No caso de coautoria aditiva, em que os agentes realizam conjuntamente o facto, praticando atos de execução, mas não se apura qual dos agentes praticou o facto que determinou o resultado lesivo, o facto é imputável a todos a título consumado e doloso
No Juízo Central Criminal de … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo comum coletivo n.º 619/18.3PCSTB, aí vindo, após julgamento, a ser proferida acórdão com o seguinte dispositivo (transcrição parcial):
“Tudo visto e ponderado, o Tribunal Coletivo deliberou por unanimidade, julgar a acusação pública parcialmente procedente por provada, os pedidos de reembolso parcialmente procedentes por provados, afastar o Regime Penal Aplicável a Jovens Delinquentes, previsto no Decreto-lei 401/82, de 23 de setembro, quanto ao arguido AA e aplicá-lo aos arguidos BB e CC e, em consequência:
(…)
2) Absolver os arguidos AA, BB, e CC da prática de dois crimes de roubo na forma tentada contra DD e EE.
(…)
6. Condenar o arguido BB em coautoria material, pela prática no dia 29 de junho de 2018, dos seguintes crimes, nas seguintes penas:
d) Contra FF, um crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210.º n.º 1 do Código Penal na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.
e) Contra GG, um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º n.º 1, 145.º n.º 1 alínea a), por referência ao artigo 132.º n.º 2 alínea h), todos do Código Penal, na pena de 1 (um) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
f) Contra HH, um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º n.º 1, 145.º n.º 1 alínea a), por referência ao artigo 132.º n.º 2 alínea h), todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;
7. Condenar o arguido BB em cúmulo jurídico, na pena única de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova que vise além do mais a consolidação da sua inserção profissional, a interiorização do desvalor da conduta criminosa e de sentimentos de empatia para com as vítimas;
(…).”
Inconformado, o arguido BB interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“i. Foi o arguido BB condenado pelo Tribunal de primeira instância pela prática contra FF no dia 29 de junho de 2018 de um crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210.º n.º 1 do Código Penal, pela prática contra GG de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º n.º 1, 145.º n.º 1 alínea a), por referência ao artigo 132.º n.º 2 alínea h), todos do Código Penal, pela prática contra HH de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º n.º 1, 145.º n.º 1 alínea a), por referência ao artigo 132.º n.º 2 alínea h), todos do Código Penal, na pena única de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução.
ii. Ora, salvo o devido respeito, entendemos que o douto Tribunal a quo não decidiu bem, em conformidade com os ditames da justiça quando decidiu.
iii. Não se conformando o ora recorrente com a condenação pelos crimes que lhe foram imputados.
iv. O arguido não praticou os factos pelos quais foi condenado.
v. De acordo com o douto acórdão que ora se recorre, verifica-se que os factos dados como provados não estão conforme os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento.
vi. O Tribunal considerou como PROVADOS e com relevância para a determinação da factualidade indiciada e para a determinação da pena os factos enumerados de 9) a 21) da Acusação.
vii. Considerou o douto Tribunal a quo que o arguido, ao ter estado presente no local onde decorreram os factos, actuou em grupo com outros indivíduos com o propósito de molestarem fisicamente os ofendidos e, nessa sequência apropriarem-se dos bens de valor que tivessem e lhes interessasse.
viii. Mas não foi isso que se passou e tal resulta claramente dos depoimentos das testemunhas da situação em apreço, bem como das declarações do arguido.
ix. O douto Tribunal a quo alicerçou a sua convicção – quanto à matéria de facto provada – no princípio da livre apreciação da prova e análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida e examinada em sede de audiência de julgamento, baseando-se nas declarações do arguido e no depoimento do ofendido/ testemunha HH, FF, EE e DD, admitindo que nenhuma das testemunhas conseguiu descrever a factualidade concretamente praticada por cada um dos intervenientes.
x. Contudo, da prova produzida em sede de audiência de julgamento, impunha obrigatoriamente ao douto Tribunal a quo uma decisão diversa da que ora se recorre.
xi. Ocorrendo assim um erro notório na apreciação da prova (art.410.º, n.º 2, c) do C.P.P.).
xii. O Tribunal recorrido na fundamentação do Acórdão assume as dificuldades de determinar com detalhe a intervenção dos intervenientes, quer pela dificuldade das testemunhas em descrever a acção, quer pelo decurso excessivo do tempo da investigação (pág. 19 e 20, 23 a 31 do Acórdão).
xiii. Mas atribui os factos ao grupo musical, num todo, por ser referido pelas testemunhas o nome “III”.
xiv. Não obstante, é concretamente nesta conclusão que se discorda, por se entender que as pessoas individualmente consideradas não se podem considerar responsáveis por associação, dito de outra forma, por pertencer ao grupo musical, se concluir que praticou os factos.
xv. Porquanto, não resultou apurado que todos os 10 ou 15 intervenientes pertencessem ao grupo de música “II”, pois se assim fosse, todos esses elementos estariam identificados nos autos, pois são um grupo musical com música editada por editora musical e conhecido no meio escolar da altura dos factos.
xvi. Resultou das declarações prestadas pelo arguido que os factos descritos na acusação não correspondiam à verdade.
xvii. Com efeito e conforme descrito pelo arguido, no dia 29.06.2018, o JJ (pessoa que nunca foi inquirida durante a investigação), informou no chat do grupo musical que estaria a ser “importunado” por três indivíduos na Estação da … e que, perante o apelo foi ao local com intenção de o trazer em segurança ou dissipar as altercações.
xviii. Desde logo, não estamos perante um dolo de apropriação de bens ou de molestar alguém fisicamente, mas de ir “resgatar” alguém que estaria a ser agredido por três indivíduos.
xix. Relevante teria sido interrogar o mencionado JJ, referido pelo arguido BB e pelo arguido CC, para se apurar os contornos deste apelo, contudo nada foi investigado neste sentido.
xx. De facto, apesar de o arguido não ter conseguido explicar qual o motivo da “confusão” aquando dos esclarecimentos solicitados pelo Tribunal nem sabendo concretizar o que terá efectivamente acontecido naquele local naquela data, certo é que o seu depoimento foi semelhante ao das muitas testemunhas que, confrontadas com o desenrolar dos factos, se referiam a uma “confusão” e não sabiam identificar quem estava e quem fez o quê.
xxi. Durante o seu depoimento este revelou-se espontâneo e credível e revelou uma perspectiva de uma mera testemunha, reforçando que nada fez e até tentou apaziguar a situação, mandando-os embora, sendo a sua intenção de ir proteger o JJ.
xxii. Mais, o arguido prestou declarações durante o inquérito mantendo sempre a mesma versão dos factos por si relatados.
xxiii. Pelas testemunhas é referido que os factos foram praticados por um grupo de cerca de 15 a 20 pessoas, não se tendo cabalmente demonstrado quem foram os autores dos factos.
xxiv. As declarações do arguido BB, sinceras e espontâneas, são esclarecedoras de que chegou com as altercações a acontecer e pouco conseguiu percepcionar por estarem muitas pessoas aglomeradas no local e se estarem a “agarrar”, e que, perante este cenário, decidiu ir embora, advertindo dois rapazes que reconheceu da sua escola a fazerem o mesmo. Pode-se mesmo dizer que evidenciou receio daquela situação. Negou qualquer envolvimento e, quanto ao roubo, que tenha visto a coluna em causa.
xxv. O ofendido HH, que sofreu sérias ofensas corporais, reconheceu o BB como estando lá no local, pois conhecia-o do tempo da escola, mas afirma que ele não lhe fez nada.
xxvi. DD também reconheceu o BB do tempo da escola, não se recordando se o mesmo estava lá, mas que em face do reconhecimento realizado na PJ, que o reconheceu, não por ter praticado algum facto, mas por apenas saber quem é.
xxvii. Ou seja, nenhuma testemunha afirmou que o arguido, ora recorrente tenha praticado os factos pelos quais foi condenado.
xxviii. Portanto, da audição das testemunhas que fundamentaram a condenação do arguido no episódio da “Estação”, o que se apura é que se tratava de um grupo de pelo menos 10 pessoas, no qual ninguém sabe quem fez o quê, no qual, já com transeuntes se aglomeraram mais pessoas, e daqui se identificou o arguido como estando lá, tão só e apenas.
xxix. Conjugadas as suas declarações com as de FF – ofendido/vítima que foi agredido naquela ocorrência, o mesmo afirmou que não foi o BB!
xxx. A testemunha DD refere-se a BB como “um miudinho da escola” e não como uma pessoa que inspire medo e receio.
xxxi. No que ao roubo da coluna … concerne, a dinâmica da acção tudo indica que se tratou de um crime de ocasião, não se podendo o mesmo imputar ao arguido BB, pois nenhuma prova segue nesse sentido e o mesmo negou que a tivesse sequer visto.
xxxii. Daqui se extrai que as testemunhas pouco puderam concretizar sobre os autores das agressões e apenas reconheceram como estando lá presentes, três elementos do grupo musical, com visibilidade da na escola, entre eles o arguido recorrente.
xxxiii. Em nenhum momento se atribui qualquer forma de participação naqueles factos, seja no crime de roubo, seja nos crimes de O.I.F., ao aqui recorrente.
xxxiv. No seguimento da fundamentação do Douto Acórdão, pág. 32, quanto ao enquadramento jurídico-penal, pode ler-se:” (…) os arguidos em cada um dos episódios atuaram em conjunto com outros indivíduos numa ação conjunta, coesa e indissociável da conduta de cada um, pelo que se encontra cabalmente preenchido o elemento objetivo do tipo.”
xxxv. Com elevado respeito, discorda-se da conclusão a que chegou o Colectivo do Tribunal a quo, por se verificar da prova produzida, nomeadamente depoimentos das testemunhas HH, DD e FF, bem como das declarações dos arguidos, que não se logrou apurar quem foram os autores das agressões ou que tenha existido uma resolução criminosa comum.
xxxvi. Não obstante o arguido BB ter ido ao local, o mesmo não participou nos factos nem exerceu qualquer contributo na realização do tipo.
xxxvii. Quanto à Autoria, releva a teoria do domínio do facto em que “só pode ser autor quem, segundo a importância da sua contribuição objectiva, compartilha o domínio do curso do facto” (Jescheck, cit. 4.ª edição, 594).
xxxviii. Mas “para a autoria não é só decisiva a vontade diretiva pois também o é a importância material da intervenção no facto que cada co-delinquente assume.
Em consequência, só pode ser autor quem, de acordo com o significado do seu contributo efectivo, governa o curso do facto” (Jescheck/Weigend, 701/702).
xxxix. A teoria do domínio do facto foi adoptada pelo ac. STJ de 22 de Novembro de 2006: “só pode ser autor quem, segundo a importância da sua contribuição efectiva, comparte o domínio do decurso do facto”.
xl. A mera presença do arguido BB no local dos factos, quando a situação já se estava a desenrolar, e o seu posterior abandono daquele local, não integra o conceito de “tomar parte directa na execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros” do tipo legal ínsito no art. 26.º do C.P., pois o arguido repudiou o que estava acontecer até com receio, querendo efectivamente dissipar a situação, dizendo aos dois rapazes que conhecia para todos se irem embora, o que também fez de seguida.
xli. A sua atitude é demonstrativa de que não queria tomar parte naqueles acontecimentos.
xlii. Mais referiu que desconhecia a generalidade dos intervenientes além dos dois rapazes da sua escola e o seu colega do grupo musical, CC.
xliii. Podemos daqui concluir também que os 15 ou 20 intervenientes não seriam pertencentes ao grupo musical.
xliv. Contrariamente ao sustentado no Douto Acórdão, e é a verdade dos factos, o arguido BB não comparticipou nos acontecimentos ou contribuiu para as agressões e o subsequente roubo, pelo que forçoso se torna, ter de naufragar o preenchimento do elemento objectivo.
xlv. Certo é porém, que a versão do arguido não foi afastada por nenhuma testemunha, mas ainda assim o Tribunal a quo, não lhe atribuiu credibilidade.
xlvi. A fundamentação do Douto Acórdão recorrido não menciona uma única prova que demonstre que o arguido BB tenha efectivamente tido qualquer participação nos factos, tão só pelo facto de ter estado presente no local dos factos, por pertencer a um grupo musical conhecido na escola mencionado pelas testemunhas, e por um salto de lógica atribui aquelas acções ao arguido, como actuação concertada em grupo, fundamentando assim a sua condenação.
xlvii. No tocante ao crime de roubo, o mesmo se dirá, pois nenhuma testemunha atribuiu a apropriação daquele bem ao arguido BB e o mesmo afirmou que nunca viu nenhuma coluna.
xlviii. Outrossim, tratando-se de um crime de ocasião praticado por alguém que se aproveitou dos acontecimentos em apreço, mas não se pode imputar ao aqui recorrente.
xlix. O douto Acórdão recorrido violou ainda o princípio in dúbio pro reo, em face da dúvida que se impunha reconhecer, quanto à participação do arguido BB.
l. Conforme o supra exposto, não resultaram provados factos suficientes que demonstrassem o preenchimento dos elementos dos crimes em que o arguido foi condenado.
li. Nenhuma testemunha ou outra prova produzida implica o arguido no envolvimento dos factos, sendo inclusivamente negada pela vítima das agressões HH.
lii. Aliás, toda a fundamentação da sentença ora objecto de recurso, na realidade, não assenta nos factos provados, sendo antes consequência de uma construção, aparentemente lógico-dedutiva, completamente desfasada e, inclusive contraria à factualidade apurada.
liii. Estamos, sem dúvida, perante a violação do princípio do “in dúbio pro reo”, segundo o qual o juiz deve decidir “sobre toda a matéria que não se veja afectada pela dúvida”, de forma que “quanto aos factos duvidosos, o princípio da livre convicção não fornece, não pode fornecer qualquer critério decisório”. (Cfr. Cristina Líbano Monteiro in Perigosidade de inimputáveis e «in dúbio pro reo», Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pág. 54).
liv. O invocado princípio é duplamente atingido, porquanto e no seguimento da sua consolidação jurídico-normativa, a doutrina entende que “O universo fáctico – de acordo com o «pro reo» - passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos que lhe são desfavoráveis. Diz o principio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para os segundos se exige certeza” (Cfr. Cristina Líbano Monteiro in Perigosidade de inimputáveis e «in dúbio pro reo», Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pág. 54).
lv. O princípio "in dúbio pro reo", corolário da presunção da inocência, implica que não se possam considerar como provados os factos que, apesar da prova produzida, não poderiam ser subtraídos à "dúvida razoável" do tribunal.
lvi. E, no presente caso, é evidente que persiste uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade e dos concretos contornos da actuação do arguido, e esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a seu favor, sob pena de preterição do mandamento consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
lvii. Em suma, nos presentes autos não só ficou cabalmente provado que o arguido não praticou os crimes de que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais o arguido vem acusado e quanto à culpa deste, pelo que a sua absolvição aparece como a única atitude legítima a adoptar.
lviii. Pelo exposto o Tribunal a quo violou o disposto no art. 410.º, n.º 2, c) do C.P.P., art. 210.º n.º 1, art. 143.º n.º 1, 145.º n.º 1 alínea a), por referência ao artigo 132.º n.º 2 alínea h), todos do Código Penal, e n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.”
Termina pedindo:
“Nestes termos (…), deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:
Ser o arguido absolvido da prática dos crimes de roubo contra FF e Ofensa à Integridade Física contra GG e HH, por erro notório na apreciação da prova e violação dos princípios da presunção de inocência, in dubio pro reo e artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.”
Em resposta ao recurso, o MP conclui (transcrição):
“1ª – Da leitura do texto do acórdão recorrido – designadamente na parte atinente à matéria de facto provada e aos meios de prova determinantes da convicção ali expressa – não decorre que o tribunal tenha considerado provados factos que, manifestamente, de harmonia com as regras da lógica e da experiência comum, estejam incorrectos ou não possam ter acontecido da forma descrita;
2ª – Também não resulta de forma alguma – muito menos de forma evidente – que no espírito do julgador tenha subsistido qualquer dúvida sobre os factos imputados ao Recorrente; nem tal dúvida é imposta, objectivamente, pelas regras da experiência comum, atenta a coerência lógica dos factos dados como provados e destes com a fundamentação de facto contida no acórdão;
3ª – Consequentemente, o acórdão não enferma do vício do erro notório na apreciação da prova contemplado na al. c) do nº 2 do artº do artº 410º do C.P.P. nem ofende o princípio in dubio pro reo constitucionalmente consagrado;
4ª – Os fins visados com a oralidade e a imediação que presidem ao julgamento obstam a que o tribunal de recurso possa sindicar a apreciação da prova livremente efectuada pela instância recorrida, se esta se encontrar devidamente fundamentada, no sentido de uma das soluções plausíveis, e não for inadmissível face às regras da experiência comum;
5ª – Ao fixar a matéria de facto nos exactos termos em que o fez (designadamente no que concerne ao Recorrente), o tribunal valorou criteriosa e correctamente a prova pessoal produzida em audiência de discussão e julgamento e a demais constante dos autos, à luz das regras da lógica, da experiência comum e da normalidade da vida a que estava vinculado, sem extravasar os poderes/deveres que emergem dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova;
6ª – Por conseguinte, a decisão proferida sobre a matéria de facto deverá permanecer inalterada, mantendo-se igualmente a subsunção jurídico-penal dos factos julgados provados;
7ª – Para a imputação, a título de co-autoria material, dos ilícitos julgados verificados, é inócuo que não se tenha apurado qual a acção concretamente empreendida pelo Recorrente, bastando provar-se, conforme se provou, a sua presença no local e no momento dos crimes, na companhia dos restantes co-arguidos e demais indivíduos, conjugada com o plano previamente delineado por todos eles, que contemplava infligir ofensas físicas aos ofendidos e apoderar-se de objectos de valor que estes pudessem ter na sua posse e lhes interessassem – como veio a suceder.”
Terminando a formular a seguinte pretensão:
“Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto e ser mantido na íntegra o douto acórdão recorrido.”
O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer onde conclui, “pois, que o tribunal a quo apreciou a prova de modo racional, objetivo e motivado, com respeito pelas regras da experiência comum, não competindo ao tribunal ad quem censurar a decisão recorrida com base na convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida, sob pena de se postergar o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.127º do C.P.P..”
Procedeu-se a exame preliminar.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal1, sem resposta.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:
“II – MATÉRIA DE FACTO
A) Produzida a prova, resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa
I
(…)
II
9. No dia 29/06/2018, cerca das 14h15m, os arguidos AA, CC, BB e outros indivíduos do sexo masculino não concretamente identificados visualizaram FF, EE, GG, HH e DD na Rua …, em …l, junto à estação do comboio da ….
10. Ao vê-los, por motivos não concretamente apurados, decidiram molestar fisicamente os ofendidos e apropriarem-se de objetos de valor que lhes interessasse e que pudessem ter em sua posse.
11. Em cumprimento do plano delineado, aproximaram-se em passo acelerado.
12. Com medo, e por saber que os arguidos e os demais indivíduos faziam parte de um grupo autointitulado de “II”, conhecido na cidade de … enquanto grupo musical e de dança, mas também por ser capaz de agredir pessoas, EE fugiu imediatamente do local, tendo ainda sido agarrado, mas logrando a fuga, rasgando a t-shirt.
13. No mesmo instante, elementos do aludido grupo cercaram FF e, fazendo uso de sua força muscular, desferiram-lhe, simultaneamente, murros, provocando-lhe dores.
14. Na mesma circunstância de tempo e de lugar, HH e GG foram cercados, sendo que um dos indivíduos, fazendo uso de um objeto em tudo semelhante a uma soqueira, desferiu um forte murro na zona do olho esquerdo de GG que começou a sangrar abundantemente e outro, desferiu um soco com objeto não identificado na cara de HH, provocando-lhe um corte.
15. Ao ver grande quantidade de sangue no chão, proveniente da lesão de GG, FF fugiu com medo.
16. Apesar de ter permanecido no local, DD não foi agredido fisicamente nem pelos arguidos, nem pelos restantes indivíduos que os acompanhavam.
17. Alguém cuja identidade não se apurou, do grupo de agressores também composto pelos arguidos identificados no ponto 9, retiraram da mochila de FF uma coluna de som de marca …, os respetivos auriculares e o carregador, de valor superior a 102,00€ (cento e dois euros).
18. Na posse da suprarreferida coluna, os elementos do grupo, incluindo os arguidos identificados em 9, abandonaram o local, levando consigo aqueles objetos, que fizeram seus.
19. Por força da agressão física perpetrada por elementos do grupo “II” em que se inseriam os arguidos identificados em 9, GG sofreu as seguintes lesões:
a) ferida oblíqua incisa com envolvimento da porção medial da pálpebra superior e extensão supero-latero, cruzando o supercílio;
b) fino hematoma subdural agudo adjacente à foice inter-hemisférica anterior;
c) incipiente conteúdo hemorrágico subaracnoideu em sulcos frontais esquerdos;
d) bolhas gasosas ao longo da foice inter-hemisférica na região frontal esquerda; e
e) fratura da sptal na região medial da órbita, as quais lhe determinaram um período de doença de 228 dias, com afetação da capacidade de trabalho geral em 30 (trinta) dias e com a afetação da capacidade de trabalho profissional em 228 (duzentos e vinte e oito) dias.
20. Os arguidos AA, BB e CC, sabiam perfeitamente que ao atuarem em grupo com os demais indivíduos, junto de FF, EE, GG, HH e DD os intimidariam, causando-lhes medo e inquietação, dificultando-lhes a capacidade de resistência.
21. Agiram coletivamente no intuito de molestarem fisicamente os ofendidos e, nessa sequência, apropriarem-se de bens alheios de valor que lhes interessasse e que estes tivessem, o que lograram, molestando fisicamente GG, HH e FF e apropriando-se de bens deste último.
(…)
39. Em tudo o que se provou, agiram sempre os arguidos AA, BB e CC, na parte respetiva, de forma livre, deliberada e consciente, sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, podiam determinar-se em sentido contrário de acordo com a respetiva avaliação que efetivamente fizeram e, ainda assim, não se abstiveram de as praticar.
Mais se provou
(…)
Factos atinentes ao relatório social
(…)
Arguido BB
56. O arguido reside com os pais e uma tia num apartamento que reúne condições de conforto e habitabilidade adequadas na baixa da cidade de …, num meio conotado com algumas problemáticas sociais, situação que já se verificava à data dos factos.
57. O pai trabalha em … e vem a Portugal com regularidade.
58. A mãe e a tia são domésticas e cuidam de uma horta que têm na zona das ….
59. O arguido trabalhou seis dias entre 1 de outubro de 2024 e 06 de outubro de 2024 para a sociedade …, tendo auferido 99,66€ (noventa e nove euros e sessenta e seis cêntimos).
60. O arguido encontra-se a frequentar, desde 20/10/2024, um curso profissional de Eletricidade de Instalações Sustentáveis no centro de formação do IEFP, recebendo uma bolsa no valor de 254,63€ mensais.
61. Contribui para o pagamento das despesas do agregado familiar, cabendo-lhe pagar a água e as comunicações no valor de 130,00€.
62. À data dos factos tinha concluído o 9.º ano e estava desocupado, realizando alguns biscates na área da decapagem naval e na área da restauração.
63. Tem três irmãos inseridos social e profissionalmente.
64. Os pais, a tia e os irmãos do arguido desconhecem a existência do presente processo.
65. O arguido é jogador de futebol federado e encontra-se inserido socialmente, tendo um grupo de amigos com quem se relaciona nos treinos de futebol, treinos esses que ocorrem às 3ªs, 5ªs e 6ªs feiras no Grupo Desportivo de ….
66. O arguido manifesta um constrangimento de ordem emocional perante a presente situação jurídico-penal, nomeadamente no que concerne ao receio de exposição da mesma perante a sua família.
(…)
83. O arguido BB não tem antecedentes criminais.
(…)
*
B) Factos não provados com relevância para a deliberação
(…)
b) Que os arguidos AA, BB e CC tenham tentado subtrair bens a EE, DD e KK.
(…)
C) Convicção do tribunal
O tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente no depoimento das testemunhas de acusação LL, FF, HH, MM, JJ, NN, OO, PP, QQ, RR, EE, SS, TT, UU e VV, devidamente conjugados com a prova pericial e documental carreada para os autos designadamente a seguinte:
1. relatório do exame pericial de avaliação do dano corporal de GG (fls. 297 a 300)
2. relatório do exame pericial de avaliação do dano corporal de MM (fls.72 a 74).
3. auto de notícia (fls. 8 a 10);
4. aditamento n.º 2 e fotografias dos arguidos (fls. 17 a 19);
5. documentação hospitalar de GG (fls. 25 a 29, 208, 209 e 226 a 228);
6. fotografia do ferimento de HH (fls. 108 e 109);
7. termo de juntada n.º 7 – fotografias dos ferimentos de QQ (fls. 120 a 125);
8. autos de reconhecimento pessoal do arguido AA (fls. 180 a 181 e respetivos versos);
9. autos de reconhecimento pessoal do arguido BB (fls. 186 a 188 e respetivos versos);
10. autos de reconhecimento pessoal do arguido CC (fls. 189, 190 e respetivos versos);
11. relatórios sociais dos arguidos (fls. 714 verso, 718 a 720, 741 a 743);
12. certificados de registo criminal atualizados dos arguidos;
NUIPC 1412/18.9PBSTB:
13. auto de notícia (fls. 4 a 7); e
14. relatório de episódio de urgência hospitalar (fls. 60 a 70)
NUIPC 780/16.1GDSTB
15. auto de notícia (fls. 2 e 3);
16. fotografias (fls. 4 a 6); e
17. auto de apreensão e relatório fotográfico (fls. 65 a 68)
Genericamente, o tribunal formou no essencial a sua convicção com base no depoimento dos ofendidos, conjugados com os reconhecimentos positivos realizados na fase de inquérito e constantes a fls. 180, 181 e 186 a 190, com as declarações dos arguidos na parte em que confessaram ter pertencido a um grupo de jovens de … denominado de “II” e que se dedicava além do mais à música e à dança.
O Coletivo encontrou as dificuldades típicas de situações dinâmicas, ocorridas em espaço exterior, com a participação de múltiplos intervenientes. Não foi possível determinar com detalhe a intervenção de cada um dos participantes. Por banda dos arguidos, excecionando o caso de AA, quanto a um dos três episódios descritos, em que confessou genericamente os factos, os arguidos negaram a tese da acusação. Por banda dos ofendidos, a partir do momento em que se sentiram em perigo e, nuns casos, sofreram agressões e, noutros, lograram a fuga, viram diminuídas as suas capacidades de percecionar os detalhes da ação. Dificuldade justificada pelo medo e ansiedade que sentiram e que os obrigou a focarem-se em exclusivo, ou na fuga, ou em minimizarem os efeitos das agressões, protegendo a cabeça e, com isso, limitando o seu campo de visão, já de si limitado pelo chamado “efeito túnel” inerente a todas as situações de stress. A tudo isso acresceu o tempo decorrido desde a prática dos factos, que no âmbito de um procedimento criminal por factos desta natureza, foi excessivamente longo. À parte disso, o depoimento dos ofendidos revelou-se sincero, sem qualquer evidência persecutória ou vingativa. Pelo contrário, as testemunhas ainda manifestaram sentir medo dos arguidos. Conforme resulta da ata da audiência de julgamento, ou requereram a prestação do depoimento na ausência dos mesmos ou, não o fazendo, como OO, tentaram prestar um depoimento que não comprometesse diretamente cada um dos arguidos. Nessa medida, ou afirmaram que não os conhecem/identificam com o episódio que sofreram ou, identificando, não conseguiram descrever a factualidade concretamente praticada por cada um. Toda a ação foi descrita como uma atividade conjunta do grupo “II”, tal como se o referido grupo de jovens agisse como um só, num propósito unificado de apoio, solidariedade, lealdade e adesão às ações praticadas entre os respetivos membros, disso mesmo se tendo convencido o tribunal. Em suma, considerou forçoso este Coletivo, concluir que os depoimentos prestados pelas testemunhas, a pecar, terá sido por defeito e nunca por excesso.
Concretizando:
(…)
2.º episódio ocorrido no dia 29 de junho de 2018:
A convicção do tribunal na prova do segundo episódio, alicerça-se em elementos probatórios conjugados com regras de experiência comum e normalidade da vida, em tudo similares aos que formaram a convicção do Coletivo na prova da factualidade inerente ao primeiro episódio.
A resposta às perguntas “o quê”, “quando”, “onde” e “como”, foi alicerçada na conjugação dos depoimentos dos ofendidos FF, EE, HH e da testemunha DD. Apesar do receio que ainda evidenciaram sentir pelos arguidos, prestaram depoimentos verosímeis e credíveis, sem réstia de sentimentos condicionantes de vingança ou perseguição, pelo que o Coletivo formou a convicção na prova dos factos descritos nos termos em que se encontram redigidos nos pontos 9 a 18. Mais uma vez, foi evidente a perceção de uma ação em grupo, por numerosos elementos imbuídos de um espírito coeso de unidade e lealdade entre os seus membros. O ofendido EE apercebeu-se da aproximação do grupo que reconheceu como sendo dos “II” e imediatamente pressentiu que iam ter problemas e encetou fuga sem esperar para ver o resultado. Não se enganou e, livrando-se ao espancamento que se seguiu, não se livrou de ver rasgada a t-shirt por ainda o terem, sem sucesso, tentado agarrar e manietar. No mais, temos a descrição conjugada de cada um dos ofendidos e da única testemunha não agredida quanto ao que ocorreu. Depoimentos diferentes, pois que cada um percecionou uma parcela de toda a ação a partir de um posicionamento diferente. Mas tudo conjugado inexistem contradições insanáveis, tendo resultado consensual que inexistiu qualquer conversa ou pedido de entrega de bens. Os elementos do grupo, ao se aproximarem dos ofendidos, levaram imediatamente a cabo um espancamento de socos e pontapés com recurso, no caso de GG a soqueira ou objeto similar e, de HH a objeto cortante não identificado. Com esta descrição unânime, o tribunal teve dúvidas de que a intenção inicial ou principal tivesse sido a de subtração de bens, não tendo tido quaisquer dúvidas de que todo o grupo agiu com uma intenção inicial de molestar fisicamente quem foi efetivamente molestado, ainda que tal intenção não tenha sido a única. Por fim, considerando que foram subtraídos objetos da mochila que FF transportava e que largou no local, convenceu-se o Coletivo, de que foram elementos do grupo agressor que, mantendo o espírito de unidade e união do grupo, formularam o propósito de subtrair bens de valor que lhes interessasse e encontrassem e concretizaram tal propósito, subtraindo os bens descritos a FF. Pelo que se acaba de expor, se alterou a factualidade no campo das intenções que se descreveu nos pontos 20 e 21 da matéria de facto provada e se julgou não provada a matéria descrita na alínea b) dos factos não provados.
No que concerne à autoria dos factos, partindo da base factual que resultou consensual de que se tratou de atuação do grupo “II”, a que os arguidos confessadamente pertenciam, importa referir o seguinte:
O ofendido FF e a testemunha DD reconheceram nos termos do artigo 147.º do Código de Processo Penal o arguido AA, conforme reconhecimentos a fls. 180 e 181; a mesma testemunha DD e o ofendido HH reconheceram a fls. 186 e 187 verso o arguido BB e, o ofendido FF reconheceu a fls. 189 e verso o arguido CC. Reconhecimentos feitos em data próxima aos factos e em observância das formalidades legais. Reconheceram enquanto elementos do grupo “II” que naquele dia 29 de junho de 2018, àquela hora em concreto, estavam inseridos no grupo que se abeirou dos ofendidos e testemunha e espancou aqueles, com maior gravidade no caso de GG. Também aqui não faz sentido que reconhecessem os arguidos por engano, quando foi evidente para o Tribunal que tudo fizeram para não os incriminar em audiência de julgamento. No caso do arguido AA, o ofendido FF visualizou nas redes sociais, pouco tempo depois, um vídeo em que este exibiu uma coluna de som … que identificou como sendo a que lhe foi subtraída no momento dos factos. Parta além disso ainda esclareceu que interpretou a mensagem que o arguido transmitiu no vídeo publicado nas redes sociais “Não tentem vir comigo! Não tentem vir comigo!” como um recado para quem quisesse recuperar a coluna se manter afastado. A inexistência do vídeo ou deste esclarecimento por parte do ofendido FF em nada alteraria a convicção do tribunal sobre a prova da presença e autoria do arguido AA na prática dos factos, tendo em conta a assertividade com que, pedindo para ser ouvido na ausência dos arguidos, afirmou também em julgamento ter reconhecido “o rosto” deste arguido. De todo o modo, faz-se menção à alusão ao vídeo, na medida em que é mais um elemento probatório que ao invés de infirmar, corrobora os anteriormente mencionados que determinam a autoria do arguido. E saliente-se que em sede de julgamento nem o arguido contrariou estes elementos probatórios, limitando-se a afirmar não se recordar deste episódio.
Os arguidos BB e CC negam a participação nos factos imputados, mas colocam-se no local e trazem um motivo plausível para levar os elementos do grupo “II” ao qual pertenciam, terem praticado os factos imputados, designadamente terem recebido um apelo por mensagem na “net” para acudirem a um amigo de nome JJ que estaria sozinho a ser importunado por outros três jovens não pertencentes ao grupo. Refere ter sido esse o motivo que o levou ao local, em conjunto com CC que estaria para apanhar o comboio para o … no intuito de ir treinar futebol às 15H00 no clube … onde jogava. No mais, referem que quando chegaram já tudo se tinha passado e já estava um dos ofendidos a sangrar muito, tendo CC mostrado arrependimento por não ter prestado auxílio a essa vítima. Se assim fosse, FF não teria reconhecido CC como reconheceu, pois resulta do seu depoimento que quando viu o sangue do ofendido GG no chão, assustou-se e fugiu, deixando para trás a sua mochila. Necessariamente CC já lá teria de estar em momento anterior à agressão a GG provocar o sangramento. Veja-se que o aparecimento do sangue de GG em grande abundância levou a que os elementos do grupo atacante se assustassem pela gravidade das lesões e abandonassem o local, conforme atestou DD, que tendo sido a testemunha presencial que não foi agredida, manteve necessariamente uma maior capacidade de atentar e memorizar pormenores essenciais e supérfluos. Neste contexto, se os arguidos CC e BB tivessem chegado ao local no momento em que atestaram em tribunal tê-lo feito, os restantes elementos do grupo já estariam em parte incerta, não sendo plausível que fossem reconhecidos como membros de um grupo que já se tinha evadido do local.
Por fim, contextualizando uma vez mais os factos com os laços de amizade imbuídos de sentimentos de unidade, pertença e lealdade que unia os elementos daquele grupo, conclui-se que os mesmos não são compatíveis com o alegado alheamento destes dois arguidos a deslocarem-se para o local já após a ocorrência dos factos. Mesmo passados todos estes anos, voltaram a demonstrar em audiência de julgamento a lealdade a que estavam vinculados os elementos do grupo. Foram julgados factos que, consensualmente, foram praticados por muitas mais pessoas cuja identidade não se apurou. Os arguidos não denunciaram nenhum dos coparticipantes não identificados e que necessariamente conhecerão. BB e CC, num contexto em que afirmam não ter praticado os factos, mas que chegaram na fase final, facilmente poderiam identificar os autores, que os poderiam inocentar. Esta tomada de posição faz mais sentido no contexto em que, tal como o Tribunal se convenceu, os arguidos praticaram os factos nos precisos termos descritos nos pontos 9 a 18 dos factos provados, preferindo arcar sozinhos com as consequências penais de algo que efetivamente cometeram, do que denunciar os restantes coparticipantes que lograram não ser descobertos.
Importa ainda fundamentar a titularidade da coluna subtraída e o valor dos bens subtraídos. A defesa do arguido AA colocou em causa que a coluna fosse da propriedade de FF, havendo elementos nos autos que permitem formular a hipótese de que tal objeto pertenceria a um terceiro que o terá emprestado a este ofendido. Tal possibilidade que não se afasta levou a que o tribunal redigisse o facto atribuindo a propriedade da mochila onde se encontrava a coluna a FF, estabelecendo apenas que a coluna se encontrava no seu interior. Em suma o tribunal não fixou na matéria provada a propriedade da coluna.
Por fim, foi apurado o valor dos objetos com recurso a prova testemunhal que é mais falível do que a pericial. Nesse contexto o tribunal fixou um valor manifestamente abaixo do valor atestado pelas testemunhas e que se traduz no valor com relevância para o enquadramento jurídico. Assim, embora pecando por defeito, julgou-se provado que os objetos têm valor superior a 102,00€, sendo manifesto que assim é, com mero recurso a regras de experiência comum e sem necessidade de recorrer a prova pericial. Termos em que se julgou provado que os arguidos praticaram a factualidade descrita nos pontos 9 a 18 e 20 e 21 dos factos provados.
O tribunal alicerçou a convicção na prova da factualidade descrita no ponto 19 dos factos provados com base no relatório de exame pericial de avaliação do dano corporal de GG a fls. 297 a 300 e na documentação hospitalar a fls. 25 a 29, 208, 209 e 226 a 228.
(…)
O tribunal alicerçou a convicção na prova da factualidade descrita no ponto 39 na conjugação de toda a prova com regras de experiência comum, mais uma vez, no contexto em que nenhum dos arguidos padece de doença mental grave e incapacitante, pelo que em tudo o que se provou que fizeram, os arguidos AA, BB e CC, não poderiam deixar de saber que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, nem de ter no tempo devido feito essa avaliação e decidido ainda assim, agir nos termos em que se julgou provado.
A factualidade descrita nos pontos 40 a 43 está alicerçada nos documentos clínicos juntos aos autos, conjugados com as faturas juntas pelos respetivos Hospitais demandantes de onde é possível descortinar os valores respeitantes a cada ofendido e que em sede de julgamento da matéria de facto se individualizou.
A matéria descrita nos pontos 44 a 80 está alicerçada nos relatórios sociais na estrita medida em que os arguidos autorizaram a utilização da respetiva informação, bem assim como no resultado das pesquisas efetuadas às bases de dados do Instituto da Segurança Social em momento posterior ao encerramento da audiência, mas na estrita medida em que das mesmas, em benefício dos arguidos, se retirou factualidade que evidencia inserção profissional dos mesmos.
O tribunal alicerçou a convicção na prova da factualidade descrita nos pontos 81 a 84 nos certificados de registo criminal atualizados dos arguidos que se encontram junto aos autos.
No que concerne à matéria de facto não provada, importa consignar o seguinte.
Nenhum facto se provou quanto ao arguido XX porque nenhuma testemunha o referiu ou reconheceu e não foi produzida qualquer prova em julgamento quanto a si. O simples facto confessado de ter pertencido ao grupo musical e de dança “II”, na ausência de qualquer outro elemento de prova é por si só, insuficiente, para julgar qualquer facto provado contra este arguido. Uma vez que não se provou qualquer facto imputado na acusação quanto a este arguido, nada se consignou quanto à factualidade extraída do relatório social e do certificado do registo criminal.
Termos em que se julgou não provada a matéria constante na alínea a) dos factos não provados.
A matéria descrita na alínea b), traduz consequência necessária da matéria que se julgou provada quanto à intenção dos arguidos na prática dos factos descritos no segundo episódio e que determinou, em parte, a alteração não substancial de facto e da qualificação jurídica oportunamente comunicada.
A matéria descrita na alínea c) já se encontra fundamentada no âmbito dos factos provados relativos ao terceiro episódio.”
2 - Fundamentação.
A. Delimitação do objeto do recurso.
A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.
As questões a decidir são as seguintes:
1.ª – Erro notório na apreciação da prova.
2.ª – Impugnação da matéria de facto dada como provada.
3.ª – Das formas do crime.
4.ª – In dubio pro reo.
*
B. Decidindo.
1.ª questão – Erro notório na apreciação da prova.
O recurso pode ter como fundamento (nos termos do art.º 410.º, n.º 2, alínea c)), desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum o erro notório na apreciação da prova.
Tal erro, dizem-nos Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques2, é uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível para o cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se tirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis.”
Salvo o devido respeito, o recorrente, como infelizmente acontece frequentemente nos recursos para os TR, confunde este invocado vício com a impugnação da matéria de facto que está regulada no art.º 412.º, n.º 3. Os tribunais superiores (com diminuto sucesso, tem de reconhecer-se), traçam, amiúde e pedagogicamente, uma distinção entre as “deficiências” da decisão (art.º 410.º, n.º 2) e os erros do julgamento (previstos no n.º 3 do art.º 412.º), explicando as diferenças conceptuais e processuais entre as duas figuras. Como resulta diretamente da lei, a impugnação da decisão da matéria de facto pode acontecer de duas formas procedimentalmente distintas, (i) arguindo-se o vício de texto previsto no art.º 410.º, n.º 2, ou seja, um sistema de reexame da matéria de facto por meio da chamada revista alargada, ou (ii) mediante o recurso amplo ou efetivo da matéria de facto fixada pelo tribunal a quo, que tem a sua previsão no referido art.º 412.º, números 3, 4 e 6.
Como se pode ler no Acórdão deste TRE (em que o ora relator foi adjunto) de 08.11.2022, proferido no processo n.º 23/15.5IDPTG.E1 (Relator Nuno Garcia) são situações completamente distintas: Os vícios que permitem a designada revista alargada (art.º 410.º, n.º 2) têm de resultar da própria sentença / acórdão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Não pode ser feito apelo à prova que foi produzida, porque se assim se fizer está a sair-se do campo de aplicação do n.º 2 do art.º 410.º e a enquadrar-se no n.º 3 do art.º 412.º do mesmo Código.
No caso dos autos, o recorrente labora no aludido frequente erro, invocando a “prova produzida em sede de audiência de julgamento” que, na sua perspetiva, “impunha obrigatoriamente (…) uma decisão diversa”.
É evidente que está fora da revista alargada que invoca e navega nas águas do recurso amplo da matéria de facto (citadas alíneas do n.º 3 do art.º 412.º, recorrendo até, expressivamente, à mesma terminologia, traduzida na forma verbal do verbo “impor” – cfr. alínea b)).
É, assim, a pretensão inerente a esta questão improcedente.
2.ª – Impugnação da matéria de facto dada como provada.
Verifica-se, em primeiro lugar, que o recorrente apenas implicitamente impugna a matéria de facto, pois, formalmente, apenas invoca (sem qualquer razão, como vimos) o vício do erro notório na apreciação da matéria de facto, mas nem por isso deixaremos de analisar tal impugnação.
Assim, dir-se-á que constitui princípio geral que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, nos termos do art.º 428.º.
Importa, consequentemente, lembrar o que dispõe o art.º 412.º, com referência à motivação do recurso e conclusões:
“(…)
3 – Quando impune a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 364.º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Como consta do Comentário do Código de Processo Penal, de Paulo Pinto de Albuquerque3, em anotação à referida norma, “[a] especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (…)”; “[a] especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida”, a que “(…) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova «impõe» decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação.”
Assim sendo, sempre que seja impugnada a matéria de facto por se entender que determinado aspeto da mesma foi incorretamente julgado, o recorrente tem de expressamente indicar esse aspeto, a prova em que apoia o seu entendimento e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida.
Tal exigência decorre da circunstância de que todos os recursos – à exceção do recurso de revisão – se encontrarem “concebidos na lei como remédios jurídicos e não como instrumentos de refinamento jurisprudencial, o que inculca que aos impugnantes seja pedido (em obediência ao princípio da lealdade processual) que indiquem qual o defeito ou vício de que padece o ato impugnado, por forma a habilitar o tribunal superior a ajuizar do mérito das razões invocadas.
Ora é exatamente para isso que serve a motivação: permitir ao recorrente apontar ao Tribunal ad quem o que na sua perspetiva foi mal julgado e oferecer uma proposta de correção para que o órgão judiciário o possa avaliar.”4
Por outro lado, pretendendo o recorrente “impugnar a decisão da matéria de facto, forçosamente há-de saber o que nesta decisão concretamente quer ver modificado e os motivos para tal modificação, podendo, portanto, expressá-lo na motivação.”5
As exigências previstas nos números 3 e 4 do art.º 412.º não se revestem de natureza meramente secundária ou formal: ao invés, relacionam-se com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e só a sua estrita observância permitirá ao tribunal de recurso conhecer a vontade do recorrente e pronunciar-se sobre um objeto escolhido, não por si próprio, mas por quem não se conforma com uma decisão.
Complementarmente se dirá que a ratio das aludidas exigências repousa na circunstância de o recurso sobre a matéria de facto não ter como escopo “a realização, pelo tribunal ad quem, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros clamorosos (evidentes e óbvios) na apreciação/aquisição da prova produzida em primeira instância”6, como sucede quando “o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário”7, por exemplo, “se o tribunal a quo tiver dado como provado que A bateu em B com base no depoimento da testemunha Z, mas se da transcrição do depoimento de tal testemunha não constar que ela afirmou esse facto (…) [ou] se, apesar de afirmar que A bateu em B, souber de tal facto apenas por o ter ouvido a terceiros”8.
Por outro lado, é de sublinhar que, “se, perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova”.9
A razão de ser de tais exigências decorre da circunstância de o recurso sobre a matéria de facto não visar “a realização, pelo tribunal ad quem, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros clamorosos (evidentes e óbvios) na apreciação/aquisição da prova produzida em primeira instância”10.
Em primeiro lugar, importa sublinhar que o recorrente falha, desde logo, a indicação precisa e rigorosa dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, pois a alusão (e desnecessária reprodução) ao conjunto dos factos provados não preenche tal requisito, uma vez que de tal factualidade consta matéria indiscutida e indiscutível, o que, desde logo, faria naufragar a pretensão do recorrente.
Por outro lado, mesmo que tal omissão decisiva não se verificasse, ainda temos a considerar que a sobrevalorização do depoimento do arguido ora recorrente (“resultou das declarações prestadas pelo arguido que os factos descritos na acusação [desnecessário se torna sublinhar que, para além da imprecisão resultante da referência a todos os factos acusados, o que interessa à decisão do autos são os factos dados como provados no acórdão recorrido e, nesta sede, especificamente impugnados] não correspondiam à verdade”) sem que se percebam os motivos concretos da definitividade de tal asserção. De qualquer forma, retira-se que a motivação (assumida) pelo recorrente para a deslocação em grupo ao local dos factos seria proteger um membro do “grupo musical” que estaria a ser agredido (“juntado nele”!) por 3 indivíduos na estação.
Por seu turno, os decisivos depoimentos das testemunhas HH, FF e DD são reproduzidos de forma parcial, sublinhando apenas as partes que poderão interessar à defesa.
Porém, ouvidos tais depoimentos, mostra-se à saciedade o acerto da decisão recorrida quanto à matéria de facto.
Assim:
Testemunha HH – “Tava ao pé da estação com os meus colegas na conversa e a ouvir música [com a coluna do FF] e de repente apareceram os sujeitos, vinham todos juntos (quinze ou mais) e agrediram-nos / … / Eles gritaram que tínhamos feito mal a alguém [do grupo deles] / … / Reconheci o BB e ele tava lá no grupo /…/ O DD disse que eles [os agressores] pertenciam à II. Lembro-me que tiraram a coluna do FF.”
Testemunha FF – “Távamos a fazer tempo para apanhar o comboio perto do IEFP e vimos um grupo de 15 / 20 pessoas a vir em nossa direção e então apareceram por trás [estávamos encostados a um gradeamento] e começaram-nos a bater [fiquei com ferimentos no pescoço] e eu, a minha reação foi encolher-me, quando olhei para o chão já via sangue, depois na aflição tentei sair dali – vi o rosto do AA e entretanto a minha reação foi fugir – antes de baterem não disseram nada /…/ roubaram-me uma coluna /…/ fiz um reconhecimento na polícia /…/ agarraram toda a gente [das vítimas] na cara antes de começarem a bater.”
DD – “Do nada surgiu um grupo de pessoas [todos juntos] e começaram a atrofiar e então vi tudo à porrada e vi o GG [vítima GG] a sangrar / começaram a vir para cima da gente todos.”
Do exposto flui com especial clareza que o ora recorrente chegou junto às vítimas integrado num grupo (da II) e que vários elementos de tal grupo as agrediram de imediato (após verificarem as faces das vítimas), sem qualquer interação prévia, o que significa, de acordo com a regras de experiência, que a motivação grupal era precisamente a agressão (e, oportunisticamente, a subtração da coluna de som que as vítimas ouviam). Assim, deve articular-se esta evidente ação grupal com o alegado pelo próprio recorrente, ou seja, havia sido, de forma evidente, formulada previamente uma vontade de reagir a uma alegada agressão de um dos elementos do grupo (II), o que redundou nas agressões dadas como provadas e na subtração também provada.
Em síntese, a pretensão inerente a esta questão é também notoriamente improcedente, mantendo-se intocada a matéria de facto dada como provada.
3.ª – Das formas do crime.
Segundo o recorrente, não se conseguiu apurar quem foram os autores das agressões ou que tenha existido uma resolução criminosa comum: Como dissemos supra, a atuação concertada denota necessariamente um comum propósito, previamente definido, com adesão implícita mas necessária de todos e cada um dos elementos do grupo às ações que viessem (e vieram) a ser desenvolvidas, independentemente de quem concretamente praticou cada uma de tais ações. A este propósito, cumpre referir que, no “caso de coatoria aditiva, em que os agentes realizam conjuntamente o facto, praticando atos de execução, mas não se apura qual dos agentes praticou o facto que determinou o resultado lesivo, o facto é imputável a todos a título consumado e doloso.”11 Aqui os atos de execução (intervenção no facto, como refere o recorrente na conclusão xxxviii) do recorrente são a deslocação (integrado no grupo) ao local onde as vítimas se encontravam e a junção grupal que possibilitou o ataque coordenado àquelas, independentemente de quem praticou cada uma das agressões.
Em suma, estão preenchidos os requisitos da coautoria quanto aos elementos típicos dos crimes imputados.
4.ª – In dubio pro reo.
Invoca o recorrente o princípio da presunção de inocência e o in dubio pro reo.
Nos termos do art.º 32.º, n.º 2 da CRP, todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. O princípio da presunção de inocência cristalizado neste comando constitucional “surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.”12
A fundamentação constante do acórdão recorrido relativamente ao núcleo essencial dos factos provados objeto de impugnação foi exposta supra.
Entendemos, como detalhadamente foi exposto, que o tribunal a quo descreveu com rigor o iter que seguiu para chegar à convicção de prova sobre os factos, explicitando de forma fundada e consistente as opções de prova tomadas. Assim, concluímos que o mencionado iter traduz um correto entendimento do princípio da livre apreciação da prova, nos termos recortados pelo art.º 127.º do CPP.
Do exposto flui que na decisão sob censura o tribunal a quo não evidencia quaisquer dúvidas relativamente à prova dos factos.
A este propósito, importa recordar que “a dúvida relevante nesta sede é a do tribunal e não a do recorrente”13.
Ou, de forma mais impressiva: “De todos os modos, o princípio in dubio pro reo não é lesado quando, segundo opinião do condenado, o juiz devia ter duvidado, mas tão-só quando o juiz condenou apesar da existência real de uma dúvida”14
É, assim, também esta pretensão totalmente infundamentada.
3 - Dispositivo.
Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9/Tabela III do Regulamento das Custas Processuais).
(Processado em computador e revisto pelo relator)
Edgar Valente (relator)
Carla Francisco (1.ª adjunta)
Mafalda Sequinho dos Santos (2.ª adjunta)
..............................................................................................................
1 Diploma a que pertencerão todas as referências normativas ulteriores sem indicação diversa.
2 Recursos Penais, 9.ª edição, Rei dos Livros, Lisboa, 2020, página 81.
3 5.ª edição, UCP Editora, Volume II, 2023, páginas 677/678.
4 Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 9.ª edição, 2020, página 109.
5 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/2004, de 10 de Março de 2004 – Diário da República, II Série, de 17 de Abril de 2004, referindo-se a uma versão do art.º 412.º, n.º 3 e nº 4 do Código de Processo Penal que era menos exigente do que a atual relativamente aos ónus dos recorrentes.
6 Acórdão deste TRE de 19.05.2015, proferido no processo 441/10.5TABJA.E2, disponível em www.dgsi.pt, como todos os demais mencionados sem indicação diversa.
7 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.05.2017, proferido no processo 324/14.0SGPRT.P1.
8 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04.02.2004, proferido no processo 0315956. 9 Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 15.03.2011 proferido no processo 212/04.8TACTX.E1.
10 Acórdão deste TRE de 19.05.2015, proferido no processo 441/10.5TABJA.E2, disponível em www.dgsi.pt, como todos os demais mencionados sem indicação diversa.
11 Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, 2021, página 218.
12 J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Volume I, 2007, página 519.
13 Acórdão do STJ de 27.11.2019 proferido no processo 232/16.0JAGRD.C1.S1.2 (Relator Vinício Ribeiro).
14 Claus Roxin e Bernd Schünemann, Derecho Procesal Penal (tradução da 29.ª edição alemã de 2017), Ediciones Didot, Buenos Aires, 2019, página 573 (tradução nossa).