I. A exigência de fundamentação das decisões judiciais decorre do disposto no artigo 205.º da Lei Fundamental, onde se consagra o princípio de que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Tal princípio, em processo criminal, integra as garantias fundamentais de defesa do arguido, nos termos previstos no artigo 32.º, § 1.º da Constituição.
II. Mas a invalidade dos despachos judiciais por alegada falta de fundamentação, não se rege pelas normas reguladoras das sentenças, mas antes pelas que regulamentam as consequências da inobservância das prescrições legais estabelecidas para a prática de atos processuais (artigos 118.º a 123.º, do citado compêndio legal).
III. A par do direito à liberdade a lei fundamental também garante o princípio da presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, § 2.º e 27.º, § 1.º), sem prejuízo de admitir (de prever a existência de) as medidas de coação, as quais constituem, necessariamente, uma restrição à liberdade pessoal de quem a elas é sujeito. Gizando justamente satisfazer as exigências cautelares de cariz exclusivamente processual (id est de garantia do bom andamento do processo e do efeito útil da decisão final).
IV. Ao decretar a repristinação da situação coativa anterior ao despacho revogado em recurso, com isso o Tribunal da Relação está a repor a situação existente à data da prolação do despacho judicial revogado.
V. Daí que no prazo assinalado pela lei para reexame dos pressupostos da prisão preventiva, o juiz de instrução criminal que a ele proceda não tenha (necessariamente) de ouvir o arguido, como se este acabara de ser detido e lhe tivesse de ser garantido o direito ao juiz. O regime aplicável nesse caso é o previsto para o reexame dos pressupostos da prisão preventiva (artigo 213.º CPP).
VI. A avaliação do perigo de fuga não podendo bastar-se com a mera possibilidade de ela vir a ocorrer. Mas também não é necessário que tenha de estar em vista uma fuga já planeada ou iminente. Aferindo-se esse perigo com base nas circunstâncias concretas do caso (tal como constam dos autos) e das condições relativas ao arguido, da sua vida (idade, situação profissional, económica, familiar, social, etc.), avaliando esse conjunto circunstancial segundo as regras da experiência comum.
VI. Estando o arguido pronunciado pela prática de um crime de homicídio qualificado (e agravado nos termos do artigo 86.º, § 3.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro), sujeito pois a uma pena que poderá ir até aos 25 anos de prisão, sabendo que no estrangeiro poderá lograr poiso e emprego bem remunerado, sem risco de repatriamento, o perigo de se eximir às suas responsabilidades perante a justiça e a comunidade torna-se premente.
a. No processo que corre termos no Tribunal Judicial da comarca de …, no qual é arguido AA, com os sinais dos autos, o mesmo encontra-se pronunciado pela autoria de um crime de homicídio qualificado, previsto nos artigos 131.º, e 132.º, § 1.º e 2.º, al. d) do Código Penal (CP), agravado nos termos do artigo 86.º, § 3.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.
No dia 18/6/2025 foi proferido nos autos despacho judicial, no qual se procedeu ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva a que o arguido se encontra sujeito, o qual tem o seguinte teor:
«(…)
A 03/06/2025, o arguido apresentou requerimento com a refer.ª citius …, cujo teor reiterou no requerimento apresentado a 11/06/2025, com a refer.ª citius …, nos quais, em suma, requerer a audição pessoal do arguido antes do reexame dos pressupostos da medida de coação e subsidiariamente a revogação da medida de coação de prisão preventiva.
Cumprido o contraditório, o Ministério Público veio pugnar pela audição pessoal do arguido, não obstante, tenha aduzido que os pressupostos quer de facto, quer de direito que conduziram à aplicação da medida de coação de prisão preventiva se encontram inalterados.
Cumpre apreciar e decidir.
Os factos aduzidos pelo arguido não carecem de esclarecimento, pelo que a audição presencial daquele, não se afigura necessária.
Vejamos.
O Venerando Tribunal da Relação já tinha conhecimento dos mesmos factos aquando da prolação dos doutos Acórdãos datados de 11/03/2025 e 09/04/2025, ou seja, sabia que o arguido esteve em liberdade, desde a prolação da decisão de não pronúncia até ao cumprimento dos mandados em 20/05/2025, tendo igualmente conhecimento de que o arguido não encetou qualquer fuga. E ainda assim decidiu o Venerando Tribunal (re)aplicar/manter a medida de coação de prisão preventiva. Pelo que, não se trata de facto novo. Pois que, o único facto, desde o interrogatório judicial, que poderia motivar a alteração da medida de coação aplicada, era a prolação de despacho de não pronúncia, mas esse foi objeto de revogação por parte do Venerando Tribunal.
Ademais, não se verifica qualquer alteração dos pressupostos de facto e/ou de direito, não se aplicando nesta sede o art. 212.º do Código de Processo Penal.
Acresce que, não está em causa a aplicação ab initio de medidas de coação, isto é, a medida de coação de prisão preventiva está em execução (por decisão do Venerando Tribunal da Relação) e por esse motivo tem aplicação o art. 213.º, n.º 3 do Código de Processo Penal e não o art. 212.º do Código de Processo Penal, nem o art. 194.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, indeferindo-se o ora requerido pelo arguido.
Nos termos do artigo 213.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, “o juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, decidindo se elas são de manter ou devem ser substituídas ou revogadas: a) no prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame”.
De igual modo, prevê o artigo 212.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal que “quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coação, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução”, substituição essa que pode ter lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido.
Nesta senda, as medidas de coação não são imutáveis, sendo sempre possível a sua alteração desde que ocorram circunstâncias supervenientes que alterem os fundamentos que nortearam a anterior decisão.
Deste modo, o reexame obrigatório, tal como a apreciação do requerimento de substituição das medidas de coação, compele o juiz de instrução criminal a verificar a atualidade pressupostos que determinaram a decisão e, ainda, a necessidade, adequação e justa medida da decisão restritiva aplicada ao arguido.
Caso não ocorra nenhuma alteração das circunstâncias de facto e de direito que justificaram a primeira tomada de decisão, inexiste qualquer fundamento legal para a alteração da medida de coação aplicada ao arguido.
No caso sub judice, inexistem quaisquer factos supervenientes que permitam derrubar ou enfraquecer os fundamentos que nortearam a aplicação das medidas vigentes nos autos (prisão preventiva).
Neste seguimento, tendo sido deduzida acusação, requerida a abertura de instrução, prolatada a decisão instrutória, e prolatados os doutos Acórdãos da Relação de Évora, impõe-se, concluir que as diligências entretanto desenvolvidas não infirmaram, de modo algum, os fortes indícios identificados em sede de decisão de aplicação e manutenção das medida de coação nem tampouco o simples decurso do tempo enfraqueceu os perigos identificados e fundamentados, permanecendo o arguido, por ora, fortemente indiciado pela prática do crime anteriormente identificado.
Na verdade, das declarações prestadas pelo arguido no decurso da fase de instrução não modificaram radicalmente os elementos probatórios constantes dos autos, sendo estas manifestamente próximas daquelas que houvera prestado junto de magistrada do Ministério Público aquando do início do inquérito, não modificando, por isso, os termos de apreciação dos perigos anteditos e, ainda, a necessidade da medida de coação em curso em face dos perigos identificados, inviabilizando, designadamente, a manutenção do estatuto coativo através da obrigação de permanência na habitação atenta a previsível ineficácia dos meios de vigilância, atentos os recursos ao dispor do arguido e a sua capacidade de se movimentar.
De igual modo, as declarações prestadas pelo arguido na fase de instrução, por si e sem a conjugação dos demais elementos dos autos, não demonstraram, por si, o condão de esclarecer um determinado aspeto factual de modo inovatório que, eventualmente, colocasse em crise as decisões judiciais que antecederam a presente.
O mesmo se diga quanto ao decurso do tempo. O simples decurso do tempo não logrou enfraquecer os perigos identificados e fundamentados, permanecendo o arguido fortemente indiciado pela prática do crime identificado.
Assim, apreciada a situação em concreto, na fase em que se encontram os autos, continuam a ser as medidas de coação vigentes as únicas que permite, de modo adequado, suficiente e não excessivo, eliminar os perigos de fuga (atenta a profissão exercida e à facilidade de se deslocar por vários pontos do planeta), de continuação da atividade criminosa em função da personalidade do arguido e dos factos praticados e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, resultante da conjugação da profissão exercida e da indiciação pela prática de atividades homicidas, em face dos indícios existentes nos autos quanto à referida factualidade.
Não se mostram ainda excedidos os prazos máximos de duração das medidas de coação, nos termos previstos nos artigos 215.º, n.ºs 1, al. c) e 2 do Código de Processo Penal.
Assim, conclui este Tribunal que permanecem vigentes quer os pressupostos de facto, quer de direito que não só justificam, como exigem a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, nos termos dos artigos 191.º a 193.º, 196.º e 198.º, 201.º, n.º 1 e, 202.º, n.º 1, al. a) e b) e 204.º, al. a) e c) e 213.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal.
Face ao exposto, decide-se que o arguido AA continue a aguardar os ulteriores termos do processo privado da liberdade, para além da medida de coação de termo de identidade e residência, sujeito à medida de coação de prisão preventiva.
(…)»
b. Inconformado com o assim decidido, apresenta-se o arguido a recorrer dessa decisão, impugnando a manutenção da situação coativa anteriormente determinada (repristinada por acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 11/3/2025 – em procedência de recurso do assistente BB, nesse preciso sentido), extraindo da respetiva motivação as seguintes «conclusões»1, que reproduziremos integralmente - não por tecnicamente poderem aquelas haver-se como tal, mas para tornar claro o «desalinho» - também nesta parte - do seu verdadeiro e singelo objeto (impugnação dos fundamentos do despacho judicial que manteve a medida de coação vigente - prisão preventiva):
«1. Para efeitos de enquadramento do presente recurso, importa situar o DESPACHO entre as sucessivas decisões que foram recentemente tomadas nos presentes autos.
2. Foi proferido DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA em 13.6.2024 e, por consequência, foi automaticamente extinta a medida de coação de prisão preventiva a que o Recorrente estava sujeito, em estrito cumprimento da al. b) do n.º 1 do artigo 214 do CPP.
3. Foi interposto recurso desta decisão por parte do Assistente e do Ministério Público, o qual foi objeto de decisão por meio do Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 11 de março p.p. que, em síntese, decidiu dar provimento aos recursos, parecendo igualmente determinar que o Recorrente ficaria sujeito a prisão preventiva.
4. O Recorrente arguiu a nulidade e irregularidade deste Acórdão invocando, para o que ora releva, que a decisão a tomar acerca das medidas de coação caberia ao Tribunal de primeira instância e não a esse Tribunal da Relação, que se deveria limitar a conhecer acerca do mérito da decisão instrutória proferida nos autos – posição que, de resto, veio a ser a adotada por esse Tribunal da Relação, que no Acórdão de 9 de abril p.p. esclareceu que quanto à invocada extinção automática das medidas de coação resultante da prolação da não pronúncia, necessariamente terá este Tribunal “ad quem” de se pronunciar sobre a repristinação das medidas de coação anteriormente fixadas, sem prejuízo da decisão que vier a ser tomada pelo tribunal “a quo” sobre as mesmas e da eventual reação do Ministério Público e do Arguido”.
5. Porém, em absoluta contramão com o decidido, na nova PRONÚNCIA proferida em 16 de maio p.p. o Exmo. Juiz CC veio decidir que já se encontra “produzida a apreciação quanto ao estatuto coativo do arguido (…)”
6. Face a este contrassenso, e porque, na verdade, ainda nenhum Tribunal havia ponderado efetivamente os pressupostos de que depende a aplicação da mais severa das medidas de coação, inexistindo, na verdade, uma qualquer decisão ponderada e fundamentada a este respeito (e entre outros motivos), o Recorrente veio a arguir a nulidade e irregularidade da PRONÚNCIA.
7. Gerou-se, então, um conflito negativo de competências, na medida em que tanto o Exmo. Juiz CC, como a Exma. Juíza DD se declararam incompetentes para decidir acerca dos vícios assacados pelo Recorrente à nova decisão instrutória.
8. Mas no entretanto, foi determinado pela Exma. Juíza DD que havia que proceder ao reexame trimestral das medidas de coação até ao dia 11.6.2025 – pressupondo o Recorrente que esta data foi calculada por referência ao Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11 de março p.p., tudo indicando que a Exma. Juíza a quo entendeu, erradamente, que este Tribunal havia aplicado diretamente uma medida de coação ao Recorrente (o que, como se disse, foi já desmentido por este Tribunal e de forma ainda mais impressiva, pelo Exmo. Juiz Desembargador Presidente da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora).
9. Sem prejuízo de discordar com o raciocínio seguido pela Exma. Juíza acima referido, ao ser notificado da data agendada para a revisão do seu estatuto coativo o Recorrente veio requerer de forma fundamentada a substituição desta medida de coação e, ainda, sua audição pessoal e presencial antes de ser tomada tal decisão.
10.Foi nesta sequência que foi proferido o DESPACHO, em 18 de junho p.p. o qual indeferiu a requerida audição do Recorrente e determinou cegamente a manutenção da prisão preventiva. Afirmou então o DESPACHO que:
“O Venerando Tribunal da Relação já tinha conhecimento dos mesmos factos aquando da prolação dos doutos Acórdãos datados de 11/03/2025 e 09/04/2025, ou seja, sabia que o arguido esteve em liberdade, desde a prolação da decisão de não pronúncia até ao cumprimento dos mandados em 20/05/2025, tendo igualmente conhecimento de que o arguido não encetou qualquer fuga. E ainda assim decidiu o Venerando Tribunal (re)aplicar/manter a medida de coação de prisão preventiva. Pelo que, não se trata de facto novo. Pois que, o único facto, desde o interrogatório judicial, que poderia motivar a alteração da medida de coação aplicada, era a prolação de despacho de não pronúncia, mas esse foi objeto de revogação por parte do Venerando Tribunal.
Ademais, não se verifica qualquer alteração dos pressupostos de facto e/ou de direito, não se aplicando nesta sede o art. 212.º do Código de Processo Penal. “
11.Ora, do excerto acima transcrito resulta evidente que há duas questões absolutamente fundamentais que parecem ter sido ignoradas ou mal compreendidas pelo DESPACHO.
12.Em primeiro lugar, e como já referido, o Tribunal da Relação de Évora não aplicou uma medida de coação ao Recorrente, antes determinou que deveria ser o Tribunal de primeira instância a fazê-lo.
13.Se este facto já resultava claro do Acórdão de 9 de abril p.p., o que é certo é que a posição deste Tribunal superior foi expressa de forma absolutamente cristalina na recente Decisão Singular do Exmo. Juiz Desembargador Presidente da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora62, o qual afirmou que:
”(…) O “objeto de discussão” em causa, ainda neste momento, é a pronúncia e a medida de coação, isto é, o que foi decidido pelo Exº Juiz Dr. CC. (…)
O Exº Juiz pode até, no limite, dando razão ao arguido, alterar a decisão anteriormente tomada, “regredindo” no procedimento, quer em termos da decisão de mérito tomada (por exemplo, da decisão sobre a medida de coação aplicada ao arguido), quer em aspetos formais (por exemplo, corrigindo ou acrescentando a “decisão de pronúncia” - em termos “processuais” -). (…)
Depois, ambas as decisões (a já proferida e agora questionada pelo arguido, e a que tem de ser proferida em apreciação do requerimento do arguido) devem ser vistas de modo incindível e unitário, como que constituindo “uma só decisão”, porquanto, bem vistas as coisas, em ambas se decide da pronúncia do arguido, e, sobretudo, da aplicação da medida de coação de prisão preventiva. (…)”
14.Se dúvidas restassem, passou a ser absolutamente claro que a decisão sobre o estatuto coativo do Recorrente não foi tomada por este Tribunal da Relação, mas foi antes (ou melhor, devia ter sido) pelo Exmo. Juiz CC,
15.O qual, por sua vez, se escusou a decidir por considerar que não tinha poder decisório relativamente à medida de coação aplicada ao Recorrente – comprovando-se, assim, que ainda nenhum órgão jurisdicional decidiu de forma ponderada e fundamentada acerca do estatuto coativo do Recorrente.
16.Mas se assim é, isto é, se o Tribunal da Relação de Évora não decidiu acerca da medida de coação a aplicar ao Recorrente, então não havendo decisão não podem ter sido ponderados os ditos elementos conforme afirma erradamente o DESPACHO.
17.Em síntese: O DESPACHO labora sob um erro mister de que (1) foi tomada uma verdadeira decisão acerca da medida de coação a aplicar ao Recorrente e, sobretudo (2) que essa decisão foi tomada pelo Tribunal da Relação de Évora no Acórdão de 11 de março p.p..63
18.Em segundo lugar, o DESPACHO parece entender que a mera existência dos elementos que o Recorrente considera abalarem totalmente os pressupostos da prisão preventiva (os quais irão ser desenvolvidos mais adiante) à data em que foi proferida a suposta decisão implica que estes elementos foram, automaticamente, considerados no Acórdão. Não é verdade. Com efeito, basta analisar os Acórdãos de 11 de março e de 9 de abril p.p. para constatar que nenhuma das decisões faz sequer menção a estas circunstâncias, das quais se destaca, pela sua impressividade, os 11 meses em que o Recorrente esteve em liberdade.
19.Assim, o Recorrente entende que o DESPACHO é nulo, ou, no limite, e sem se conceder, irregular.
20.Mas ainda que assim se não entenda, isto é, saindo da qualificação formal que caiba aplicar à invalidade do DESPACHO, inexistem quaisquer indícios da verificação concreta de qualquer um dos pressupostos de que depende a aplicação da prisão preventiva, estando por demonstrar que as demais medidas de coação previstas na lei não possam satisfazer, cabalmente, as necessidades de prevenção cautelar que no pessoalíssimo caso do Recorrente se fazem sentir. E esta constatação é suficiente para que o DESPACHO seja revogado e a medida de coação substituída.
21.Desde logo, o DESPACHO não cumpre, salvo melhor opinião, o dever de fundamentação que lhe é imposto pelos artigos 97, n.º 5 e 194, n.º 6, al. d) do CPP e n.º 1 do artigo 205 da CRP.
22.Afirma o DESPACHO que “na fase em que se encontram os autos, continuam a ser as medidas de coação vigentes as únicas que permite, de modo adequado, suficiente e não excessivo, eliminar os perigos de fuga (atenta a profissão exercida e à facilidade de se deslocar por vários pontos do planeta), de continuação da atividade criminosa em função da personalidade do arguido e dos factos praticados e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, resultante da conjugação da profissão exercida e da indiciação pela prática de atividades homicidas, em face dos indícios existentes nos autos quanto à referida factualidade”.
23.Começando pelo perigo de fuga, cumpre referir que não é pelo simples facto de o Recorrente exercer a profissão de piloto comercial que, de forma automática, existe perigo de fuga, como parece ser afirmado no DESPACHO.
24.Com efeito, a conduta do Recorrente nos 11 meses em que esteve em liberdade é absolutamente esclarecedora a este respeito: apesar de ter viajado inúmeras vezes para o estrangeiro para, por exemplo, iniciar o processo de refrescamento necessário ao seu regresso à aviação comercial, a verdade é que não resulta dos autos sombra de vestígio de que o Recorrente haja planeado, preparado ou de alguma forma tentado viabilizar uma fuga.
25.Importa salientar que não basta dizer que algo é de determinada forma. É necessário indicar os motivos que levam a essa conclusão. Só assim se cumpre com o dever de fundamentação que impende sob as decisões judiciais e, sobretudo, com o disposto no n.º 6 do artigo 194 relativamente às decisões acerca das medidas de coação.
26.Impunha-se assim, pelo menos, ao Tribunal a quo que explicasse em que medida é que o facto de o Recorrente ter estado 11 meses em liberdade, dois dos quais sabendo que poderiam ser emitidos mandados de detenção a qualquer momento, não destrói o pressuposto do perigo de fuga a não ser em termos absolutamente teóricos, especialmente quando a experiência nestes autos tem sido outra: o Recorrente o sempre compareceu, jamais se colocou em fuga, mesmo quando teve conhecimento que o Tribunal da Relação de Évora decidiu que deveria ser pronunciado.
27.O Recorrente manteve uma conduta impecável, que desmente a menção sucessiva a um ficcionado perigo de fuga que se vem repetindo ao longo dos autos, baseada no uso de formas estereotipadas que a lei processual penal e a Constituição não consentem. Como escreve impressivamente Paulo Pinto de Albuquerque: "As medidas são impostas em função da situação pessoalíssima de cada arguido ...,... sendo ...,... inadmissível ...,... um despacho que utiliza fórmulas estereotipadas ...,... e textos pré-formatados para fundamentar a decisão".64 É, também, "inadmissível uma presunção legal de perigo baseada na gravidade das imputações"65.
28.Além de que se o perigo cautelar que se pretende proteger é o perigo de fuga, então basta sujeitar o Recorrente a uma medida de coação que restrinja a sua deslocação para o estrangeiro. O que não é, de todo em todo, adequado, proporcional e necessário é sujeitar o Recorrente é mais gravosa das medidas de coação.
29. O DESPACHO afirma igualmente que existe perigo de continuação da atividade criminosa “em função da personalidade do arguido”. Uma vez mais, esta afirmação é amplamente contrariada pelos elementos que constam dos autos.
30.A este respeito, é absolutamente elucidativo o Relatório de Avaliação Psicológica do Arguido, o qual confirmou que o Recorrente não padece de qualquer problema psicológico ou psiquiátrico, transmitindo, ao invés, que o Recorrente é uma pessoa calma e sem indícios de perigosidade.
31.Acresce que mais recentemente o Recorrente foi submetido a novos exames psicológicos e psiquiátricos, tendo obtido parecer favorável de ambas as entidades para retomar a sua atividade profissional – atividade de elevada responsabilidade onde tem a seu cargo centenas de vidas a cada voo que realiza.
32.Confrontando estes factos com o teor do DESPACHO, pergunta-se: que elementos sustentam esta suposta “personalidade” do Recorrente – e mais, que personalidade é esta? Que traços a caracterizam? – e por que razão esses elementos demonstram que existe, em concreto, perigo de continuação da atividade criminosa?
33.O DESPACHO não faz qualquer menção a qualquer elemento de prova que sustente a sua posição.
34.Reitere-se: não basta mencionar a profissão do Recorrente nem fazer menção ao crime alegadamente praticado para, automaticamente, se darem por cumpridos os pressupostos de que depende a aplicação desta medida de coação, nem, muito menos, para se considerar cumprido o dever de fundamentação legalmente imposto.
35.Em terceiro lugar, importa também esclarecer que o DESPACHO não se pode escudar no facto de desde abril do presente ano não existirem novos elementos no processo que imponham decisão diversa: é que (i) se nenhum dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora aplicou ao Recorrente uma medida de coação (como o Recorrente tem vindo a afirmar e como, de resto, foi já afirmado perentoriamente por este Tribunal Superior, destacando-se, em particular, a Decisão Singular emitida pelo Exmo. Juiz Desembargador Presidente da Secção Criminal deste Tribunal), cabendo essa decisão ao Tribunal de primeira instância mas (ii) esse Tribunal considera que não tem competência para tomar uma decisão autónoma, então (iii) na verdade, no entretanto nenhuma decisão fundamentada e ponderada foi tomada a este respeito, muito embora o Recorrente se encontre privado da sua liberdade no entretanto.
36.Seguindo este raciocínio, em bom rigor nem sequer se poderia apelidar o DESPACHO de decisão de reexame trimestral da medida de coação aplicada. Todavia, o que importa ao Recorrente é que, finalmente, seja apreciado o cerne material da questão, analisando um a um e de forma fundamentada os pressupostos da medida que lhe foi aplicada, demonstrando, com base nos elementos constantes dos autos por confronto aqueles que o Recorrente tem vindo a enumerar porque é que (e em que medida) se verificam esses perigos.
37.Certamente, assim, se iria concluir que os mesmos não se encontram verificados.
38.Como se disse, o despacho que imponha uma medida de coação (seja aplicando-a ab intio, seja decidindo pela sua manutenção) deve ser fundamentado.
39.Às exigências gerais de fundamentação, decorrentes da aplicabilidade do disposto nos artigos 97 n.º 5 do CPP e 205 n.º 1 da CRP a qualquer ato decisório que não seja de mero expediente, acresce, no que toca ao despacho que revê os pressupostos legais que servem de sustentáculo a uma medida de natureza cautelar, a referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193 e 204 do CPP (artigo 194, n.º 6 al. d) do CPP).
40.Com efeito, os factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193 e 204 do CPP, são dinâmicos e, por isso, têm, forçosamente, que ser ponderados (reapreciados) cada vez que o Tribunal decida manter, substituir ou revogar as medidas coativas (artigo 212 e 213 do CPP, normativos estes invocados na decisão ora posta em crise).
41.Só cumprido este iter cognoscitivo é que o julgador poderá concluir se se verifica uma atenuação, o agravamento ou a manutenção das exigências cautelares, que determinaram a aplicação da medida (artigo 212, n.º 3 do CPP).
42.Impunha-se ao Tribunal a quo – antes de mais – a indicação expressa de qual ou quais os perigos que se pretende evitar, na medida em que tais perigos constituem, em si mesmos, os pressupostos de que depende a manutenção, revogação ou a substituição das medidas (artigos 204, 212 e 213 do CPP).
43.O próprio decurso do tempo – como fator em si mesmo importante para a ponderação em causa – desmente a afirmação de que “nada se alterou”. Ocorreram factos. É preciso analisá-los. E, depois, formular um juízo quanto à suscetibilidade ou não de abalarem os pressupostos da medida aplicada.
44.Nada disto aconteceu nos presentes autos.
45.Conforme esclarece o Tribunal Constitucional: “A fundamentação tem de aparecer estruturada em função daquilo que se decide ou da matéria questionada/decidida. Ora, tratando-se, como é o caso, de despacho que procede ao reexame dos pressupostos de anterior decisão, o dever de fundamentação reporta-se, naturalmente, às circunstâncias que possam levar à alteração dos pressupostos dessa anterior decisão que constituem o objecto de reexame”. (acórdão do Tribunal Constitucional, 258/2001, DR IIS de 2.11.2001).
46.Porém, ao arrepio dos mandamentos legais, o DESPACHO omite a apreciação dos elementos carreados para os autos, sendo que esta ponderação – a ter existido – teria indubitavelmente conduzido a decisão diversa da proferida.
47.Com efeito, impunha-se ao Tribunal a quo analisar e ponderar o Relatório da DGRSP e o Relatório de Avaliação Psicológica do Arguido e, sobretudo, atender aos 11 meses em que o Recorrente esteve em liberdade, sendo que em dois destes meses conhecia já o teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11 de março p.p. elementos que abalam (senão destroem) os pressupostos de que depende a manutenção da prisão preventiva.
48.Não vale como fundamentação, nos termos e para os efeitos dos artigos 97, n.º 5, 212 e 213 do CPP a afirmação de que não existem novos elementos que justifiquem alterar o que se decidiu num outro determinado momento.
49.Até porque, como se tem vindo a salientar, esses elementos também não foram tidos em consideração em momento anterior, jamais se podendo considerar que essa falha preclude agora, em absoluto, a possibilidade de estes elementos absolutamente fundamentais serem considerados pelo Tribunal ao proceder à decisão de reexame.
50.Assim, face a esta manifesta falta de fundamentação, é forçoso concluir pela NULIDADE DO DESPACHO, nos termos do n.º 5 do artigo 97 do CPP e, sobretudo, do n.º 6 do artigo 194 do CPP.
51.A desproporção entre, por um lado, a espécie e a extensão da medida, prisão preventiva, e, por outro, as finalidades de natureza cautelar que o caso particular do Recorrente requer.
52.O DESPACHO ignorou elementos essenciais que, a serem ponderados, determinariam a imediata libertação do Recorrente e a sua sujeição a uma medida de coação não privativa de liberdade.
53.O DESPACHO ignorou os mais de onze meses em que o Recorrente esteve em liberdade, dois dos quais já conhecedor do teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11 de março p.p. e bem sabendo que poderia ser detido a qualquer momento, o que demonstra que não existe qualquer perigo cautelar atual, pressuposto inegável do artigo 204 do CPP.
54.O Recorrente nunca se colocou em fuga, não praticou qualquer ato criminoso, suscetível de ser considerado como de continuação da atividade criminosa, não perturbou a tranquilidade pública, tendo, até, obtido parecer favorável de todas as entidades competentes – incluindo relatórios psicológicos e psiquiátricos que atestam a sua personalidade calma e a inexistência de perigosidade – ao seu regresso à aviação comercial e inexiste, igualmente, qualquer alarme social.
55.O DESPACHO não ponderou, sequer, a aplicação ao Recorrente de uma qualquer outra medida. Se o fizesse, chegaria sempre à conclusão de que (sem conceder) seriam manifestamente suficientes apresentações periódicas nos moldes gerais e/ou a impossibilidade de o Recorrente se ausentar do território nacional.
56.Na verdade, é desnecessária e desproporcional a aplicação ao Recorrente de uma medida de coação mais gravosa do que o termo de identidade e residência, nos termos do artigo 196 do CPP.
57.Por este motivo, o DESPACHO é ilegal por violação do disposto nos artigos 18, n.º 2 da CRP e 191, n.º 1, 193, n.º 1, 2 e 3, 202, 212, n.º 1 e 3, entre outros, todos do CPP.
58.Na sequência do requerimento apresentado pelo Recorrente que pugnou pela substituição da medida de coação que lhe fora imposta e, bem assim, pela sua audição presencial e pessoal antes de se proceder ao reexame, veio o Ministério Público para se pronunciar acerca desta pretensão do Recorrente67 concordar que se impunha no presente caso a audição do Recorrente antes da tomada de decisão sobre a medida de coação, sob pena de irregularidade de tal decisão, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 194 do CPP.
59.Decidiu o DESPACHO que audição presencial daquele, não se afigura necessária porquanto, o Venerando Tribunal da Relação já tinha conhecimento dos mesmos factos aquando da prolação dos doutos Acórdãos datados de 11/03/2025 e 09/04/2025, ou seja, sabia que o arguido esteve em liberdade, desde a prolação da decisão de não pronúncia até ao cumprimento dos mandados em 20/05/2025, tendo igualmente conhecimento de que o arguido não encetou qualquer fuga. E ainda assim decidiu o Venerando Tribunal (re)aplicar/manter a medida de coação de prisão preventiva. Pelo que, não se trata de facto novo. Pois que, o único facto, desde o interrogatório judicial, que poderia motivar a alteração da medida de coação aplicada, era a prolação de despacho de não pronúncia, mas esse foi objeto de revogação por parte do Venerando Tribunal.
60.Incorreu em erro de raciocínio o Tribunal a quo na medida em que nem o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11.3.2025, nem o Acórdão de 9.4.2025 desse mesmo Tribunal impuseram ao Recorrente uma qualquer medida de coação, cabendo ao Exmo. Juiz de Instrução CC, a decisão sobre a medida de coação que deverá ser aplicada no caso concreto.
61.Como se tem vindo a referir, não se podendo deixar de reiterar atenta a extrema importância deste facto, desde que foi determinada a revogação da DECISÃO DE NÃO PRONÚNCIA pelo Tribunal da Relação de Évora em 11 de março p.p., ainda não foi tomada uma qualquer decisão fundamentada e que atenda aos novos elementos que indubitavelmente devem ser considerados nos presentes autos no que concerne ao estatuto coativo do Recorrente.
62.No presente caso, o Tribunal a quo ignorou os mais de 11 meses que o Recorrente esteve em liberdade, meses nos quais o Recorrente não fugiu, não continuou a atividade criminosa e nos quais inexistiu qualquer alarme social, bem como os elementos que constam dos autos de inegável relevância para o estatuto coativo do arguido, a saber: (i) o relatório da DGRSP de 23.10.2023, documento muito relevante no quadro da análise de aplicação do OPHVE, medida que se considerou viável em função da análise realizada no referido Relatório e (ii) o relatório relativo à avaliação psicológica efetuada ao Arguido, de 7.2.2024, que revela de forma expressa que o Recorrente é uma pessoa calma, sem qualquer patologia do foro psiquiátrico. Naturalmente, o Recorrente ainda não teve oportunidade de ser ouvido relativamente aos factos ocorridos no período em que esteve em liberdade, uma vez que são posteriores ao debate instrutório ocorrido a 23.5.202468, pelo que se impunha a sua audição pessoal antes do reexame dos pressupostos da prisão preventiva, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 213 do CPP.
63.Como bem refere o MARIA DO CARMO SILVA DIAS69: “No entanto, se o processo ainda está na fase de inquérito, o reexame é feito com o impulso do MP, quando ordena a remessa dos autos ao JIC para esse efeito: ora, se o MP ao remeter ao inquérito se tiver pronunciado sobre essa matéria (no sentido de manter, substituir ou revogar a prisão preventiva …,…) como concluir, até em nome do princípio da “igualdade de armas”, e, visto ainda o disposto no art. 61.º/1/b), que então não há necessidade de ouvir o arguido, que afinal, é a pessoa diretamente afetada pela prisão preventiva …,…?”
64.Também a posição do Tribunal Constitucional é clara: caso exista “matéria diferenciada”, “novos elementos” (de prova ou não) ou “novos argumentos (incluindo-se os de ordem jurídica)”, é exigida a audição do arguido por força dos princípios do asseguramento da plenitude das garantias de defesa e do contraditório. 70
65.O artigo 213, n.º 3 do CPP quando interpretado no sentido de que não é obrigatório o contraditório do arguido antes do reexame das medidas de coação quando existem no processo novos elementos, factos e/ou argumentos com relevância para esta matéria, relativamente aos quais o arguido nunca se pronunciou, é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 32, n.º 1 e 5 da CRP.
66.O DESPACHO em crise omite a consideração dos novos elementos elencados e o indeferimento da audição do Recorrente, fere o DESPACHO da NULIDADE prevista na al. d) do n.º 2 do artigo 120 do CPP, por violação do disposto na al. b) do n.º 1 do artigo 61 e n.º 3 do artigo 213, ou, sem conceder, determina a sua irregularidade, nos termos do artigo n.º 2 do 118 do CPP.
67.Pelo exposto há que concluir que o DESPACHO é nulo, ou, sem conceder, irregular, por violação do disposto nos artigos 97, n.º 5 e 194, n.º 6, al. d) (violação geradora de nulidade nos termos do artigo 194, n.º 6, al. d)) e por violação do disposto nos artigos 61, n.º 1, al. b) e 213, n.º 3 do CPP (violação geradora de nulidade nos termos do artigo 120, n.º 2, al. d) do CPP).
68.Os fundamentos de facto e de direito de que socorre o DESPACHO para fundamentar a aplicação da mais grave das medidas de coação são manifestamente insuficientes para sustentar tal decisão, impondo-se, por isso, a sua REVOGAÇÃO.
69.O DESPACHO é, ainda, ilegal por violação do disposto nos artigos 191, n.º 1, 193, n.º1, 2 e3, 202, 212, n.º1 e3, entre outros, todos do CPP, uma vez que inexistem quaisquer circunstâncias que justifiquem a manutenção da prisão preventiva.
70.Em jeito de síntese e como decorre da motivação e das conclusões deste recurso, com os fundamentos invocados, indicam-se, como normas jurídicas violadas, as seguintes: artigos 61/1/b) 97/5, 118/2, 120/d), 193, 194, 194/6/d), 204/1/2, 212/1/3 e 213/3, a que acresce a violação dos dispositivos constitucionais identificados.»
c. Respondendo a este recurso o Ministério Público junto do Tribunal recorrido sustentou a justeza da decisão recorrida, sintetizando a sua argumentação nos seguintes termos:
1. O arguido AAs apresentou recurso do despacho proferido a 18 de junho no qual se procedeu ao reexame dos pressupostos dos pressupostos de manutenção da prisão preventiva, insurgindo-se relativamente à manutenção da medida de coação prisão preventiva, por, conforme decorre da leitura de tal articulado, não concordar com os argumentos aduzidos no despacho judicial.
2. É este o objeto do recurso porquanto, as questões que são suscitadas paralelamente, nomeadamente as alegadas nulidades, estão intrinsecamente com a aplicação da referida medida e raciocínio subjacente à mesma.
3. No que concerne ao I. Ponto da motivação de do recurso, apresentada sob a denominação “Enquadramento”, sufragamos que tais questões já se encontram decididas, sendo intempestiva e ilegal, nesta data, qualquer apreciação.
4. No que respeita à censura feita relativamente à fundamentação do despacho recorrido discordamos do alegado pelo recorrente pois o despacho colocado explicita de forma clara a razão pela qual mantém inalterada a medida de coação. Aliás, o despacho é minucioso ao ponto de clarificar que após a decisão instrutória e os Acórdãos Superiores proferidos, não houve qualquer enfraquecimento dos perigos anteriormente identificados.
5. Perpassando todo o despacho recorrido não se vislumbra falta de fundamentação.
6. Deste modo, inevitavelmente deverá falecer o alegado pelo recorrente quanto à aludida falta de fundamentação, não tendo sido violado o dever que incumbe à Mma. Juiz de Instrução Criminal a quo, nos termos do art. 97.º, n.º 5, do CPP, concretização da norma constitucional inscrita no art. 205.º, n.º 1, da CRP.
7. Da manutenção da medida de coação aplicada
O direito á liberdade é fundamental, tal como, o direito à vida por cuja violação o arguido se encontra fortemente indiciado. O arguido aqui recorrente foi pronunciado como autor material de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º, e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do Código Penal, agravado pelo artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.
8. Os factos indiciados são graves e existe uma base de sustentação segura, tão segura que nos permite inferir que o arguido será condenado numa pena de prisão efetiva.
9. Ora, as medidas de coação constituem restrições impostas aos cidadãos constituídos arguidos no âmbito do processo penal e são ditadas em função de razões de natureza cautelar, com vista a garantir os fins do processo.
10. Assim, devido às implicações que surtem na vida de qualquer arguido, a aplicação das medidas de coação tem de obedecer obrigatoriamente, aos princípios da legalidade, adequação, proporcionalidade, necessidade, presunção da inocência, contraditório, e in dubio pro reo.
11. A obediência a estes princípios exige que se efetue um juízo de prognose sobre o comportamento futuro do arguido a partir da prova que sustentam os indícios e a sua relação com as exigências cautelares. Esse juízo tem por base desde a gravidade dos factos, moldura penal, modo de execução, inserção social do arguido, laços familiares, situação profissional, antecedentes criminais, e todos aqueles que possam relevar nesta sede.
12. No caso em concreto, a prisão preventiva é a única medida de coação eficaz para acautelar os perigos elencados no despacho recorrido e que a sua manutenção é imperiosa.
13. De facto, no presente caso, entendemos que se verificam os perigos elencados no artigo 204.º do Código de Processo Penal em concreto, o perigo de fuga que decorre desde logo do facto de o arguido, atenta a factualidade imputada, recear a aplicação de uma medida de prisão efetiva.
14. Não são ignorados os onze meses em que o recorrente esteve em liberdade apenas, e tão somente, atenta-se que a presente atualidade é diferente tendo em conta, nomeadamente, a fase processual em que nos encontramos.
15. Qualquer outra medida é manifestamente escassa e de fácil contorno, atento até o mundo no qual vivemos, no qual os meios de deslocação são extremamente acessíveis e variados.
16. Atente-se que a moldura penal abstrata aplicável é elevada, sendo de prever, como já salientado, que ao recorrente seja aplicada pena de prisão efetiva, sendo que tal circunstância aumenta o já existente perigo de fuga.
17. É certo que o perigo de fuga tem de ser apreciado em concreto, não podendo assentar em hipóteses. No entanto, como refere o Acórdão da Relação de Coimbra, in BMJ, 480, pág. 553: “Ocorrerá perigo de fuga sempre que face à contextualidade da situação do caso submetido à apreciação do tribunal seja legítimo concluir, mediante a formulação de um juízo de experiência, que ocorre um risco de fuga, ou, pelo menos que se verifique uma forte probabilidade de aquele acontecer”. Por sua vez, como decorre do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11.05.2011 (in www.dgsi.pt), “I – A avaliação do perigo de fuga não exige que o risco se adense até à iminência ou início da execução da fuga, i.é., não é necessário que haja indícios materiais de que a fuga está num horizonte factual próximo. II – O juízo sobre a existência de perigo de fuga tem de basear-se na pessoa concreta, na sua personalidade, nas circunstâncias conhecidas da sua vida para, a partir daí, cotejando essa imagem com a experiência comum, averiguar da probabilidade de se verificar uma fuga.”.
18. Foi exatamente esse o juízo que o decisor a quo fez nos presentes autos, ou seja, não se trata do simples facto de o recorrente ser piloto, mas sim, da conjugação de todos os factos e elementos existentes, bem como a personalidade do recorrente, reveladora do enorme desprezo pelo bem jurídico “vida”.
19. Neste sentido, a argumentação expendida pelo recorrente quanto à verificação do perigo de fuga não deverá, salvo o devido respeito por opinião contrária, merecer acolhimento.
20. Os factos fortemente indiciados e imputados ao arguido geram alarme social e perturbação do regular funcionamento das instituições.
21. Numa sociedade civilizada, não se pode tolerar este tipo de situações, sendo o recurso à autotutela vedado.
22. A situação dos autos é geradora de sentimentos de insegurança e de medo por parte da população, sabendo que a qualquer momento, poderão ser confrontados com situação semelhante.
23. Apelando aos ensinamentos do Acórdão da Relação de Lisboa, in BMJ, 495, pág. 356, que concordamos pela assertividade do aí sumariado e que se transcreve: “II . Ao decretar essa medida extrema o juiz deve ainda ponderar na gravidade do crime indiciado, aferida pelo quadro de valores criminalmente protegidos, no alarme social que o não decretamento provocará (...)”, sempre teremos de concluir pela verificação, também, deste perigo.
24. Quanto ao perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime e da personalidade do arguido ele existe.
25. Sem desvalorizar o teor dos relatórios realizados, a verdade é que os factos imputados denotam uma personalidade fria, colérica e violenta.
26. A análise global dos factos traduz uma conduta altamente reprovável e de elevada censurabilidade, sendo as exigências cautelares elevadíssimas.
27. Igualmente sufragamos o de que as medidas aplicadas são as únicas que se mostram suficientes, proporcionais e adequadas ao caso concreto, bem como respeitadoras dos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação, sendo certo que, nenhuma das demais tipificadas na nossa lei, seriam suscetíveis de acautelar os perigos que as mesmas afastam.
28. Como podemos ler no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 142/17.3jblsb-A.S1, de 18/08/2018 “Quando na fase de inquérito, para a fixação da medida de coacção de prisão preventiva, se alude, como no art.º 202, n.º1, als a) a e) a fortes indícios o que se pretende é inculcar a ideia de que o legislador não permite que se decrete a medida com base em meras suspeitas mas exige que haja já sobre a prática de determinado crime uma “base de sustentação segura” quanto aos factos e aos seus autores que permita inferir que o arguido poderá por eles vir a ser condenado e que, por conseguinte, essa base de sustentação deverá ser constituída por “provas sérias”, provas que deixem uma impressão já nítida da responsabilidade do arguido objetivada a partir dos elementos recolhidos.”
29. Entendemos que o despacho recorrido não viola os princípios da legalidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade, previstos nos arts. 191.º, 192.º e 193.º, todos do CPP, não merecendo censura.
30. Por tudo o exposto, sufragamos que é adequada e proporcional ao caso a prisão preventiva, sendo a única medida de coação capaz de forma eficiente, obstar aos perigos existentes, não obstando a tal a falta de audição do arguido.
31. Acrescenta-se que, não foram violados quaisquer preceitos legais ou princípios de direito, pelo que deverá o recurso improceder na sua totalidade, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.»
d. Respondeu também o assistente, adiantando que:
«A. O recurso apresentado tem por objeto o despacho proferido pelo M. Juiz de Instrução Criminal no dia 18 de junho e com a referência … que proferiu decisão no sentido de indeferir os vícios processuais invocados pelo arguido, mantendo a aplicação da medida coativa privativa da liberdade.
B. Invoca o arguido através do presente recurso que caberia ao Tribunal de Primeira Instância proferir decisão sobre as medidas de coação, limitando a intervenção desde Venerando Tribunal apenas ao conhecimento do mérito da decisão instrutória.
C. Defende, ainda, o arguido que nenhum Tribunal procedeu à avaliação efetiva dos pressupostos que determinariam a aplicação da medida coativa de prisão preventiva,
D. E, ainda, que o despacho recorrido carece de fundamentação.
E. Contrariamente ao que milita o arguido, o despacho é irrecorrível, devendo ser rejeitado, porquanto o arguido pretende, na verdade, com o presente recurso (…) sindicar de forma oblíqua e ilegal, o despacho de pronúncia, em desrespeito do disposto no artigo 310.º do Código de Processo Penal.
G. Quanto à alegada absoluta falta de fundamentação do despacho recorrido, importa referir que a deficiência de fundamentação das decisões jurisdicionais não surge, sequer, no catálogo das nulidades absolutas e como tal insanáveis do artigo 119.º do CPP ou, ainda;
H. No quadro das nulidades relativas do subsequente artigo 120.º do mencionado diploma legal; de resto, nenhuma outra norma qualifica, também, como nulidade. Tratar-se-á, então, hipoteticamente falando, de uma simples irregularidade – o que se rejeita.
I. Com efeito, o artigo 309.º do CPP apenas faz referência à nulidade da decisão instrutória nos casos em que esta pronuncie o arguido por factos que constituam alteração substancial dos factos descritos na acusação pública, do assistente ou do requerimento de abertura de instrução – o que não acontece o caso concreto.
J. De resto, ao contrário do que o arguido refere, não existe a obrigatoriedade de a decisão conter todos os elementos de facto e de direito que sustentem a decisão recorrida.
K. Particularmente, quando esta fundamentação é feita através de remissões para decisões proferidas nos presentes autos.
L. Faculdade, aliás, permitida ao julgador quer pela doutrina quer pela jurisprudência.
M. O que se proíbe - ao contrário do que o arguido milita – é que os despachos não sejam suficientemente fundamentados e, em segundo lugar, que não seja dado ao destinatário, integral conhecimento dos mesmos.
N. Certo é que não existe disposição legal que impeça a fundamentação mediante remissão, designadamente para a acusação pública ou para outras peças processuais, desde que transpareça que o Juiz procedeu a uma real e efectiva ponderação das questões suscitadas, como sucede com o decretamento ou a manutenção da prisão preventiva (neste sentido Ac. TC 189/99, 396/2003);
O. Na verdade, ao decidir-se por remissão, esse despacho ou decisão integra como seu, os fundamentos de outro despacho, parecer, requerimento ou decisão – pelo que passa a fazer parte desse acto, o ato para o qual se remete.
P. Conclui-se, desta forma, pela improcedência da arguição de nulidade, por violação do dever de fundamentação previsto no n.º 5 do artigo 97.º e no artigo 308.º do CPP – o que expressamente se requer.
Q. Subsidiariamente, sempre se defenderá que o M. Juiz de Instrução Criminal procedeu ao reexame dos pressupostos da medida coativa, porquanto,
R. Fundamenta a sua decisão demonstrando que os factos constantes das decisões anteriores e que determinaram a aplicação da medida coativa privativa da liberdade mantêm-se inalterados.
S. Decisão que o arguido tenta, a todo o custo, sindicar, alegando em sua defesa os 11 meses em que se manteve em liberdade e que durante esse período não tentou fugir nem praticou quaisquer crimes.
T. Factualidade essa que era do conhecimento deste Venerando Tribunal e que mesmo assim, proferiram decisão no sentido de ser aplicada a medida de coação mais gravosa.
U. O Arguido invoca, ainda, a existência de vícios processuais do despacho recorrido por lhe ter sido indeferida a sua audição aquando do reexame das medidas cautelares a serem aplicadas.
V. Esta audição que lhe é facultada, não reveste carácter obrigatório por força do n.º 3 do artigo 213.º do CPP quando se tratam de situações que, aquando do reexame, não existe qualquer factualidade inovadora no processo;
W. Pelo que a pretensão do arguido no que respeita à invocada nulidade quer a inconstitucionalidade da mencionada norma legal (tema já amplamente discutido na doutrina e jurisprudência) terá, necessariamente, de improceder,
X. Por mera de cautela de patrocínio, desde já se refere que os perigos existentes à data da aplicação da medida coativa ainda se mantêm.
Y. Pese embora o arguido tenha estado em liberdade durante 11 meses, nada consta dos autos que demonstre que durante esse período não praticou crimes, como invoca, ou tentou fugir,
Z. Não sendo possível afastar o intenso perigo de fuga existente por força das razões já sobejamente conhecidas: i) o facto de estarmos perante um crime doloso punido com pena abstrata superior a 5 anos, ii) a profissão exercida pelo arguido –,
AA. e que, tanto quanto se sabe não foi suspenso das suas funções - e o intenso perigo de fuga associado, ii) o alarme social que o hediondo crime causa e causou na comunidade e, ainda iii) o intenso perigo de perturbação do inquérito/processo para a preservação ou veracidade da prova.
BB. O arguido não demonstra ter consciência nem compreensão do impacto e as consequências negativas do seu comportamento nem do desvalor da sua acção – o homicídio de forma brutal de um ser humano.
CC. O que por si só fundamenta a aplicação da medida de coação mais gravosa, pois constitui um dos elementos previstos no artigo 202.º do CPP. Sem prejuízo,
DD. e analisando os pressupostos que determinariam a aplicação da prisão preventiva ao aqui arguido, sempre se defenderia não existir qualquer alteração das circunstâncias que motivaram a sua aplicação, ainda em fase de inquérito, como se segue:
a. Fortes indícios da prática de um crime doloso, punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos, ou fortes indícios de prática de um crime doloso que corresponde a criminalidade violenta (cfr. alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 202.º do CPP;
b. Perigo de fuga – atendendo à probabilidade certa de ser condenado numa pena efetiva de longa duração, bem como, à profissão exercida pelo Arguido, encontra-se preenchida esta condição;
c. Perigo de perturbação grave de ordem e tranquilidade públicas – atendendo ao tipo de criminalidade do crime em causa, ao meio em que o mesmo ocorreu e à forma rápida com que a informação hoje em dia se dispersa, a eventualidade concessão de liberdade ao arguido enquanto durasse o julgamento geraria – como gerou - sentimentos de insegurança e perturbação da ordem e tranquilidade públicas , com origem em sentimentos de injustiça, impunidade e insegurança – devendo este pressuposto constante da alínea c) do artigo 204.º do CPP considerar-se preenchido.
EE. Face a tudo o que se tem vindo a expor, rejeita-se a existência de factualidade inovadora que pudesse motivar a audição prévia do Arguido e,
FF. que determine a substituição do estatuto coativo daquele, pelo que o despacho recorrido – que se pronunciou sobre os vícios invocados, indeferindo-os - não merece qualquer reparo.
GG. Devendo a pretensão do recorrente ser julgada liminarmente improcedente – o que se requer.»
e. O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação manifestou a sua integral concordância com a posição já expressa na resposta ao recurso, de se dever confirmar a decisão de manter o arguido sujeito à medida de coação de prisão preventiva.
f. Efetuado exame preliminar e nada obstando ao prosseguimento do recurso foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1.Delimitação do objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP)2, estando suscitadas as seguintes questões: i. Nulidade da decisão recorrida: por falta de fundamentação; por ter indeferido a audição presencial do arguido; e por se não tratar de uma reapreciação em sentido técnico; ii. Inexistência dos perigos nos quais se sustenta a decisão recorrida.
2. Conhecendo dos fundamentos do recurso
i.’ Da nulidade da decisão recorrida
O recorrente considera que a decisão recorrida é nula por três distintas razões: falta de fundamentação; indeferimento da audição presencial do arguido; e por a mesma constituir uma reapreciação de decisão anterior, mas não o sendo «em sentido técnico».
No concernente à alegada falta de fundamentação da decisão recorrida importará começar por afirmar o óbvio: o princípio da fundamentação das decisões judiciais integra, em processo criminal, as garantias fundamentais de defesa do arguido, nos termos previstos no artigo 32.º, § 1.º da Constituição.
A exigência de fundamentação das decisões judiciais decorre do disposto no artigo 205.º da Lei Fundamental, onde se consagra o princípio de que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Neste patamar a fundamentação é o quid conferidor de validade e de legitimidade a tais decisões.3
Sendo à luz de tal princípio que o artigo 97.º, § 5.º CPP estabelece a regra de que «os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.»
É através da fundamentação que se permite sindicar a legalidade do ato e se dão a conhecer as razões que servem para convencer os interessados e a comunidade sobre a sua correção e justiça, a mais de por essa via se obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, atuando, por isso como meio de autodisciplina.4 Cumprindo a fundamentação das decisões judiciais, simultaneamente, uma função de caráter objetivo – de pacificação social, legitimidade e autocontrolo das decisões – e uma função de carácter subjetivo – de garantia do direito ao recurso, controlo da correção material e formal das decisões pelos seus destinatários.5
Neste caso temos por inquestionável que o despacho recorrido não reveste a natureza de sentença ou acórdão (cf. artigo 97.º, § 1.º, al. a) CPP) - cuja falta de fundamentação se mostra sujeita a regime próprio e específico, prevenido nos artigos 379.º e 410.º, n.º 3, CPP - pelo que a invalidade do mesmo por alegada falta de fundamentação é subsumível e regida pelas normas que regulamentam, em geral, as consequências da inobservância das prescrições legais estabelecidas para a prática dos atos processuais estatuídas nos artigos 118.º a 123.º, do citado compêndio legal.
Neste conspecto, vale no direito processual penal português o chamado princípio da tipicidade ou da legalidade e da taxatividade a que alude o artigo 118.º CPP, norma que dispõe que:
«1. A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei.
2. Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular.
3. As disposições do presente do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova.»
Confrontando o teor do despacho em referência, constatamos que nele se conheceu das questões de que se podia e devia conhecer (do requerimento do arguido para sua própria audição; e o reexame da manutenção dos pressupostos da prisão preventiva).
No respeitante à requerida audição do arguido, não há qualquer imposição normativa que determine a realização da mesma, sendo esta dependente da respetiva utilidade processual. E o Tribunal recorrido considerou que as razões adiantadas pelo arguido não justificavam a diligência requerida, alinhavando as razões sustentadoras desse entendimento. Daí que o recorrente possa discordar da decisão, mas que ela se mostra fundamentada é por demais evidente.
Por outro lado, sendo certo que a decisão recorrida se refere ao acórdão do Tribunal da Relação (de 11/3/2025 esclarecido pelo acórdão do mesmo Tribunal de 9/4/2025) como se este tivera apreciado concretamente as necessidades imposição de uma dada situação coativa e as tivesse ele mesmo imposto, a verdade é que - conforme do referido acórdão emerge - o que ali se determinou, na sequência da revogação da decisão instrutória, foi a repristinação da situação coativa ex ante (na sequência do que as circunstâncias impunham e que fora solicitado no recurso do assistente). Daí que a descrição do sucedido (nos termos em que se fazem na decisão recorrida) não constitui por si só qualquer nulidade (mas qual?) nem irregularidade!
O recorrente considera que a decisão recorrida não versa (rectior: não deveria versar) sobre a reapreciação dos pressupostos da prisão preventiva (artigo 213.º CPP)!
Mas não tem razão.
Comecemos por afirmar o que a decisão recorrida efetivamente não é, nem poderia ser e porquê. A decisão recorrida não respeita a uma detenção de arguido por suspeita da prática de um crime muito grave, em que se imponha (por força das suas garantias fundamentais) dar-lhe a conhecer os motivos dessa detenção e ouvi-lo sobre o que tenha a dizer sobre o acontecido (querendo) e pronunciar-se sobre as medidas de coação cogitáveis (artigo 141.º CPP). E isso porque essa situação já aconteceu há muito tempo nos autos. Sendo nessa ocasião aplicada (e depois sucessivamente mantida) a medida de coação de prisão preventiva.
Importa atentar na sequência concreta que o processo foi tendo, para sabermos onde nos encontramos.
O acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/3/2025, a que se refere a decisão recorrida, conheceu de duas questões (ambas colocadas nos recursos - do Ministério Público e do Assistente): do mérito da decisão instrutória de não pronúncia, tendo revogado essa decisão; e da situação coativa do arguido, repristinando6 a medida de coação vigente até à prolação da decisão que o acórdão revogou (a qual por força da decisão instrutória impugnada se extinguira ope legis (artigo 214.º, § 1.º, al. b) CPP).
O texto de tal acórdão não deixa margem para dúvidas quanto à sua intenção de repristinar a medida de coação que vigorara antes da decisão instrutória que revogou. E é a essa repristinação que se refere a decisão recorrida, ainda que utilizando um vocabulário pouco rigoroso (dando lastro à tese sustentada pelo arguido - isto é, a uma realidade alternativa).
É absolutamente inequívoco que o acórdão do Tribunal da Relação repristinou a situação coativa que havia sido interrompida na sequência da decisão instrutória revogada. E não o é menos que o arguido/recorrente era conhecedor das razões que sustentavam a situação coativa em que até então se encontrava (prisão preventiva). Daí que a decisão judicial recorrida, proferida no devido tempo, pela entidade competente e mediante a necessária fundamentação, tenha (a mais de conhecer o que fora suscitado pelo arguido) procedido ao reexame da manutenção dos pressupostos de tal medida de coação, realizando o que lhe competia de acordo com as exigências da lei (artigo 213.º CPP). Pelo que se não mostra verificada qualquer nulidade/irregularidade procedimental (mas qual?).
ii.’ Dos perigos a acautelar
Propugna o recorrente pela revogação da medida de coação (que reconhece estar vigente - prisão preventiva), por considerar inexistirem «indícios da verificação concreta de qualquer um dos pressupostos de que depende a aplicação prisão preventiva, estando por demonstrar que as demais medidas de coação previstas na lei não possam satisfazer, cabalmente, as necessidades de prevenção cautelar que no pessoalíssimo caso do recorrente se fazem sentir.»
Por seu turno o Ministério Público sustenta que a prisão preventiva é a medida de coação adequada e proporcional, sendo a mais disso a única capaz de obstar aos perigos de fuga, de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem pública. Assinalando-o especificamente, nos seguintes termos: «a situação dos autos é geradora de sentimentos de insegurança e de medo por parte da população, sabendo que a qualquer momento, poderão ser confrontados com situação semelhante na medida em que os factos imputados denotam uma personalidade fria, colérica e violenta (…) E que qualquer outra medida é manifestamente escassa e de fácil contorno, atento até o mundo no qual vivemos, no qual os meios de deslocação são extremamente acessíveis e variados.»
O assistente, por sua vez, aduz que: «a prisão preventiva é a única medida de coação que se mostra idónea a prevenir os perigos de fuga, de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade publicas, em que se alicerçam as anteriores decisões de aplicação e manutenção de tal medida de coação ao arguido e que levou ao afastamento da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, por não se revelar adequada e suficiente a satisfazer as exigências cautelares do caso e a prevenir os apontados perigos, que subsistem tal como foram definidos naquelas decisões, mantendo-se inalterados os pressupostos que justificaram a sua necessidade, adequação e proporcionalidade, decide-se pela manutenção da medida coativa de prisão preventiva anteriormente aplicada ao arguido.»
Ora, a decisão recorrida, depois de enunciar que o arguido se encontra pronunciado pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto nos artigos 131.º, e 132.º, § 1.º e 2.º, al. d) CP, agravado nos termos do artigo 86.º, § 3.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro; e que do quadro circunstancial respetivo emergem os perigos «de fuga (atenta a profissão exercida e à facilidade de se deslocar por vários pontos do planeta), de continuação da atividade criminosa em função da personalidade do arguido e dos factos praticados e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, resultante da conjugação da profissão exercida e da indiciação pela prática de atividades homicidas, em face dos indícios existentes nos autos quanto à referida factualidade», decidiu que deverá manter-se a prisão preventiva (medida coativa vigente).
Vejamos, então.
A Constituição erigiu o direito à liberdade como direito fundamental (artigo 27.º, § 1.º), em harmonia com o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), estatuindo que tal direito apenas poderá ser restringido na medida do necessário, em face de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, § 2.º).
A par do direito à liberdade a lei fundamental afirma também o princípio da presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, § 2.º e 27.º, § 1.º)7, sem prejuízo de admitir (de prever a existência de) as medidas de coação, as quais constituem, necessariamente, uma restrição à liberdade pessoal de quem a elas é sujeito. As quais têm justamente por finalidade satisfazer exigências cautelares de cariz exclusivamente processual (id est garantia do bom andamento do processo e o efeito útil da decisão final).
Mas justamente porque incidem sobre pessoas presumivelmente inocentes, a aplicação das medidas de coação deve revestir-se das devidas cautelas, sendo essa a razão pela qual as mesmas estão sujeitas a estritas prescrições de legalidade (ou tipicidade), de necessidade, de adequação e de proporcionalidade, princípios estes que orientam as decisões judiciais que lhes respeitem.
A sua aplicação pressupõe, desde logo, a verificação de um fumus comissi delicti, isto é, de um juízo de indiciação da prática de crime. E visa satisfazer exigências cautelares exclusivamente processuais, que resultem da verificação, em concreto, de (pelo menos) algum dos perigos - pericula libertatis - previstos nas alíneas do artigo 204.º do CPP.
Com o que vale dizer ser ilegítima qualquer outra finalidade que se lhes queira assacar (às medidas de coação), de natureza substantiva, retributiva, preventiva (de prevenção geral ou especial), ou mesmo de proteção do arguido (contra reações populares, p. ex.).8
No que especialmente concerne à prisão preventiva, por ser a que mais fortemente restringe a liberdade das pessoas, esta só pode aplicar-se quando para acautelar as necessidades processuais, as outras medidas legalmente previstas se revelarem inadequadas ou insuficientes.
Preceitua a lei que a aplicação desta medida (que é a mais) restritiva da liberdade só pode aplicar-se lá quando (artigo 202.º, § 1.º do CPP):
«a) houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão com máximo superior a 5 anos;
(…);
E, se verifique algum (qualquer um) dos perigos previstos no artigo 204.º do CPP9:
«a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.»
O conceito de «fortes indícios» da prática de certo tipo de ilícitos, como requisito da prisão preventiva, aponta para um grau de medida que apenas se alcança por referência ao que a lei estatui quanto ao que sejam «indícios suficientes», verificando-se estes «sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança» (artigo 283.º, § 2.º CPP). E, como assim, os «fortes indícios» corresponderão a uma elevada probabilidade de ao sujeito, por força deles, lhe vir a ser aplicada uma pena.
Justamente nesta linha refere-se na doutrina que o legislador terá considerado «que um juízo indiciário desta natureza implica para o juiz que as aplica um convencimento positivo de tal modo intenso sobre a existência de indícios da culpabilidade do arguido que deixa ele de poder ser visto como estando plenamente capaz de decidir a causa, em julgamento ou recurso, sem uma predisposição no sentido da condenação.»10
Nesta medida haverá fortes indícios da prática de uma infração criminal quando se encontra sólida e inequivocamente comprovada a existência do ilícito e ocorrem suspeitas sérias, precisas e concordantes da sua imputação ao arguido.11
Ora despacho recorrido, por referência à decisão (primeva) de aplicação da prisão preventiva e às posteriores que a mantiveram, bem como à que a repristinou, assenta no quadro factológico indiciário (agora contante da pronúncia - com referência à acusação) suscetível de integrar a prática pelo arguido/recorrente de um crime de homicídio qualificado e agravado nos termos já referidos supra.
O recorrente questiona a existência dos perigos fundantes, bem assim como a adequação e proporcionalidade da medida aplicada, propondo a sua revogação ou substituição pelo cumprimento de injunções que lhe não tolham o essencial da sua liberdade.
Sublinharemos, de introito a esta matéria, que as exigências impregnadas na norma em referência (artigo 204.º CPP) correspondem ao estalão internacional (ponto 7 da Recomendação Rec13 do Comité de Ministros do Conselho da Europa [2006] sobre o uso da prisão preventiva, as condições em que tem lugar e as medidas de salvaguarda contra o seu abuso).12
Na interpretação de tal preceito a doutrina jurídica e a jurisprudência dos Tribunais vêm entendendo, que os perigos a que se reporta têm de ter uma dimensão concreta e razoável13, aferida no momento da decretação da medida. Sob pena de poderem ser invocados em todos os casos, não sendo isso compaginável com a conceção de um Estado de Direito Democrático, baseado no respeito e na garantia dos direitos, liberdades e garantias fundamentais (artigo 2.º da Constituição), consagrados em preceitos que são de aplicabilidade direta (artigo 18.º, § 1.º da Constituição).
Neste exato contexto refere-se p. ex. que «não cumpre a exigência normativa parafrasear o texto da norma (…)» e «o uso de fórmulas estereotipadas, parafrasear os perigos enunciados na norma sem explicitar os indícios que permitem a sua afirmação, não releva quando é a norma a impor um juízo concreto (nenhuma medida de coação pode ser aplicada se em concreto se não verificar).»14
Contrariamente ao que sustenta o arguido afigura-se-nos medianamente clara a emergência do perigo de fuga, porquanto antevendo o arguido a natureza e medida da pena que lhe poderá vir a ser aplicada em julgamento (que em abstrato poderá ira até aos 25 anos de prisão), quererá furtar-se à ação da justiça, fugindo para o estrangeiro.
Naturalmente não ignoramos que «a lei não presume o perigo de fuga, exige que esse perigo seja concreto, não bastando a mera probabilidade de fuga deduzida de abstratas e genéricas presunções (v.g., da gravidade do crime), mas que se deve fundamentar sobre elementos de facto que indiciem concretamente aquele perigo, nomeadamente a personalidade do arguido, a sua situação financeira, a sua situação familiar, profissional e social, eventuais ligações a países estrangeiros, indicando factos concretos que revelem a intenção ou facilidade do arguido se pôr em fuga e eximir-se à ação da justiça por essa via.»15
Deverá, pois, avaliar-se em concreto a emergência deste perigo, sem que tenha de estar em vista uma fuga já planeada ou iminente, devendo antes aferir-se com base nas circunstâncias concretas do caso, tal como constam dos autos, e das relativas ao arguido e à sua vida (idade, situação profissional, económica, familiar, social, etc.), avaliando esse conjunto circunstancial com os ditames da experiência comum.
E fazendo isso mesmo vemos que o arguido terá os meios que lhe permitem fugir do país e uma profissão que lhe permite encontrar emprego na sua área da especialidade no estrangeiro e ali viver com relativa tranquilidade, sem correr risco de extradição (cogitamos neste conspecto v. g. alguns países do oriente, em cujas companhias aéreas trabalham comandantes europeus).
Neste enquadramento, as exigências cautelares do processo, nomeadamente a de assegurar a presença do arguido no decurso do processo (designadamente do julgamento) e a previsível execução de uma decisão final revelam-se sérias e intensas.
Não ignoramos, evidentemente, o argumento esgrimido pelo recorrente, de que tendo estado 11 meses em liberdade, tendo então oportunidade de fugir, não o fez. Com a alegação desse facto pretende-se ilustrar que o arguido não tem nenhuma intenção de se furtar à ação da justiça. Mas isso é, em retas contas, uma fraca demonstração do que se preconiza evidenciar! Porquanto tendo o arguido sido libertado em sequência da decisão de não pronúncia, a expectativa que então tinha era (razoavelmente) a de uma provável manutenção desse juízo e consequente arquivamento do processo.
Mas o patamar atual não é nada o mesmo.
Naturalmente que o arguido mantém a presunção de inocência e decerto pugnará em julgamento pela sua absolvição. Mas é inarredável que será julgado. E o risco de vir a ser condenado (e numa pena de muitos anos de prisão), coloca-se agora num patamar sem paralelo na situação anterior. Razão pela qual este momento não é em nada comparável ao período sequente ao despacho de não pronúncia.
A mais disso, também entendemos que a medida de Obrigação de Permanência na Habitação mediante fiscalização eletrónica, não previne suficientemente o perigo de fuga, uma vez que não representa um obstáculo físico à sua efetivação e só permite detetar a fuga depois de esta se ter verificado, para além de não impedir a preparação da mesma através de contactos entre o arguido e terceiros do mesmo modo que a prisão preventiva, pois aqueles contactos podem fazer-se telefonicamente ou presencialmente na própria habitação.16
O mesmo podendo dizer-se – com referência ao perigo de fuga - de qualquer outra medida de coação não privativa da liberdade (distinta da prisão preventiva).
Já no concernente aos demais perigos que a decisão recorrida menciona (na senda do posicionamento do Ministério Público), temos sérias reservas quanto à sua efetiva verificação, na medida em que assentam em cogitações de dimensão eminentemente abstrata - ou pelo menos não mensurável. E por isso dificilmente poderão legitimamente sustentar a privação da liberdade de um cidadão. Seja porque (relativamente ao perigo de continuação da atividade criminosa) a referência a «em função da personalidade do arguido e dos factos praticados»; ou com referência ao perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, a menção a «resultante da conjugação da profissão exercida e da indiciação pela prática de atividades homicidas», nada têm de concreto. Pois que na verdade não há sinal de haver pessoas que o arguido tenha querido ou tenha cogitado abater; nem, por outra banda (relativamente ao inventariado perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas) se pode estribar um perigo em máximas totalmente vazias de um qualquer conteúdo concreto! Neste caso, a decisão recorrida não menciona qualquer facto (sequer indício) de uma qualquer previsível atuação do arguido no futuro, suscetível de perturbação da ordem e da tranquilidade pública. Não podendo naturalmente tal «perigo» fundar-se num prenúncio abstrato, arreigado a um suposto «alarme social» - o qual a al. c) do § 1.º do artigo 204.º, de resto, nem sequer prevê!17
Em suma: a decisão recorrida observou o princípio rebus sic stantibus, que postula que a medida de coação aplicada deverá em princípio manter-se, salvo superveniência de alguma das circunstâncias previstas na lei. Porquanto, conforme se consigna no artigo 212.º, § 1.º al. b) CPP, as medidas de coação são imediatamente revogadas ou substituídas sempre que circunstâncias de facto ou de direito supervenientes tenham efeito direto nos pressupostos que ditaram a aplicação precedente de medida de coação.
Pelas razões expostas concluímos que a medida de coação tida em referência na decisão recorrida, se mostra conforme aos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (é a única que circunstancialmente assegura a presença do arguido no julgamento; sendo a mesma imprescindível para tal garantir), pelo que o recurso se não mostra merecedor de provimento.
III - Dispositivo
Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão de sujeição do arguido/recorrente a prisão preventiva, por haver imperiosa necessidade de prevenir o perigo de fuga por banda do arguido/recorrente.
b) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s.
Évora, 30 de setembro de 2025
Francisco Moreira das Neves
Edgar Valente
Maria Clara Figueiredo
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1 Tecnicamente o que o recorrente denomina de «conclusões» não o são verdadeiramente, conforme a doutrina jurídica e a jurisprudência vêm tornando claro. O que são tecnicamente, afinal, as conclusões?: «um resumo das questões discutidas na motivação» (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 1136, nota 14. As quais deverão «ser concisas, precisas e claras» (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Do Procedimento - Marcha do Processo, Universidade Católica Editora, 2014, p. 335». Seguramente não podem constitui uma «reprodução mais ou menos fiel do corpo motivador, mas sim constituírem uma síntese essencial dos fundamentos do recurso» (Sérgio Gonçalves Poças, Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, revista Julgar n.º 10, 2010, pp.23. No mesmo sentido cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 1set2021, proc. 430/20.1GBSSB.E1, rel. Gomes de Sousa; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11jul2019, proc. 314/17.0GAPTL.G1, rel. Mário Silva; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5abr2019, proc. 349/17.3JDLSB.L1-9, rel. Filipa Costa Lourenço; e desse mesmo Tribunal, de 15/2/2013. Proc. 827/09.3PDAMD.L1-5, rel. Vieira Lamim. Não sendo inconstitucional este entendimento, ressalvada que seja a oportunidade de correção, como considera o Tribunal Constitucional (cf. acórdão n.º 685/2020, de 21jul2020, rel. Pedro Machete)
2 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.
3 Neste exatos sentido cf. Maria de Fátima Matamouros, A fundamentação da decisão como discurso legitimador do poder judicial – Boletim Informação e Debate – A.S.J.P. - IVª série – n.º 2, dez2003, p. 112.
4 Assim, p. ex., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 1993, 2.ª edição, Verbo, p. 294.
5 Jorge de Miranda e Rui de Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, 2018, Univ. Católica Editora, p. 71.
6 O verbo «repristinar» consta expressamente dos esclarecimentos prestados no acórdão deste Tribunal da Relação de 9/4/2025.
7 Igualmente proclamado no artigo 11.º da DUDH e consagrado nos artigos 6.º, § 2,º da CEDH e 14.º, § 2.ºdo PIDCP e 48.º, § 1.º da Carta de Direitos Fundamentais da EU.
8 Neste exato sentido cf. TRÉvora, de 11/10/2016, no proc. 141/16.2GFELV-A.E1 (rel. Ana Brito).
9 A verificação de um dos perigos a que se reporta o artigo 204.º corresponde à exigência contida no artigo 5.º, § 1.º, al. c) e § 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que por ter sido regulamente ratificada pelo Estado português constitui direito interno (artigo 8.º, §2.º Constituição).
10 Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Sujeitos Processuais Penais: o Tribunal», pp. 20, Coimbra 2015, texto de apoio ao estudo da unidade curricular de Direito e Processo Penal do Mestrado Forense da faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2015/2016).
11 Sendo este o entendimento geralmente sufragado na doutrina e na jurisprudência. Cf. por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, pp. 337, Universidade Católica Editora, 2011: indícios fortes são «as razões que sustentam e revelam uma convicção indubitável de que, de acordo com os elementos conhecidos no momento de prolação de uma decisão interlocutória, um facto se verifica. Este grau de convicção é o mesmo que levaria à condenação se os elementos conhecidos no final do processo fossem os mesmos do momento da decisão interlocutória»
12 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à Lua da Constituição e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Universidade Católica Editora, 4.ª ed. Atualizada, 2011, pp. 600/601.
13 Revista Portuguesa de Ciência Criminal 28 (2018), pp. 376 ss.
14 António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2025, Almedina, p. 404 (em anotação ao artigo 204.º CPP).
15 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 214, Editorial Verbo.
16 Neste exato sentido cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 24mai2018, proc. 26/17.5JASTB-B.E1, rel. António João Latas, www.dgsi.pt
17 Neste sentido, sem divergências, cf. por todos, António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, Almedina, 2021, p. 390; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, p. 602, nota 15 ao comentário ao artigo 204.º; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, 3. Ed., 2002, Verbo, p. 269; Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Almedina, 2016, p. 137; Eduardo Maia Costa, A presunção de inocência do arguido na fase de inquérito, Rev. MP n.º 92 (out/dez 2002, pp. 74 e 75); Maria João Antunes, O Internamento de Imputáveis em Estabelecimentos destinados a Inimputáveis, Coimbra Editora, 1993, p. 1253; Vítor Sequinho dos Santos, 2008, Medidas de Coação, revista do CEJ, n.º 9, p. 131. Cf. tb. acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, 23set.1998, caso I. A. c. França, 28213/95, pp. 32/33; acórdão TRÉvora, de 26jun2007, proc. 1463/07-1, relator António João Latas; acórdão do TRÉvora, de 13nov2012, proc. 148/12.9JBLSB-C.E1, relatora Ana Barata Brito; acórdão do TRÉvora, de 15dez2016, proc. 799/16.2 PAOLH-A.E1, relator Carlos de Campos Lobo; acórdão do TRLisboa, de 12fev2019, proc. 165/18.5PGSXL-A.L1-5, relator Artur Vargues; acórdão do TRCoimbra, de 22fev2023, proc. 1142/22.7JACBR-B.C1, relator Vasques Osório. Questionando a constitucionalidade da previsão normativa de tal «perigo», pode ver-se Elisabete C. Sousa, Os Requisitos Gerais de Aplicação das Medidas de Coação, 2021, Almedina, pp. 123 ss., maxime p. 133. E no nosso entorno cultural e perante normação semelhante, em Espanha, o ali denominado «risco para a ordem pública» - artigos 503.º e 504.º LECr (lá também muitas vezes designado na prática forense como «alarme social» foi declarado inconstitucional, por violação do artigo 17.º da Constituição, pela STC 47/2000, de 15 de fevereiro (cf. Ramon Ragués i Vallès, La prisión provisional como ultima ratio, Marcial Pons, 2023, p. 130).