NULIDADE DA ACUSAÇÃO
SANEAMENTO DO PROCESSO
Sumário

A exigência, de cabal indicação do quadro normativo aplicável na acusação, é essencial para a validade jurídica da mesma e imposta como corolário da estrutura acusatória do nosso processo penal, pela qual o objeto do processo é fixado pela acusação, particularmente pelo princípio da acusação e da defesa, pois esta “não poderá ser eficazmente assegurada se não puder ter por referência e por objeto uma incriminação legal precisa”1. Mostra-se essencial para assegurar a estratégia de defesa, que não convive de modo salutar com surpresas processuais.
A indicação das disposições legais aplicáveis deve ser completa, abrangendo a pena principal, bem como as penas acessórias e a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação segue o regime previsto no art. 357.º, do Cód. Processo Penal. Atendendo à construção típica, temos que a acusação proferida nos autos contém todos os elementos necessários ao preenchimento da conduta típica e da pena que, pela mesma, lhe pode (e veio a) ser aplicada.
Não se especificando o número 1 do preceito legal (art.143º do CP), pelo qual veio o arguido a ser condenado, manifesta a acusação o claro propósito de submeter o arguido a julgamento pela prática de crime de ofensa à integridade física simples, pois que outra não vem prevista no normativo invocado, logo no número um que delineia a conduta típica e indica expressamente a pena que lhe pode ser aplicada, pressupondo as condições procedimentais e de dispensa de pena de que poderia (em abstrato e vindo-se a comprovar qualquer uma das condições expressamente previstas) vir a beneficiar.
A indicação do normativo na sua globalidade a pecar é por excesso.
E tendo a acusação vertida nos autos servido o respetivo propósito, que seja a sujeição do arguido a julgamento, sem que antes tenha sido suscitado o apontado vício de nulidade, apenas pode o mesmo ser conhecido na medida em que, por vertida na decisão final, a venha a afetar.
Ora, o recorrente não alega que a invocada nulidade tenha, por qualquer forma, influído na decisão final e sequer invoca qualquer prejuízo para a sua defesa em sede de julgamento.
Na verdade, o arguido não suscitou anteriormente a nulidade da acusação. E, tendo os autos sido remetidos à distribuição sem instrução, é no momento previsto no art. 311.º do Cód. Processo Penal, no saneamento do processo, que cabe conhecer dos vícios da acusação, entre os quais se incluí a falta de indicação das disposições legais aplicáveis (n.º 2, al. a) e 3.º, al. c)).
Ultrapassado este momento, não pode o Tribunal conhecer da nulidade da acusação, sem prejuízo de, a verificar-se esse vício, o devir processual apenas ser apto a conduzir à absolvição.

Texto Integral

Acórdão deliberado em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
*

1. RELATÓRIO

Nos presentes autos foi submetido a julgamento, em processo comum com intervenção de tribunal singular, o arguido AA, sendo-lhe imputada a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.

Por sentença de 12/12/2024 foi decidido condenar o arguido pela prática, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de multa de 80 (oitenta) dias, à razão diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz o total de 400€ (quatrocentos euros).

*

Discordando da decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, pugnando pela respetiva absolvição da prática do crime pelo qual vem condenado ou, caso assim não se entenda, pelo perdão da pena aplicada, concluindo nas alegações:

«A) O presente recurso abrange a matéria de direito e de facto da sentença produzida nos presentes autos, nos termos do artigo 410º n.º1 do CPP;

B) O arguido foi condenado pela prática, como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º n.º 1 do CP, numa pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5,00 num total de € 400,00;

C) Da nulidade da acusação pública: A acusação pública está enfermada de nulidade atendendo que não está completa quanto à indicação das disposições legais, pois não refere o n.º do artigo, bem como a qualificação jurídica completa, nomeadamente em sede de imputação do crime determina a acusação pública;

D) Desta forma, dispõe o n.º 3 do artigo 283° do Código de Processo Penal, nas suas diversas alíneas, os requisitos que deverá conter a acusação, sob pena de nulidade;

E) Entre estes requisitos está a indicação das disposições legais aplicáveis, a violação deste normativo implicará a rejeição da acusação por manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no artigo 311° n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea c), do CPP;

F) Seguindo alguma doutrina, tanto integra a nulidade a falta absoluta como a incompletude das disposições legais aplicáveis;

G) A indicação das disposições legais é um requisito que reveste especial importância na medida em que é a acusação que fixa o objecto do processo, o qual se irá manter até ao trânsito em julgado da sentença, protegendo o arguido contra eventuais alargamentos dos poderes de cognição e decisão do Tribunal, por forma a garantir que uma vez comunicada a acusação ao arguido este possa conhecer quais os factos e o crime que lhe são imputados, permitindo-lhe, deste modo, preparar e organizar adequadamente a sua defesa;

H) Daí que consideremos que a incompletude das disposições legais aplicáveis, bem como a falta de total indicação do tipo de crime, na acusação do tipificado crime de ofensa à integridade física determinem a nulidade invocada;

I) Pelo que, desta forma, só se pode considerar que tal acusação está enfermada de nulidade insanável nos termos do artigo 119º, ex vi do artigo 283º n.º 3, alínea d), devendo o arguido ser absolvido do crime de que vem condenado;

J) Da impugnação da matéria de facto: O arguido considera incorrectamente julgados os factos:1. a 6;

K) O Tribunal a quo utilizou como fundamentação da matéria de facto os documentos constantes do processo, bem como o seguinte: “A data, hora e local dos factos são compatíveis com os elementos constantes do auto de denúncia, e com o depoimento da ofendida e das duas testemunhas ouvidas, sendo que o arguido negou a prática dos factos, dizendo que nesse momento se encontrava em casa com a sua filha pequena. Fê-lo de forma absolutamente contraditada pela ofendida, que apesar de notar sentimentos negativos relativamente ao arguido, nos pareceu credível quanto aos factos os quais foram, aliás, confirmados pela testemunha BB, que nos pareceu isenta e descomprometida. Não considerámos o depoimento de CC por ser totalmente oposto ao que disse na GNR, com o qual foi confrontada. Ainda assim, conjugado o depoimento da ofendida com o de BB, julgamos que a sua fiabilidade e coerência é suficiente para dar os factos tal como provados supra.”;

L) Em relação à ofendida DD refere a mesma o seguinte: - 13 m 21 s a 13:49 s – Magistrada do Ministério Público: “A sua vizinha BB estava em casa, estava na rua?”. Responde: “Ela ouviu a conversa, morava mesmo à frente.”. Magistrada do Ministério Público: “Mas ela estava na rua?”. Responde: “Não, ela estava mesmo em frente, a casa dela dá de frente coma minha.” Juiz de Direito: “É um prédio?” Responde: “Não, são casas (Impercetível), (…), é um páteo.”;

M) Requerida a leitura das declarações prestadas perante OPC, nos termos do artigo 356º n.º 3, alínea b) do CPP: 11 m 56 s a 12 m 01 s – “(…) A sua vizinha BB, já identificada no presente auto, ao aperceber-se da discussão, deslocou-se para a via pública e foi nesse momento que viu o Sr. AA empurrar a denunciante, tendo o mesmo de seguida se colocado em fuga”.

N) Testemunha EE Depois o AA deu um encontrão na minha vizinha.” Magistrada do Ministério Público: “Como é que ele deu esse encontrão?” Responde: “Deu um encontrão, empurrou-a”. Magistrada do Ministério Público: “Empurrou como?”. Responde: “Aí, isso não sei precisar, empurrou-a.” Magistrada do Ministério Público: “Como é que sabe que ele empurrou?” Responde: “Porque ele faz assim e ela ao mesmo tempo cai.” Magistrada do Ministério Público: “Então a senhora só viu ele a ter um gesto qualquer que não consegue precisar, ele estava de costas para si?” Responde: “De costas para mim, sim, ele e a filha da minha vizinha.” - 05 m 24 s a 05 m 44 s -“Eu não conseguia ver as mãos dele, ele estava de frente com a minha vizinha, a filha ao lado e eu estava nas costas dele, ou seja, a minha porta é nas costas dele (…) estava dentro de casa com o postigo aberto.”;

O) Denunciada: CC: Juiz de Direito: “E ele empurrou a mãe como?”. Responde: “Com as duas mãos no peito”. Juiz de Direito “E a mãe caiu onde?”. Responde: “De costas para o chão”. Juiz de Direito: “Para dentro de casa?”. Responde “Sim, para dentro de casa”. Juiz de Direito: “E depois?”. Responde: “E depois o AA abala, eu fico sem saber o que fazer, porque eram duas pessoas que gostava bastante…”;

P) Requerida a leitura das declarações prestadas perante OPC, nos termos do artigo356º n.º3, alínea b) do CPP: -01:13a 02:00: Juiz de Direito: “Muito bem dona CC, a senhora foi ouvida pela GNR de … no dia 07/02 de 2023 e nessa altura diz o seguinte: No dia 19 de Julho de 2022 não presenciou qualquer tipo de agressões perpetradas pelo seu companheiro à sua mãe. Afirma que neste momento o seu companheiro não tem qualquer tipo de relacionamento para com a sua mãe e afirma também que só fala com a sua mãe devido à sua correspondência e, portanto, ir para a sua casa. Como lhe disse se faltar à verdade comete um crime, disse coisas diferentes hoje do que disse na GNR e estas duas discrepâncias podem fazê-la ser julgada por um crime de falsidade de depoimento.”;

Q) O tribunal a quo sustenta os factos provados de 1. A 6. Com base nos depoimentos da ofendida e de duas testemunhas, referindo, posteriormente que descredibiliza o depoimento de CC pois apresenta uma contradição referente ao depoimento prestado em sede de inquérito, levando até à extração de certidão ao DIAP para instauração de inquérito por crime de falsas declarações; Portanto, a testemunha CC está a fala a verdade em sede de inquérito ou de audiência de discussão e julgamento? O arguido estaria ou não presente na data dos factos?;

R) Posto isto, resta o depoimento da ofendida e da testemunha EE, que apresentam versões contraditórias. A ofendida referiu versões contrárias sobre a presença da sua vizinha, referindo em sede de inquérito que a mesma se encontrava na rua e em sede de julgamento que a mesma estaria em casa. Sendo que a testemunha EE refere que não viu a agressão, pois não viu directamente o arguido empurrar a ofendida, referindo encontrar-se dentro de casa a ver pelo postigo;

S) Assim, descredibilizada toda a prova testemunhal, resta a versão da ofendida, que denota claros sentimentos negativos em relação ao arguido como bem refere o tribunal a quo. Desta forma, existindo também contradições com o depoimento prestado em sede de inquérito, e parecendo evidente nesta fase um certo conluio entre a ofendida e a testemunha CC (mãe e filha), não podem, nem devem restar dúvidas que esta versão dos factos apresentados pela ofendida não pode, nem deve ser suficiente para imputar a prática deste crime ao arguido;

T) Não existindo prova suficiente que sustente a condenação do arguido, nos termos do artigo 412º n.º 3, alínea a) do CPP o mesmo deve ser absolvido;

U) Sem conceder, da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto: Prevê o artigo 3º n.º 2, alínea a) da Lei n.º 38-A/2023 que são perdoadas as penas de multa aplicadas até 120 dias a título principal;

V) O arguido foi condenado numa pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5,00 num total de € 400,00, estando preenchidos os demais pressupostos que a lei faz depender, a saber: - O ilícito tiver sido praticado até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, o que efectivamente aconteceu nos presentes autos, cuja suposta prática se reporta ao dia 19/07/2022; - O ilícito tiver sido praticado por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, sendo que o arguido tinha à data, 23 anos de idade;

W) Pelo que, neste sentido sempre se dirá que a pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5,00 num total de € 400,00 a que o arguido foi condenado se encontra perdoada ao abrigo do artigo 3º, n.º 2, alínea a) da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto.»

*

O recurso foi admitido, por tempestivo e legal, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

*

O MINISTÉRIO PÚBLICO respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela improcedência (parcial) do mesmo.

Refere que a arguição da nulidade, não tendo fundamento, é extemporânea e inadmissível em recurso e que nenhuma razão existe para alterar a fundamentação defacto da sentença.

Não obstante, considerando o disposto nos artigos 2.º, 3.º, n.º 2, al. a), 7.º, da lei n.º 38.º-A/2023, de 2/8, conclui que o arguido se encontra abrangido pela lei do perdão, devendo ser a pena de multa perdoada e, consequentemente, declarada a extinção da referida pena, nos termos do artigo 127.º e 128.º do Código Penal.

*

Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, subscrevendo a posição assumida pelo Ministério Público na 1ª instância, relativamente ao qual o recorrente não se pronunciou.

*

Teve lugar a Conferência.

*

2. QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação apresentada para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância, sem prejuízo das questões que forem de conhecimento oficioso (artigos 403.º, 410.º e 412.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal e AUJ n.º 7/95, de 19/10/95, in D.R. 28/12/1995).

Não se vislumbrando questões de conhecimento oficioso a impor a apreciação do Tribunal, atendendo às conclusões apresentadas, cumpre apreciar e decidir da:

- Nulidade da acusação;

- Do erro de julgamento; e

- Do perdão da pena.

*

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1 Decisão recorrida

Transcreve-se a decisão recorrida na parte atinente à apreciação da matéria de facto:

1. No dia 19.07.2022, pelas 23h00, AA encontrava-se na Rua …, residência de DD, quando, por motivos não concretamente apurados, entrou em desentendimento com a mesma.

2. Nessas circunstâncias, AA colocou ambas as mãos no peito de DD e, exercendo força muscular, desferiu-lhe um empurrão, fazendo com que esta se desequilibrasse e caísse de costas no solo.

3. Ao cair de costas e devido ao forte impulso que recebeu no peito, DD elevou o pé direito, indo embater com o mesmo na ombreira de alumínio da porta.

4. Em consequência directa da conduta do arguido, DD sofreu dores, nódoas negras (reliquat de equimose) no bordo lateral do pé o que lhe determinou 6 dias de doença sem afectação da capacidade geral e de trabalho.

5. AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, alcançado, de molestar o corpo e a saúde de DD, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar tal resultado, não se abstendo nenhum de agir do modo descrito.

6. O arguido agiu de forma consciente, voluntária, livre, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei e ainda assim quis praticá-la.

7. O arguido trabalha na …, na distribuição, desde Abril de 2024, em regime de trabalho efectivo.

8. Aufere € 835,00 líquidos.

9. Vive com a avó, a quem dá cerca de € 250,00 por mês para ajudar nas despesas de casa.

10. Tem dois filhos de 3 e 1 anos, que residem com a mãe, e com quem convive em fins de semana alternados.

11. Paga € 250,00 mensais de prestação de alimentos.

12. Tem o 9º ano de escolaridade.

13. Já é titular de carta de condução (desde Setembro de 2023).

14. Do seu certificado de registo criminal consta:

i) Por sentença proferida no processo 86/17.9…, deste mesmo J…, transitada em julgado em 30/01/2018, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 04/12/2017, na pena de 100 dias de multa, já extinta.

ii) Por sentença proferida no processo 23/17.0…, do J… desta mesma ILC, transitada em julgado em 18/05/2018, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 18/05/2017, na pena de 70 (69) dias de multa, já extinta.

iii) Por sentença proferida no processo 27/19.9…, do J… desta mesma ILC, transitada em julgado em 19/06/2020, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 08/12/2018, na pena 6 meses de prisão, suspensos por 1 ano, já extinta.

iv) Por sentença proferida no processo 36/19.8…, deste mesmo J…, transitada em julgado em 03/09/2019, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 22/05/2019, na pena de 8 meses de prisão suspensos por 1 ano e 6 meses.

v) Por sentença proferida no processo 221/19.2…, do J… desta mesma ILC, transitada em julgado em 22/05/2019, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 17/03/2019, na pena de 5 meses de prisão suspensos por 1 ano.

vi) No processo 36/19.8… foi efectuado cumulo jurídico de penas com o processo 221/19.2…, por decisão transitada em 02/07/2020, e o arguido foi condenado na pena única de 10 meses de prisão, suspensos por 1 ano, na condição do arguido obter a carta de condução.

vii) O período de suspensão foi depois prorrogado por 1 ano.

viii) A pena única não se encontra extinta.

ix) Por sentença proferida no processo 5/23.3…, deste mesmo J…, transitada em julgado em 29/04/2024, o arguido foi condenado pela prática de dois crimes de condução sem habilitação legal, praticados em 30/01 e 08/02 de 2023, na pena de 4 meses e 15 dias de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação. A pena foi perdoada e o perdão julgado definitivo por despacho proferido em 05/11/2024.

*

3.2 Nulidade da acusação

Alega o recorrente que a acusação pública enferma de nulidade, atendendo a que não está completa quanto à indicação das disposições legais, pois não refere o número do artigo, bem como a qualificação jurídica completa.

Sustenta que a incompletude das disposições legais aplicáveis determina, a nulidade insanável prevista nos arts. 119.º e 283.º, n.º 3, al. d), do Cód. Processo Penal.

Importa, assim, começar por apreciar da existência do apontado vício, relevando as seguintes circunstâncias processuais:

- O recorrente foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples previsto e punido no art. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal:

- Estava acusado da prática, como autor material e na forma consumada (cfr. artigo 26.º, 30.º, n.º 1, todos do Código Penal), de 1 (um) crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º do Código Penal,

- O arguido não requereu a abertura de instrução;

- A acusação foi recebida por despacho de 12/06/2024;

- O arguido não apresentou contestação escrita;

- Tendo o arguido suscitado a nulidade da acusação em sede de julgamento, foi proferido o seguinte despacho (na audiência de 5/12/2024):

«O artigo 143.º do Código Penal é composto por 3 números:

Nº 1) onde é descrito o tipo e crime;

Nº 2) onde se fala da natureza semi- publica do crime;

Nº 3) é relativo à possibilidade da dispensa de pena.

A acusação imputa a prática de um crime de ofensa à integridade física do artigo 143.º do Código Penal, facilmente se inferindo que se reporta desde logo ao n.º1 até porque os nº 2 e o n.º 3 não têm autonomia face ao referido n.º1.

Por outro lado, da simples leitura dos factos imputados, se percebe qual é o crime em causa e a defesa do arguido não foi em nada prejudicada pela ausência do n.º1 na imputação feita pela acusação.

A jurisprudência citada refere-se à total ausência da descrição do crime imputado, o que não é o caso.

A falha verificada não consubstancia qualquer nulidade prevista nos artigos 119.º e 120.º do CPP e, com disse a Ex.ª Sr.ª Procuradora, a considerar-se uma irregularidade o prazo para a sua arguição terminou nos 10 dias posteriores à notificação da acusação, pelo que se indefere a arguida nulidade.

Notifique.»

- Este despacho não foi objeto de recurso.

Apreciando, resulta do art. 283.º, n.º 3, al. d), do Cód. Processo Penal a obrigatoriedade de a acusação conter, sob pena de nulidade, para além do mais, a indicação das disposições legais aplicáveis.

E o art. 374.º, n.º 3, al. a) do Cód. Processo Penal estatui que a sentença termina pelo dispositivo que contém, para além do mais, as disposições legais aplicáveis.

A não observância desta disposição legal na sentença não é, contudo, ferida com o vício da nulidade (art. 379.º, n.º 1, al. a), à contrário, do Cód. Processo Penal).

A exigência, de cabal indicação do quadro normativo aplicável na acusação, é essencial para a validade jurídica da mesma e imposta como corolário da estrutura acusatória do nosso processo penal, pela qual o objeto do processo é fixado pela acusação, particularmente pelo princípio da acusação e da defesa, pois esta “não poderá ser eficazmente assegurada se não puder ter por referência e por objeto uma incriminação legal precisa”1. Mostra-se essencial para assegurar a estratégia de defesa, que não convive de modo salutar com surpresas processuais.

A indicação das disposições legais aplicáveis deve ser completa, abrangendo a pena principal, bem como as penas acessórias e a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação segue o regime previsto no art. 357.º, do Cód. Processo Penal.

Na acusação vem imputada a prática de crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo art. 143.º, do Código Penal que dispunha, à data dos factos e da condenação2, o seguinte:

“Artigo 143.º

Ofensa à integridade física simples

1 - Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2 - O procedimento criminal depende de queixa, salvo quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas.

3 - O tribunal pode dispensar de pena quando:

a) Tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou

b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.”

Atendendo à construção típica, temos que a acusação proferida nos autos contém todos os elementos necessários ao preenchimento da conduta típica e da pena que, pela mesma, lhe pode (e veio a) ser aplicada.

Não se especificando o número 1 do preceito legal, pelo qual veio a ser condenado, manifesta o claro propósito de submeter o arguido a julgamento pela prática de crime de ofensa à integridade física simples, pois que outra não vem prevista no normativo invocado, logo no número um que delineia a conduta típica e indica expressamente a pena que lhe pode ser aplicada, pressupondo as condições procedimentais e de dispensa de pena de que poderia (em abstrato e vindo-se a comprovar qualquer uma das condições expressamente previstas) vir a beneficiar.

A indicação do normativo na sua globalidade a pecar é por excesso.

E tendo a acusação vertida nos autos servido o respetivo propósito, que seja a sujeição do arguido a julgamento, sem que antes tenha sido suscitado o apontado vício, apenas pode o mesmo ser conhecido na medida em que, por vertida na decisão final, a venha a afetar.

Ora, o recorrente não alega que a invocada nulidade tenha, por qualquer forma, influído na decisão final e sequer invoca qualquer prejuízo para a sua defesa em sede de julgamento.

Na verdade, o arguido não suscitou anteriormente a nulidade da acusação. E, tendo os autos sido remetidos à distribuição sem instrução, é no momento previsto no art. 311.º do Cód. Processo Penal, no saneamento do processo, que cabe conhecer dos vícios da acusação, entre os quais se incluí a falta de indicação das disposições legais aplicáveis (n.º 2, al. a) e 3.º, al. c)).

Ultrapassado este momento, não pode o Tribunal conhecer da nulidade da acusação, sem prejuízo de, a verificar-se esse vício, o devir processual apenas ser apto a conduzir à absolvição.

Esse é o momento em que se impõe verificar se o processo está em condições de transitar para a fase de julgamento, em que o juiz deve controlar os vícios estruturais graves da acusação.

Ainda que se possa considerar a nulidade da acusação como sanável (por não incluída no art. 119.º do Cód. Processo Penal3) o conhecimento dos vícios em que aquela se possa traduzir, no momento de saneamento e recebimento dos autos, reconduzindo-se a algum dos fundamentos enunciados no n.º 3 do art. 311.º do Cód. Processo Penal (onde se incluí a falta de indicação das disposições legais aplicáveis), é de conhecimento oficioso.

Ultrapassado este momento, fica precludida a possibilidade de rejeição da acusação e a consequência da deteção de um vício congénito naquela peça processual, em sede de decisão final, será a absolvição.

Resta, por isso, concluir que, não só a acusação não padece do invocado vício, como a arguição da nulidade por parte do recorrente se mostra extemporânea. E já o foi quando suscitada em sede de audiência de julgamento.

E tendo o Tribunal expressamente conhecido da questão, sem que relativamente a essa decisão tenha sido interposto recurso, a decisão sempre estaria transitada, formando-se sobre a mesma caso julgado formal.

É manifesta, por isso, a improcedência da invocada nulidade.

3.3 Erro de julgamento

Sustenta o recorrente que a matéria de facto dada como provada nos pontos 1 a 6 deverá ser dada como não provada. Para tanto, aduz razões pelas quais entende ser de descredibilizar o depoimento da ofendida e das testemunhas.

Convêm relembrar alguns conceitos a respeito do recurso sobre a matéria de facto, pertinentes para justificar a falência dos argumentos aduzidos pelo recorrente, o que desde já adiantamos.

O erro de julgamento da matéria de facto ocorre quando o tribunal considera como provado determinado facto, sem que o mesmo tenha sido objeto de comprovação na audiência de julgamento ou dá por não provado facto que, perante a prova produzida, deveria ter sido considerado como provado. Trata-se de erro no processo de valoração da prova por parte do Tribunal e tem que ver com a apreciação da prova produzida em audiência, em conexão com o princípio da livre apreciação constante do art. 127.º do Cód. Processo Penal.

De acordo com o art. 428.º do Cód. Processo Penal, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, mas os seus poderes de cognição são limitados pelo que, o recurso, permitindo a verificação e fiscalização, por parte de um tribunal superior, de eventuais erros na decisão da matéria de facto, não equivale a um novo julgamento do objeto do processo.

Por isso se considera que a reapreciação, com vista a detetar erros de julgamento de facto, é limitada aos pontos de facto concretos que o recorrente considera julgados de forma incorreta e às razões concretas invocadas para sustentar essa discordância.

O mecanismo de impugnação da matéria de facto aqui previsto visa corrigir erros manifestos, ostensivos, de julgamento, por apelo à prova produzida e que se extraíam do registo da mesma, não legitimando a repetição do julgamento pelo tribunal ad quem.

Por isso, o tribunal de recurso, ao apreciar os fundamentos da impugnação da matéria de facto, deve verificar se o tribunal de 1ª instância apreciou os meios de prova de acordo com as regras de experiência comum, não retirando deles conclusões ilógicas, irrazoáveis, sem sentido ou contrárias à lei. Fora destes casos, deve respeitar a livre convicção do tribunal recorrido, em obediência ao princípio expresso no art. 127.º, do Cód. Processo Penal, não se encontrando em posição privilegiada para sindicar a credibilidade atribuída a depoimentos orais. Tal ocorre na medida em que o princípio da imediação não tem no Tribunal de recurso a sua expressão ideal. Aqui, apenas se mostra possível a audição dos registos e não a visualização de todo o depoimento, perdendo-se a fisionomia, os gestos (o que logo condiciona a apreciação da demonstração dos factos por gestos, questão colocada no depoimento da testemunha EE – conclusão N), as expressões, os trejeitos e até a confrontação com os documentos na sua plenitude.

Mas tal não significa que a livre apreciação da prova corresponda a livre arbítrio.

O art. 127.º do Cód. Processo Penal, complementado com o art. 374.º, n.º 2 do mesmo diploma, impõe limites à discricionariedade, uma vez que a livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador: o ato de julgar está delimitado pelas regras da experiência comum e pela lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, impondo que se extraía das provas um convencimento lógico e motivado.

Porque o art. 374.º, n.º 2 do Cód. de Processo Penal exige o “exame crítico das provas” é que o tribunal deve fundamentar a decisão em operações intelectuais que permitam explicar a razão das opções e da convicção do julgador, a sua lógica e raciocínio e deve observar as normas processuais relativas à prova, segundo o aludido princípio geral da livre apreciação, mas respeitando as proibições de prova (arts. 125.º e 126.º do Cód. Processo Penal), as nulidades de prova, as regras de valoração de alguns tipos de prova como a testemunhal (arts 129.º e 130.º do Cód. Processo Penal) pericial (art. 163.º do Cód. Processo Penal) e a documental (167.º a 169.º do Cód. Processo Penal).

Em suma, no recurso cumpre verificar a prova e o respetivo processo de aquisição probatória, nomeadamente a observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação e contraditório, mas privilegiando-se a valoração da prova efetuada pela 1.ª instância.

Na génese do art. 412.º, n.º3, al. b), do Cód. Processo Penal, não basta que se apure a possibilidade de ocorrência de uma versão distinta. A imposição de decisão diversa, em que a norma se sustenta, implica que a decisão de facto recorrida está errada, que se mostra impossível ou é destituída de toda e qualquer lógica ou razoabilidade (de acordo com as regras de experiência comum), que o tribunal recorrido fez uso de meios de prova não idóneos ou que existem contradições nas provas produzidas, que levaram à formação de uma convicção inaceitável e que, por isso, não se poderá manter.

Por tudo isto, necessário se mostra que o recorrente discuta os elementos probatórios de suporte ao pretenso erro de julgamento face aos restantes e demonstre que o raciocínio lógico do tribunal recorrido não tem suporte na análise global da prova, impondo-se decisão diversa.

O que se espera do recorrente que invoca a existência de erro de julgamento é que aponte na decisão os segmentos que impugna e que os coloque em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas (se tal for o caso), quais os documentos ou outros elementos probatórios que pretende que sejam reexaminados, assim evidenciando a verificação do erro judiciário a que alude.

Voltando à presente situação, vemos que o recorrente cumpriu de forma precária as exigências da impugnação ampla, pois que, indicando quais os factos que considera incorretamente jugados, não aponta qualquer efetivo erro na apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal a quo, limitando-se a divergir da credibilidade que o Tribunal de primeira instância conferiu aos depoimentos prestados.

Na motivação da convicção, refere a decisão recorrida que:

« Para a formação da sua convicção, na indicação dos factos provados e não provados, o Tribunal analisou de forma livre, crítica e conjugada, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento de acordo com o artigo 127º do Cód. Proc. Penal, respeitando o disposto no artigo 355º do mesmo Código e os critérios da experiência comum e da lógica.

Deste modo, foram tidos em conta:

• Auto de denúncia

• Relatório de perícia e avaliação do dano corporal em direito penal – fls. 19 e 20;

• Fotografias;

• Certidão remetida pelo nosso processo 5/23.3…;

• Certificado de registo criminal;

E ainda,

A data, hora e local dos factos são compatíveis com os elementos constantes do auto de denúncia, e com o depoimento da ofendida e das duas testemunhas ouvidas, sendo que o arguido negou a prática dos factos, dizendo que nesse momento se encontrava em casa com a sua filha pequena.

Fê-lo de forma absolutamente contraditada pela ofendida, que apesar de denotar sentimentos negativos relativamente ao arguido, nos pareceu credível quanto aos factos os quais foram, aliás, confirmados pela testemunha BB, que nos pareceu isenta e descomprometida.

Não considerámos o depoimento de CC por ser totalmente oposto ao que disse na GNR, com o qual foi confrontada.

Ainda assim, conjugado o depoimento da ofendida com o de BB, julgamos que a sua fiabilidade e coerência é suficiente para dar os factos tal como provados supra.

O arguido pareceu-nos genericamente credível quanto às suas condições pessoais.»

O Tribunal fundou a sua convicção, essencialmente, no depoimento da ofendida DD e da testemunha EE (que, certamente por lapso e por confusão com o apelido da ofendida, se refere chamar “BB”).

Desvalorizou, pelas contradições em que ocorreu, o depoimento da testemunha CC (com exceção do que respeita à data, hora e local), pelo que se revelam espúrias as considerações tecidas em recurso quanto à credibilidade da filha da ofendida.

No que concerne ao depoimento da ofendida e da testemunha EE, nada nos depoimentos prestados e em cujos segmentos o recorrente fundamenta o erro de julgamento, permite chegar a essa conclusão.

A ofendida confirma os factos e a presença da testemunha EE sendo, em concreto, pouco relevante que aquela estivesse em casa, com vista para a rua, ou já no pátio que separava as habitações.

Como resulta, aliás, dos excertos transcritos, a testemunha descreveu (em parte por gestos) o que percecionou, da posição em que se encontrava, o que corrobora a versão dos factos trazida pela ofendida e contraria frontalmente a versão do arguido, que nega encontrar-se, naquele momento concreto, naquele local.

O recorrente entende que os sentimentos negativos da ofendida relativamente ao arguido, percecionados pelo Tribunal a quo, deveriam descredibilizar o depoimento, contraditório com as declarações prestadas em inquérito.

Mas esta divergência não traduz um efetivo exercício do direito ao recurso em sede de matéria de facto, na medida em que não se reconduz a uma violação das regras da lógica e da experiência comum.

Inexiste qualquer regra que determine que os depoimentos orais só possam ser valorados se todos forem concordantes e se não incorrerem em contradições com declarações anteriormente prestadas.

As testemunhas, por humanas, raramente são perfeitas, tal como, aliás, os arguidos. O decurso do tempo, as condicionantes da memória, os receios, os constrangimentos pelos factos praticados ou observados, levam a que nem sempre o relato seja o mais fiel à realidade dos factos, mesmo quando estamos perante sujeitos processuais obrigados ao dever de verdade.

Mas tal não significa que estes depoimentos tenham de ser descartados na sua globalidade, cabendo, antes, ao Tribunal, no exercício da livre apreciação da prova, apurar em que medida o discurso pode ser valorado na formação da sua convicção e justificar porquê.

E, como vimos, o Tribunal a quo valorou, no apuramento dos factos impugnados, a confirmação dos factos por parte da ofendida, pese embora os sentimentos negativos que denotou relativamente ao arguido, e na medida em que foram confirmados pelo depoimento da testemunha EE, isenta e descomprometida com a causa.

A fiabilidade e coerência dos depoimentos, conjugados, foi suficiente para fundar a convicção do Tribunal a quo de que os factos se terão passado como veio a ser dado por provado nos autos.

E nenhum reparo nos merece o juízo alcançado pelo Tribunal.

Nenhum intuito específico de prejudicar o arguido decorreu da postura processual da testemunha EE ou até da ofendida, não decorrendo aquele dos sentimentos negativos que possa ter pelo agressor.

Resta, por isso concluir que nenhum dos elementos de prova aportados impõe distinta decisão, afigurando-se-nos que não resulta erro de julgamento que justifique a intervenção do Tribunal de recurso.

Na verdade, como já referimos, o que realmente resulta, desde logo, das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal alcançou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127.º do Cód. de Processo Penal.

Mas o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum.

Ao tribunal superior cumpre verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respetiva produção, nomeadamente, no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade, verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. E só em caso de inexistência de provas para se decidir num determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica) cometida na respetiva valoração feita na decisão da primeira instância, esta pode ser modificada, nos termos do artigo 431.º do Código de Processo Penal.

Como podemos ver, do segmento da sentença acima transcrito resultam as razões que determinaram o juízo probatório do Tribunal a quo, nomeadamente as razões pelas quais atribuiu relevância ao depoimento da ofendida e da testemunha EE em detrimento da versão do arguido.

O recorrente não concorda e tem outra leitura. Critica a valoração da prova feita pelo Tribunal recorrido, pretendendo fazer valer uma perspetiva diferente da mesma, a sua versão dos factos, o que não se reconduz a uma real impugnação da matéria de facto, pois que a convicção do recorrente, não se sobrepõe à do julgador.

Observada a decisão recorrida, verificamos que o Tribunal a quo, de forma que não nos merece reparo, demonstrou o processo do seu convencimento, indicando os meios probatórios e os motivos por que foram esses meios determinantes para a sua convicção, fazendo-o em conformidade com as regras de apreciação da prova.

Temos, pois, que a conjugação de todos os elementos probatórios recolhidos e devidamente explicitados na decisão do Tribunal a quo permite inferências suficientemente seguras no sentido do juízo sobre a matéria de facto, não se vislumbrando qualquer razão de sentido divergente que justifique, e muito menos que imponha, solução diferente daquela a que chegou o Tribunal recorrido.

Pretende o recorrente que vingue a sua visão pessoal sobre a prova produzida, quando a convicção prevalecente, se alcançada com isenção e imparcialidade na avaliação do conjunto da prova que perante ele é produzida, é a do Tribunal.

E assim é pois o Tribunal recorrido, que está numa posição de imparcialidade, teve contacto imediato com o arguido e as testemunhas, de onde extraiu um sem número de impressões, que transpôs para a motivação da respetiva convicção.

Não se vislumbra qualquer falha de lógica na convicção do tribunal a quo nem violação das regras da experiência, os factos provados e não provados não conflituam entre si, nem com a motivação e com a decisão e são bastantes para fundamentar a qualificação jurídica dos factos e a decisão e a motivação aparece na sequência lógica da factualidade provada e não provada, clarificando e esclarecendo a convicção do Tribunal de acordo com as regras da experiência, assentando a decisão em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova.

Em conclusão, analisada a prova produzida em audiência, os juízos dados como assentes apresentam-se plenamente legítimos, face ao conteúdo do princípio da livre apreciação da prova, sendo a versão dada como provada plenamente plausível, face às provas em análise, não revelando ter havido qualquer arbítrio, ou discricionariedade na sua apreciação, nem atentado contra a lógica, ou as regras da experiência comum.

Improcede, por isso, o invocado erro de julgamento.

3.4 Do perdão de pena

Por último, pugna o recorrente pelo perdão da pena de multa aplicada.

A Lei n.º 38.º-A/2023, de 2/8, estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

O artigo 2.º do mencionado diploma enuncia os pressupostos/limites de aplicação das medidas de clemência ali previstas, sendo a lei aplicável apenas a infrações cometidas até às 00:00 horas do dia 19/06/2023 e a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.

Não sendo a lei aplicável aos crimes previstos nos números 1 e 2 do artigo 7.º, nestes não se inclui o crime de ofensa à integridade física simples p. e p. no art. 143.º, n.º 1 do Código Penal.

O perdão previsto neste diploma é aplicável, para o que releva, a penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão (artigo 3.º, n.º 2, al. a).

Posto isto, vemos que o arguido, que nasceu em …/06/1999, contando com 23 anos à data dos factos (19/07/2022), foi condenado, como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5,00 num total de € 400,00.

Estará em condições de beneficiar da aplicação do pedrão da pena que lhe foi aplicada.

Contudo, a aplicação desta medida cabe ao “juiz da instância do julgamento ou da condenação” (art. 14.º).

Trata-se de questão sobre a qual o Tribunal de primeira instância não se pronunciou, podendo e devendo fazê-lo na sentença, mas também o podendo fazer em decisão posterior à mesma.

Existe, por isso, omissão de pronúncia sobre questão essencial, mas que não afeta a validade da decisão final (por não ter de, obrigatoriamente, constar daquela a decisão sobre a aplicação de medidas de clemência).

Ainda que não nos exatos termos peticionados (pois que se entende não poder este Tribunal Superior aplicar o perdão, conhecendo de questão sobre a qual a primeira instância não se debruçou), procede, nesta parte, o recurso.

*

4. DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente:

a) Determinar que seja apreciada a aplicação da Lei n.º 38.º-A/2023, de 2/8;

b) No mais, julgar improcedente o recurso.

*

Sem custas.

Notifique.

*

Évora, 30 de setembro de 2025

Mafalda Sequinho dos Santos

Carla Oliveira

Manuel Ramos Soares, «Votei favoravelmente o acórdão por estar de acordo com o essencial do sentido da decisão. Tenho, no entanto, uma divergência de entendimento no que respeita ao mecanismo processual adequado para sanar a nulidade de omissão de pronúncia sobre a aplicação do perdão da pena. A meu ver, o artigo 379° n° 2 do CPP permite que o tribunal de recurso supra essa nulidade, visto que o exercício desse poder/dever não subverte no caso as regras do recurso. Por isso, votei no sentido de se declarar no acórdão o perdão da pena》

---------------------------------------------------------------------------------------

1 JOÃO CONDE CORREIA, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, p. 1201.

2 A Lei n.º 26/2025, de 19/3 veio a introduzir alterações no que concerne ao crime de ofensa à integridade física simples a agente das forças ou dos serviços de segurança, ou guarda prisional, no exercício das suas funções ou por causa delas, agravando a pena, mas que, para a situação concreta, não relevam.

3 Neste sentido, MAIA COSTA, Código de Processo Penal comentado, Almedina, 4.ª ed. Revista, p. 963.