Não preenche o requisito da fundada expetativa do comportamento de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, o recluso condenado em três processos, por crimes graves, uns praticados em meio prisional, e que teve um percurso prisional marcado por muitos episódios de incumprimento de regras e punições disciplinares, embora estabilizado à data da decisão, pois isso revela características de personalidade de vincada desconformidade entre os comportamentos e as normas penais e impreparação para o acatamento de regras e adoção de um modo de vida normativo.
Não está igualmente preenchido o requisito da compatibilidade da saída com a defesa da ordem e da paz social, nas situações em que foram praticados crimes particularmente graves, que geram na sociedade muita intranquilidade e fortes sentimentos de repulsa e em que o local onde seria passado o período de licença é uma localidade muito pequena, em que a condição do recluso é do domínio público.
Não está, finalmente, preenchido o requisito da fundada expetativa de o recluso não se subtrair à execução da pena, se o mesmo tiver a mulher e filhos a viver em Espanha, dado a liberdade de circulação e a existência de meios de apoio e locais de refúgio nesse país criar o risco de não regressar voluntariamente e dificultar ao máximo a sua localização.
1.1. Decisão recorrida
Sentença proferida em 2jun2025, na qual foi se recusou a concessão de licença de saída jurisdicional ao recluso AA.
1.2. Recurso, resposta e parecer
1.2.1. O recluso recorreu da sentença, pedindo a sua revogação e substituição por outra que lhe conceda a licença de saída jurisdicional, alegando, em resumo, o seguinte:
- O recluso encontra-se a cumprir penas sucessivas, no total de 23 anos e 1 mês e está privado da liberdade desde o dia 26jan2011, pelo que atingiu 1/2 da pena em 23mai2022 e atingirá os 2/3 em 28mar2026, os 5/6 em 2fev2030 e o termo em 8dez2033.
- Quando apresentou o pedido de licença de saída jurisdicional já havia cumprido mais de metade da soma das penas em execução, mostrando-se assim verificado o pressuposto estabelecido na alínea a) do nº 2 do artigo 79º do CEPMPL.
- Por outro lado, encontra-se a executar a pena em regime aberto, inexiste qualquer processo pendente e verifica-se a inexistência de evasão, ausência ilegítima ou revogação da liberdade condicional nos 12 meses que antecederem o pedido, mostrando-se assim verificados, também, todos os requisitos do nº 2 do mesmo artigo 79º.
- Ao nível pessoal, o recluso encontra-se perfeitamente inserido na comunidade prisional, trabalha, não detém qualquer incidência disciplinar nos últimos anos, interiorizou o desvalor das condutas que o conduziram à situação de reclusão, apresenta-se crítico relativamente ao seu comportamento passado e demonstra arrependimento.
- O pedido de concessão de licença de saída jurisdicional mereceu o voto favorável do conselho técnico, por unanimidade.
- A rejeição da licença jurisdicional enferma de ilegalidade por violação do preceituado nos artigos 78º e 79º do CEPMPL.
1.2.2. O Ministério Público respondeu ao recurso, defendendo que o mesmo deve improceder, em suma, pelos seguintes motivos:
– O recluso cumpre um somatório de penas de 23 anos e 1 mês de prisão pela prática dos seguintes crimes: roubo qualificado agravado pelo resultado morte, posse ilegal de arma, tráfico de estupefacientes agravado (praticado em meio prisional) e coação.
– A decisão judicial denegatória da licença de saída jurisdicional baseou-se no facto do condenado não apresentar adequada interiorização crítica das suas condutas criminosas e suas consequências.
– Atentas as circunstâncias dos ilícitos criminais praticados e a deficitária interiorização crítica manifestada pelo recorrente, tem de concluir-se por uma dúvida séria quanto à expectativa de que este se comporte de modo socialmente responsável e normativo durante o gozo da licença, sendo também a sua concessão incompatível com a defesa da ordem jurídica.
– Pelo que não se encontra preenchida a previsão normativa do artigo 78º nº 1 als. a) e b) do CEPMPL.
– A decisão recorrida assenta num prognóstico fundado numa adequada consideração dos factos ilícitos e seu circunstancialismo e numa correta valoração do seu significado à luz das regras da experiência comum, tudo perspetivado no âmbito do princípio da livre apreciação da prova.
1.2.3. Na Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, no essencial por entender que a ponderação das medidas de flexibilização da pena exigirem uma sólida interiorização dos crimes cometidos de molde a se poder fundar a necessária expetativa de que o recluso se comportará de modo socialmente responsável sem cometer crimes.
2. Questões a decidir
A questão prévia da recorribilidade da decisão, colocada no recurso, foi resolvida no anterior acórdão.
Importa, pois, apenas, verificar se procedem as razões do recurso para se revogar a decisão recorrida e se conceder ao recorrente a licença de saída jurisdicional.
3. Fundamentação
3.1. Factos provados
(transcrição da sentença)
1º Por decisão proferida no Proc. n.º 1721/09.8JAPRT da Secção Criminal (Juiz …) da Instância Central de …, o recluso foi condenado, pela prática de um crime de roubo qualificado agravado pelo resultado morte, na pena de 14 (catorze) anos de prisão - cumpriu metade desta pena entre 26/1/2011 e 26/1/2018;
2º Entre 26/1/2018 e 8/7/2019 cumpriu 1 ano, 5 meses e 12 dias de prisão, pela prática dos crimes de posse ilegal de arma e de cocção (Proc. n.º 42/17.6YRCBR da Secção Criminal (Juiz ..) da Instância Local de …, de revisão e execução de sentença estrangeira, proferida no Proc. Abreviado 529/2012 do Tribunal Penal n.º … de …, …);
3º Por decisão proferida no Proc. 48/17.6JACBR da Secção Criminal (Juiz …) da Instância Central de …, e pela prática dos crimes de tráfico de estupefacientes agravado e de coação cometidos em meio prisional, foi condenado na pena de 7 anos e 5 meses de prisão - pena que cumpre desde 8/7/2019, com termo calculado para 8/12/2026;
4º O recluso AA cumpre, assim, uma soma de 22 anos, 10 meses e 12 dias de prisão, sendo que o meio da soma das penas em execução ocorreu em 23/5/2022, prevendo-se os 2/3 dessa soma para 28/3/2026, os 5/6 para 2/2/2030 e o termo para 8/12/2033.
5º Não regista outras condenações;
6º O recluso regista 10 punições disciplinares (das quais seis por posse de objeto proibido e duas por conduta relacionada com posse de produto estupefaciente), a última por factos de janeiro de 2018, desde então tendo mantido um comportamento isento de reparos disciplinares;
7º Trabalha ininterruptamente como faxina desde 24/12/2020, antes tendo desenvolvido atividade laboral, mas de forma irregular;
8º Ainda não usufruiu de licenças de saída jurisdicional, cumprindo a pena em regime comum;
9º Em liberdade pretende viver com a companheira e um filho menor, em …, …. Em Portugal contará com o apoio dos irmãos, havendo disponibilidade de uma irmã para o acolher, e a possibilidade de trabalhar na construção civil com o cunhado;
10º Aquando da apreciação de anterior pedido de licença de saída jurisdicional (em fevereiro de 2024) o recluso foi ouvido, designadamente sobre o seu comportamento criminoso, que assumiu, ainda assim tendo-se considerado ser insuficiente o raciocínio crítico que então realizava;
11º De novo ouvido no dia de hoje para efeitos de liberdade condicional, resulta das suas declarações, junto com as antes prestadas na mesma sede, que se afirma arrependido do que fez, dizendo que não se deve tirar a vida a ninguém e que, mesmo que nada tivesse acontecido como aconteceu, não se deve entrar nas casas das pessoas, assustá-las e prejudicá-las. Afirma a gravidade do crime tráfico de estupefacientes porque é o Estado quem paga a reabilitação dos consumidores, as drogas prejudicam fisicamente os consumidores, incentivando-os a roubar e a fazer coisas que não devem, e porque o tráfico proporciona enriquecimento rápido, que leva a branqueamentos (por exemplo, aluga-se um bar e tenta-se aí branquear o dinheiro), havendo ainda fuga ao fisco.
3.2. Mérito do recurso
A licença de saída jurisdicional foi negada com os seguintes fundamentos:
«Do apurado resulta, a nosso ver, que o recluso AA, mantendo estabilizado o seu comportamento prisional ao nível da disciplina (que, no entanto, não foi linear até 2018) e do trabalho, continua ainda a não apresentar a necessária consciência crítica face àquela que foi a gravidade do seu comportamento criminoso e prejuízos provocados, carecendo de maior evolução, sobretudo quanto ao crime de tráfico de estupefacientes (que cometeu já em meio prisional, onde também praticou algumas infrações relacionadas com a posse de produto estupefaciente). Essa deficiente interiorização crítica do desvalor dos crimes potencia o risco de recidiva, não compatível com a concessão de uma licença.
Os 2/3 da soma das penas apenas ocorrerão em março de 2026, e o termo em 8/12/2033 (ou seja, ainda restam mais de 8 anos de pena para cumprir).
O recluso tem a sua família nuclear a residir em ….
Aspetos que nos levam a legitimamente recear quanto ao sucesso da licença requerida, com elevado risco de não regresso do recluso à prisão.
Pela gravidade e natureza dos crimes cometidos, duração e marcos das penas a cumprir, as exigências de prevenção geral sentidas no caso são ainda também elevadas, e a carecer de proteção.
Donde se retira que os fatos apurados não permitem concluir, ainda, por uma evolução no percurso do recluso de molde a que, com alguma segurança, se possa prever que o mesmo se comporte de modo socialmente responsável em meio livre, sendo também necessário continuar a acautelar a defesa da ordem e da paz social e, ainda, o risco de insucesso da medida face a um não retorno do recluso, no seu termo.»
A licença de saída jurisdicional visa, de acordo com o disposto no artigo 76º nº 2 do CEPMPL, a manutenção e promoção dos laços familiares e sociais e a preparação para a vida em liberdade.
Ela pode ser concedida verificados que se encontrem os pressupostos formais previstos no artigo 79º nºs 1, 2 e 3 e os requisitos materiais do artigo 78º nºs 1 e 2, ambos do CEPMPL.
Quanto à verificação dos pressupostos formais, ela resulta dos factos provados e é incontestável.
É na verificação dos requisitos materiais que reside a divergência objeto do presente recurso.
Em primeiro lugar, importa assinalar que, ao contrário do que se alega no recurso – talvez por lapso – o recorrente não se encontra a cumprir a pena em regime aberto, mas sim em regime comum. De todo o modo isso é irrelevante, na medida em que a licença de saída jurisdicional pode ser concedida em ambas as situações.
Vejamos então o caso em detalhe.
No que respeita à fundada expetativa de que o recorrente se comportará de modo socialmente responsável, sem cometer crimes (artigo 78º nº 1 al. a)), temos que foi condenado em três processos, por crimes de roubo qualificado agravado pela morte da vítima, posse ilegal de arma e coação, tráfico de produtos estupefacientes agravado e coação – estes dois últimos praticados em meio prisional. Trata-se, portanto, de alguém com características de personalidade em que a desconformidade entre os comportamentos e as normas penais é mais vincada. A prática de vários crimes em ocasiões distintas e sobretudo a prática de crimes graves em ambiente prisional dão suporte a essa conclusão. Alguém que cumpre penas de prisão elevadas e pratica crimes no estabelecimento prisional mostra que não assumiu criticamente o significado das condenações e que está ainda longe dos esperados efeitos ressocializadores da pena.
Por outro lado, não pode ignorar-se que até 2018 o recorrente teve um percurso prisional marcado por muitos episódios de incumprimento de regras e punições disciplinares. É certo que desde esse ano o seu comportamento se estabilizou, com prestação de atividade laboral e ausência de infrações disciplinares. Porém, também aqui se encontram os mesmos sinais de uma personalidade impreparada para acatar regras e adotar um modo de vida normativo. Se só a mudança de estabelecimento prisional fez cessar os episódios de indisciplina (como resulta do relatório da DGRSP de 14abr2023), isso mostra que em contextos de adversidade o recorrente tem uma personalidade problemática e apresenta riscos de comportamentos anti sociais.
No que respeita à compatibilidade da saída com a defesa da ordem e da paz social (artigo 78º nº 1 al, b)), há a considerar a elevada gravidade dos crimes cometidos pelo recorrente. São crimes que geram na sociedade muita intranquilidade e fortes sentimentos de repulsa. O local onde o recorrente pediu para passar o período de licença, junto de familiares (…, …), é uma localidade muito pequena, em que toda a gente se conhece e em que a situação do recorrente é com toda a probabilidade do domínio público. É muito difícil compatibilizar a circulação do recorrente em liberdade num meio tão pequeno, sabendo as pessoas os crimes que cometeu e a pena que cumpre, numa fase ainda tão distante do termo da pena, com a preservação da confiança social na validade do sistema penal.
No que respeita, por fim, à fundada expetativa de que o recorrente não se subtrairá à execução da pena (artigo 78º nº 1 al. c)), é importante assinalar que a sua companheira e filhos têm residência em …. O facto de ele ter indicado a casa da irmã, em …, como o local onde pretende passar a licença, não o impede de ter vontade de visitar a mulher e os filhos, como disse ser sua intenção no requerimento de licença de saída jurisdicional. Com a liberdade de circulação entre os dois países e a existência de meios de apoio e locais de refúgio em …, não está minimamente afastado o risco de não regressar voluntariamente e dificultar ao máximo a sua localização.
É claro que deve ser valorizado que o recorrente ultimamente se inseriu com mais êxito na comunidade prisional, trabalhando e abstendo-se de praticar infrações disciplinares. E também o que declarou ao tribunal, no sentido de ter interiorizado o desvalor dos crimes que praticou. Simplesmente, isso não é suficiente para afastar os riscos que acabámos de assinalar.
Acresce que a preparação para a vida em liberdade não necessita de ser iniciada uma distância temporal tão elevada do fim da pena. A negação da licença de saída jurisdicional nesta fase não compromete o atingimento daquele objetivo, pois o termo da pena ainda está muito distante. Ainda haverá tempo para o recorrente experimentar períodos de adaptação à liberdade, num momento em que os riscos acima assinalados já não se façam sentir com a mesma intensidade.
Em face do exposto, improcede o recurso.
4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em negar provimento ao recurso e em confirmar a sentença recorrida.
Fixa-se em 3 UC a TJ devida pelo recurso.
Évora, 30set2025
Manuel Soares
Carla Oliveira
Carla Francisco