VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Sumário

A incriminação da violência doméstica visa proteger a saúde, entendida esta como o bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, passível de afetação por toda a multiplicidade de comportamentos que atingem a integridade física e psicológica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra da vítima. A norma contempla, como fundamento do ilícito especialmente protegido, a tutela de bens jurídicos inerentes a uma relação de natureza familiar, afetiva, de coabitação ou de dependência, presente ou passada, tendo em conta a maior censurabilidade da conduta e o maior perigo de lesão de bens pessoais praticados naqueles contextos relacionais.
O arguido que, chateado por a mulher, de quem se encontra separado, ter deixado uma filha doente em casa e com ciúmes por a mesma poder estar com outro homem, lhe liga insistentemente e lhe manda mensagens de telemóvel com conteúdo ameaçador, insultuoso e controlador, e que, dias depois, querendo confrontá-la para lhe manifestar desagrado pelo seu comportamento, volta a ligar-lhe repetidamente, procura fazer-lhe uma espera no local de trabalho, numa área onde esperava encontrá-la sozinha, ordena-lhe telefonicamente, exaltado, que vá ao seu encontro e, finalmente, quando a encontra, diz-lhe que ela ainda era mulher dele, incorre em pressão psicológica e invasão ilegítima da privacidade e tranquilidade, capaz de incutir sentimentos de domínio e subjugação da vontade, praticando o crime de violência doméstica.

O facto de o dever de fidelidade entre cônjuges se poder manter durante a separação de facto, tem apenas as consequências previstas na lei civil, designadamente para a fixação da culpa e de uma eventual responsabilidade indemnizatória, não conferindo a qualquer dos cônjuges o direito a exigir do outro que não tenha relacionamentos com terceiros e muito menos o direito de exercer sobre o outro algum tipo de domínio da vontade e da ação ou de vigiar o seu comportamento.

O direito da vítima de violência doméstica a indemnização por danos não patrimoniais vincula o tribunal a considerar que a mesma beneficia de particulares exigências de proteção e a ponderar o arbitramento de indemnização. No entanto, se o dano não patrimonial não tiver uma expressão que justifique a tutela do direito ou se o pagamento da indemnização for desproporcional, o tribunal não deverá arbitrá-la.

Numa situação em que os danos foram momentâneos e de relevância reduzida, em que o arguido atou com um grau de culpa mitigado e a ação da vítima contribuiu para a produção do evento, em que o arguido nunca deixou de ajudar voluntariamente a vítima, financeiramente e noutras situações, para além daquilo a que estaria obrigado, mesmo depois de se terem separado, em que o arguido tem uma condição económica muito modesta, em parte por se ter colocado voluntariamente na situação de desemprego para se afastar do local de emprego da vítima em benefício dela e em que, previsivelmente, o arbitramento da indemnização pouco ou nenhum significado teria para a vítima e, ao contrário, poderia, agravar uma situação que se encontra apaziguada e aumentar o risco de reacendimento do conflito, o princípio da proporcionalidade, como critério da decisão judicial, deve levar à exclusão da indemnização, na medida em que o juízo de equidade em que a mesma se fundamenta tem de conformar-se nos limites do que é materialmente justo.

Texto Integral

Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório

1.1 Decisão recorrida

Sentença proferida em 8abr2024, na qual foi absolvido o arguido AA de um crime de violência doméstica agravada, previsto no artigo 152º nº 1 al. a), nº 2 al. a) e nºs 4 a 6 do CP e de um crime de ameaça, previsto no artigo 153º do CP, na pessoa de BB, tendo ainda sido declarado extinto, por ilegitimidade do MP, um crime de injúria, previsto no artigo 181º do CP e por fim sido decidido não arbitrar qualquer indemnização a favor da vítima.

1.2. Recurso, resposta e parecer

1.2.1. O Ministério Público recorreu, pedindo a revogação da sentença e a reversão da absolvição para condenação pelo crime de violência doméstica.

Para tanto invocou, em suma, o seguinte:

a) Erro notório na apreciação da prova

- Da motivação da matéria de facto consta que o arguido confessou o envio das mensagens do ponto 16 dos factos provados. Estas mensagens, só por si, preenchem os tipos de coação, ameaça e injúria, em contexto de posse e desdém para com a vítima, o que teria de levar à condenação do arguido pelo crime de violência doméstica.

- Tendo o tribunal dado como provados os factos dos pontos 1 a 7 e 15 a 28, não podia considerar não provados os factos dos pontos g), u), w) e x), sob pena de contradição. Se o arguido, depois da separação, ao ver o carro da vítima junto da casa de um terceiro, lhe enviou as mensagens que ficaram provadas, isso significa que, para ele, apenas por estarem casados “no papel”, a vítima ainda lhe devia fidelidade, pertencia-lhe e devia-lhe satisfações, tendo-a mesmo proibido de iniciar um novo relacionamento amoroso e chegado a vigiar. Assim, não se podiam ter dado como não provados os factos do ponto g).

- Também não podia o tribunal ter considerado não provados os factos do ponto u) porque isso é contraditório com o envio das mensagens do ponto 16.

- O tribunal considerou como provas as mensagens trocadas entre a vítima e a filha do casal, o que quer dizer que o arguido foi ver as conversações gravadas no telemóvel da filha e as divulgou no processo. Por isso, se foi dado como provado no ponto 35 que ele retirou as mensagens do telemóvel da filha, não podia ter sido dado como não provado no ponto w) que o fez contra a vontade dela para vigiar os movimentos da vítima.

- Se na sentença se deu como provado, no ponto 33, que o arguido é amigo de militares do Posto da GNR e nos pontos 31 a 37 que foi apresentar aí queixa contra a vítima, relatando factos da esfera sexual íntima, daí só pode resultar que o seu intuito foi o de denegrir a vítima e limpar a sua honra. Por isso é contraditório dar como não provados os factos do ponto aa).

b) Erro de direito

- Dos factos provados resulta que o arguido teve uma atitude impulsiva, agressiva, controladora, possessiva, de falta de respeito e desdém.

- Do facto do ponto 16 resulta também que o arguido tem uma mentalidade censurável e retrógrada, achando que o homem tem o direito de fazer valer a sua honra perante a sociedade, por estar casado e ser possuidor do cônjuge, que lhe deve fidelidade e satisfações. Esta mentalidade retrógrada é que explica o flagelo de crimes de violência doméstica, como se o adultério fosse causa de exclusão da ilicitude.

- Ao praticar os factos do ponto 16, o arguido aterrorizou a vítima e fê-la recear pela sua integridade física, o que é apto a perturbar a sua liberdade pessoal.

- Deve, pois, o arguido ser condenado pelo crime de violência doméstica.

c) A pena

- As exigências de prevenção geral são elevadas, tanto pela natureza do crime como pela sua frequência. As exigências de prevenção especial têm como fator favorável a ausência de antecedentes criminais, mas contam como fator desfavorável o facto de o arguido desvalorizar o significado das mensagens, de as achar justificadas e de se vitimizar.

- A pena adequada aos factos é a de prisão, no terço da moldura penal, com execução suspensa e sujeita a regime de prova que inclua a obrigatoriedade de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica, e também a pena acessória de proibição de contactos.

d) Reparação dos prejuízos

- Deve ser arbitrada à vítima uma indemnização, nos termos do artigo 82º-A do CP.

1.2.2. O arguido respondeu, no essencial, opondo-se à procedência do recurso.

Invocou, em síntese, os seguintes fundamentos:

- Os factos provados traduzem apenas comportamentos que podem suceder numa qualquer relação, sem relevância criminal.

- As mensagens do ponto 16 dos factos provados foram enviadas uma situação isolada e resultante da preocupação pelo facto de a vítima ter deixado a filha do casal sozinha, filha esse que tem problemas graves de saúde, com tentativas de suicídio, o que deixou o arguido em desespero.

1.2.3. Na Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

2. Questões a decidir no recurso

Tal como está colocada a controvérsia, as questões a decidir no recurso são as seguintes:

- Verificar se há erro notório na apreciação da prova ou outro vício de conhecimento oficioso que deva levar à alteração da matéria de facto;

- Verificar se os factos provados, com ou sem essa alteração, preenchem o tipo de crime de violência doméstica;

- Na afirmativa, retirar daí as devidas consequências processuais, ao nível da determinação da pena e do arbitramento de indemnização.

3. Fundamentação

3.1. Factos provados e sua fundamentação

(transcrição sem as notas de rodapé e os realces de texto)

A. FACTOS PROVADOS

Discutida a causa, resultaram provados com interesse para a decisão a proferir, os seguintes factos:

1. O arguido AA e a ofendida BB mantiveram uma relação de namoro desde 2007, foram casados entre os anos de 2014 a 2024 e têm duas filhas em comum CC de 5 anos de idade e DD de 15 anos de idade.

2. Entre os anos de 2015 a 2023 o arguido e a ofendida viveram juntos, com as duas filhas de ambos, na residência sita na … no ….

3. Em 2020, a ofendida saiu de casa e foi para a casa da sua mãe em …, tendo o arguido ido ter com ela pedido à ofendida para voltar para casa, tendo a ofendida acedido.

4. Quando a ofendida trabalhava muitas horas durante o verão o arguido acusava-a de não ser boa mãe.

5. Por várias vezes, quando a ofendida chegava a casa depois do trabalho o arguido dizia-lhe num tom agressivo que ela não fazia nada em casa.

6. A ofendida protelou a separação do arguido porque na altura estava economicamente dependente dele.

7. O arguido e a ofendida estão separados de facto desde 2023 e já não residem juntos desde então.

8. Em Março de 2024 o arguido obteve uma cópia da chave da residência arrendada da ofendida sita em …, junto do senhorio da ofendida.

9. O descrito em 8) ocorreu porque foi o arguido que encetou as negociações com vista à celebração de contrato de arrendamento entre a ofendida e senhorio, tendo o arguido efectuado as mudanças de casa da ofendida juntamente com o seu amigo EE a pedido da ofendida.

10. O arguido efectuou o pagamento da primeira renda, bem como da caução relativa ao contrato de arrendamento descrito em 9).

11. Após a separação de facto, no período entre 2023 a 2024 o arguido tivesse beijado a ofendida, pelo menos, por cinco vezes distintas, tendo-a apalpado com as mãos, por cima da roupa, nas nádegas e nos seios da ofendida

12. No interregno temporal descrito em 10), o arguido e a ofendida tiveram relações de natureza sexual três vezes, com o consentimento da ofendida4.

13. Em data não concretamente apurada, mas seguramente, entre os meses de Maio a Junho de 2024 o arguido atirou a ofendida para cima do sofá da residência desta e beijou-a.

14. No sábado 29.06.2024, pelas 19h/20h, o arguido foi à residência da ofendida buscar a filha mais nova de ambos CC, e nessa ocasião, colocou as duas mãos na cintura da ofendida e desceu até às nádegas da ofendida por cima da roupa.

15. No mesmo dia, pelas 21h00m, o arguido viu o veículo da ofendida estacionado à porta da residência de outro homem, de nome FF, sita no …, e não gostou.

16. De imediato, com início às 22h59m, o arguido com o cartão telefónico … efectuou nove chamadas telefónicas seguidas à ofendida com o cartão telefónico … e como ela não lhe atendeu, mandou-lhe as seguintes mensagens:

“Vagabunda nojenta és pior que as mulheres da rua ainda casada comigo a tua filha em casa doente a pequenina a saber que tavas na casa de um homem assistiu a tudo vergonhoza e ja não é a primeira vez que vais para la queres ser puta de luxo mas sem as minhas filhas deuz ade castigart porca imunda tenho remorsos de te ter conhecido desgraça vai para a vela vista porca vais ver o que lhe vou fazer a ele e a ti puta de merda nem respeito tems pelas tuas filhas porca imunda”

“Vai trabalhar e tas aqui com o carro no rosario vem ca fora”

“Tou aqui com a menina vem ca fora”

“Ou vems ca fora ou vou rebentar com a porta a menina ta aqui tas com o da padaria vaca puta desgraçada de merda eu rebento com os dois”

“Vou tirart as Meninas puta de merda deixas a menina sozinha e vems dormir com um par o … amanhã quero o carro se não vais ver vaca puta desgraçada vai dormir com um homem e deixa a filha doente em casa”

“Andas com o da padaria puta deixas as tuas filhas foste dar a. Foda agora vais para casa amanha vais ver amanhã”

“Fotografei o carro e tenho provas que deixast a minha filha doente sozinha para ires fuder para casa de um boi amanha vou apanhalo e a ti puta vaca desgraçada nojenta tenho vergonha de seres a mãe das minhas filhas puta esse vai so comert como fez a do mecias e vait mandar fuder foi no ginazio pois o pai dele anda lá e ele também badalhoca vagabunda”

17. Fruto do descrito em 14) a jovem DD, filha do arguido e da ofendida que já tinha tentado de suicidar duas vezes, ficou sozinha da residência da ofendida, por tempo indeterminado.

18. O arguido e a ofendida trabalham no mesmo local, na …, sita em ….

19. Na manhã do dia seguinte, domingo dia 30.06.2024, o arguido e a ofendida estavam os dois a trabalhar na ….

20. Nesse dia e local. das 8h39m às 9h12m o arguido, com o cartão telefónico …, ligou cinco vezes seguidas à ofendida, não lhe tendo esta atendido.

21. À data, o arguido exercia funções na parte subterrânea da ….

22. A ofendida exerce funções na superfície da … e tem um gabinete sito no Departamento de Ambiente ….

23. Não fazia parte das funções profissionais do arguido ir ao Departamento de Ambiente ….

24. Não obstante, o arguido formulou o propósito de encontrar a ofendida, tendo para tal, se abstido de descer juntamente com os colegas para a parte subterrânea da … e foi por três vezes distintas ao interior do Departamento de Ambiente … para fazer uma espera à ofendida, que tem lá o seu gabinete e por saber que ela ia estar lá sozinha por ser Domingo.

25. Quando a ofendida lhe atendeu uma das chamadas, o arguido ordenou-lhe num tom de voz exaltado para ela ir ter com ele, que estava no gabinete dela para conversarem, tendo a mesma recusado, face ao que tinha acontecido no dia anterior.

26. O arguido insistiu que tinham de conversar” “que tinha um cartão para lhe entregar” e a ofendida recusou.

27. Pelas 9h30m desse mesmo dia o arguido conseguiu encontrar a ofendida na …, no local de abastecimento do joper.

28. O arguido disse à ofendida que ela ainda é mulher dele.

29. Na quarta feira 03.07.2024, pelas 11h00m, a ofendida tinha ido aos CTT no ….

30. O arguido assim que a viu, parou o seu carro atrás do carro da ofendida, tendo dito à mesma para parar de mandar encomendas para a morada do arguido, pois a mesma tinha morada própria.

31. No dia 11.07.2024 o arguido foi confrontado com os factos supra elencados e foram-lhe aplicadas as seguintes medidas de coacção:

“(…) Não se aproximar da residência da ofendida, devendo manter-se a uma distância de, pelo menos, 250 metros daquela, cfr. art. 200.°, n.° 1, al. d) do CPP e art. 31.°, n.° 1, al. d) da Lei 112/2009, de 16 de Setembro;

Não se aproximar da vítima a menos de 250 metros de distância, nem com ela contactar por qualquer meio, pessoalmente ou por interposta pessoa – exceptuando-se os assuntos estritamente relacionados com o exercício das responsabilidades parentais, os quais devem ser tratados através de meios de comunicação à distância, preferencialmente por e-mail, sendo os contactos presenciais com as filhas intermediados por terceira pessoa, de modo a garantir do afastamento do arguido e da ofendida; cfr. art. 200.°, n.° 1, al. d) do CPP e art. 31.°, n.° 1, al. d) da Lei 112/2009, de 16 de Setembro;

Não se aproximar da ofendida no local de trabalho, devendo manter-se a uma distância de, pelo menos, 150 metros da mesma, não se deslocando, nem entrando, no Departamento de Ambiente da …, cfr. art. 200.°, n.° 1, al. d) do CPP e art. 31.°, n.° 1, al. c) da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro;

Determina-se que estas medidas sejam fiscalizadas através de meios técnicos de controlo à distância, sendo esta a única forma de proteger os direitos da vítima, cfr. art. 35.° e 36.°, n.º 7 da Lei 112/2009, de 16 de Setembro;

Apresentações periódicas no OPC da área de residência, com frequência semanal, sendo o concreto dia acordado com o OPC em causa, cfr. art. 198.º do CPP;

Mantém-se a assistência à ofendida através do equipamento de teleassistência (…)”

32. No dia 23.07.2024, o arguido foi ao Posto Territorial da GNR de …, apresentar queixa-crime contra a vítima BB, por crime de violência doméstica.

33. O arguido é amigo de alguns Militares do Posto Territorial da GNR de ….

34. No Posto Territorial da GNR de … o arguido relatou ao Militar da GNR autuante os seguintes factos sobre a vítima:

“A suspeita deixou de o ajudar nas lidas da casa (limpeza, cozinha) e até mesmo com as filhas.”

“Que passados alguns meses, como não melhorou a vida de casal a vítima foi falar com a suspeita, dizendo-lhe que estaria disposto a pagar o crédito em comum, para que as suas filhas tivessem uma casa, mas com a condição de a mesma nunca colocasse outro homem dentro da mesma, tendo a suspeita respondido, «que não estava de acordo e que queria a sua vida de volta».”

“Que várias pessoas já o haviam informado que a Suspeita deixava as filhas sozinhas em casa e deslocava-se para «bailes e festas»”

“Que há alguns dias atrás, não se recordando da data exata, foi Notificado no Posto Territorial da GNR de … para comparecer no Tribunal de …, devido a um Processo de ….

Que pelo facto de desconhecer a existência de qualquer tipo de processo, deduziu que fosse uma Queixa apresentada pela ora Suspeita, sendo que se recorda de exprimir no Posto a expressão «DEVE TER SIDO AQUELA PUTA QUE APRESENTOU QUEIXA CONTRA MIM»”

“Que quando vivia com a Suspeita e quando chegava do seu trabalho, era frequente observar a Suspeita a visualizar filmes pornográficos no telemóvel e a masturbar-se com um vibrador.

Que também era frequente a Suspeita quando estavam a ter relações sexuais, dizer «QUERO FODER COM TRÊS HOMENS, URINA-ME PARA CIMA»

Que desconhece qual o motivo de tais comportamentos da Suspeita, uma vez que mantinham um normal relacionamento sexual.

Que desconhece o motivo que levou a Suspeita a apresentar queixa contra a sua pessoa, uma vez que nunca maltratou a mesma. (…)”

35. No período entre 01.09.2024 a 21.10.2024 o arguido, a partir do telemóvel da sua filha DD, visualizou e tirou print screens das mensagens trocadas entre a vítima e a filha de ambos.

36. O arguido agiu sempre com o propósito conseguido de amedrontar a ofendida, fazendo-a temer pela integridade física, e de lhe causar, como efectivamente causou humilhação e sofrimento, bem sabendo que as suas condutas eram adequadas a provocar tais resultados.

37. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida

Dos antecedentes criminais do arguido:

38. O arguido não sofreu quaisquer condenações.

Das condições pessoais do arguido:

39. O arguido nasceu em … 1977.

40. Reside sozinho, numa habitação tipologia T2, no local do ….

41. O processo de socialização de AA decorreu na cidade do …, de onde é natural.

42. Do seu agregado familiar de origem fazia parte o progenitor, que faleceu quando o arguido tinha cerca de 11 anos, a progenitora, GG, de 74 anos e quatro irmãos, tendo o mais velho falecido após 5 anos do pai, vítima de doença oncológica.

43. Foi transmitido um bom relacionamento intrafamiliar, com destaque para uma proximidade entre o arguido e progenitora que se constitui como o seu “pilar” afetivo e emocional.

44. A primeira relação marital do arguido, durou cerca de 9 anos, sem filhos, na cidade de onde é natural, cujo relacionamento foi descrito como positivo e termo fundamentado, de acordo com a progenitora do arguido por problemas de toxicodependência da sua companheira.

45. Tem o 6.º ano de escolaridade.

46. Iniciou atividade laboral por volta dos 17/18 anos de idade, numa …, como forma de ajudar economicamente a família.

47. Posteriormente começou a trabalhar na área da …, em máquinas/ perfurações, tendo iniciado atividade na empresa “…”. No âmbito destas funções, sido convidado para integrar a “…”, onde trabalhou até há 1 ano e uns meses.

48. Foi na emergência do presente processo que decidiu o afastamento da empresa, onde trabalha a ex-mulher, aqui ofendida BB.

49. Durante o seu percurso profissional exerceu atividade em diferentes países, como …, …, …, … ou …. Já a trabalhar em Portugal, para a “…”, referiu ter tido ainda deslocações, entre o … (obras no túnel do … e metro do …) e nas minas de …, em ….

50. Tem duas filhas menores de idade com a aqui ofendida BB, de nome DD, com 15 anos, e CC, de 5 anos de idade.

51. DD foi diagnosticada com doença crónica do foro da saúde mental - ….

52. Tentou o suicídio duas vezes, sendo que numa desta tentou o enforcamento, tendo sido assistida pelo arguido que evitou a tragédia.

53. Desde então, a jovem esteve internada, tendo sido acompanhada permanentemente pelo arguido, o qual afirma que a sua preocupação é garantir que a filha nunca esteja sozinha, para não tentar outra vez o suicídio.

54. Mantem com ambas as filhas relação de grande proximidade, afeto, prestação de cuidados básicos e acompanhamento diários.

55. No âmbito do processo de regulação de responsabilidades parentais, foi atribuída, por acordo, a guarda de ambas as filhas à progenitora BB, aqui ofendida.

56. Manteve uma relação afectiva com a ofendida desde o ano de 2007, na altura, residentes na …, onde desempenhavam atividade profissional e se conheceram.

57. Contraíram matrimónio no ano de 2014, altura em que já tinham uma filha em comum e residiam na localidade do … (…), tendo-se divorciado no ano de 2024.

58. O arguido descreve o relacionamento afetivo com a alegada vítima, com “altos e baixos”, mas isento de conflitos.

59. Caracteriza e fundamenta este período da sua vida, na dedicação à vida familiar, sobretudo à prestação de cuidados e apoio diários às filhas menores de idade.

60. Descreve um bom relacionamento com a vítima mesmo após a separação, tendo apoiado a mesma na sua ocupação/fixação habitacional atual, referindo, contudo, que não aceita atitudes de alegada negligência da vítima relativamente às filhas, sendo o próprio que refere terem existido, como deixá-las sozinhas em casa em período noturno, entregues a si próprias.

61. Aproximadamente um ano antes da separação do casal, adquiriram habitação própria, que posteriormente venderam, tendo o arguido regressado à habitação do … e a vítima e filhas arrendaram habitação em …, da qual o arguido foi fiador do arrendamento.

62. A vítima corrobora a dedicação do arguido às filhas, nomeadamente descrevendo-o como um pai sempre presente, acompanhando-as não só no seu percurso social e escolar, como também ao nível da saúde da filha DD, nomeadamente em hospitalizações, o que deixou de acontecer após a separação do casal.

63. A vítima referiu ainda que o relacionamento do casal se caracterizava por instabilidade, advinda de alegadas infidelidades e mentiras que a própria refere que o mesmo adotava.

64. Acrescenta instabilidade emocional do arguido, com necessidade de acompanhamento psicológico, que BB refere sempre ter apoiado.

65. Atualmente, AA mantém relação afetiva, de namoro com HH, de 56 anos, residente no …, na zona de …, desde há aproximadamente 5/6 meses.

66. É descrito por ambos um relacionamento gratificante, constituindo-se o elemento feminino como um suporte emocional e de apoio.

67. Atualmente encontra-se a receber subsídio de desemprego, referindo um valor mensal de aproximadamente 1200 euros.

68. Em termos de despesas mensais referiu as decorrentes da ocupação habitacional, no valor de 400 euros de renda e gastos de fornecimento de água, eletricidade, gás e telecomunicações, num valor mensal total de aproximadamente 200 euros.

69. Acresce o pagamento decorrente de um empréstimo bancário de crédito automóvel, no valor de 188 euros.

70. Despende mensalmente a quantia de 250,00 euros a título de pensão de alimentos relativo às duas filhas menores de idade.

71. AA referiu passar o tempo livre na companhia dos animais que possui, em contexto de casa e desde que tem um novo relacionamento afetivo, desloca-se frequentemente a … onde reside a namorada.

72. A emergência do presente processo repercutiu-se na vida profissional e emocional do arguido, sobretudo pelo afastamento da empresa onde desempenhava funções desde há bastante tempo e pelo agravamento da instabilidade psicológica, num quadro depressivo.

73. Esta situação levo-o a recorrer a consulta no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da ULS… com terapia medicamentosa, não o permitindo ter condições atualmente, para assumir a responsabilidade de ficar com as filhas nos períodos que lhe estão judicialmente definidos.

74. Referiu ter como objetivo posterior, retomar a atividade profissional e reorganizar a sua vida de modo a poder acompanhar as filhas.

75. AA, encontra-se sujeito à medida de coação de proibição de contatos com a vítima de violência doméstica fiscalizada com vigilância eletrónica, desde 20 de julho de 2024.

76. Do acompanhamento da medida e não obstante o registo de alarmes decorrentes de violações da zona de exclusão fixa em redor da casa da vítima, sempre que contatado justifica os incumprimentos com motivos de ordem pessoal e profissional, não decorre relatório de incidentes.

77. Por outro lado, a vítima não comunicou qualquer anomalia, sendo que de acordo com informação da Equipa de VE, o arguido mantém um comportamento respeitoso para com os técnicos.

78. Manifesta preocupação quanto à decisão judicial que possa vir a ser tomada, aguardando uma decisão, sobre a qual se encontra disponível para cumprir com o que vier a ser determinado, assumindo uma postura de arrependimento do comportamento adotado, apesar de não se rever nalgumas situações por que está indiciado

B. FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevância para a boa decisão da causa, ficou por provar que:

a. Durante a relação o arguido tivesse sido sempre muito controlador, monitorizando tudo aquilo que a ofendida fazia.

b. Em data não concretamente apurada, mas seguramente depois do nascimento da primeira filha e antes do nascimento da segunda filha de ambos, quando a ofendida manifestou vontade de se separar do arguido, este lhe tivesse dito que se ela fizesse isso que lhe retirava a filha, que lhe retirava o seu sustento e que só a deixava ir embora quando ele estivesse bem.

c. Sempre que se sentia contrariado, o arguido fechava o punho para intimidar a ofendida.

d. O descrito em 4) ocorresse pelo facto de a ofendida trabalhar por contra de outrem.

e. O descrito em 6) tivesse ocorrido também porque a ofendida tinha bastante medo de qual seria a reacção do arguido.

f. Aquando a separação o arguido tivesse dito que se no futuro a ofendida começasse uma relação com outra pessoa que os matava aos dois, que “só estás … porque eu quero, tiro-te as filhas, puta, vaca, não vales nada nem como mulher nem como mãe, foste a minha desgraça, só me encheste de dívidas, a tua mãe é uma puta és a pior mãe do mundo, a tua mãe é a culpada do nosso divórcio, a nossa filha é a culpada do nosso divórcio”.

g. Mesmo após a separação, o arguido tivesse mantido um sentimento de posse relativamente à pessoa da ofendida, controlando-a e vigiando-a, pedindo-lhe satisfações de onde está, com quem está, observa onde é que ela tem o carro estacionado para calcular as movimentações da mesma.

h. O descrito em 8) tivesse ocorrido de forma não concretamente apurada, e sem a autorização da ofendida.

i. O arguido tanto faz declarações de amor à ofendida, como do nada, a ameaça e insulta.

j. O arguido, a pretexto de vir ver/buscar as filhas menores de idade, por vezes, entrou dentro da residência da ofendida sem o consentimento desta para espreitar lá para dentro, para controlar a ofendida e se intrometer na sua vida, dizendo-lhe “que era feio só estar ali à porta com as crianças” e depois saía e ia embora sem levar as filhas.

k. O arguido não se conforma com o fim da relação com a ofendida e exterioriza ter esperança de voltarem a terem uma relação e diz frequentemente à ofendida que “um dia ainda vamos casar, não quero mais mulher nenhuma”.

l. O arguido disse por várias vezes à ofendida que não sabe como é que ia reagir se esta algum dia tivesse alguém “a ti não sei o que te faço mas a ele mato-o”.

m. Nas ocasiões em que foi à residência da ofendida, o arguido tivesse pedido à ofendida para voltarem, tivesse dito que a amava, e quando era rejeitado, tivesse reagido mal, tendo, por mais do que uma vez distinta agarrado no braço da ofendida e tendo-a beijado na boca contra a vontade e sem o consentimento desta em frente das filhas.

n. O descrito em 10), 12) e 13) tivesse ocorrido à força, contra a vontade e sem o consentimento da ofendida.

o. No dia 29.06.2024, o arguido nessa ocasião tivesse dito à ofendida “que não se importava com ele nem com a ofendida nem com as filhas”, como quem diz que não tinha nada a perder, e “proibiu-a de entrar no …”.

p. Aquando o descrito em 25) o arguido tivesse dito à ofendida “não vens aqui, limpo-te o cebo, vou apanhar-te, parto-te o pescoço, acabo contigo, o pai já foi, o filho [FF e o seu pai] já as paparam. Não te quero voltar a ver no …!” e que “a apanhava logo na …”.

q. Aquando o descrito em 26) o arguido tivesse dito à ofendida o descrito em p), e lhe tivesse dito telefónica “vou-te apanhar logo à noite, vou à tua casa e limpo-te o sebo, o pai e o filho já as mamaram, tu és a próxima, vou-te tirar as filhas, puta vaca”.

r. Aquando o descrito em 26) o arguido tivesse dito à ofendida que ia falar com a chefe dos recursos humanos da … que ou ficava ela ou ele.

s. No fim de semana dos dias 29.06.2024 a 30.06.2024 o arguido tivesse dito várias vezes à ofendida: “limpo-te sebo, parto-te o pescoço, acabo contigo, dou cabo de ti”.

t. Após o descrito em 29) o arguido tivesse perguntado à ofendida o que é que ela estava ali a fazer (porque, segundo ele, ela estava “proibida” de entrar no …, por ser o local da residência do FF).

u. O arguido tem um sentimento de posse relativamente à pessoa da ofendida, que ela é dele e não aceita o termo da relação, não respeita a ofendida e não se abstém de se intrometer na sua vida da ofendida.

v. A ofendida se encontra assustada por ver que o arguido não respeita a sua vontade de não o querer na sua vida.

w. O descrito em 34) tivesse ocorrido contra a vontade e sem o consentimento desta filha DD e da ofendida BB, com o propósito de vigiar a vítima bem sabendo que tais mensagens eram conversas privadas entre mãe e filha e que não lhe eram dirigidas e, ainda assim, divulgou-as a terceiros.

x. O arguido tivesse agido com propósito de perturbar e agredir psicologicamente a ofendida.

y. Tivesse praticado os actos na residência da ofendida sua cônjuge e na presença das suas filhas menores, o que quis e logrou.

z. O arguido não se inibiu de agir do modo descrito querendo e satisfazendo os seus impulsos sexuais, quis e logrou constranger a ofendida a suportar numa ocasião, que a beijasse na boca e noutra ocasião, colocou as mãos por cima da roupa nas nádegas e nos seios da ofendida, atentando contra a sua vontade, liberdade e autodeterminação sexual.

aa. O arguido, ao ter ido Posto da GNR da Vila de …, onde tinha amigos Militares, relatar factos despropositados, que incidem sobre a esfera íntima e sexual da vítima, faltou o arguido com o respeito devido à vítima, sua cônjuge, como era do conhecimento do arguido, atingindo-a, assim, na sua honra e consideração.

Consigna-se que não foram tomados em consideração os factos de matriz conclusiva, irrelevantes para a boa decisão da causa e direito e, ainda, os que consubstanciem meras formulações negativas dos factos positivos dados como provados.

C. MOTIVAÇÃO DE FACTO

Resultaram fundamentais para a formação da convicção do Tribunal, no que diz respeito aos factos provados, a conjugação, sob a égide do princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, dos seguintes elementos de prova:

a. Declarações do arguido;

b. Documental

▪ Auto de notícia, fls. 48 a 51 e cota de fls. 88.

▪ Prints de mensagens, fls. 52 a 54.

▪ Registo de chamadas, fls. 145 a 148 ou ref.ª … de 11.07.2024.

▪ Notificação de preservação e entrega de imagens de videovigilância, fls. 109.

▪ Pen-drive com as imagens de videovigilância em envelope na contracapa.

▪ Time Line, fls. 149 a 157 ou ref.ª … de 11.07.2024.

▪ Auto de notícia, fls. 210 a 214.

▪ Print screen de mensagens, fls. 405 a 412 ou ref.ª … de 21.10.2024.

▪ Certidão nascimento de AA; BB; CC; e DD, ref.ª …

▪ T.I.R., fls. 115;

▪ Relatório social da D.G.R.S.P., ref.ª citius ….

▪ C.R.C., fls. 2964486;

▪ Declaração ULS…, ref.ª citius …;

c. Testemunhal

Da acusação

▪ BB (declarações para memória futura);

▪ DD (declarações para memória futura), bem como declarações prestadas mediante M.P. constantes a fls. 43 e 44;

▪ II;

▪ JJ;

▪ KK;

▪ LL;

▪ MM;

▪ NN;

▪ FF;

Da contestação

▪ OO;

▪ PP

Concretizando:

A motivação da matéria de facto reveste manifesta complexidade, atendendo à prova produzida.

De facto, foi o tribunal presenteado com três versões dos factos, parcialmente coincidentes entre si, mas no restante e quanto aos factos essenciais divergentes e descritas em contextos diferentes: a versão trazida aos autos pelo Ministério Público, a versão trazida pelo arguido e corroborada pela prova testemunhal junta, e a versão trazida aos autos pela ofendida e pela filha DD que nada mais foi do que um depoimento “espelhado” parcialmente da sua progenitora.

O depoimento da testemunha BB foi um depoimento que gravitou sempre à volta da sua pessoa, e de um alegado medo do arguido, sendo claramente contraditório, e por isso não merecedor de credibilidade. A sua narrativa nunca incidiu em torno das suas filhas, mas sim em torno de si própria, e de uma necessidade constante de autonomização económica, e medo injustificado do arguido.

Por um lado, a ofendida descreve o arguido como pessoa que nunca lhe fez mal, que sempre a chamava de “santa”, e que sempre fez tudo que a ofendida queria, afirmando, contudo, que o arguido nunca aceitaria que a mesma tivesse uma vida autónoma, contudo, sem narrar factos que sustentem tal tese.

Descreve que o arguido tem uma personalidade mais vincada, tendo uma maneira de falar e se manifestar que ressalta a todos os presentes, por ser expansiva, contudo, afirma que o mesmo nunca a tratou mal, nunca foi violento com a mesma, nem a humilhou em qualquer altura no decorrer do casamento, e mesmo aquando separação. Afirma que teve sempre medo dele, afirmando que o arguido sempre acreditou que ofendida nunca conseguiria se separar dele, contudo não narra factos que justifiquem tal medo ao longo do casamento, nem tal convicção. Descreve o arguido como pai presente, e preocupado com o bem estar de ambas as filhas, em especial da filha DD.

Quanto ao findar da relação, descreve que ocorreu um primeiro momento há muitos anos atrás no decurso do casamento, no qual se tentou se separar do arguido, tendo ido viver com as filhas para a casa da sua progenitora para …, e iniciado trabalho nesse local. Contudo, e atenta a perda de qualidade de vida, e obtenção de vencimento mensal que descreve como não sendo suficiente para suprir as suas necessidades (salário mínimo nacional), decidiu voltar para o arguido, não obstante ter “teto onde podia viver sem qualquer custo com as filhas”.

Descreve a ocorrência de um segundo momento de separação, durante o qual o arguido e ofendida compraram uma casa nova em …, tendo a ofendida ido para lá viver com as filhas, e o arguido apoiado sempre a mesma economicamente. Contudo, refere ter-se sentido vigiada e com medo do arguido, sem justificar tal facto narrando factos concretos que permitam sustentar tal afirmação. Quanto aos alegadas apalpadelas e beijos contra a sua vontade, refere que o arguido às vezes tentou beijá-la, mas a ofendida desviava a cara, narrando tais factos como uma tentativa de reatamento da relação, e seu afastamento do arguido.

Ainda durante este período da alegada separação, decidiu já o separado casal vender a moradia nova, tendo a ofendida decidido arrendar uma casa, para aí alegadamente ter paz, sem justificar factualmente do porquê de não ter paz. Aí, e mais uma vez, descreve que o arguido é que tratou de tudo, das mudanças, do contrato de arrendamento, com o seu consentimento, contudo, continua a descrever ter medo do arguido, sem qualquer sustento fáctico, apenas afirmando que toda a gente tem medo dele.

Ao longo do seu depoimento, foi claro para o tribunal que a ofendida autorizou que o arguido, mesmo após a separação, tinha tido intervenção na vida da ofendida, para suprir as suas necessidades financeiras, bem como satisfação de outras necessidades, que designamos de ajudas diárias, sendo esta que requisitava muitas vezes os seus préstimos.

No que ao ascendente sobre a alegada vítima concerne, nunca, em momento algum, a ofendida narrou factos que permitam ao tribunal chegar à conclusão, ou sustentar qualquer tipo de ascendente do arguido em relação à ofendida. Muito pelo contrário, o arguido sempre apoiou até que a arguida tivesse emprego. A ofendida narra que quando decidiram inicialmente viver em … como casados, o arguido abriu um café, onde a ofendida trabalhava permanentemente, e o arguido trabalhava na …, ajudando ainda a ofendida no referido café. Depois, a ofendida vou viver pouco tempo com a progenitora, tendo voltado para …, e o arguido ajudado a mesma a conseguir trabalho na … da …, onde se mantém a trabalhar até hoje. Quanto a questão monetária, sempre a ofendida dispôs do dinheiro quando casada, gastando no que bem lhe apetecia, tendo aliás afirmado que o arguido lhe dava dinheiro mesmo após a separação, em montantes sempre iguais ou superiores a 100 e 200 euros de cada vez.

A ofendida ao longo da sua narrativa tenta ainda diabolizar o arguido, afirmando que o mesmo quando ocorria uma separação afirmava sempre que lhe ia tirar alguma coisa, ora as filhas, ora o trabalho, contudo, ao longo do seu depoimento afirma que o arguido pratica actos que a ajudaram na sua autonomização, e que já supra se descreveram, o que só por si é contraditório.

Ora, esta retórica pautada por manifestas contradições, fizeram com que o tribunal afirme, sem hesitar, que o depoimento da mesma não é crível, tendo tal depoimento sido até contraditório com a restante prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, que foi consentânea com as declarações do próprio arguido.

Quanto às alegadas agressões infligidas pelo arguido a FF, a ofendida afirma que isso aconteceu, e que o FF desapareceu da sua vida por causa do arguido. Contudo, a própria testemunha FF presente neste tribunal afirmou, de maneira objectiva e espontânea, e por isso merecedora de credibilidade, conhecer o arguido não tendo nada contra o mesmo, nem tido sido agredido por este, tendo tido relacionamento esporádico com a ofendida sem mais.

Por outro lado, temos a própria progenitora da ofendida, de nome NN, que afirma que o arguido sempre foi pessoa respeitadora, nunca tendo visto o contrário, afirmando a própria que sempre aconselhou a filha a estar com o arguido como casal pois este a tratava bem.

A ofendida chega ao ponto de afirmar que o arguido era pessoa que não respeitava a lei, fazendo ele a sua própria lei, contudo, tal afirmação não teve qualquer tipo de suporte testemunhal, muito pelo contrário, tendo, aliás, o tribunal constatado uma postura do arguido completamente concordante com o direito aquando realização do julgamento, sempre respeitando este a ordem dos trabalhos, e tendo uma postura cordial e respeitosa perante o tribunal no decurso da audiência de julgamento, bem como aquando prestação de declarações. Aliás, o próprio arguido, fruto da medida de coação aplicada no âmbito dos presentes autos, decide não mais trabalhar na …, para aí a ofendida continuar a trabalhar, o que só por si reflete que o arguido não tenta tirar algo à ofendida, mas sim cumprir ordens do tribunal, abdicando da sua única fonte de rendimento e sustento.

O testemunho de DD foi o que chamamos de depoimento “espelhado”, tendo inclusive a jovem usado expressões, e manifestado esta ausência do arguido querer a autonomização da progenitora, nos mesmos moldes da ofendida BB, fazendo constatações de alegados factos, e interpretações dos mesmos nos mesmos moldes da progenitora, (o arguido aparecer na moradia sem avisar, para vigiar a mãe, etc), afirmando coisas que nunca viu, mas que ouviu a progenitora dizer (exemplo, pai chamou cabra, filha da puta e farsa à progenitora), tendo ainda afirmado ser conhecedora que o pai tinha apresentado queixa contra a mãe, com o propósito para de a prejudicar, sem mais, constatação fáctica que, atenta a idade da jovem, e o seu depoimento e dificuldade narrativa, permitem ao tribunal afirmar que a mesma apenas afirma o que ouve da progenitora fora das portas do tribunal, fazendo suas as convicções da progenitora. A própria jovem revelou ainda ter completa ausência de sentido critico para a sua própria doença, afirmando que pode estar sozinha em casa, e que o arguido diz que ela não pôde, com o único objectivo de prejudicar a progenitora, sendo tal constatação injustificada, atento o seu histórico clínico e 2 tentativas de suicídio. No mais, afirma que o pai dá coisas, está presente, compra mercearia para a casa da progenitora mesmo após separação, afirmando que o arguido sempre tratou bem as filhas, tendo sempre acompanhado a testemunha nas consultas e idas ao hospital. Afirma ter medo que a progenitora desapareça, nem sequer justificando tal afirmação com factos vivenciados, pois nunca descreve o arguido como pessoa violenta ou ameaçadora.

Em suma, também este depoimento de DD não foi consentâneo com a demais prova produzida, notando-se claramente que é um depoimento tendencialmente manipulado voluntariamente pela ofendida BB, que faz afirmações perante a jovem que esta toma como verdades absolutas, e que não o são de todo, tendo sido produzida prova crível e objectiva em sentido contrário nestes autos.

Ora, as demais testemunhas, inclusive a progenitora da própria ofendida BB, descreve o arguido como pai presente, trabalhador respeitado, marido afectuoso, fazendo cair por terra em grande parte a versão trazida aos autos pelo Ministério Público.

A testemunha II, na qualidade de militar da GNR, e no fiel exercício das suas funções, confirma autoria do auto, fls. 48, bem como a recolha das imagens constantes a fls. 149 a 157.

As testemunhas JJ, e KK, trabalhadoras na … (… onde arguido e ofendida trabalhavam), afirmam nunca terem presenciado nenhum acto violento do arguido, nem expressão verbal imprópria, apenas sabendo esta última o que a ofendida lhe narrou, sem manifestar conhecimento directo dos factos. Ambas, contudo, afirmam serem conhecedoras que o arguido é pai preocupado, tendo acompanhado os vários internamentos de DD, e se ausentado do trabalho por esse motivo durante um período considerável de tempo.

Também a testemunha LL, chefe da ofendida na empresa …, nada sabe e nada viu directamente, descrevendo apenas o que a ofendida lhe disse, tendo ainda relatado que foi o arguido que pediu que a ofendida trabalhasse na empresa, e ser conhecedor directo que o arguido acompanhou o estado de saúde da filha DD, bem como o pós tentativa de suicídio da jovem. Descreve o arguido como pessoa simpática, trabalhadora, e pessoa que apenas refletia sempre profundo pesar e preocupação com o estado de saúde da filha.

A isto acresce o depoimento da testemunha MM, ama da filha CC, que durante anos conviveu com o arguido e com a ofendida BB, e descreve o arguido como verdadeiro cavalheiro em relação à sua esposa. Afirmou ainda que nunca ouviu a criança dizer nada contra o arguido, tendo apenas referido a expressão “partir os cornos”, sem contextualizar a mesma.

Já a testemunha OO, amigo do arguido, e testemunha que prestou um depoimento escorreito, objectivo e contextualizado, e logo merecedor de credibilidade, descreveu que o arguido era um autêntico faz tudo na vida da ofendida BB, descrevendo os mesmos como casal perfeito. Afirma que ajudou o arguido nas mudanças de casa realizadas pela ofendida BB ( transporte móveis, montagem de móveis, etc), tendo ainda assistido ao arguido a intervir na celebração do contrato de arrendamento, e a pagar ao senhorio a primeira renda e caução, que eram da responsabilidade da ofendida BB, quando estes já se encontravam separados à meses. Afirma que mais do que uma vez estava com o arguido em momentos em que este recebia telefonemas da ofendida BB a pedir dinheiro, e este lá lhe entregava dinheiro, factos que a testemunha assistia presencialmente, relatando, de forma espontânea, que ficou chocado quando assistiu, após separação, que a ofendida BB telefonou numa das vezes a pedir dinheiro ao arguido para realização de cirurgia estética (botox), não obstante os mesmos já não terem relação amorosa, o que não achou nada normal. Descreve o arguido, em suma, como um “bom serás”, que tudo faz pelas filhas, inclusive provendo sustento económico à ofendida BB tendo sempre em vista o bem estar das filhas. Esta testemunha acompanhou ainda de perto os episódios de sofrimento do arguido, e a preocupação constante deste em garantir que a filha DD nunca esteja sozinha, para obstar a uma possível 3.ª tentativa de suicídio.

As declarações do arguido, pessoa depressiva, sofrida, gravitou sempre à volta da preocupação diária com a filha DD, e medo que esta ponha fim à sua vida. O arguido prestou declarações contextualizadas no tempo, colocando-se sempre em segundo plano, fazendo do bem estar da filha DD, atentos os problemas de que padece, bem como da filha CC, o seu centro de vida desde que a mesmas nasceram.~

O arguido prestou declarações de forma objectiva, contextualizada, e espontânea, confessando parte dos factos contextualizadamente no tempo, tendo, por isso, sido crível. Quanto ao episódio em que visionou o carro do próprio, usado pela ofendida, na casa de FF, confessou o enviou de tais mensagens à ofendida, bem como a “perda de norte”, por si sofrida, manifestando profundo arrependimento diversas vezes e de forma sincera. Justificou o seu comportamento com o facto de ter ficado indignado pelo facto de a própria progenitora ter deixado DD sozinha, quando sabe bem os problemas de saúde de que esta padece, bem como as tentativas de suicídio. No seu discurso foi patente que o fim do relacionamento dos mesmos nunca foi um fim puro e duro, mas sim pautado por um vai e vem da ofendida da vida do arguido, consoante as vontades e necessidades da ofendida, e suprimento das mesmas. Afirmou ainda não ter sentimento controlador perante a ofendida, tendo, aliás, sido o próprio arguido que tratou dos papeis do divórcio e suportou os custos com o mesmo, facto que foi corroborado pela testemunha QQ, que ainda ajudou o arguido em tal tarefa.

Em suma, o amor que o arguido nutre pelas filhas é tanto e de tal ordem, que o mesmo por ser trabalhador por turnos, e por ter uma ideia de que as filhas têm de estar com as progenitoras, como premissa inabalável, atento o seu histórico de vida, tudo fez e faz pelas filhas, não tendo pedido guarda partilhada, por esse mesmo motivo.

Quanto ao facto que o arguido ter apresentado queixa com o proposto de humilhar a ofendida, e de lhe faltar ao respeito, tal factualidade não é sustentada por nenhuma prova produzida, nem pelo próprio depoimento da ofendida BB. Aliás, não vislumbra o tribunal como é que o direito de um ser humano de recorrer aos tribunais e à justiça, direito de queixa, direito constitucionalmente consagrado, pode ser consubstanciador do crime de violência doméstica.

Assim, deu o tribunal como provados os factos constantes do ponto 1) dos factos provados atento o assento de nascimento de RR, a fls. 91 e assento de nascimento de SS, a fls. 92.

Quanto ao facto descrito no ponto 1) a 37) dos factos provados, atendeu o tribunal às declarações parcialmente confessórias do arguido, conjugadas com a demais prova testemunhal, a saber, depoimento das testemunhas II, JJ, KK, LL, MM, NN e FF, OO e PP conjugado com a demais prova documental, a saber, auto de notícia, fls. 48 a 51 e cota de fls. 88, prints de mensagens, fls. 52 a 54, registo de chamadas, fls. 145 a 148 ou ref.ª … de 11.07.2024, notificação de preservação e entrega de imagens de videovigilância, fls. 109, pen-drive com as imagens de videovigilância em envelope na contracapa, time Line, fls. 149 a 157 ou ref.ª … de 11.07.2024, auto de notícia, fls. 210 a 214, print screen de mensagens, fls. 405 a 412 ou ref.ª … de 21.10.2024 e certidão nascimento de AA; BB; CC; e DD, ref.ª citius ….

No que diz respeito à ausência de antecedentes criminais do arguido constantes do ponto 38) dos factos provados, resultam os mesmos do certificado de registo criminal fls. 2964486.

Quanto aos factos descritos nos pontos 39) a 78) dos factos provados, resultaram tais factos do T.I.R. a fls. 115 e do Relatório social da D.G.R.S.P. ref.ª citius … e declaração ULS…, ref.ª citius ….

Nesta senda, deu o tribunal como não provados os factos constantes dos pontos a) a aa) dos factos não provados, atenta a ausência de prova produzia, e/ou atenta a produção de prova em sentido contrário.

3.2. Mérito do recurso

3.2.1. Vícios do artigo 410º do CPP

O Ministério Público invocou que ocorre o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º nº 1 al. c) do CPP.

Este vício respeita ao estabelecimento da matéria de facto e caracteriza-se, essencialmente, por uma avaliação da prova contrária às evidências, clamorosamente enganada ou omissa, em resultado de um erro lógico no raciocínio, que consiste em retirar da prova uma ilação manifestamente errada, insuscetível de levar ao convencimento de qualquer pessoa. O erro tem de revelar-se no próprio texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.

É manifesto que o vício alegado no recurso se encontra mal qualificado.

Por um lado, diz o Ministério Público que o erro notório consiste em não se ter condenado o arguido pelo crime de violência doméstica, quando o simples envio das mensagens por si confessado o impunha. Só que, como é bom de ver, aquilo que aqui está invocado não é uma desconformidade entre as provas analisadas e a matéria de facto estabelecida como provada, mas sim uma desconformidade entre o significado jurídico dos factos provados e a conclusão de direito que deles o tribunal retirou. Ou seja, não está em causa, na perspetiva do recurso, um vício relativo à matéria de facto, mas tão somente um erro de direito, de errada subsunção jurídica dos factos ao tipo penal imputado na acusação.

Por outro lado, no segmento seguinte, afirma o Ministério Público que o tribunal, ao ter dado como provados certos factos, não podia ter dado como não provados outros, visto isso ser contraditório. Ora, na lógica desta alegação, do que se trata não é de o tribunal ter errado na interpretação das provas para ter retirado delas uma conclusão insubsistente, mas sim de ter ao mesmo tempo dado como provados e não provados factos de significado contrário e inconciliáveis uns com os outros. Trata-se, portanto, do vício do artigo 410º nº 2 al. b) do CPP, que consiste na existência de contradições na fundamentação da sentença ou entre a fundamentação e a respetiva decisão, criadoras de uma incompatibilidade lógica e inconciliável entre os factos provados e/ou não provados ou entre estes e a decisão, que a leitura da sentença não permite resolver.

Sendo assim, é claro que o vício apontado à sentença não é o que se qualifica no recurso. Todavia, tratando-se de vício de conhecimento oficioso o erro de qualificação jurídica é irrelevante e será verificado já de seguida.

Afirma-se que os factos não provados do ponto g) são contraditórios com os factos provados dos pontos 1 a 7 e 15 a 28. Na tese do recurso, se, por um lado, ficou provado que o arguido, em suma, acusou a vítima se não ser boa mãe e não fazer o suficiente em casa (pontos 4 e 5), lhe mandou mensagens ameaçadoras controladoras e insultuosas por ter ficado desagradado com o facto de ter visto o carro dela à porta de outro homem (pontos 15 a 17), lhe fez uma espera no local de trabalho para lhe manifestar o mesmo tipo de sentimentos (pontos 19 a 27), resultando daí que ele achava que ela lhe pertencia e devia fidelidade e satisfações, então tinham de se ter considerado demonstrados os factos do ponto g): sentimento de posse, controlo, vigilância, exigência de satisfações sobre onde estava e com quem estava e monitorização das movimentações de carro.

A alegada contradição, contudo, não existe.

Na acusação foram imputados ao arguido outro tipo de comportamentos subsumíveis nas expressões enumeradas no ponto g) que não ficaram provados. Em relação às ações individualizadas que não se provaram, não há qualquer contradição pois as expressões que constam naquele ponto eram complemento explicativo das mesmas. Não se provando a premissa, não se haveria de se provar a conclusão dela resultante. Em relação aos factos concretos que se provaram, o seu significado resultará das conclusões que deles o tribunal puder retirar e não das preposições de conteúdo meramente explicativo que constam na acusação.

Noutro ponto, afirma-se também que a prova do envio das mensagens que constam nos factos do ponto 16 impunha que se tivessem dado como provados os factos do ponto u). Ou seja, se o arguido enviou as mensagens com aquele conteúdo, isso significa que tinha os imputados sentimentos de posse sobre a vítima, que não aceitou o termo da relação, que não respeitou a vítima e que não se absteve de se intrometer na vida dela.

Uma vez mais sem razão.

O que importa é verificar o que as ações praticadas pelo arguido permitem concluir e que significado jurídico se pode delas extrair no plano da subsunção dos factos no tipo legal. É redundante e por isso inútil a técnica acusatória de imputar os factos, entendidos estes como a narração sequência de acontecimentos da vida real que constituem o evento histórico que integra o crime, nas suas circunstâncias de modo tempo e lugar, isto é, a ação típica penalmente relevante e o grau de participação do arguido, para, depois, com meros propósitos de reforço argumentativo, se elencarem outras imputações repetitivas de conteúdo genérico, imprecisas ou meramente explicativas, que nada acrescentam ao objeto da acusação. Sendo assim, se o tribunal deu como provado o envio das mensagens e também a intenção que o arguido teve ao atuar dessa maneira (pontos 16, 36 e 37), não tinha de se pronunciar sobre as alegações repetidas e inúteis que, além do mais, na lógica da acusação, se referiam igualmente a outros factos que nem sequer se provaram.

Diz-se ainda no recurso que é contraditório dar-se como provado que o arguido teve acesso ao telemóvel da filha e às mensagens trocadas entre ela e a vítima e que divulgou essas mensagens no processo (ponto 35), para depois se não dar como demonstrado que fez isso sem o conhecimento e contra a vontade delas, bem sabendo que eram mensagens provadas.

Não há qualquer contradição.

Um pai pode aceder às mensagens armazenadas no telemóvel da filha de 15 anos sem que daí resulte necessariamente que o fez contra a vontade dela e muito menos que o fez para violar a sua privacidade. Pode ter havido um pedido prévio, um conjunto de circunstâncias das quais se podia retirar um consentimento tácito ou até uma atuação legitimada pelo exercício dos poderes/deveres de vigilância e proteção próprios da paternidade – convém recordar que se tratava do telemóvel de uma menor com 15 anos de idade, com problemas de saúde e tentativas prévias de suicídio. O que é de todo temerário é concluir que o pai que consulta as mensagens do telemóvel da filha o tem de fazer para “espiar” as mensagens que esta trocou com a mãe. Seja como for, o que importa é que o tribunal deu como não provado que essa consulta tivesse sido feita sem o conhecimento e contra a vontade da vítima e da filha do casal e sem a devida impugnação da matéria de facto, feita nos termos previstos no artigo 412º nºs 3 e 4 do CPP, a conclusão do tribunal é insindicável em recurso.

Por fim, diz-se que o tribunal, ao ter dado como provado que o arguido era amigo de militares da GNR do Posto onde apresentou uma participação contra a vítima e que tendo relatado nessa participação factos da vida sexual íntima dela (pontos 31 a 37), então tinha também de ter dado como provado que atuou dessa maneira para faltar ao respeito que lhe era devido e para a atingir na sua honra e consideração.

Não vemos como.

O arguido, no exercício legítimo de um direito, entendeu apresentar uma participação criminal contra a pessoa que tinha apresentado queixa contra si. Incluiu nessa queixa os factos que entendeu necessários, incluindo referências a comportamentos sexuais íntimos da participada. Fez isso no Posto da GNR, que é o local próprio, perante as autoridades legítimas, sendo indiferente que fosse ou deixasse de ser amigo de alguns militares. Não se sabe que amigos eram esses, não se demonstrou que isso tivesse alguma relevância para o caso na apresentação da participação criminal, nem tão pouco que tivesse havido alguma revelação desses factos sigilosos fora do processo, como parece insinuar-se no recurso. Ficamos sem saber se o que o arguido alegou ali era verdade ou mentira ou até se teria alguma relevância criminal porque o Ministério Público, no exercício dos seus poderes, decidiu arquivar o inquérito nessa parte. O que não podemos de todo em todo presumir é que o arguido atuou com o intuito desrespeitoso e humilhante que lhe estava imputado. Se o Ministério Público entendia que esse facto devia ter ficado provado, então teria de ter impugnado o julgamento da matéria de facto nos termos do já referido artigo 412º nºs 3 e 4. Contradição entre factos provados e não provados manifestamente não existe.

3.2.2. Subsunção dos factos ao direito

Importa agora verificar se os factos integram ou não o crime de violência doméstica, uma vez que é este o ponto controvertido essencial.

O afastamento da qualificação como crime de violência doméstica pelo tribunal recorrido, depois da exposição dos traços gerais doutrinários e jurisprudenciais considerados mais pertinentes, está assim justificado na sentença:

«In casu, entende o tribunal que não se encontram preenchidos todos os elementos objectivos do crime de violência doméstica, agravado nos termos do disposto no n.º 2 do preceito. Efectivamente, conclui este Tribunal que a factualidade provada, e mais concretamente o episódio vertido nos pontos 15) a 16) dos factos provados, não configura um «mau trato», isto porque a conduta do arguido assume, efetivamente, relevância penal, todavia, não revela o tal elemento de adequação à afetação do cerne da dignidade da sua então (ex) companheira exigido pelo tipo penal da violência doméstica (no sentido de a conduta do agente, considerada individualmente e também na sua globalidade, configurar uma efetiva situação de expressão de um abuso de poder na relação afetiva, suscetível de atingir a integridade pessoal da vítima nessa relação e por via dessa posição de poder).

Daí que, compulsados os factos, constata-se que os mesmos não revelam intensidade nem aptidão suficiente para lesarem a saúde psíquica e emocional da ofendida de modo incompatível com a sua dignidade e liberdade de pessoa humana, pelo que, conclui-se, não se mostram preenchidos todos os elementos objectivos do tipo legal de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, do C.P. (não nos é possível afirmar a existência de um mau trato, tal como o configura tal norma).»

Assinala-se, em primeiro lugar, que a fundamentação da sentença parece contraditória. Para afastar o crime de violência doméstica, o tribunal afirmou que os factos não foram suscetíveis de atingir a dignidade pessoal da vítima nem a sua saúde psíquica e emocional, com o grau de intensidade necessário. Mas, porventura, não terá atentado no facto de ter dado como provado o seguinte, no ponto 36 (sublinhados nossos):

«O arguido agiu sempre com o propósito conseguido de amedrontar a ofendida, fazendo-a temer pela integridade física, e de lhe causar, como efectivamente causou humilhação e sofrimento, bem sabendo que as suas condutas eram adequadas a provocar tais resultados.»

Se o comportamento do arguido atingiu o propósito de amedrontar a vítima e de lhe causar medo, humilhação e sofrimento, não se vê como possa ao mesmo tempo afirmar-se que não se caracterizou por aqueles traços de abuso de poder na relação afetiva. A provocação de medo, humilhação e sofrimento são traços típicos das situações de abuso próprias da violência doméstica.

O que acabamos de dizer muito sinteticamente já deixa antever que a qualificação jurídica dos factos feita na sentença não está, salvo o devido respeito, correta.

Não há unanimidade sobre a natureza do bem jurídico protegido pela incriminação no crime de violência doméstica. Como pode ser visto mais em detalhe no estudo de Catarina Fernandes (Manuel Pluridisciplinar Violência Doméstica – implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, Abril de 2016, Centro de Estudos Judiciários, páginas 84 a 1061), a posição dominante na doutrina e na jurisprudência tem considerado que a norma protege a saúde, entendida esta como o bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, o qual pode ser afetado por toda a multiplicidade de comportamentos que afetem a integridade física e psicológica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra da vítima.

É hoje aceite que a razão da incriminação autónoma da violência doméstica não está na preservação da comunidade familiar ou conjugal. Isso revelaria uma opção por uma conceção tradicional de família que iria muito além do objeto de proteção pretendido pelo legislador. Contudo, não deixa de estar contemplada na norma, como fundamento da tipificação como ilícito especialmente protegido, a tutela de bens jurídicos inerentes a uma relação de natureza familiar, afetiva, de coabitação ou de dependência, presente ou passada. Isso decorre claramente da integração do vocábulo “doméstica” na própria denominação do crime, da definição da necessidade de existência de certas relações pessoais entre o agente e a vítima, da agravação pela prática do crime no “domicílio comum”, da natureza das penas acessórias previstas para o crime e do confronto com o crime de maus tratos, do artigo 152º-A do CP, em que a definição da ação ilícita é em grande parte comum, mas o tipo é distinto apenas em função das diferentes qualidades das vítimas.

Portanto, o bem jurídico tutelado pela norma, justificativo de uma proteção mais intensa do que aquela que é dada nos outros tipos incriminadores em que cada um dos atos típicos poderia integrar-se, não pode ser visto separadamente do maior desvalor associado à violação da integridade pessoal, num conceito amplo que abranja a saúde física e psíquica, a dignidade e a liberdade, praticada no âmbito das relações com aquela natureza. O acréscimo de proteção justifica-se precisamente porque a autonomização deste crime tem em conta a maior censurabilidade da conduta e o maior perigo de lesão de bens pessoais praticados naqueles contextos relacionais.

Vejamos então os factos que se provaram.

Os factos dos pontos 1 a 6 são irrelevantes no plano criminal. A circunstância de o arguido acusar a sua mulher de não ser boa mãe e de não fazer nada em casa, ainda que agressivamente, só por si, desconhecendo-se o contexto em que isso sucedeu, se foi próximo ou distante dos acontecimentos seguintes e a motivação dessas discussões, não pode ser visto como mais do que a manifestação de discordância acerca da educação dos filhos e da gestão da casa. Para que palavras mais inflamadas, ditas durante uma discussão num casal, possam ser tidas como violadoras dos bens jurídicos tutelados pela incriminação da violência doméstica, é necessário saber que discussão foi essa, o que a motivou, como se processou e como acabou. Só isso permite perceber o significado e impacto que tem na vítima. Uma ou duas frases com o conteúdo das que se provaram, desgarradas do contexto, ditas por um dos intervenientes na discussão, não permitem apreender o sentido da ação ao ponto de se lhe atribuir relevância penal.

Irrelevantes são também os factos dos pontos 11 a 14. O que ali ficou provado foi a existência de contactos íntimos posteriores à separação em diversas ocasiões. Porém, não se provou a falta de consentimento que estava imputada na acusação.

O episódio a que se referem os pontos 29 e 30 não tem igualmente significado penal. O arguido encontrou a ex-mulher na rua e disse-lhe para parar de indicar a morada dele quando fizesse encomendas e para usar a dela própria. Não resulta da prova que a andasse a seguir ou sequer que a tivesse procurado propositadamente por qualquer razão. Numa localidade pequena como aquela onde viviam, um encontro casual é absolutamente normal. E o arguido tinha o direito de não gostar que a ex-mulher fizesse encomendas para serem entregues na sua residência. Trata-se de uma pretensão legítima, manifestada de forma correta.

E, ao contrário do que se defende no recurso, a apresentação de uma participação criminal pelo arguido, como a que consta nos pontos 32 a 34, na qual expôs os factos relativos à intimidade sexual da sua ex-mulher que entendeu relevantes, constitui apenas o exercício legítimo de um direito. Quando se apresenta uma participação criminal apresentada pelo modo próprio e na autoridade competente, é de esperar que os factos aí descritos se mantenham sigilosos. Não se provou que o arguido tivesse feito isso para lavar a sua honra ou para tornar públicos os factos que aí expôs para humilhar a sua ex-mulher. Essa interpretação do Ministério Público não tem sustentação nos dados do processo.

Por fim, também ao contrário do alegado, o facto do ponto 35 não é relevante para a imputação do crime de violência doméstica. A filha do arguido, com 15 anos de idade, tinha uma doença grave já com tentativas de suicídio. Neste contexto, tendo sido dado como não provado que o arguido tivesse acedido ao telefone da filha sem consentimento da ex-mulher e com o propósito de a vigiar e não estando sequer provado que mensagens eram essas das quais guardou cópia, não pode concluir-se que atuou para controlar os comportamentos da ex-mulher. A troca de mensagens telefónicas entre uma mãe e uma filha, sabendo a primeira que ficam guardadas no equipamento telefónico e não sendo de estranhar que o pai aceda a esse equipamento, não conferem uma expectativa de proteção de privacidade.

Quanto aos restantes factos provados, esses sim têm relevância penal.

Os factos provados dos pontos 15 e 16 mostram que o arguido atuou não apenas por preocupação com o facto de a filha ter ficado sozinha em casa – como efetivamente ficou (facto do ponto 17) – mas também por ter ficado contrariado e com ciúmes por a vítima poder estar com outro homem. Isto revela que o arguido, mesmo depois da separação, entendia que a vítima não podia ter outro relacionamento e que se sentia no direito de lhe transmitir esses sentimentos, daquela forma insistente, insultuosa e controladora. Primeiro ligou-lhe nove vezes sem resposta. Esta insistência em querer falar com quem não queria atendê-lo constitui pressão psicológica e invasão ilegítima da sua privacidade e tranquilidade e transmite à vítima a ideia de que está a ser controlada. As mensagens que de seguida o arguido lhe enviou têm conteúdo muito insultuoso e o seu significado ultrapassa em muito a simples censura pelo facto de a filha ter sido deixada sozinha. São mensagens de ciúmes, de crítica por poder estar com outro homem, com linguagem humilhante e referências vexatórias de cariz sexual e também de ameaças físicas dirigidas à vítima e à pessoa com quem ela pudesse estar.

O mesmo se tem de dizer dos factos dos pontos 18 a 28. O arguido queria confrontar a vítima para lhe manifestar desagrado pelo seu comportamento. Ligou-lhe cinco vezes sem que ela atendesse. Isso levou-o, certamente, a perceber que ela não queria falar com ele. A insistência constitui, uma vez mais, pressão psicológica capaz de incutir sentimentos de domínio e perturbação da tranquilidade. Depois quis fazer-lhe uma espera no local de trabalho, numa área onde esperava encontrá-la sozinha. Quando ela finalmente atendeu o telefone, ordenou-lhe exaltado que fosse ao seu encontro, o que ela recusou. Como é evidente, o arguido não tinha o direito de dar aquela ordem à vítima e já tinha percebido que ela não queria que a contactasse. Tudo isto é excessivo no plano do relacionamento lícito entre dois elementos de um casal que se encontram separados. O arguido atuou como se pudesse condicionar a vontade e a ação da vítima, o que revela que queria manter sobre ela algum tipo de domínio e la e lhe disse que ela ainda era mulher dele. Ou seja, embora separados e num contexto que tornava claro que a vítima não se queria mais relacionar com ele, o arguido considerava que, por se encontrarem ainda casados, mantinha alguma autoridade sobre ela.

É certo que, de acordo com a lei civil (artigos 1672º, 1782º, 1788º e 1789º do CC), o dever de fidelidade entre cônjuges só se extingue verdadeiramente quando o casamento se dissolve pelo divórcio. Durante a separação de facto, com a comunhão de vida cessada, esse dever mantém-se, muito embora já enfraquecido por razões óbvias. Porém, a questão da violação dos deveres conjugais tem apenas as consequências previstas na lei civil, designadamente para a fixação da culpa e de uma eventual responsabilidade indemnizatória. Ela não confere a qualquer dos cônjuges o direito a exigir do outro que não tenha relacionamentos com terceiros e muito menos o direito de exercer sobre o outro algum tipo de domínio da vontade e da ação ou de vigilância do comportamento. Por isso, mesmo que o arguido pudesse sentir-se contrariado pelo facto de a vítima poder ter outro relacionamento, era-lhe lícito, apenas, extrair daí as consequências previstas na lei civil no momento do divórcio e não pretender condicionar a sua liberdade e autonomia de vontade.

Com os seus comportamentos, o arguido atingiu direitos pessoais da vítima protegidos pelas normas que incriminam as injúrias, ameaças, coação e perseguição. Do que se provou, isso ocorreu em duas ocasiões distintas, mas com gravidade. A vítima teve medo e sentiu-se humilhada. Nesta medida, o atingimento dos bens jurídicos tem significado acrescido por ter ocorrido no contexto da cessação da relação conjugal e por causa dela. As ações praticadas pelo arguido foram manifestações de subjugação da vontade e da ação da vítima e têm de se considerar maus tratos psíquicos para o efeito do preenchimento do tipo de crime de violência doméstica. A imagem global que nos é dada pelos factos aponta de forma nítida para uma ofensa à integridade pessoal da vítima, num plano mais amplo do que o da mera violação cumulada dos direitos à honra e liberdade.

Tendo-se provado que o arguido atuou intencionalmente, conhecendo todos os elementos objetivos do tipo penal e querendo realizá-los e ainda que conhecia a proibição legal e atuou com margem de liberdade suficiente para se abster de os praticar, não pode haver dúvida de que cometeu o crime de violência doméstica, previsto no artigo 152º nº 1 al. a) do CP.

Porém, sem a agravação prevista no nº 2 al. a) do artigo 152º que se encontrava imputada ao arguido na acusação. Os factos não foram praticados contra menores nem no domicílio comum ou da vítima. É certo ter resultado dos factos provados que no dia 21jun2024, às 21 horas, quando ligou sem resposta para a vítima e quando lhe mandou as mensagens, o arguido estaria com a filha de 5 anos de idade – numa das mensagens escreveu «tou aqui com a menina vem ca fora». Só que, tratando-se do envio de mensagens de texto, o facto de o arguido estar com a filha, criança cuja idade não lhe permitia ler o que ele escrevia, não chega para se considerar preenchido o requisito típico da prática do facto «na presença de menor». A agravação exige que o crime seja presenciado pelo menor, isto é, à sua vista e com o seu conhecimento. Não basta que o menor esteja junto do agente do crime, em condições de não tomar conhecimento da sua prática.

3.2.3. Determinação da pena

Em resultado do que acabámos de afirmar, a decisão absolutória não se poderá manter e temos de determinar a pena adequada.

O crime é punível com prisão de 1 a 5 anos.

O artigo 40º do CP consagra como objetivo primordial da pena a prevenção criminal, nas vertentes da prevenção especial positiva, que consiste no fim de ressocializar a pessoa que violou bens jurídicos com tutela penal e deve ser motivada pela sanção a adotar um modo de vida normativo, conformado com o respeito por esses valores; da prevenção especial negativa, que significa a necessidade de garantir que o agente do crime se abstém de outras práticas criminosas no futuro; e também da prevenção geral positiva, que consiste na proteção da confiança da comunidade na validade da norma jurídica proibitiva de comportamentos e especialmente na efetividade da sua força coerciva.

Tendo em conta que o nº 2 do referido artigo 40º limita a pena à medida da culpa, o que devemos fazer em primeiro lugar é determinar esse limite máximo.

O arguido atuou com dolo direto, com conhecimento da ilicitude e com liberdade de determinação e atuação de acordo com essa avaliação. A motivação do crime relacionou-se parcialmente com a preocupação com a saúde da filha, que foi deixada sozinha pela vítima, o que era preocupante face ao seu historial de ideação suicida. Portanto, deve ser tida como baixa uma atuação culposa não influenciada por fatores extraordinários e, além do mais, determinada em parte por razões compreensíveis.

As exigências de prevenção geral são muito importantes, em face da danosidade social do crime, da sua frequência e da intenção preventiva que o legislador pôs na previsão autónoma e agravada deste crime.

No entanto, as exigências de prevenção especial têm uma expressão diminuta. O arguido não tem antecedentes criminais. Está social, pessoal e profissionalmente inserido, com um modo de vida normativo e conforme aos valores sociais. Tem um novo relacionamento afetivo. Apesar da separação da vítima, ajudou-a a encontrar habitação e financeiramente. Esteve sujeito a medidas de coação, que acatou sem notícias de incidentes. Chegou a afastar-se voluntariamente da empresa onde trabalhava com a vítima por causa do processo. É muito preocupado com o bem-estar das filhas. Tudo isto nos diz que a possibilidade de voltar a praticar crimes, nomeadamente visando a mesma vítima, se apresenta pouco previsível.

Por outro lado, tendo em conta a multiplicidade de atos passíveis de enquadrar o crime de violência doméstica, a ilicitude da ação do arguido é de gravidade apenas mediana. Apesar de haver duas ações repetidas, elas foram próximas e tiveram a mesma motivação, o que aponta para a ocasionalidade do crime.

As consequências psicológicas do crime parecem estar minimizadas ou mesmo ultrapassadas.

O artigo 71º nº 1 do CP dispõe que a determinação da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e que deve atender aos fatores do caso, previstos nomeadamente no seu nº 2. Ponderando os fatores supra expostos – culpa reduzida, ilicitude mediana, baixo risco de reincidência e boas perspetivas de reinserção social –afigura-se-nos ajustada a pena de 18 meses de prisão.

Não há razão para não suspender a execução da pena, ao abrigo do disposto no artigo 50º do CP. A ausência de condenações anteriores, a inserção social e profissional e a ausência de uma situação de risco evidente permitem fazer um prognóstico favorável sobre o atingimento das finalidades preventivas e ressocializadoras da pena, apenas pela censura resultante da condenação e pela ameaça da privação de liberdade.

Contudo, para melhor se garantir o êxito das finalidades de ressocialização e sobretudo o acompanhamento especializado a que essas finalidades aconselham, é ajustado que a suspensão tenha a duração igual à da pena e seja acompanhada do regime de prova a que se refere o artigo 53º do CP.

O Ministério Público qualificou juridicamente os factos da acusação por referência também aos números 4 e 5 do artigo 152º do CP e pretende a condenação nas penas acessórias de proibição de contactos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica.

Estas penas acessórias são especialmente adequadas naqueles casos em que existem elementos que deixem antever um risco sério do arguido se poder aproximar da vítima e de isso poder conduzir a perigo para a mesma, ou de reincidir na prática do mesmo crime com outras pessoas. No caso parece-nos que isso não se verifica. O mau relacionamento em cujo contexto ocorreu o crime foi pontual e parece ultrapassado. O arguido tem suficiente perceção dos valores em causa e da ilicitude dos seus comportamentos e tem manifestações de arrependimento pelo que fez. O retrato do arguido feito nas alegações de recurso, como uma pessoa impulsiva, possessiva e perigosa é exagerado e não tem suporte no processo ou na prova. Por estas razões, consideramos que seria desproporcionado aplicar qualquer das penas acessórias ali previstas.

3.2.5. Indemnização à vítima

O Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 82º-A do CPP e do artigo 21º nºs 1 e 2 da Lei nº 112/2009, de 16SET, pediu na acusação que fosse arbitrada a favor da vítima uma indemnização.

Naquilo que agora interessa, o artigo 21º da referida lei, sob a epígrafe «direito a indemnização…» dispõe que «à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro do prazo razoável» e que «para o efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser».

Por sua vez aquele artigo 82º-A, sob a epígrafe «reparação da vítima em casos especiais», dispõe que «não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham».

A maioria da jurisprudência tem entendido que no caso de condenação pelo crime de violência doméstica, o tribunal não pode deixar de arbitrar uma indemnização, pois nessa situação as particulares exigências de proteção da vítima resultam da opção legislativa constante da Lei nº 112/2009. Só não será assim se a vítima expressamente se opuser a esse arbitramento. Podem consultar-se, entre outros, os acórdãos do TRC de 29mai2014 (processo 232/12.9GEACB.C2), TRE 21abr2015 (Processo 65/11.0GEALR.E1), TRL de 16set2015 (Processo 67/14.4S2LSB.L1-3), TRG 7mar2016 (Processo 697/14.4GAVNG.G1), TRC 11mai2016 (Processo 94/12.6GAACB.C2), TRC 18mai2016 (Processo 232/12.9GEACB.C2) e TRE 4abr2017 (Processo 66/15-9GBABF.E1). Muito embora nestas decisões estivesse em causa o vício da nulidade da sentença por omissão de pronúncia e não exatamente sentenças em que a questão tivesse sido apreciada e se tivesse concluído não haver lugar a arbitramento de indemnização, a verdade é que esta tese encontra bom apoio no texto da lei, visto a norma prever que há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A (sublinhado nosso).

Em sentido inverso, de que o que resulta da lei não é a obrigação de fixar indemnização mas apenas de se ponderar a sua atribuição, nos termos daquele artigo 82º-A, mantendo-se a necessidade de verificar o requisito da existência de particulares exigências de proteção da vítima, pronunciou-se o acórdão do TRE, de 24mai2016 (processo 253/14.7PBVR.E1). Esta tese tem também apoio forte no texto legal, pois o nº 1 do mencionado artigo 21º dispõe que à vítima é reconhecido o direito a obter uma decisão de indemnização e não o direito a ser indemnizada (sublinhado nosso).

Do nosso ponto de vista, a solução interpretativa adequada está a meio caminho entre as duas teses referidas.

Ao determinar que, para o efeito da lei que reconhece à vítima do crime de violência doméstica o direito a obter uma decisão de indemnização, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser, o sentido útil da lei é o de considerar que em relação às vítimas deste crime é reconhecida a existência de particulares exigências de proteção. Isso significa que, no caso de condenação, se não houver oposição expressa do titular do direito correspondente, o tribunal está vinculado a ponderar a atribuição de uma indemnização, não podendo negá-la com o argumento de que a vítima não beneficia de particulares exigências de proteção.

No entanto, daí não decorre a obrigatoriedade de se arbitrar uma indemnização a todo o custo. Será necessário que se verifiquem ainda os pressupostos legais do dever de indemnizar. Se não houver prejuízo patrimonial ou prejuízo não patrimonial com expressão que justifique a tutela do direito, ou se a equidade ou a culpa do lesado determinarem a exclusão do direito, então o tribunal não deverá arbitrar indemnização.

Seria absurdo que a lei obrigasse a fixar uma indemnização nas situações em que a própria lei a exclui.

Desta forma, não temos de declarar que a vítima beneficia de particulares exigências de proteção. Pelo simples facto de ter sido vítima de crime de violência doméstica, a lei atribui-lhe esse estatuto. O que temos é de apurar se há lugar a indemnização e na afirmativa determinar o seu valor.

Resulta do disposto no artigo 496º nºs 1 e 3 do CC que os danos não patrimoniais são indemnizáveis se pela sua gravidade merecerem a tutela do direito e que a indemnização será fixada em montante equitativo, tendo em atenção o grau de culpa, a situação económica do lesante e do lesado e a repercussão que possa ter o pagamento nos seus patrimónios e as demais circunstâncias do caso relevantes para integrar os critérios de razoabilidade, prudência e justiça.

Os danos não patrimoniais sofridos no caso e que resultam dos factos provados (ponto 36) foram medo, humilhação e sofrimento. São danos com gravidade suficiente para justificar a tutela jurídica e o correspondente direito a indemnização, mas não danos de intensidade elevada, tendo em conta os diferentes graus de violência doméstica abstratamente previstos na norma.

A culpa do arguido foi reduzida e a ilicitude da ação mediana.

Nada se sabe sobre a situação económica da vítima, apenas que trabalha e reside em casa arrendada e tem a guarda das duas filhas.

Quanto ao arguido, sabemos que vive do subsídio de desemprego de 1200 euros (ponto 67), que tem despesas fixas superiores a 1000 euros, sem contar com a alimentação e vestuário (pontos 68 a 70) e que tem problemas de saúde que certamente também implicam gastos (ponto 73).

No plano da equidade, importa ainda ponderar outros fatores:

- O arguido, apesar da separação, ajudou a vítima a arrendar casa, fez-lhe a mudança, pagou-lhe rendas e é fiador no contrato (pontos 9 e 61);

- Supriu as suas necessidades financeiras, com entregas frequentes de 100 e 200 euros de cada vez (ver motivação da matéria de facto);

- Apesar da separação, o casal teve momentos próximos da reconciliação, com contactos íntimos (pontos 11 a 14);

- A vítima teve algum contributo no facto que deu parcialmente origem à contrariedade do arguido que esteve na base dos seus atos, ao deixar a filha sozinha (ponto 17);

- O arguido abandonou o trabalho para se afastar da vítima (ponto 48).

A ponderação conjugada de todos os fatores referidos leva-nos a considerar que não deve ser arbitrada qualquer indemnização. Os danos são de relevância reduzida, foram momentâneos e estão ultrapassados. O arguido teve culpa, mas a ação da vítima, de deixar a filha doente sozinha e de com isso ter desesperado o arguido, concorreu para o sucedido. O arguido nunca deixou de ajudar voluntariamente a vítima, para além daquilo a que estaria obrigado, mesmo depois de se terem separado, e contribui regularmente para o sustento das filhas – aqui como é seu dever. A sua condição económica é muito modesta e em parte colocou-se voluntariamente na situação de desemprego para beneficiar a vítima. O subsídio de desemprego que aufere é todo consumido com despesas fixas e de sustento pessoal.

Este é um daqueles casos em que o arbitramento de uma indemnização pouco ou nenhum significado teria para a vítima e, ao contrário, poderia, isso sim, agravar uma situação que se encontra apaziguada e aumentar o risco de reacendimento do conflito.

O princípio constitucional da proporcionalidade, de aplicação direita como critério de interpretação e aplicação das normas – critério de decisão judicial – deve levar à exclusão da indemnização, na medida em que o juízo de equidade que define o direito à indemnização por danos não patrimoniais tem de conformar-se nos limites do que é proporcional e materialmente justo.

4. Decisão

Pelo exposto, acordamos em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença absolutória e condenando o arguido AA por um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152º nº 1 al. a) do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão, com execução suspensa por igual período, com regime de prova.

Fixa-se em 4 UC as custas a cargo do arguido, devidas pela decisão condenatória.

Évora, 30set2025

Manuel Soares

Francisco Moreira das Neves

Carla Francisco

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1 http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/Violencia-Domestica-CEJ_p02_rev2c-EBOOK_ver_final.pdf