03out23 das 07:40h às 12:17h e das 12:52h ás 19:14h

- 04out23 das 21:12h às 23:21h

- 05out23 das 18:12h às 00:24h (de 06out23)

- 06out23 das 07:50h às 09:47h, das 10:09h às 10:39h e das 10:56h às 12:46h

- 07out23 das 11:08h às 11:14h e das 15:34h às 18:59h

- 08out23 das 01:19h à 01:27h, das 11:32h às 13:11h e das 13:32h às 17:04h

66. No dia 07out23 das 22:39h às 22:43h o sistema de monitorização registou uma violação da zona de exclusão fixa em redor da casa da vitima.

67. Com os descritos incumprimentos, foi promovido o agravamento do estatuto coativo do arguido e, em 27 de Outubro de 2023, submetido a novo interrogatório judicial.

68. Na referida diligência foi aplicada ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva.

69. CC sente-se assustada, com medo e insegura com o comportamento de AA, teme pela sua vida e integridade física e vida, pois tem medo que ele concretize as ameaças que lhe dirigiu e limita, assim, a sua liberdade de ação.

70. Com as condutas acima descritas, agiu o arguido com o propósito logrado de maltratar CC, ciente da relação que mantinham, aterrorizando-a ao ofendê-la na sua honra e consideração, ao maltratá-la fisicamente atingindo-a no corpo e na saúde, sabendo ainda que as expressões que lhe dirigiu eram adequadas a causar-lhe receio para a vida e integridade física, o que representou e concretizou.

71. Com as condutas descrita no artigo 40.º e 41.º, agiu o arguido com o propósito firmado de satisfazer os seus instintos libidinosos e infligir ofensas sexuais a CC, com quem matinha uma relação, constrangendo-a a manter com ele relações sexuais, mediante cópula e introduzindo o seu pénis na vagina e na boca de CC, sempre contra a sua vontade e sem o seu consentimento, tendo utilizado força como forma de colocar esta em posição de a impedir de resistir para concretizar os seus intentos, o que representou e concretizou.

72. O arguido estava ciente que CC se opunha a tais práticas sexuais, ao que foi indiferente, aproveitando-se da sua superioridade física, sabendo que, ao fazê-lo, colocava em causa a liberdade sexual desta.

73. O arguido agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

*

Os fatos supra indicados, são suscetíveis de consubstanciar a prática, pelo arguido AA, como autor material, na forma consumada e dolosa (artigos 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 1, todos do Código Penal), em concurso efetivo:

- 1 (um) crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, b) e n.º 2, do Código Penal, ao qual são aplicáveis as penas acessórias previstas no n.º 4 a n.º 6 deste preceito legal;

- 3 (três) crimes de violação agravada, previstos e punidos nos termos do disposto no artigo 164.º, n.º 1, a), artigo 177.º, n.º 1, b), ambos do Código Penal.

*

1. Testemunhal

a) CC, identificada a fls.36;

b) EE, identificado a fls. 56;

c) DD, identificado a fls. 59;

d) II, identificado a fls. 183.

2. Documental:

a) Denúncia, a fls. 2;

b) Pesquisa de veículo, de fls. 66;

c) Informações APAV, a fls. 61, 77 e 267;

d) Cota, a fls. 94,

e) Relatório detalhado de alerta SOS – teleassistência, de fls. 78 e fls. 80;

f) Aditamento, de fls. 183,

g) Informações DGRSP, de fls. 152, 172-173, 177-178, 184-185, 191-192;

h) Prints de mensagens e chamadas de fls. 294-301, traduzidas a fls. 489;

i) Certificado do registo criminal de AA, a fls. 492 a 498.

3. Prova por declarações para memória futura – auto a fls. 283, e CD a fls. 396.”

*

A 14/02/25 foi proferido pela Srª. Juiz Presidente do Tribunal Colectivo a quo o seguinte despacho:

“Os factos, tal como se mostram descritos na acusação, são suscetíveis de integrar a prática de três crime de violação, cada um p. e p. pelo art. 164º, nº 2. al. a) do Código Penal (e não apenas punidos pelo nº 1, al. a) do mesmo preceito legal, tal como imputado na acusação), pelo que, nos termos do disposto no art. 358º, nºs 1 e 3 do CPP, se comunica ao arguido a alteração da qualificação jurídica, a fim de, querendo, requerer prazo para preparação da defesa.

Igualmente da prova produzida resultou indiciada a seguinte factualidade que constitui alteração não substancial dos factos descritos na acusação e que, nos termos do disposto no art. 358º, nº 1 do CPP, igualmente se comunica ao arguido, a fim de, querendo, requerer prazo para preparação da defesa:

- AA e CC tomavam refeições juntos e mantinham relações sexuais nas casas um do outro.

- O arguido controlava o tempo que CC levava a chegar a casa desde que saía do trabalho e insistindo após para ela ir para sua casa, o que aconteceu com uma periodicidade quase diária.

- Isso aconteceu mesmo quando, em março de 2022 a mãe, irmã e sobrinhos de CC vieram da …, em que, após um período em que ficaram na casa daquela, passaram a residir em outro local, enviando o arguido muitas mensagens àquela, a questionar onde estava, se ela se deslocava a casa dos familiares.

7. Uma vez em que se deslocou à praia com os familiares, o arguido telefonou a CC a saber onde estava e mesmo após ela dizer que seriam apenas 20 minutos com os familiares, disse que a ia buscar e que não lhe podia fazer isso, tendo ela acabado por sair da praia.

- No mês de Maio ou Junho de 2022, CC, na companhia do arguido, encontrou-se num café com um sobrinho, que viera da ….

- A determinada altura, o arguido disse a CC que não queria estar ali e para irem para casa, tendo CC referido que queria ficar, pois não via o sobrinho há dois anos, tendo ele dito “não, vamos para casa, vamos para casa”.

- Os factos ora referidos antecederam a factualidade descrita na acusação, ocorrida junto a uma ponte.

- Foi entre as 23h00 ou 24h00 que o arguido e imobilizou o veículo no lugar descrito na acusação onde existia uma ponte.

- Na ocasião em que se dirigia a esse local AA disse a CC ”vais ver o que é que te vou fazer, vais ver o que te faço”.

- A faca referida na acusação foi exibida a CC, dizendo-lhe “vamos”, questionando ela para onde, altura em que ele disse o descrito na acusação em relação à existência da ponte.

- CC, além do descrito na acusação, implorou para falar com os filhos, tendo depois começado a pedir desculpa e a dizer para irem para casa.

- Em momento temporal não concretamente apurado, AA disse-lhe “tu já não vais para casa hoje”.

- CC abraçou o arguido, sendo qua ao pedir para ir para casa o arguido repetia “não peças porque hoje não vais para casa”.

- Nessa noite, AA e CC acabaram por dormir juntos em casa desta.

- Em uma outra ocasião, em que se deviam deslocar de carro para casa de um amigo, o mesmo deslocou-se por um caminho que ela não conhecia, dizendo a CC “não fiz no outro dia, vou fazer agora”, levando-a a supor que ele a iria matar, o que a levou a abrir a porta do carro para saltar, tendo ele puxado a mesma pelo cabelo, imobilizado o carro mais à frente e dito “o que fazes? vamos para casa de um amigo”.

- Após a situação da ponte quando dizia a CC que ia fazer o que não fez na outra noite, o arguido também lhe dizia que ela sabe aquilo de que ele é capaz.

- Uma ocasião em que falaram da situação da ponte o mesmo dito “tu viste os meus olhos”.

- Quando CC não cedia aos pedidos do arguido em ir ter com ele, após não conseguia dormir, sempre à espera que o arguido pudesse telefonar-lhe.

- Uma ocasião temporalmente não apurada, o arguido disse à ofendida que tinha de o ir buscar, que lhe iria enviar a localização, tendo-o ido buscar a … e, no regresso, tendo-lhe ela dito que chegaram e que podia ir para casa, o arguido, após referir que estava tudo bem, começou a desferir pontapés no espelho retrovisor do veículo de CC, que acabou por abandonar o local.

- Nessa sequência, o arguido começou a mandar mensagens a CC a dizer que se ela não voltasse já sabia o que ele lhe fazia.

- Na situação descrita na acusação em que o arguido agarrou os cabelos de CC, foi no volante da viatura que a mesma embateu, sendo a viatura conduzida pelo arguido.

- Na situação descrita na acusação em que se refere que o arguido, por CC não atender o telefone, lhe disse que mataria os seus filhos, aquela não atendeu o telefone porque começara a trabalhar em um novo local, tendo por isso deixado o telemóvel no silêncio, tendo sido pelas 18h00 ou 19h00 que o arguido disse que mataria os seus filhos dizendo também que ia a casa dela fazer o descrito na acusação (matar os seus filhos).

- Foi com chapadas, depois de ela dizer que não queria, que o arguido bateu a CC (e manteve as relações sexuais descritas na acusação).

- Na situação de janeiro de 2023 descrita na acusação, CC encontrava-se menstruada.

- Quando CC permaneceu na casa da amiga (situação descrita na acusação), o arguido pediu-lhe para ela voltar, que não faria o mesmo e, quando ela anuiu e o acompanhou a casa dele, foi quando o arguido lhe encostou a faca (situação esta descrita na acusação), tendo aquela feito um corte no dedo, ao tentar desviar a faca.

- Foi no dia 8 de Maio de 2023 e por se encontrar muito assustada que CC foi para casa do filho.

- Após, o arguido começou a ligar e enviar elevado número de mensagens a EE, filho mais velho de CC, por forma a que convencesse esta a reatar o relacionamento consigo, o que fez mesmo após EE lhe dizer que CC não queria estar com ele, tendo EE acabado por bloquear o número do arguido, que após passou a ligar ou enviar mensagens a partir de outros números, tendo também se deslocado pessoalmente, pelo menos duas vezes ao local de trabalho de EE.

- No dia em que CC regressou à sua residência, ao ver o arguido, contactou o filho EE.

- Foi cerca de 10 dias após o regresso de CC à sua residência, o encontro em um café co o arguido.

- Nessa ocasião o arguido pegou na mão da mesma e abraçou-a.

- A ocasião em que CC estava a estacionar o carro e foi abordada pelo arguido, ele entrou na mesma.

- Na sequência dos factos praticados pelo arguido CC emagreceu cerca de 10 quilos.

- Em data não concretamente apurada, mas após a separação do casal, o arguido esperou por CC junto à sua residência, tendo puxado a mesma pelo cabelo para o interior da viatura daquela e conduzido a mesma até à zona da …, onde imobilizou a viatura, tendo CC convencido o mesmo a irem beber café, o que fizeram em posto de abastecimento de combustível.

- No dia em que CC acionou o serviço de Teleassistência, o arguido saltou para a frente da viatura dela, que por isso não conseguia estacionar.

- Quando os agentes da PSP de … abordaram AA (como descrito na acusação), CC ficou com muito medo com o facto de AA poder perceber que a presença dos agentes da PSP no local resultara de ela ter acionado o mecanismo da teleassistência, insistindo com os agentes para dar explicações àquele.

- A filha do arguido, no decurso da proibição de contactos do arguido com CC, solicitou à mesma que depusesse nos autos no sentido de as suas anteriores declarações não corresponderem à verdade.”

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3.2.- Mérito do recurso

A) Nulidade da decisão da alteração não substancial de factos

Como primeiro fundamento do seu recurso vem o recorrente invocar a nulidade insanável da decisão da alteração não substancial de factos, nos termos dos arts.º 119º, al. e) e 32º, nº 1 do Cód. de Processo Penal, porquanto entende que a comunicação da alteração não substancial de factos e da alteração da qualificação jurídica efectuada pela Mma. Juíza Presidente, na ausência dos Juízes Adjuntos, é nula porque o deveria ter sido pelo Tribunal Colectivo no seu conjunto.

Vejamos se lhe assiste razão.

Compulsados os autos constatamos que no dia designado para a leitura do acórdão recorrido, a 14/02/25, consta da acta que a Mmª Juiz Presidente do Tribunal Colectivo a quo:

- declarou aberta a audiência;

- de seguida, proferiu despacho em que se considera que da prova produzida resultou indiciada factualidade que constitui alteração não substancial dos factos descritos na acusação o que comunicou ao arguido, a fim de, querendo, requerer prazo para preparação da defesa, nos termos do disposto no art.º 358º, nº 1 do CPP;

- interrompeu a audiência, a fim de verificar a agenda dos demais Juízes que compunham o Coletivo;

- retomada a audiência, proferiu despacho a conceder, atenta a extensão da comunicação apresentada, o prazo requerido pela defesa e designou o dia 5/03/2025 para eventual continuação da audiência ou leitura do acórdão.

Em matéria de nulidades, dispõe o art.º 118º do mesmo diploma que:

“1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei. 2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular. 3 - As disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova.”

A nulidade invocada pelo recorrente é a nulidade insanável prevista no art.º 119º, alínea e) do Cód. Proc. Civil, ou seja, “A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º”.

Sucede, porém, que no art.º 358º do Cód. Proc. Penal se prevê expressamente que, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, cabe ao presidente do colectivo de juízes a comunicação dessa alteração ao arguido e a concessão, se ele o requerer, do tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

Coisa diferente seria que a decisão referente à verificação de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação fosse tomada, singularmente, pelo Juiz Presidente do Colectivo, o que não seria legalmente admissível.

No caso dos autos, analisada a tramitação processual, constatamos que a deliberação sobre a alteração não substancial dos factos descritos na acusação foi previamente tomada pelo Tribunal Colectivo, pois essa comunicação foi efectuada no dia designado para a leitura do acórdão, em audiência agendada para esse efeito, e as questões comunicadas foram transpostas para o acórdão que veio a ser proferido, o qual se mostra assinado pelos três juízes que compõem o Tribunal.

Desta factualidade, impõe-se a conclusão de que a Juíza Presidente do Colectivo se limitou a comunicar, em audiência, ao arguido o teor da deliberação previamente tomada pelo Colectivo de juízes.

Não existem nos autos quaisquer indícios de que a decisão sobre a alteração não substancial dos factos descritos na acusação tenha sido tomada apenas pela Juiz Presidente do Tribunal a quo, indiciando a tramitação processual exactamente o contrário.

Daqui se conclui que não se verifica a nulidade invocada pelo arguido, improcedendo neste tocante o recurso.

B) Nulidade por falta de indicação e concretização dos meios de prova de onde resulta a indiciação de novos factos com relevo para a decisão

Como fundamento do seu recurso invoca o arguido a nulidade da decisão, nos termos previstos no art.º 379º, nº 1, alínea b) do Cód. Proc. Penal, por falta de indicação e concretização dos meios de prova de onde resulta a indiciação de novos factos com relevo para a decisão, porquanto o Tribunal a quo quando lhe comunicou a alteração não substancial dos factos descritos na acusação se limitou a uma alusão genérica, abstrata e indefinida à prova produzida, o que não lhe conferiu os elementos necessários para o exercício do seu direito de defesa relativamente aos novos factos comunicados, em clara violação do disposto no art.º 32º, nº 5 da CRP.

Ora, voltando a compulsar os autos verificamos que consta da acta da audiência realizada a 14/02/25, que a Juiz Presidente do Tribunal Colectivo a quo, ao comunicar a alteração não substancial dos factos, proferiu o seguinte despacho:

“Os factos, tal como se mostram descritos na acusação, são suscetíveis de integrar a prática de três crime de violação, cada um p. e p. pelo art. 164º, nº 2. al. a) do Código Penal (e não apenas punidos pelo nº 1, al. a) do mesmo preceito legal, tal como imputado na acusação), pelo que, nos termos do disposto no art. 358º, nºs 1 e 3 do CPP, se comunica ao arguido a alteração da qualificação jurídica, a fim de, querendo, requerer prazo para preparação da defesa.

Igualmente da prova produzida resultou indiciada a seguinte factualidade que constitui alteração não substancial dos factos descritos na acusação e que, nos termos do disposto no art. 358º, nº 1 do CPP, igualmente se comunica ao arguido, a fim de, querendo, requerer prazo para preparação da defesa:“(…)”

Na verdade, nada mais se diz quanto aos concretos meios de onde resultaria a prova dos novos factos indiciados, importando tomar posição sobre se a menção genérica efectuada no despacho é ou não suficiente para assegurar o direito de defesa do arguido relativamente aos factos constantes da comunicação.

Porém, pese embora a decisão em apreço pudesse estar melhor concretizada quanto a esta questão, ainda assim entendemos que a nulidade invocada não se verifica.

Acompanhamos, assim, a posição assumida nos autos pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso, que secundamos inteiramente e que aqui deixamos transcrita:

“O recorrente sustenta também que a comunicação a que alude o artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal deve abranger não unicamente os factos objecto da alteração, mas também a concretização dos meios de prova de onde resulta a indiciação desses factos, sob pena de preclusão do princípio do contraditório e de violação das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas. Ao não o ter feito, o tribunal recorrido teria incorrido na nulidade a que se refere o artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma.

Entendemos, em contrário, que a lei processual não impõe tal comunicação.

O artigo 358.º do Código de Processo Penal prevê única e exclusivamente a comunicação da alteração de factos e qualificação jurídica, nada prevendo sequer quanto comunicação de meios de prova.

Tal como decidiu já o Tribunal da Relação de Évora em acórdão de 28 de Março de 2023 (processo 1191/21.2PBSTB.E1, relator Carlos de Campos Lobo), “III (…) considerando a literaldade desenvolvida no preceito em ponderação, no caso de alteração não substancial, apenas impende sobre o juiz, o dever de comunicar ao defensor os factos que representam alteração relativamente aos que conformam a acusação ou a pronúncia, interrogar o arguido, sempre que possível, sobre tal matéria e conceder o tempo necessário para preparação da defesa, não se impondo, ainda que de modo indireto/ínvio/subtil, aquando da comunicação da alteração de factos, nos termos do que plasma o artigo 358.º/1 CPP, a indicação de meios de prova.

III. A indicação/sustentação probatória tem é que existir em momento posterior, ou seja, aquando da motivação da decisão de facto, não fazendo qualquer sentido, que ainda em tempo da discussão do pleito, o tribunal adiante qual o juízo probatório que está a fazer.”

Neste mesmo sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Dezembro de 2024 (processo 264/18.3PASJM.P1, relator Pedro Vaz Pato), onde, sintetizando os argumentos que sustentam tal posição, se refere: “(…) a letra da lei não impõe expressamente no artigo 358º do CPP a especificação dos meios de prova que suportam a alteração; trata-se de um despacho não decisório; tratam-se de factos indiciados e não de factos provados; trata-se de um mero juízo provisório; a indicação/sustentação probatória tem é que existir aquando da motivação da decisão de facto, não fazendo qualquer sentido que ainda em tempo da discussão do pleito o tribunal adiante qual o juízo probatório que está a fazer; basta que na fundamentação da comunicação de alteração de factos se faça uma indicação genérica de que os mesmos resultaram da discussão da causa.

Aliás, tendo os arguidos, particularmente através dos seus defensores, estado presentes na audiência onde foi produzida toda a prova e que, tal como o Tribunal, percecionaram o que dela resulta, sabe em que prova o Tribunal se baseou, pois que não se socorreu, como não podia, a nenhuma outra prova que não estivesse nos autos ou não tivesse sido discutida em audiência.”

Ainda no mesmo sentido decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra em acórdão de 14 de Janeiro de 2015 (processo 72/11.2GDSRT.C1, relator Fernando Chaves), e o Tribunal da Relação de Guimarães em acórdão de 10 de Julho de 2023 (processo 2257/21.4JABRG.G1, relator Armando Azevedo).

De sublinhar ainda que o tema foi já tratado pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente no Acórdão n.º 216/2019, onde se afastou a inconstitucionalidade da interpretação sustentada:

“Assim, a não referência dos meios de prova em que se baseia a comunicação de novos factos indiciados, integrantes da categoria legal de alteração não substancial, traduz-se apenas numa não especificação dos mesmos, de entre todos os que, tendo sido produzidos ou sendo valoráveis em julgamento, se encontram na totalidade identificados.

Nesta perspetiva, a omissão de menção especificada não se reflete, em bom rigor, e ao contrário do que sustenta o recorrente, numa diminuição das garantias de defesa face ao que goza o arguido perante a notificação da acusação. Desde logo porque, nos termos do artigo 283.º, também a peça de acusação não carece de relacionar especificadamente os factos imputados e os meios de prova, bastando-se com a indicação em rol das testemunhas a ouvir e a indicação de outros meios de prova, sem especificação dos concretos factos, isoladamente considerados ou agrupados segundo uma qualquer classificação, a que cada fonte probatória se reporta. O mesmo acontece com o despacho de pronúncia, ao qual são aplicáveis, nessa parte, os requisitos da acusação (artigo 308.º, n.º 2, do CPP).

Mais: a comunicação a que alude o n.º 1 do artigo 358.º do CPP não incorpora um juízo, positivo ou negativo, sobre a comprovação dos factos a que se refere. Apenas exterioriza que, no estado da prova produzida em julgamento, o princípio da descoberta da verdade obriga a que o tribunal se debruce sobre uma realidade não comportada na acusação ou na pronúncia, podendo tais factos vir a ser dados como provados ou não, em função da prova que for ulteriormente produzida ou examinada. Tratam-se, pois, de factos meramente sinalizados aos sujeitos processuais, de índole precária e indiciária, porque ainda sujeitos a eventual contraprova e ao crivo da discussão contraditória em audiência.

A valoração da prova produzida e a decisão sobre a verdade dos factos imputados (os factos que integram a acusação ou pronúncia, assim como os novos factos comunicados em cumprimento do n.º 1 do artigo 358.º do CPP), ocorre apenas com a emissão da sentença ou acórdão, juízo de facto sobre o qual recai uma exigência de fundamentação especificada e tanto quanto possível completa, ainda que concisa, das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374.º, n.º 2 do CPP), com cominação de nulidade do ato judicativo (artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP).

Desta forma, tendo em conta, por um lado, que, não obstante não existir uma indicação especificada dos meios de prova relevantes para o juízo de indiciação conducente à comunicação de factos prevista no artigo 358.º, n.º 1, do CPP, se encontra assegurada a identificação da totalidade dos meios de prova, produzidos ou valoráveis em fase de julgamento, e, por outro lado, que os factos comunicados são apenas indiciados, conclui-se que a interpretação normativa em sindicância não fere o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido.

De facto, perante a comunicação da alteração não substancial dos factos, ainda que desacompanhada da referência aos meios de prova em que se fundamenta, a possibilidade de o arguido utilizar um prazo para preparar a sua defesa, nomeadamente arrolando novos meios de prova e proferindo alegações, a final, sobre toda a prova produzida, salvaguarda o direito do mesmo a poder pronunciar-se sobre todos os factos e questões que, direta ou indiretamente, se repercutem na pretensão punitiva do Estado e da qual ele é alvo.

Por tais razões, entendemos que a interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 358.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, que ora se sindica, no sentido de que a comunicação da alteração não substancial dos factos, efetuada no decurso da audiência de julgamento, nos termos dos citados preceitos, não carece de ser acompanhada da referência aos meios de prova indiciária em que se fundamenta, não impede uma defesa eficaz do arguido, não se mostrando, por essa razão, passível de censura jurídico-constitucional, por afetação das garantias de defesa do arguido, nomeadamente por inobservância do princípio do contraditório.”

Por conseguinte, entendemos que também nesta matéria deverá improceder o recurso.”

Seguindo este entendimento do Tribunal Constitucional, podemos concluir que nem o art.º 358º do Cód. Proc. Penal exige que a comunicação de alteração não substancial de factos especifique os meios de prova em que o Tribunal se fundamentou para tal alteração, nem essa especificação é uma exigência da garantia constitucional do contraditório e dos direitos de defesa do arguido (neste sentido, entre outros, cf. os acórdãos do TRC datado de 12/07/22, proferido no processo nº 260/11.JALRA.C1, em que foi relator Paulo Guerra, do TRP datado de 9/11/22, proferido no processo nº 471/20.9PIVNG.P1, em que foi relator Pedro Afonso Lucas, do TRE datado de 28/02/23, proferido no processo nº 8/22.5GECUB.P1, em que foi relator Carlos de Campos Lobo, todos in www.dgsi.pt).

Não se verifica, pois, a alegada nulidade por incumprimento do art.º 358º do Cód. Proc. Penal, que acarretaria a nulidade do acórdão recorrido.

Assim sendo, fazemos nossa aquela argumentação, cumprindo apenas realçar que o defensor do arguido esteve presente em todas as sessões da audiência de julgamento e tem conhecimento de qual foi a prova produzida de onde resultaram indiciados os factos em causa, não se estando em presença de qualquer decisão surpresa, violadora dos direitos de defesa do arguido.

Improcede também neste tocante o recurso.

C) Nulidade por condenação do arguido por factos diversos dos constantes no despacho de acusação

Alega também o recorrente que a alteração dos factos introduzida pelo Tribunal a quo constitui uma alteração substancial de factos, nos termos do disposto no art.º 359º do Cód. de Proc. Penal, estando, por isso, a decisão recorrida ferida de nulidade, nos termos dos arts.º 358º, 359º e 379º, nº 1, alínea b) do mesmo diploma, porquanto:

- a alteração operada pelo Tribunal a quo, alterando/acrescentando factos, designadamente datas, concretização de locais, acrescenta nova factualidade apta a concretizar uma nova qualificação jurídica imputada ao arguido, que não existia na acusação, levou a que a posição do arguido/defesa não seja sustentável;

- o Tribunal a quo introduziu nos factos circunstâncias específicas incriminadoras, relativas à conduta do arguido;

- parte substancial dos factos comunicados pelo Tribunal a quo, constituem uma factualidade cujas circunstâncias de tempo são manifestamente imprecisas, como por exemplo:

“Uma vez em que se deslocou à praia com os familiares, o arguido telefonou a CC (...)

“Em momento temporal não concretamente apurado, AA disse-lhe “tu já não vais para casa hoje”.

“Em uma outra ocasião, em que se deviam deslocar de carro para casa de um amigo, o mesmo deslocou-se por um caminho que ela não conhecia (...)”

“Uma ocasião em que falaram da situação da ponte o mesmo dito “tu viste os meus olhos”

“Uma ocasião temporalmente não apurada, o arguido disse à ofendida que tinha de o ir buscar, que lhe iria enviar a localização (...)”

“Em data não concretamente apurada, mas após a separação do casal, o arguido esperou por CC junto à sua residência (...)”;

- a imputação de factos genéricos e imprecisos, ao arrepio do direito do contraditório e das garantias de defesa do arguido, previstas no art.º 32º da CRP, impõe que tais factos tenham que se ter por não escritos;

- foi acrescentado como facto totalmente novo, que não constava no despacho de acusação: “A filha do arguido, no decurso da proibição de contactos do arguido com CC, solicitou à mesma que depusesse nos autos no sentido de as suas anteriores declarações não corresponderem à verdade.”;

- a ausência de factos suscetíveis de integrar a prática dos crimes pelos quais o arguido foi acusado, não pode sanar-se através da alteração não substancial dos factos.

Ora, prevê-se no art.º 358º, nº 1 do Cód. Proc. Penal que: “1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.”

Nos termos do art.º 379º, nº 1, alínea b) do mesmo diploma, é nula a decisão que condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos previstos nos arts.º 358º e 359º.

Quanto ao que se deva entender por alteração substancial dos factos, diz-nos o art.º 1º, alínea f) do Cód. Proc. Penal, que é “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.”

O acórdão deste TRE, datado de 28/03/2023, proferido no processo nº 1191/21.2PBSTB.E1, em que foi relator Carlos de Campos Lobo, in www.dgsi.pt, sintetizou o que se deve considerar por alteração substancial dos factos, em moldes que subscrevemos, pela seguinte forma:“(…) Contrariamente, a alteração substancial dos factos, acobertada no artigo 359º do CPPenal, tem como espetro de intervenção todos os retratos que significam uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa, isto é, a alteração substancial dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refere aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.(…)”

No caso dos autos, o arguido vinha acusado da prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art.º 152º, nº 1, b) e nº 2 do Cód. Penal, e foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto no art.º 152º, nº 1, alínea b) do Cód. Penal e punido, por força da parte final do nº 1 desse artigo, com a pena prevista no art.º 164º, nº 2 do mesmo diploma.

Ora, atentos os factos descritos na acusação, verifica-se que o que ocorreu na audiência de discussão e julgamento foi um aditamento de algumas situações, concretizadas no tempo e no espaço, que configuram actos de violência doméstica do arguido para com a ofendida, mas que não implicam a imputação ao recorrente de factos novos que configurassem a prática de um crime diferente daquele pelo qual vinha acusado, porquanto o mesmo apenas vinha acusado da prática de um crime de violência doméstica e apenas foi condenado pela prática de um crime desta natureza.

Também se aditaram pormenores relativamente à forma como o arguido praticou um dos crimes de violação de que vinha acusado.

Verifica-se, assim, que o que a nova factualidade traz ao processo é sobretudo uma pormenorização de mais algumas situações de comportamentos violentos do arguido para com a vítima, que permitem melhor caracterizar o tipo de comportamento delituoso do mesmo, enquadrado, porém, na prática do mesmo crime de violência doméstica, protelado no tempo.

Pese embora uma das consequências da estrutura acusatória do processo criminal seja a designada “vinculação temática do tribunal”, significando que o objecto do processo penal é o objeto da acusação, o qual delimita e fixa os poderes de cognição do Tribunal e o âmbito do caso julgado, não está de todo vedado ao juiz de julgamento proceder a uma alteração dos factos da acusação.

Mas, a ocorrer, deve obedecer aos termos regulados pelo sistema processual penal, nomeadamente através da alteração não substancial dos fatos prevista no art.º 358º do Cód. de Proc. Penal e assegurando sempre os direitos de defesa do arguido, o que sucedeu nos presentes autos ( cf. neste sentido, acórdão do TRC datado de 6/10/2021, proferido no processo nº 251/19.4PBCLD.C1, em que foi relator Luís Teixeira, in www.dgsi.pt).

Das alterações em causa não decorre a imputação de outros crimes, nem o agravamento das molduras penais, tendo o arguido sido condenado, a final, pela prática de um crime de violência doméstica e de um crime de violação e absolvido quanto a dois dos crimes de violação, por falta de legitimidade do Ministério Público para a prossecução do procedimento criminal.

Quanto às invocadas imputações genéricas, na verdade nem a acusação, nem o despacho de ampliação da matéria de facto podem conter “imputações conclusivas, genéricas, abrangentes e difusas, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o mau trato físico e/ou psíquico, com menção do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, devem ter-se como não escritas, não podendo servir de suporte à qualificação da conduta do agente” ( como se decidiu no Acórdão do TRP de 24/11/2021, proferido no processo n.º 304/20.6PAVLG.P1, em que foi relator João Pedro Pereira Cardoso, in www.dgsi.pt ).

Porém, entendemos não ser esse o caso dos presentes autos.

É que, conforme se decidiu neste último acórdão citado, “relativamente ao momento e lugar da prática do crime não tem necessariamente de se reportar a uma concreta data e sitio; o direito ao contraditório, à defesa e ao processo equitativo fica assegurado quando, na impossibilidade da datação de todas as condutas ofensivas, integradoras dos maus tratos, se fixarem apenas balizas temporais da sua verificação.”

Diz-nos a experiência comum que determinadas condutas e comportamentos humanos, tipificados como crimes, não são passíveis de concretização rigorosa quanto ao dia e à hora em que ocorreram, sobretudo quando se prolongam no tempo, não sendo exigível à vítima que memorize todos os dias, horas e lugares em que ocorreu cada uma das condutas criminosas, como é comum suceder nos crimes de violência doméstica, que, na grande maioria dos casos, são crimes habituais, prolongados, protelados, de trato sucessivo ou de execução continuada.

Nestas situações, a descrição factual tem que ser tanto quanto possível espácio-temporalmente concretizada, ainda que por referência, por exemplo, apenas ao ano ou ao mês, como sucede no caso em apreço, para permitir que o arguido se possa defender.

Neste sentido decidiu o Acórdão do TRL de 28/04/2021, proferido no processo nº 4426/17.2T9LSB.L1-3, em que foi relator João Lee Ferreira, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tem decidido que as imputações genéricas, destituídas de especificação e de concretização sobre o tempo, o modo e o lugar da prática dos factos, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e impedirem o exercício do direito de defesa, constitucionalmente consagrado (…).

Para ser justo e equitativo, o processo tem de garantir a possibilidade de o arguido contradizer a acusação ou a pronúncia e de se defender de uma forma efectiva, o que exige especificação e concretização quanto ao modo, tempo e lugar dos eventos imputados. Por outro lado, também sabemos da existência de particulares dificuldades de investigação e de apuramento quanto aos exactos contornos dos factos relevantes em actividades criminosas como as de tráfico de armas, peculato ou branqueamento de capitais e uma especial exigência na particularização das circunstâncias fácticas do crime conduziria a intoleráveis níveis de impunidade.

Como escreveu no acórdão do STJ de 17-12-2020, proc. 2081/18.1T8EVR.S1,

“o critério normativo da concretização dos factos nos moldes exigíveis para o exercício do direito de defesa e do contraditório colhe-se nos artigos 243.º1/a/b e artigo 283.º/3/b, Código de Processo Penal, impondo-se que a acusação (e a pronúncia) contenham, sob pena de nulidade, “A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.”

No mesmo sentido decidiu o Acórdão do TRP de 24/11/2021, proferido no processo nº 304/20.6PAVLG.P1, em que foi relator João Pedro Pereira Cardoso, in www.dgsi.pt, que: “ I - As imputações conclusivas, genéricas, abrangentes e difusas, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o mau trato físico e/ou psíquico, com menção do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, devem ter-se como não escritas, não podendo servir de suporte à qualificação da conduta do agente.

II - Contudo, relativamente ao momento e lugar da prática do crime não tem necessariamente de se reportar a uma concreta data e sitio; o direito ao contraditório, à defesa e ao processo equitativo fica assegurado quando, na impossibilidade da datação de todas as condutas ofensivas, integradoras dos maus tratos, se fixarem apenas balizas temporais da sua verificação.

III - Resulta da experiência comum, haver comportamentos humanos, sancionados penalmente, em relação aos quais não é possível (ou humanamente exigível) a concretização, quanto ao dia e à hora, de todos os atos que os integram; relativamente a comportamentos reiterados que se vão prolongando ao longo dos anos não é exigível de ninguém, sequer a vítima, que fixe/memorize o dia e o lugar concretos em que ocorreu cada um dos comportamentos ofensivos do agente.

IV - Ainda assim, a descrição fáctica sempre terá que ter alguma concretização, de forma a que seja possível localizar as imputações no tempo e no espaço com suficiente precisão, ainda que por referência apenas ao ano, a algum momento festivo, a algum acontecimento, com mais ou menos significado; a solução terá de ser encontrada caso a caso, o que passará por ponderar se a factualidade descrita tem a densidade suficiente para permitir uma defesa eficaz por parte do arguido, ao nível do exercício do seu direito ao contraditório.

V - Relevando a concretização dos factos ao exercício do contraditório, não se vê como este possa ter-se como violado se o arguido, apesar da imprecisão temporal, confessa parcialmente um dado facto, identificando de forma clara e esclarecida o evento relatado na acusação, contextualizando-o, ainda que também ele não consiga situá-lo no tempo e lhe dê uma versão diferente da que lhe é imputada.”

Impõe o art.º 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que na fundamentação da sentença se faça a enumeração dos factos provados e não provados.

Assim sendo, na seleção da matéria de facto, o Tribunal deve ater-se a factos, os quais são acontecimentos ou comportamentos devidamente individualizados e localizados no espaço e no tempo, não se devendo incluir na fundamentação da decisão conceitos de direito, proposições normativas ou juízos de valor.

Caso tal aconteça, estas asserções devem ser excluídas do acervo factual da decisão.

A jurisprudência maioritária tem entendido que as imputações conclusivas, genéricas, abrangentes e difusas, com recurso a expressões vagas, imprecisas, nebulosas e obscuras, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o mau trato físico e/ou psíquico, com menção do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, devem ter-se como não escritas, não podendo servir de suporte à qualificação da conduta do agente.

Nos termos previstos no art.º 32º, nº 5 da CRP o arguido tem direito a conhecer os factos que em concreto lhe são imputados, para que os possa rebater e se defender, exercendo o seu direito ao contraditório.

Não são, assim, suscetíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação do agente, nem as circunstâncias relevantes em que os factos ocorreram.

Contudo, a jurisprudência dos Tribunais superiores tem vindo a entender que nos casos de violência doméstica, relativamente ao momento e lugar da prática do crime, não tem necessariamente de se assinalar uma data e um local exactos, admitindo-se, quando tal não seja possível, que se refira, por exemplo, “em lugar desconhecido” ou “em local cuja localização exata não foi possível apurar”, e, quanto ao tempo, por exemplo, “em datas que, em concreto, não foi possível apurar, mas entre “x” e “y”” ou “em número indeterminado de vezes”, no domicílio comum, ente o ano “x” e “y”.

Por outro lado, devendo a concretização dos factos permitir o exercício do contraditório, este não se pode ter como violado se o arguido, apesar da imprecisão temporal, confessa parcialmente um dado facto, identificando de forma clara e esclarecida o evento relatado na acusação, contextualizando-o, ainda que também ele não consiga situá-lo no tempo e lhe dê uma versão diferente da que lhe é imputada ou impugne os factos cuja prática lhe é imputada.

Mesmo que a acusação ou a pronúncia revelem insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto, se o arguido na sua contestação ou nas suas declarações em julgamento demonstrar ter claramente identificado, interpretado ou compreendido os factos submetidos a julgamento, está assegurado o contraditório.

No despacho datado de 14/02/25, indicaram-se as seguintes expressões de certa forma vagas:

“(…) Uma vez em que se deslocou à praia com os familiares, o arguido telefonou a CC a saber onde estava e mesmo após ela dizer que seriam apenas 20 minutos com os familiares, disse que a ia buscar e que não lhe podia fazer isso, tendo ela acabado por sair da praia.

- No mês de Maio ou Junho de 2022, CC, na companhia do arguido, encontrou-se num café com um sobrinho, que viera da ….

- A determinada altura, o arguido disse a CC que não queria estar ali e para irem para casa, tendo CC referido que queria ficar, pois não via o sobrinho há dois anos, tendo ele dito “não, vamos para casa, vamos para casa”.

- Os factos ora referidos antecederam a factualidade descrita na acusação, ocorrida junto a uma ponte. (…)

- Em uma outra ocasião, em que se deviam deslocar de carro para casa de um amigo, o mesmo deslocou-se por um caminho que ela não conhecia, dizendo a CC “não fiz no outro dia, vou fazer agora”, levando-a a supor que ele a iria matar, o que a levou a abrir a porta do carro para saltar, tendo ele puxado a mesma pelo cabelo, imobilizado o carro mais à frente e dito “o que fazes? vamos para casa de um amigo”.(…)

- Uma ocasião temporalmente não apurada, o arguido disse à ofendida que tinha de o ir buscar, que lhe iria enviar a localização, tendo-o ido buscar a … e, no regresso, tendo-lhe ela dito que chegaram e que podia ir para casa, o arguido, após referir que estava tudo bem, começou a desferir pontapés no espelho retrovisor do veículo de CC, que acabou por abandonar o local.(…)

- Em data não concretamente apurada, mas após a separação do casal, o arguido esperou por CC junto à sua residência, tendo puxado a mesma pelo cabelo para o interior da viatura daquela e conduzido a mesma até à zona da …, onde imobilizou a viatura, tendo CC convencido o mesmo a irem beber café, o que fizeram em posto de abastecimento de combustível.(…)” (sublinhados nossos)

Sucede, porém, que os referidos factos se encontram balizados no tempo e no espaço, pelo que são passíveis de serem localizados nas circunstâncias em que ocorreram, tendo sido possível ao arguido contextualizá-los e contraditá-los em julgamento, como sucedeu.

Por outro lado, importa referir que os factos em apreço não configuram a prática pelo arguido de crimes autónomos, mas antes se inserem no contexto de um só crime de violência doméstica, praticado ao longo de mais de um ano, sendo tais factos úteis para caracterizar o tipo de vivência existente entre arguido e ofendida durante esse período de tempo, a qual permite concluir pela prática do crime pelo arguido, em conjunto com a restante factualidade apurada.

Uma vez que o crime de violência doméstica tem natureza pública, nos termos previstos no art.º 152º do Cód. Penal, também não se colocariam problemas de tempestividade do exercício do direito de queixa quanto aos factos imputados “genericamente”.

Por último quanto ao facto “novo” relativo à filha do arguido, o mesmo não se destina a imputar ao mesmo qualquer novo crime, nem a agravar a sua punição, sendo a este título totalmente inócuo e apenas servindo para caracterizar a personalidade do arguido, a par de outros factos que já constavam da acusação pública e que se deram como provados.

Assim sendo, na medida em que o arguido entendeu o que lhe era imputado e se tentou defender, não se mostra violado o art.º 32º da CRP, impondo-se julgar nesta parte improcedente o recurso, sem necessidade de mais considerandos.

D) Omissão de pronúncia

Invoca também o recorrente a nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, porquanto o Tribunal a quo decidiu condená-lo pela prática, como autor material, de um crime de violação, p. e p. pelo art.º 164º, nº 2, al. a) do Cód. Penal, na pena de 4 anos de prisão, e de um crime de violência doméstica, previsto no art.º 152º, nº 1, alínea b) do Cód. Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão e, efetuado o cúmulo jurídico das penas na pena única de 6 (seis) anos de prisão.

Mais alega que o Tribunal a quo não teve em conta que o arguido se encontrava sujeito ao estatuto coativo de prisão preventiva desde 27/10/2023, nada tendo referido quanto ao desconto dos dias de prisão preventiva na pena aplicada, nos termos previstos no art.º 80º, nº 1 do Cód. Penal, e sem considerar a suspensão da pena de prisão, nos termos previstos nos arts.º 50º a 57º do mesmo diploma.

Tal configura, no entender do recorrente, uma omissão de pronúncia, geradora da nulidade do acórdão recorrido.

Vejamos se lhe assiste razão.

Quanto aos requisitos da sentença, dispõe o art.º 374º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Penal o seguinte:

“1 - A sentença começa por um relatório, que contém: a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis; c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido; d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada. 2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. (…)”

A fundamentação da sentença penal é, assim, composta por dois grandes segmentos: - Um, que consiste na enumeração dos factos provados e não provados; - Outro, que consiste na exposição, concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal. O dever de fundamentação das decisões judiciais é hoje um imperativo constitucional, previsto no art.º 205º, nº 1 da CRP, onde se estabelece que as decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. A fundamentação deve revelar as razões da bondade da decisão, permitindo que ela se imponha dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência, já que é através dela que se faculta aos respectivos destinatários e à comunidade, a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador.

O dever de fundamentação encontra-se igualmente consagrado no art.º 97º, nº 5 do Cód. Proc. Penal, onde se prevê que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

Segundo o art.º 379º, nº 1, alíneas a) e c) do mesmo diploma, é nula a sentença penal quando não contenha as menções previstas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art.º 374º ou quando o Tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Quanto à nulidade da decisão por omissão de pronúncia, nos termos previstos no art.º 379º, nº 1, alínea c) do Cód. Proc. Penal, entendemos que a sentença ou o acórdão só têm que se pronunciar sobre matéria relevante para a decisão da causa, ou seja sobre as questões, de facto ou de direito, com incidência ou impacto directo, positivo ou negativo, na decisão. Tais questões só podem ser as que são colocadas expressamente pelos intervenientes e as de conhecimento oficioso, nisto consistindo o thema decidendum (cf. neste sentido, Fernando Gama Lobo, in “ Código de Processo Penal Anotado”, 4ª edição, Almedina, pág. 860). Neste sentido, vejam-se, entre muitos outros, os seguintes Acórdãos, todos disponíveis in www.dgsi.pt: - Ac. do STJ de 10/12/09, proferido no processo nº 22/07.0GACUB. E1.S1, em que foi relator Santos Cabral: “A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões que o juiz deve apreciar são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (art. 660.º, n.º 2, do CPC), e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer, independentemente da alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual. A “pronúncia”, cuja “omissão” determina a consequência prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP – a nulidade da sentença – deve, pois, incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou as razões alegadas. (…) - Ac. do TRL de 8/05/2019, proferido no processo nº 1211/09.9GACSC-A.L2-3, em que foi relatora Maria da Graça Santos Silva: “ A omissão de pronúncia é um vício que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre essas questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer argumento aduzido. O vocábulo legal -“questões”- não abrange todos os argumentos invocados pelas partes. Reporta-se apenas às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir. (…)”; - Ac. do STJ de 5/05/21, proferido no processo nº 64/19.3T9EVR.S1.E1.S1, em que foi relator Nuno Gonçalves: I - A sentença ou acórdão devem ser esgotantes e autossuficientes, no sentido de conhecer da totalidade das pretensões e de conter todos os elementos indispensáveis à compreensão do juízo decisório. II - Omissão de pronúncia significa ausência de conhecimento ou de decisão do tribunal sobre matérias que a lei impõe que o juiz resolva. III - Ocorre quando o tribunal deixa de apreciar e julgar questões de facto e/ou de direito que lhe foram submetidas pelos sujeitos processuais ou que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos e não argumentos mais ou menos hipotéticos, opinativos ou doutrinários.(…)”

Ora, prevê-se no art.º 80º, nº 1 do Cód. Penal que: “1 - A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.”

Resulta desta disposição legal que o momento próprio para se determinar o desconto dos dias de prisão preventiva não é o da elaboração do acórdão de cúmulo jurídico, mas sim o da liquidação da pena. A única exceção é a que decorre do previsto no art.º 81º, nº 2 do Cód. Penal, quando tiver sido aplicada pena anterior e posterior de diferente natureza, em que a pena única fixada engloba já o desconto equitativo, pelo que necessariamente o desconto é realizado no acórdão, o que não é o caso nestes autos. É na fase de liquidação, a ocorrer após o trânsito em julgado da decisão condenatória em pena de prisão que, por regra se obtêm todos os elementos necessários à aplicação dos descontos a que respeitam os arts.º 80º a 82º do Cód. Penal. São estes os elementos que permitem a contagem da pena de prisão, conforme previsto no art.º 477º do Cód. Proc. Penal, a qual, nos termos do nº 4 desta norma, é notificada ao condenado e ao seu advogado que poderão contestá-la, designadamente invocando a existência de qualquer desconto aplicável e não considerado. Assim, o direito do arguido aos descontos legalmente previstos e à pronúncia sobre eles em nada é afetado com a realização dessa operação em momento processual posterior ao da elaboração do acórdão em que é condenado em pena de prisão. Em face disto, não existe a omissão de pronúncia a este título invocada pelo recorrente.

Relativamente à suspensão da execução da pena de prisão, há que atentar no disposto no art.º 50º do Cód. Penal, onde se prevê que:

“ 1 – O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2 – O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.

3 – Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.

4 – A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.

5 – O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.”

Uma vez que, efetuado o cúmulo jurídico das penas, foi o recorrente condenado numa pena única de seis anos de prisão, não se verifica, desde logo, o limite temporal da pena aplicada que permitiria considerar a suspensão da sua execução, pelo que a ausência de referência à suspensão da execução da pena aplicada no acórdão recorrido também não configura uma omissão de pronúncia.

Improcedente, assim, neste tocante o recurso.

E) Vício previsto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal

Em sede de impugnação da matéria de facto, vem o recorrente arguir a verificação no acórdão recorrido do vício formal de erro notório na apreciação da prova.

Para tanto, alega que o Tribunal a quo desconsiderou na apreciação da prova a sua confissão parcial dos factos, quanto ao crime de violência doméstica que lhe vinha imputado na acusação, e o seu arrependimento, os quais não foram contraditados por nenhum outro meio de prova.

Apreciemos a sua pretensão.

Dispõe o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) O erro notório na apreciação da prova.

Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, que não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.

Estes vícios são também de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 16. ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6.ª ed., 2007, pág. 77 e seg.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).

No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, pese embora a lei não o defina, o mesmo tem sido entendido como aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade e que ressalta do teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e percetível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do «homem médio».

Há «erro notório» quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum e ainda quando determinado facto provado é incompatível, inconciliável ou contraditório com outro facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida (cf. neste sentido, LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in “Código de Processo Penal anotado”, II volume, 2ª edição, 2000, Rei dos Livros, pág. 740).

Este é um vício do raciocínio na apreciação das provas, de que nos apercebemos apenas pela leitura do texto da decisão, o qual, por ser tão evidente, salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental, em que as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu uma ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial (cf. entre muitos outros, Acs. TRC de 09.03.2018, proferido no processo nº 628/16.7T8LMG.C1, em que foi relatora Paula Roberto, e de 14.01.2015, proferido no processo nº 72/11.2GDSRT.C1, em que foi relator Fernando Chaves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Quanto ao que se deva entender por erro notório na apreciação da prova, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Civil, discorreu largamente o STJ, no seu Ac. de 7/07/21, proferido no processo nº 128/19.3JAFAR.E1.S1, em que foi relator Nuno Gonçalves (in www.dgsi.pt) e onde se pode ler: “ (…) A decisão de julgar provado um acontecimento da vida na convicção de que foi demonstrado por uma versão que é manifestamente ilógica, contrariada pelas regras da física e ao mesmo tempo pelas máximas da experiência, padece do vício que o legislador consagrou no art.º 410º n.º 2 al.ª c) do CPP. Este é, como os demais aí previstos, um defeito da decisão em matéria de facto. Não devendo confundir-se nem com a errada aplicação do direito aos factos, nem com a escassez da prova para suportar o julgado. A sua deteção ou verificação não permite o recurso a elementos externos ao texto da decisão recorrida. Não assim, evidentemente, ao que constar da motivação do julgamento da matéria de facto. Se é certo que um determinado facto ou acontecimento da vida, simplesmente pelo modo como vem narrado, pode apresentar-se visivelmente irracional, notoriamente impossível, manifestamente desconforme às regras da experiência comum, todavia, mais comumente o erro notório na apreciação da prova deteta-se pela motivação do julgamento da facticidade, designadamente pelo exame critico dos elementos de prova. (…)”

No caso dos presentes autos, o recorrente invoca o vício do erro notório, alegando apenas que não foram valoradas as suas declarações, no que concerne à prática do crime de violência doméstica que lhe foi imputada.

Porém, o que daqui decorre é que o recorrente se limita a discordar da apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo, no que concerne à sua condenação pela prática do crime em causa, mas não concretiza em que consiste o vício que invoca, nem em que partes da decisão é que o mesmo se verifica.

Não obstante o alegado pelo recorrente, o certo é que as suas declarações foram tidas em conta na formação da convicção do colectivo de juízes aquando da fixação da matéria de facto e a sua ausência de arrependimento sincero e de empatia para com a vítima foram tidos em conta na determinação das penas aplicadas, conforme consta da motivação de facto da decisão supra transcrita.

O recorrente pretende questionar a factualidade apurada pelo Tribunal recorrido e a formação da convicção do mesmo, invocando, para tal, erradamente o vício do erro notório.

Porém, analisada a decisão recorrida, não resulta da mesma que padeça de erro notório, pois os factos estão descritos de forma clara e perceptível, não existe qualquer contradição entre a matéria de facto provada e não provada, todos os factos se mostram fundamentados, de forma lógica, e a decisão do Tribunal funda-se na prova produzida, estando em conformidade com a mesma.

Não se tendo apurado a existência de um qualquer vício de raciocínio evidente para um observador médio ou uma qualquer desconformidade intrínseca e evidente no raciocínio exposto na decisão do Tribunal recorrido, o que também não foi alegado pelo recorrente, impõe-se julgar este recurso improcede quanto a este fundamento, sem necessidade de mais considerandos.

F) Erro de julgamento

Em sede de impugnação ampla da matéria de facto, alega o recorrente que:

“(…) Nos termos do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o Recorrente tem que especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

81. Com efeito, em cumprimento do disposto na al. a) do 412.º nº 3 do Código de Processo Penal, o Recorrente considera incorretamente julgados os seguintes pontos constantes dos factos provados: [Pontos 5, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 36, 40, 43, 46, 47, 48, 49, 50, 52, 59, 62, 63, 64 e 65].

82. Em cumprimento do disposto na al. b) do artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, impunha-se uma decisão diversa nos pontos constantes dos factos provados melhor descritos em 81., da análise cândida e isenta dos seguintes elementos de prova:

a. Declarações do Arguido

b. Depoimentos das testemunhas gravados através do sistema integrado de gravação digital em uso no Tribunal, de EE, DD, JJ, FF GG, todos melhor identificados nos autos.

83. Em cumprimento do disposto na al. c) do artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, devem ser concretamente renovadas as seguintes provas:

a. Declarações do Arguido

b. Depoimento da Assistente

c. Depoimento das testemunhas: EE, DD

d. Prova pericial, solicitando ao Centro Hospitalar … a elaboração de exame de psicologia forense e avaliação clínica, a realizar à Assistente com vista a avaliar as suas características psicológicas e de personalidade, avaliar a percepção da mesma, dos factos e o juízo que faz sobre os mesmos.

e. Prova pericial, solicitando ao Centro Hospitalar … a elaboração de exame de psicologia forense e avaliação clínica, a realizar ao Arguido, com vista a avaliar as suas características psicológicas e de personalidade, avaliar a percepção do mesmo, dos factos e o juízo que faz sobre os mesmos.(…)”

Pretende o recorrente demonstrar que o Tribunal a quo errou ao dar como provada a factualidade que permite imputar-lhe a prática de um crime autónomo de violação, em concurso real como o crime de violência doméstica, que, em parte, confessou ter cometido.

Ora, a reapreciação da matéria de facto poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde, como supra se referiu, a verificação dos mesmos tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente. O recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto destina-se a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, razão pela qual o art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal impõe ao recorrente a obrigação de indicar: “ a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.” A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. A especificação das «concretas provas» implica a indicação do conteúdo do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Por seu turno, a especificação das provas que devem ser renovadas impõe a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo previsto no art.º 430º do mesmo diploma. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência. Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao que tiver sido consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que fundamenta a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou de vários depoimentos, pois são essas passagens concretas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo Tribunal de recurso, como é exigido pelo art.º 412º, nºs 4 e 6 do Cód. Proc. Penal.

A este respeito, importa ter em atenção que o STJ, no seu Ac. nº 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, já fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

Na verdade, o poder de apreciação da prova da 2ª Instância não é absoluto, nem é o mesmo que o atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo quanto à mesma.

Verifica-se, assim, que só se pode alterar o decidido se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida. Nos casos de impugnação ampla da matéria de facto, o recurso não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, mas constitui apenas um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, sempre em relação aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Para esse efeito, deve o Tribunal de recurso verificar se os concretos pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa ( neste sentido, cf. Ac. STJ de 14.03.2007 (no processo nº 07P21, Relator: Conselheiro Santos Cabral), de 23.05.2007 (no processo 07P1498, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), de 03.07.2008 (no processo nº 08P1312, Relator: Conselheiro Simas Santos), de 29.10.2008 (no processo nº 07P1016, Relator: Conselheiro Souto de Moura) e de 20.11.2008 (no processo nº 08P3269, Relator: Conselheiro Santos Carvalho), todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Sucede que: «O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.» ( cf. Ac. do TRP de 6/10/2010, proferido no processo nº 463/09.9JELSB.P1, em que foi relatora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt).

O que o recorrente tem que fazer é apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas, se for o caso, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude.

No caso dos autos, analisadas a motivação e as conclusões do recurso, verificamos que o recorrente não cumpriu todas as exigências legais da impugnação da matéria de facto supra indicadas, pois pese embora tenha indicado os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido mal julgados, não indicou quais os meios de prova que impunham decisão diversa, não indicou as concretas passagens dos depoimentos das testemunhas que, no seu entendimento, fundamentam a falta de prova dos factos, nem quais as partes da gravação dos depoimentos é que este Tribunal de recurso deveria ouvir e que factualidade é que, em concreto, se apurou e que deveria figurar na parte dos factos provados.

Na verdade, o que resulta da argumentação do recorrente é que não concorda que o tribunal recorrido tenha conferido maior peso às declarações da ofendida em detrimento das suas, invocando que as declarações da ofendida não se mostram corroboradas por qualquer outro meio de prova, não podendo sustentar a sua condenação pela prática do crime de violação.

Porém, não é suficiente para a impugnação da matéria de facto o recorrente alegar que não concorda com a apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo, dizer que com base na prova produzida não deveriam ter sido dados como provados todos os factos que o foram, sem concretizar quais os meios de prova que impunham decisão diversa, designadamente quais os depoimentos das testemunhas fundamentariam a prova de outros factos e que partes dos depoimentos do arguido e das testemunhas é que este Tribunal de recurso deveria ouvir.

O recorrente limitou-se a apresentar uma lista de meios de prova que, no seu entender, impunham decisão diversa, sem articular os meios de prova com os factos que em concreto pretendia ver provados e sem dizer que factos seriam esses.

Em face disso, não tendo o recorrente cumprido o ónus imposto pelo art.º 412º, nºs 3 e 4 do Cód. Proc. Penal, não pode este Tribunal reexaminar amplamente a matéria de facto fixada

G) Violação do princípio in dubio pro reo

Alega ainda o recorrente que no caso em apreço se mostra violado o princípio in dubio pro reo, porquanto não existe prova suficiente que motive validamente a sua condenação pelo crime de violação, devendo ser absolvido.

Segundo este princípio, quando o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.

Como refere Figueiredo Dias, in “ Direito Processual Penal “, I, pág. 205, a dúvida relevante para este efeito tem que ser uma dúvida razoável, fundada em razões adequadas e não uma qualquer dúvida.

No mesmo sentido se decidiu no Ac. STJ de 5/07/07, proferido no processo nº 07P2279, em que foi relator Simas Santos, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “Na verdade, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, mas é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.”

Também no Ac. do TRL de 10/01/2018, proferido no processo nº 63/07.8TELSB-3, em que foi relator Nuno Coelho, in www.dgsi.pt se decidiu que: “A certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica.

O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto, estando umbilicalmente ligado, limitando-o, ao princípio da livre apreciação – a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio «in dubio pro reo» impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável. De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido – cfr. acórdão do STJ de 2/5/1996, CJ/STJ, tomo II/96, pp. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspetivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.”

Verifica-se, assim, que a escolha da perspetiva probatória que favorece o acusado só se impõe quando se mostrarem esgotadas todas as operações de análise e de confronto de toda a prova produzida, apreciada conjugadamente e em conformidade com as máximas da experiência, da lógica geralmente aceite e do normal acontecer das coisas e, ainda assim, subsista mais do que uma possibilidade de igual verosimilhança e razoabilidade no espírito do julgador.

Para que haja violação do princípio do in dubio pro reo é preciso que, perante uma dúvida inultrapassável sobre factos essenciais para a decisão da causa, o julgador decida em desfavor do arguido.

Sucede que, no caso dos presentes autos tal situação não ocorreu.

Desde logo importa reforçar que não se procedeu a qualquer alteração da matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo.

A factualidade apurada fundamentou-se na prova produzida em julgamento e está conforme à mesma, não resultando dessa factualidade qualquer dúvida quanto à responsabilidade criminal do arguido.

Não obstante o crime de violação em apreço ter ocorrido na intimidade do arguido e da vítima, o Tribunal a quo explicou de forma completa, credível e com recurso às regras da experiência comum porque é que conferiu maior credibilidade ao depoimento da ofendida, alicerçado noutros meios de prova, nos moldes supra transcritos, de onde resulta que o Tribunal não teve quaisquer dúvidas quanto à prática deste crime pelo arguido, dúvidas estas que também não se suscitam a este Tribunal de recurso, porquanto a decisão recorrida se mostra bem fundamentada, estando a prova produzida bem avaliada segundo as regras da experiência comum.

Assim sendo, não se tendo apurado a existência de um qualquer erro de julgamento ou da violação do princípio in dubio pro reo, improcede também neste tocante o recurso.

H) Qualificação jurídica dos factos apurados

Alega ainda o recorrente que constitui uma decisão surpresa, da qual não se pode defender, em violação do disposto no art.º 32º da CRP, o facto de o Tribunal a quo ter introduzido factos na decisão recorrida, que poderiam consubstanciar a prática de crime diverso, designadamente dois crimes de violação, quando não pode condenar o arguido pela prática de tais crimes, por inexistência de queixa tempestiva por parte da ofendida.

Não obstante, entende o arguido que tal factualidade foi considerada pelo Tribunal a quo na medida da pena aplicada pelo crime de violência doméstica, o que não poderia ser feito.

Ora, importa, antes de mais, atentar em que não se procedeu a qualquer alteração da matéria de facto fixada na decisão recorrida, pelo que é a tal matéria que teremos que nos ater.

Por outro lado, pese embora tal factualidade não possa servir para a incriminação autónoma do recorrente por mais dois crimes de violação, a mesma não deixou de se verificar num contexto de violência doméstica, em que se registaram várias lesões de bens jurídicos da vítima por parte do arguido, designadamente através de ofensas corporais, ofensas verbais, ameaças contra a vida da própria e dos filhos, perseguições, esperas, telefonemas e também de ofensas sexuais.

Todas estas ofensas e actos de violência permitem concluir pela prática pelo arguido de um crime de violência doméstica sobre a ofendida, com a duração de cerca de um ano e meio, período durante o qual a ofendida sofreu as mais diversas ofensas e humilhações às mãos do arguido, conforme descrito nos factos provados pela decisão recorrida.

Importa não esquecer que os actos de violência sexual do arguido sobre a vítima também são actos de violência doméstica, conforme expressamente indicado no art.º 152º, nº 1 do Cód. Penal.

O arguido não foi condenado por crimes autónomos de violação pela prática dos factos ora em apreço, sendo ainda importante ter em conta que o crime de violência doméstica é de natureza pública, não dependendo do exercício de queixa.

Os factos ora em apreço apenas foram tidos em conta na determinação da medida da pena aplicada ao arguido pela prática do crime de violência doméstica, em conjunto com toda a restante factualidade, pelo que não se pode considerar estarmos em presença de qualquer decisão surpresa, violadora dos direitos de defesa do arguido.

Assim sendo, improcede também este fundamento do recurso.

I) Medida da pena

O arguido veio ainda impugnar as penas concretas que lhe foram aplicadas, designadamente as penas de 5 anos de prisão pela prática do crime de violência doméstica e a pena única de 6 anos de prisão, considerando que as mesmas são excessivas e desfasadas, porquanto não tiveram em conta a confissão dos factos pelo arguido e incluíram os factos relativos a dois crimes de violação que não podiam ser autonomizáveis.

Mais alega que não foram ponderadas as suas condições sociais, inserção social, familiar e laboral, bem como o seu enquadramento socioeducativo, comportamental, recursos pessoais e socio-familiares e ausência de antecedentes criminais.

Entende o recorrente ser adequado condená-lo, pela prática do crime de violência doméstica, numa pena não superior a 2 dois anos de prisão suspensa na sua execução, ainda que sujeito a regime de prova.

Mais uma vez aqui se impõe reforçar que não foi feita qualquer alteração à matéria de facto fixada na decisão recorrida e que não foi considerada a argumentação do recorrente relativamente aos factos qualificáveis como dois crimes autónomos de violação, nos moldes supra referidos.

Quanto à determinação da medida da pena, esta deve ser apurada em função dos critérios enunciados no art.º 71º do Cód. Penal, que são os seguintes:

“ Artigo 71.º - Determinação da medida da pena

1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”

Estes critérios devem ser relacionados com os fins das penas previstos no art.º 40º do mesmo diploma, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. As finalidades da punição e a determinação em concreto da pena, nas circunstâncias e segundo os critérios previstos no art.º 71º do Cód. Penal, têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena. Tais elementos e critérios contribuem não só para determinar a medida da pena adequada à finalidade de prevenção geral, consoante a natureza e o grau de ilicitude do facto tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores, como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, em função das circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão e arrependimento e permitem também apreciar e avaliar a culpa do agente. Em síntese, pode dizer-se que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 3ª Edição, 2019, Gestlegal, pág. 96). Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto “ O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182), apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.» Para Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, § 280, pág. 214 e nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito, ou de «determinação concreta da pena»). As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».

No entanto, do que se trata agora é de sindicar as operações feitas pelo Tribunal a quo com essa finalidade. Ainda segundo Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, págs. 196/7, § 255, é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação da medida concreta da pena, bem como o desconhecimento ou a errónea aplicação pelo tribunal a quo dos princípios gerais de determinação da pena, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda que está plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção e a determinação do quantum exacto de pena, o qual será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.

Importa, assim, ter em conta que só em caso de desproporcionalidade manifesta na fixação da pena ou de necessidade de correcção dos critérios da sua determinação, atenta a culpa e as circunstâncias do caso concreto, é que o Tribunal de 2ª Instância deve alterar a espécie e o quantum da pena, pois, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, nada há a corrigir.

Neste sentido decidiu o Acórdão do TRL de 11/12/19, proferido no processo nº 4695/15.2T9PRT.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares.”

Também no mesmo sentido se pronunciou José Souto de Moura, in “ A Jurisprudência do S.T.J. sobre Fundamentação e Critérios da Escolha e Medida da Pena”, 26 de Abril de 2010, consultável em www.dgsi.pt, onde defende que: “ Sempre que o procedimento adoptado se tenha mostrado correcto, se tenham eleito os factores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objecto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado.”

Voltando ao caso dos autos, o acórdão recorrido fundamentou a aplicação das penas em apreço pela seguinte forma:

“(…) Assim, considerando:

- as muito elevadas exigências de prevenção geral quanto ao crime de violência doméstica, pela frequência com que se pratica o tipo de criminalidade de violência doméstica na comarca e por todo o país, sendo mais atenuadas, mas ainda assim também elevadas quanto ao crime de violação, crime que muitas vezes surge associado à prática do crime de violência doméstica.

- o grau da ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente: a considerar o caráter multifacetado das condutas (integrado por várias condutas de ofensas da integridade física, estas de gravidade mediana, de ofensas da liberdade física, através ameaças, estas exercidas de forma veemente, grave e com contornos de malvadez – em particular a situação ocorrida junto à ponte –, afetando a sua liberdade de deambulação e de privação com terceiros, incluindo de fruição da companhia de familiares vindos da …, após a guerra entre este país e a …, de perseguição, física e através de mensagens, após o terminus da relação, de duas ofensas de cariz sexual praticadas com violência (batendo o arguido na ofendida com chapadas), a sua duração, o tipo de condutas, havendo de referir, que dentro da panóplia de atos que podem integrar este tipo de crime de violência doméstica e a que as regras da experiência (profissional) nos habituaram, estamos perante uma situação em que o grau de ilicitude é já elevado; quanto ao crime de violação, considerando a elevar a ilicitude o grau de violência exercida e o facto de a vítima se encontrar menstruada, forçando o arguido a mesma a praticar, nesse estado, alternadamente cópula e sexo oral (ou seja, introduzindo alternadamente o pénis na boca e vagina da vítima, estando ela menstruada e, portanto, a ter de suportar sucessivamente a introdução na sua boca do pénis do arguido depois de este estar em contacto com os seus fluidos menstruais), mas já a atenuar esse grau, o facto de a vítima ser à data namorada do arguido, o que significa que a mesma tinha já com o arguido um grau de intimidade sexual habitual, sendo, assim, em face deste balanço a ilicitude mediana;

- a elevada a intensidade do dolo (dolo direto) quanto a ambos os crimes;

- as consequências sobre a vítima foram graves, já que esta devido ao estado de medo em que passou a viver, emagreceu cerca de 10 kg e, por o arguido não aceitar o terminus da relação e face ao medo do mesmo, teve que sair da sua residência por um período de 15 dias, passando a viver com o filho nesse período em uma outra localidade;

- quanto às condições de vida do arguido, elas mostram que o arguido é trabalhador e que se encontra integrado profissional e socialmente no nosso país, tendo uma descendente com quem mantém bom relacionamento, tendo sofrido já no nosso país uma condenação pela prática de um crime de natureza rodoviária.

Ponderando todos estes fatores e a moldura penal abstrata de ambos os crimes (pena de prisão de 3 a 10 anos), entende-se adequado aplicar ao arguido a pena de 5 anos quanto ao crime de violência doméstica e em 4 anos de prisão quanto ao crime de violação.

*

Diz-nos o nº 1 do art. 30º do Cód. Penal, “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.

In casu, verifica-se um concurso real entre os crimes de violência doméstica e violação cometidos pelo arguido.

E uma vez que estamos perante concurso de crimes, visto o arguido ter praticado 2 crimes antes de ter transitado em julgado a condenação por qualquer deles, há que aplicar ao arguido uma pena única, atento o disposto no art. 77º do C. P.

Considerando o disposto no nº 2 do sobredito preceito, a pena de multa única aplicável no caso concreto tem como limite máximo 9 anos e mínimo de 5 anos de prisão.

Considerando em conjunto os factos praticados pelo arguido e a personalidade do mesmo revelada nos factos, nomeadamente a sua indiferença perante a vítima sobre a qual praticou ambos os crimes, julga-se adequado condenar o mesmo na pena única de 6 anos de prisão. (…)”

Analisada a decisão recorrida, verifica-se que o Tribunal a quo aplicou correctamente os princípios gerais de determinação da medida da pena, não ultrapassou os limites da moldura da culpa do agente e teve em conta os fins das penas nos quadros da prevenção geral e especial.

Na verdade, as razões e necessidades de prevenção geral positiva são muito elevadas, fazendo-se especialmente sentir neste tipo de crimes, decorrentes da sua frequência, consequências nefastas para a vítima, na maior parte das situações, alarme social e censura comunitária que suscitam, reclamando, de um modo geral, uma punição exemplar, para assegurar a confiança da comunidade na validade das normas jurídicas.

Ao contrário do alegado pelo arguido, foram tidas em conta na medida concreta das penas que lhe foram aplicadas as suas condições pessoais e sociais.

Face à extrema gravidade dos factos apurados e sendo os crimes em apreço punidos apenas com pena de prisão e de 3 a 10 anos, cada um, as penas aplicadas ao recorrente, quer as parcelares, quer a pena do concurso, afiguram-se adequadas e proporcionais à sua culpa e à gravidade dos factos pelo mesmo praticados, sendo tais penas de manter, pelo que improcede também neste tocante o recurso.

J) Suspensão da execução da pena de prisão

Pretende também o recorrente que a pena de prisão em que foi condenado seja suspensa na sua execução. Porém, como supra referido, nos termos do art.º 50º do Cód. Penal, apenas é possível suspender as penas de prisão inferiores a 5 anos.

Tendo o recorrente sido condenado numa pena única de 6 anos de prisão, fica afastada a possibilidade da sua suspensão, pelo que nada há a referir quanto a este fundamento do recurso.

Por tudo o exposto, impõe-se julgar totalmente improcedente o presente recurso, não se considerando violadas as normas legais e constitucionais invocadas pelo recorrente.

*

4. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso interposto por AA, confirmando integralmente a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC´s.

Évora, 30 de Setembro de 2025

(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)

Carla Francisco

(Relatora)

J. F. Moreira das Neves

Carla Oliveira

(Adjuntos)