I - Atendendo à atuação criminógena e persistente do arguido, à gravidade e às circunstâncias atinentes à globalidade dos factos praticados, à natureza dos crimes – quatro crimes de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º, 1, al. b), c) e e) e 2, al. a), do CP – à personalidade refletida nos mesmos, à circunstância de o arguido ter praticado os crimes durante o período da suspensão da execução da pena de prisão que lhe havia sido aplicada por crimes de natureza semelhante, entendemos que a medida da pena única encontrada pelo tribunal “a quo” se revela desajustada, por insuficiente, não podendo deixar
de fixar-se uma dosimetria mais próxima do meio da sua moldura abstrata, afigurando-se-nos adequada a pena de 7 anos de prisão.
II - Considerando as desvaliosas condutas sancionadas nos autos, o contexto em que as agressões foram perpetradas pelo arguido, o período temporal durante o qual as mesmas ocorreram (cerca de 5 meses), as concretas sequelas sofridas pelos ofendidos – a ex-companheira e os três filhos menores do arguido – especialmente ao nível psicológico, e a condição económica do lesante, revela-se, a nosso ver, justo e equitativo fixar o montante da reparação a que aludem os artigos 21, nºs 1 e 2 da Lei n° 112/2009 de 16.09 e 82°-A do CPP, em 1 000,00 € (mil euros) para cada ofendido.
Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Coletivo que correm termos no Juízo Central Cível e Criminal de … - Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º164/23.5GBRDD, foi o arguido AA, filho de BB e de CC, nascido em …1983, natural de …, divorciado, residente na Rua …, …, condenado e absolvido da seguinte forma:
- Absolvido da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. d) e 2, al. a), do Código Penal, na pessoa de CC;
- Condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e c) e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, na pessoa de DD;
- Condenado o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. e) e 2, al. a), do Código Penal, nas penas de 3 (três) anos de prisão por cada um deles, nas pessoas de EE e de FF;
- Condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. e) e 2, al. a), do Código enal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, na pessoa de GG;
- Em cúmulo jurídico das penas parcelares, foi condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- Condenado a pagar aos ofendidos DD, EE, FF e GG, para compensação dos danos por eles sofridos em consequência das condutas criminosas, o montante de € 500 (quinhentos euros), que lhes foi arbitrado nos termos do artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.
- Foi ainda julgado extinto o procedimento criminal contra o arguido pela eventual prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, por ilegitimidade do Ministério Público nos termos do n.º 2 do referido preceito e artigo 49.º, do mesmo diploma legal.
***
Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:
“a) O arguido e ora recorrente foi condenado a cinco anos e seis meses de prisão, pela prática de três crimes de violência doméstica. Não se conformando com tal decisão, desta vem recorrer, delimitando o presente recurso à parte da escolha da medida da pena. Assim,
b) O arguido entende que a pena única deveria não ser superior a cinco anos: não poderemos considerar, nos termos do artigo 75.º do Código Penal, o arguido como reincidente, tendo em conta que o mesmo nunca foi condenado em prisão efetiva.
c) O relatório social a que alude o artigo 370º., uma vez elaborado, apresentou as seguintes conclusões:
«Conclusão AA apresenta um trajeto de vida estruturado no normativo social e laboral, que lhe proporcionou um percurso focado na atividade laboral, e convívio familiar enquanto alicerce estruturante do seu estilo de vida, circunstância que se mantém na atualidade e se constitui como fator de proteção. Porem, não se revê nos factos em apreço no presente processo, atribuindo o ónus dos seus comportamentos a terceiros por forma a atenuar o impacto dos mesmos, o que se avalia como fator de risco. No entanto, cremos que apresenta capacidade para acatar e cumprir as decisões judiciais, nomeadamente de natureza probatória, à semelhança de anterior experiencia, caso venha a ser condenado e esse Tribunal assim o entenda, com incidência no cumprimento de tratamento e ou acompanhamento psicológico ou psiquiátrico.»
d) Bem se sabendo que o relatório social nunca poderá vincular o Tribunal na determinação da pena – até por subordinado ao regime da livre apreciação da prova - considera-se, não obstante, que um relatório técnico que versa sobre a personalidade e o carácter, condições pessoais e conduta anterior e atual do arguido para determinação da pena deverá sempre refletir-se sobre esta.
e) Em bom rigor, não deixará de ser um instrumento atual (e não referente à data da prática dos factos) que faz um juízo de prognose sobre a conduta futura do agente.
f) A este propósito, referia o STJ que «O relatório social destina-se à correcta determinação da sanção a aplicar ao arguido, por corresponder a uma dada indicação de matéria de facto, consubstanciada num relatório pericial, cujo valor probatório pode ser infirmado ou modificado em função de prova complementar que venha a ser produzida nos termos do artigo 371 do Código de Processo Penal.»
g) Não sendo - reitera-se- vinculativo, consideramos que o mesmo deverá ser levado em conta, sob pena de total esvaziamento da norma contida no citado artigo 370.º do CPP.
h) Assim, e na análise tanto do caso em concreto, como das finalidades da pena (nesta parte, com especial relevo para a finalidade de prevenção geral), não nos poderemos ater a uma análise de uma “praxis” ainda muito enraizada na actual sociedade, onde uma crescente individualização do ser é determinante na adequação da sua conduta social. O arguido teve uma educação severa, em que os valores que lhe foram transmitidos durante a sua infância e adolescência não o preparavam para a parentalidade deste século, mas algo que o arguido tem vindo a corrigir com a ajuda de terceiros, nomeadamente de instituições e profissionais de saúde psicológica.
i) No caso concretamente em apreço ,estamos em crer que todas as instituições estão em condições de dar uma resposta concreta às necessidades de prevenção especial, protegendo as vítimas e contribuindo positivamente para a continuação do processo de ressocialização do arguido, ainda sem uma pena privativa da liberdade, sob o regime de prova, continuando com o acompanhamento psicológico e demais obrigações que lhe forem impostas.
j) desde a alteração da medida de coação de proibição de contactos, o arguido não esteve sujeito a quaisquer medidas de coação (exceto o TIR), podendo, nesse hiato de tempo, ter voltado a delinquir, o que não aconteceu. Pelo contrário: finda a relação de ambos e com a efectiva separação do casal, o arguido não mais ofendeu ou teve qualquer comportamento desconforme ao Direito para com a ofendida, para com os seus filhos ou para com a atual companheira.
k) Nos termos do artigo 50.º,n.º1, a pena será suspensa na sua execução atendendo à personalidade do agente, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior aos factos e às circunstâncias deste.
l) No que concerne à sua conduta entre anterior e posterior ao crime, de notar que o arguido se mostrou arrependido, interiorizou o desvalor da sua conduta ;mas a este respeito, ainda um outro dado que não deixa de ser importante: depois do crime, e em liberdade, o arguido refez a sua vida familiar, nunca mais tendo contactado a arguida.
m) Considera o arguido estarem, deste modo, reunidos os pressupostos formais e materiais, nos presentes autos, que permitem a suspensão da execução da pena de prisão a que foi condenado, uma vez que esta se fixe – como acima exposto - em cinco anos de prisão.
n) O cumprimento efetivo desta pena compromete seriamente o processo de ressocialização – em curso – do arguido, pois serão anos em que o arguido irá estar longe de toda a estrutura familiar e social, do mercado de trabalho, das possibilidades de formação e aumento de competências, enfim, comprometendo em absoluto as necessidades de prevenção especial positiva.
o) Mais ainda quando o arguido refez a sua vida e desde os factos, tem mantido uma conduta adequada ao direito e aos normativos sociais.”
Termina pedindo a alteração da pena que lhe foi imposta, solicitando que se aplique a pena de cinco anos de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova.
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Não se tendo igualmente conformado com o teor do acórdão proferido nos autos, veio o Ministério Público também interpor recurso do mesmo, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:
“A. O Ministério Público concorda com a matéria de facto dada como provada no douto Acórdão ora em crise.
B. Assim, o presente recurso limita-se apenas e só a matéria de direito, isto é: à medida da pena aplicada ao arguido, e bem assim ao quantum reparatório atribuído aos menores EE, FF, ambos nascidos a …2014, e GG, nascida a …2020, vítimas para efeitos do processo penal em si mesmo, nos termos do artigo 67.º-A, n.ºs 1, alínea a), ponto ii), e 2, do CPP, e, naturalmente, especialmente vulneráveis em função da sua tenra idade.
C. Especificando, o Ministério Público discorda da pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão aplicada ao arguido, em cúmulo jurídico das penas parcelares de:
• um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e c) e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, na pessoa de DD;
• dois crimes de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. e) e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão por cada um deles, nas pessoas de EE e de FF;
• um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. e) e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, na pessoa de GG;
D. Discorda também, por ser extremamente insuficiente, do quantum atribuído, a título de reparação indemnizatória, de apenas €500,00 (quinhentos euros) a EE, FF e GG, determinada ao abrigo dos art.ºs 16.º n.º 2, da Lei 130/2015 de 4 de Setembro, 82.º-A do Código Penal e artigo 16.º, da Diretiva 2012/29/EU.
E. O arguido AA praticou, em concurso homogéneo, efetivo e ideal, quatro crimes de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º, 1, al.b), c) e e)e 2,al. a), do Código Penal, cada um deles punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.
F. Atendendo à pena concreta atribuída a cada um dos crimes pelos quais foi condenado, e nos termos do art.º 77.º do Código Penal, o limite mínimo da moldura do concurso é de 3 anos e o limite máximo é de 11 anos e 8 meses, tendo o Tribunal decidido aplicar a pena única de 5 anos e 6 meses de prisão.
G. Na fixação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido importa, desde logo, e respeitando quer o art.º40.º, quer o 71.º do Código Penal, considerar que no que respeita às exigências de prevenção geral estas são muito elevadas atendendo à necessidade de reforçar o cumprimento da norma violada face ao sentimento de instabilidade e indignação criado na comunidade por este tipo de crime, que é recorrente, e não raras vezes com o desfecho de morte.
H. Quanto às exigências de prevenção especial mostram-se intensas, uma vez que o arguido desvalorizou os factos, negou-os, demonstrou ser imensamente emotivo, sem capacidade de controlo, e agiu de forma desproporcional.
I. A ilicitude dos factos é igualmente elevada: o arguido executou os factos com violência, no domicílio dos ofendidos, pelo menos durante 5 meses.
J. Acresce o facto de o arguido neles ter persistido mesmo após a realização do primeiro interrogatório de arguido detido e de lhe terem sido aplicadas medidas de coação que vedavam quaisquer contactos com a ex-companheira.
K. Mais: conforme foi dado como provado no facto n.º53: o arguido cometeu os factos, cometeu o mesmo tipo legal de crime, durante o período de suspensão daquela pena de 5 anos de prisão suspensa na sua execução.
L. O dolo é intenso uma vez que o arguido agiu com dolo direto.
M. A culpa do arguido é muito elevada, pelo desvalor da ação que quis empreender contra a sua companheira e contra os seus filhos.
N. Entendemos assim adequado a aplicação, em cúmulo jurídico, de uma pena de prisão não inferior a 8 (oito) anos de prisão.
O. As vítimas EE, FF, ambos nascidos a … 2014, e GG, nascida a … 2020, são filhos do arguido.
P. Já a vítima DD era companheira do arguido.
Q. Sendo o arbitramento de uma indemnização obrigatório nos termos do artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, dever-se-á prescindir da verificação do pressuposto “particulares exigências de proteção da vítima” previsto no artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, bastando-se com o preenchimentos dos pressupostos formais estabelecidos no primeiro preceito legal referido, porque se assim não for, em muitas situações, ter-se-ia de excluir a fixação de qualquer indemnização por não verificação deste pressuposto quando tal contraria o intuito de tal normativo que as presume de forma inilidível.
R. Recorrendo a este mecanismo, o Tribunal decidiu arbitrar a título de reparação indemnizatória por danos não patrimoniais a quantia de €500,00 (quinhentos euros) a cada uma das vítimas, menores.
S. A violência exercida pelo arguido na pessoa da sua companheira e dos seus filhos, não deixam dúvidas dos danos não patrimoniais gravíssimos e irreversíveis que lhes foram provocados.
T. Todos esses danos, devem ser condignamente compensados, tendo sempre como critério nuclear de fundo a equidade, embora sem perder de vista o recurso a outros elementos circunstanciais, quer aqueles de caráter mais geral, e particularmente aqueles que a lei manda atender, quer aqueles que resultam da peculiaridade de que se reveste o caso concreto.
U. Daí que, ponderando esses factos, com a situação económica e financeira do arguido dada como provada, e recorrendo às regras da experiência comum, deverá ser arbitrada aos menores uma quantia nunca inferior a €5 000,00 (cinco mil euros) para cada um dos menores, e uma quantia de pelo menos €3 000,00 (três mil euros) a DD, companheira do arguido.
Termos em que deve o douto Acórdão ser revogado, e substituído por outro que condene o arguido em autoria material e na forma consumada, pela prática de:
• um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e c) e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, na pessoa de DD;
• dois crimes de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. e) e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão por cada um deles, nas pessoas de EE e de FF;
• um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. e) e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, na pessoa de GG;
• Em cúmulo jurídico na pena de 8 (oito) anos de prisão;
E atribuir, uma quantia nunca inferior a €5 000,00 (cinco mil euros) para cada um dos menores vítimas, e uma quantia de pelo menos €3 000,00 (três mil euros) a DD, companheira do arguido.”
*
Os recursos foram admitidos.
Na 1.ª instância, o arguido não apresentou resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público, tendo este pugnado pela improcedência do recurso apresentado pelo arguido, com a reiteração do argumentário sobre a medida da pena constante do recurso interposto pelo Ministério Público.
*
O Exmº. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da procedência do recurso interposto pelo Ministério Público e da improcedência do recurso interposto pelo arguido, com reiteração dos argumentos expostos no recurso e na resposta apresentados pelo Ministério Público junto da primeira instância, que deu por integralmente reproduzidos.
*
Não tendo sido aduzidos novos argumentos no parecer do Ministério Público junto desta Relação, não houve lugar ao cumprimento do disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
***
II – Fundamentação.
II.I Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.
No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir:
A) Apurar se os critérios e os parâmetros utilizados pelo tribunal “a quo” para determinar a medida concreta da pena única de prisão aplicada ao recorrente se revelam legalmente fundados, ou se, ao invés, os critérios legais, aplicados à situação do arguido, imporiam a aplicação de uma pena de prisão mais reduzida e a subsequente suspensão da execução da mesma (recurso do arguido), ou a aplicação de uma pena de prisão mais gravosa (recurso do Ministério Público);
B) Apurar se os montantes das indemnizações arbitrados aos ofendidos se mostram adequados e proporcionais ou se se revelam insuficientes (recurso do Ministério Público).
* II.II - A decisão recorrida.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferido acórdão que deu como provados os seguintes factos:
“Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1) No ano de 2019, o arguido iniciou um relacionamento amoroso com DD, com quem, em data não determinada, passou a viver em comunhão de leito, mesa e habitação, na …, na …;
2) Fruto desse relacionamento, no dia …/…/2020, tiveram uma filha, GG;
3) Em março de 2023, o arguido terminou o relacionamento amoroso que mantinha com aquela por pensar que a mesma mantinha um relacionamento com outro homem;
4) Todavia, mantiveram encontros pontuais até outubro do mesmo altura, altura em que DD colocou definitivamente termo à situação;
5) Inconformado, em outubro e novembro de 2023, nas imediações do estabelecimento de infância que a filha comum frequentava na …, e na presença desta, o arguido entrou no veículo em que DD se fazia transportar e disse-lhe “eu mato-te a ti, mato a gaiata e mato-me a mim a seguir”;
6) Em várias ocasiões, entre outubro e dezembro de 2023, o arguido enviou mensagens escritas a DD dizendo-lhe: “és uma puta”, “falas com todos”, “metes-te com todos”, “mentirosa”;
7) E nesse quadro, telefonou-lhe diversas vezes, não tendo a mesma atendido;
8) No dia 09/11/2023, pelas 20h24, o arguido efetuou vinte e três telefonemas para DD, que não atendeu;
9) Então, dirigiu-se à residência desta sita na Rua …, na …, entrou e permaneceu no quintal, recusando-se a sair, apesar de lhe ter sido solicitado, por diversas vezes, que o fizesse;
10) No dia 19/12/2023, pelas 20h30, pediu-lhe que entrasse na residência onde habitava, sita no …, a fim de ir buscar a filha menor de ambos;
11) Após, DD levou a criança GG para o interior do veículo em que se fazia transportar;
12) De imediato, e na presença da filha de ambos, o arguido entrou no veículo, agarrou o pescoço de DD, aproximou o rosto do rosto desta e tentou beijá-la na boca;
13) Face à resistência pela mesma oferecida, o arguido disse-lhe: “puta”, “andas a foder com todos”;
14) Então, a criança começou a chorar e, por diversas vezes, disse “para pai, para pai”;
15) Entre os dias 9 e 27 de dezembro de 2023, com uma frequência diária, o arguido dirigiu-se à residência onde habita DD e ao local de trabalho desta e disse-lhe: “puta”, “cabra”, “vaca”, “prostituta”, que ela fazia vídeos pornográficos e os publicava na internet e que saía com vários homens;
16) No dia 27/12/2023, disse-lhe que não lhe entregava a filha de ambos, conforme combinado, porque ela queria ir “para a má vida”;
17) Ainda nesse dia, disse-lhe que só lhe entregava a filha de ambos se ela deixasse de andar com outros homens;
18) Em datas não apuradas, mas em dezembro de 2023, pressionando-a a reatar o relacionamento, insinuando que a mesma mantinha relacionamentos amorosos com outros homens e revelando que tinha conhecimento dos movimentos efetuados pela mesma, o arguido enviou mensagens escritas a DD, entre outras, as com o seguinte teor: “Eu não t estou a culpar de nada”; “Eu te amo muito”; “Podes atender eu sei que tás acompanhada”; “Então que era o rapaz que vinha atrás de ti”; “Foi lá ter a casa”; “Sabes que eu te amo muito deixa te disto por favor”; “Hj estás linda quer dizer tu de quer forma és linda mas HJ estás mais”; “Bom dia meu amor que tenhas um dia muito bom de trabalho te amo muito”;
“Que mal te fiz mais sabes tu que tu me mas nunca te tratei mal como andas para aí a dizer”; “Tu nunca foste de mentiras e agora é só mentiras porque DD”; “Podes atender”; “De quem é este número a quem deste o meu número de telemóvel”; “Quero ser feliz a teu lado”; “Não és capaz de responder andam te mês mo a fazer a cabeça contra mim e tu não consegues ver isso”; “Vai para algum lado”; “Vai onde foste de manhã a princesa fica cá para não te atrapalhar nas fotos e nos vídeos”; “Vi onde foste de manhã foste ter com um rapaz. Princesa fica cá para não te atrapalhar nas fotos e nos vídeos assim não te atrapalha”; “Eu tinha vergonha”;
19) Por despacho de 30/12/2023, foram aplicadas ao arguido, entre outras, as medidas de coação de proibição de contactos, através de qualquer meio, diretamente ou por interposta pessoa, com DD e de permanecer na residência e/ou no local de trabalho com a mesma, mediante fiscalização à distância, tendo-se fixado o perímetro de exclusão em duzentos metros;
20) No dia 05/02/2024, pelas 09h00, em desrespeito das medidas de coação que lhe foram aplicadas, dirigiu-se à residência daquela e, em voz alta, disse-lhe: “és uma puta”, “vaca”, “vais foder com outro”, enquanto efetuava gestos coma anca, movendo-a para a frente e para trás, simulando movimentos característicos da relação sexual;
21) Entre os dias 05 e 19 desse mesmo mês, pelas 09h00 e com uma frequência diária, o arguido dirigiu-se para as imediações da residência onde habita DD e, mantendo-se a uma distância superior a duzentos metros, em voz alta disse “puta”, “vaca”;
22) Após, em algumas dessas ocasiões, pegou em pedras e arremessou-as na direção daquela;
23) No dia 19/02/2024, pelas 09h00, dirigiu-se para as imediações da residência onde habita DD e, mantendo-se a uma distância superior a duzentos metros, levantou os braços na direção desta, simulando empunhar uma espingarda de caça;
24) Após, pegou em pedras e arremessou-as na sua direção;
[NUIPC 20/24.0GDEVR]
25) AA é filho de CC, nascida a …/…/1947, com quem, em fevereiro de 2024, residia na …, na …;
26) No dia 24 desse mês, no interior da residência onde coabitavam, o arguido pôs as mãos no corpo daquela e, exercendo força muscular, empurrou-a;
27) Em consequência, CC bateu com a cabeça na parede e caiu ao chão inanimada;
[NUIPC 325/24.0T9EVR]
28) AA é pai de EE e de FF, nascidos a …/…/2014;
29) Até fevereiro de 2024 os mesmos coabitavam aos fins-de-semana consigo em função do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais;
30) Em data não apurada, mas em fevereiro de 2024, no interior da residência onde coabitavam, sita residia na …, na …, o arguido desferiu uma bofetada na face da filha FF, à data com 9 anos de idade, porque esta não quis prender o cabelo molhado;
31) Nessa mesma data e local, desferiu uma bofetada na face do filho EE, à data com 9 anos de idade, por este ter deixado cair o telemóvel;
32) Após, agarrou-lhe nos colarinhos/golas da roupa, levantou-o no ar e arremessou-o para cima do sofá;
33) Nessas e noutras ocasiões, no interior da residência onde coabitavam e em voz alta, o arguido disse aos filhos EE, FF e GG, à data com três anos de idade: “filhos da puta” e “caralho”;
34) Ainda em várias ocasiões, pelo menos em fevereiro de 2024 disse-lhes: “se vocês não se portam bem, eu bato-vos com o cinto”;
35) Noutra ocasião, entre fevereiro e março de 2024, no interior da residência onde coabitavam, o arguido desferiu uma palmada na perna e uma palmada na face de seu filho EE;
36) Nesse período temporal, em voz alta, disse aos filhos EE, FF e GG: “eu vou dar, eu vou dar cabo de vocês, vocês vão ver, vocês todos, vou dar cabo de vocês”;
37) Ao agir da forma descrita, o arguido sabia que molestava a saúde psíquica de DD, que a ofendia na sua honra e consideração, que fazia com que ela receasse pela sua integridade física e vida, que a acossava, que limitava e condicionava a sua liberdade de decidir quando e com quem se relacionar e de decidir para onde ir, que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava grande sofrimento físico e psíquico, o que pretendeu e fez de forma reiterada.
38) Mais sabia que sua mãe, CC, tinha 76 anos de idade, que devido à idade e aos laços de afeto que os unem, era física e psicologicamente incapaz de lhe oferecer resistência e atuou com o propósito concretizado de molestar a saúde física;
39) Ao ofender verbalmente e ao ameaçar DD na presença da filha menor de ambos, ao agredir CC na presença das crianças GG, FF e EE e ao agredir fisicamente estes dois últimos na presença daquela irmã, o arguido sabia que molestava a saúde psíquica e física dos filhos, que os perturbava, que lhes provocava receio e insegurança, sofrimento físico e psíquico e que influenciava negativamente os respetivos desenvolvimentos, o que pretendeu e fez, com consciência de que estava obrigado a velar pela saúde física e psíquica dos mesmos e a proporcionar-lhes condições que permitissem a sua educação, bem-estar e desenvolvimento são e integral;
40) Tendo agido sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;
No que aos factos atinentes às condições socioeconómicas concerne, ficou provado que o arguido:
41) É filho único, tendo os estádios da infância e adolescência desenvolvido-se isentos de conflitos relevantes, num ambiente afetivo compensador, veiculador de normas de conduta socialmente adequadas;
42) Completou o 9º ano de escolaridade, em frequência de curso de formação em serralharia;
43) Entre 2000 e 2006 cumpriu serviço militar, tendo durante esse período conhecido a primeira companheira, da qual tem uma filha nascida em … de 2006;
44) Essa relação terminou cerca de ano e meio após o nascimento da filha, tendo esta ficado aos cuidados da avó paterna e do pai;
45) Após a conclusão do serviço militar, trabalhou na área da construção civil até 2010 e posteriormente passou a fazer trabalhos sazonais na área agrícola e extração de cortiça, interpolados por períodos de desemprego;
46) Em 2014 assumiu a relação conjugal com a outra companheira, da qual tem dois filhos gémeos, tendo residido com a companheira, os filhos de ambos e a sua mãe, na residência desta última;
47) Após a separação do casal, passou a viver só com sua mãe;
48) Em 2019 iniciou relação de intimidade com DD, tendo dessa relação nascido uma filha;
49) Atualmente estrutura o seu quotidiano em função da ocupação em atividades na área agrícola e extração de cortiça bem como no convívio familiar, com a atual companheira, com quem vive em coabitação há cerca de dois meses numa relação descrita por esta como boa pois trata-a bem, é atencioso, carinhoso e preocupado;
50) Detém projetos de vida aparentemente pouco consistentes, que revelam uma estrutura de personalidade de alguma imaturidade e dificuldade em gerir e solucionar adversidades quotidianas;
Relativamente aos seus antecedente criminais, ficou provado que:
51) Por sentença datada e transitada em julgado a 24/10/2012, proferida no âmbito do proc. n.º 146/11.0…, foi o arguido condenado pela prática, a 06/07/2011, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. no artigo 3.º, do DL n.º 2/98, de 03 de janeiro, na de 80 dias de multa à taxa diária de € 5, tendo a mesma sido julgada extinta a 21/08/2013;
52) Por sentença datada de 10/03/2013 e transitada em julgado a 10/10/2013, proferida no âmbito do proc. n.º 218/13.6…, foi o arguido condenado pela prática, a 10/09/2013, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. no artigo 3.º, do DL n.º 2/98, de 03 de janeiro, na de 150 dias de multa à taxa diária de € 5, tendo a mesma sido julgada extinta a 19/06/2015;
53) Por acórdão datado de 19/12/2019, transitado em julgado a 31/01/2020, proferido no âmbito do proc. n.º 95/18.0…, foi o arguido condenado pela prática, em concurso efetivo, de dois crimes de violência doméstica, p. e p. no artigo 152.º, n.º 1, al. b) e d), e 2, do Código Penal, e um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa por igual período sujeita à frequência de um programa contra agressores dirigido à problemática da violência doméstica e a acompanhamento médico-psiquiátrico;
*
2. Factos não provados.
Com relevo para a decisão da causa não resultaram provados os seguintes factos:
a) No início da relação o arguido e DD viveram no … na …;
b) Antes da ocorrência descrita em 11) o arguido, fazendo força, agarrou-lhe um braço, manietando-a, aproximou o corpo e tentou beijá-la na boca, tendo-se a mesma afastado;
c) Imediatamente antes da situação descrita em 26), o arguido desferiu diversas bofetadas na face de sua mãe;
d) Ao atuar nos termos descritos relativamente a CC, o arguido agiu com o propósito concretizado de molestar a sua saúde psíquica, de a fazer recear pela suas integridade física e vida, de lhe abalar o amor-próprio, segurança pessoal, liberdade e dignidade, provocando-lhe sofrimento físico e psíquico;
e) Na situação descrita em 34), o arguido exibiu-lhes um cinto;”
* No que tange à determinação da pena única aplicada ao arguido e ao arbitramento de reparação às vítimas, ajuizou a decisão recorrida da seguinte forma:
“(…) 2.2. Do cúmulo
Tendo o arguido praticado, em concurso homogéneo efetivo, dois crimes de violência doméstica agravada, há que proceder ao cúmulo jurídico das penas, nos termos do artigo 77.º, do Código Penal, uma vez que do seu n.º 1 resulta que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.” Ficou, assim, consagrado como regra no nosso ordenamento jurídico o sistema da pena única conjunta.
Tendo sido determinada a pena concreta a atribuir a cada um dos crimes praticados, é necessário proceder-se à constituição da moldura penal do concurso efetivo. Nos termos do n.º 2 do artigo 77.º, do Código Penal, esta tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
In casu, o limite mínimo da moldura do concurso é de 3 anos e o limite máximo é de 11 anos e 8 meses.
Em seguida dever-se-á definir a medida concreta da pena através de uma consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente de modo a se perceber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) demonstrativa de uma personalidade desvaliosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade (artigo 77.º, n.º 1, in fine, do Código Penal) – vide, Jorge de Figueiredo Dias, op. cit. pág. 291. Assim, com a fixação da pena conjunta o que se pretende é sancionar o agente pelo conjunto dos factos enquanto revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento delituoso.
O Supremo Tribunal de Justiça tem adotado a jurisprudência de fazer acrescer à pena mais grave o produto de uma operação que consiste em comprimir a soma das restantes penas com fatores variáveis, mas que se situam, normalmente, entre um terço e um sexto. Não se trata de uma operação puramente matemática, destituída de fundamento jurídico, mas o que se visa é criar regras que permitam que em situações idênticas a pena única seja similar. O fator de compressão variará de acordo com a consideração que se fizer, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, como indica a lei, mas só em casos verdadeiramente excecionais se deve ultrapassar um terço da soma das restantes penas, principalmente se estiverem em consideração penas ou soma de penas muito elevadas, pois, se assim não fosse, facilmente se atingiria a pena máxima, reservada para a casos excecionalmente graves – vide, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/02/2019, relatado por Conceição Gomes, proc. n.º 39/15.1PAOLH-F.S1, disponível in www.dgsi.pt.
A personalidade do arguido, projetada nos factos em concurso, revela desrespeito pelos sentimentos, consideração, segurança e saúde – física e mental – das pessoas com quem partilha vida porquanto, bem sabendo as consequências que os seus atos teriam nos ofendidos não se coibiu de atuar como atuou.
Por tudo o referido, entende-se fixar a pena única de 5 anos e 6 meses de prisão.
2.3. Da pena de substituição
Atendendo à pena concreta fixada – 5 anos e 6 meses de prisão –, não se impõe qualquer ponderação relativamente à aplicação de uma pena de substituição da prisão de entre as elencadas na lei por inaplicabilidade legal. (…)”
*
(…)4. Do arbitramento de uma quantia à vítima a título de reparação
Decorre do artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, arbitra uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
Do artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, resulta que no caso de condenação pela prática de um crime de violência doméstica há sempre lugar à aplicação do referido instituto, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
No caso particular da violência doméstica, em que o arbitramento de uma indemnização é obrigatório nos termos do artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, dever-se-á prescindir da verificação do pressuposto “particulares exigências de proteção da vítima” previsto no artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, bastando-se com o preenchimentos dos pressupostos formais estabelecidos no primeiro preceito legal referido, porque se assim não for, em muitas situações, ter-se-ia de excluir a fixação de qualquer indemnização por não verificação deste pressuposto quando tal contraria o intuito de tal normativo que as presume de forma inilidível.
É o que resulta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/05/2018, relatado por Lopes da Mota, proc. n.º 156/16.0PALSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt, ao referir que “tendo em conta os elementos de interpretação a considerar, o sentido útil da remissão do artigo 21.º, da Lei n.º 112/2009, impõe que o tribunal condene sempre na «reparação pelos prejuízos causados», como efeito penal da condenação (da aplicação da pena) pela prática de crime de violência doméstica da previsão do artigo 152.º, do Código Penal. Isto desde que, verificados os respetivos pressupostos formais – não dedução de pedido de indemnização e não oposição à reparação –, a pessoa ofendida pelo crime tenha sofrido «um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão» que constitua esse crime, ou seja, desde que essa pessoa seja uma «vítima» do crime na aceção da alínea a) do artigo 2.º, da Lei n.º 112/2009.”
Da factualidade provada nos presentes autos resulta que o arguido praticou quatro crimes de violência doméstica agravada, não tendo as vítimas deduzido qualquer pedido de indemnização civil nem se opuseram à determinação de uma reparação nos termos do instituto ora em análise. Assim, impõem-se a fixação de uma quantia a arbitrar pelos prejuízos sofridos.
Tendo em conta as concretas condutas do arguido – injúrias, ameaças e agressões físicas (quanto aos filhos EE e FF) –, o período temporal em que tais foram efetuadas, a frequência com que praticadas e as consequências que delas resultaram, não há dúvidas que foram provocados danos cuja intensidade é passível de distinção entre a ofendida e o ofendido porquanto, como já analisado, os deste foram mais extensos e intensos.
Assim, nos termos do disposto nos artigos 494.º e 496.º, n.º 4, do Código Civil, atendendo à situação económico-financeira do arguido e ao seu grau de culpa, recorrendo às regras da experiência comum e apelando a juízos de equidade, decide-se, ao abrigo do disposto nos artigos 82.º-A, do Código de Processo Penal e 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, arbitrar a cada um dos ofendidos a indemnização de € 500 a título de reparação pelos prejuízos sofridos em consequência dos crimes cometidos.
***
II.III - Apreciação do mérito dos recursos.
A)Da medida concreta da pena única Nos recursos que são objeto da nossa apreciação, interpostos pelo arguido e pelo Ministério Público, não se encontra posta em causa a prática dos factos imputados ao arguido, nem a qualificação jurídica dos mesmos, nem tão pouco as penas parcelares aplicadas aos quatro crimes de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º, 1, al. b), c) e e) e 2, al. a), do CP pelos quais o arguido foi condenado.
O que ambos os recursos questionam, em sentidos opostos, é a medida concreta da pena única resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares em concurso. O que vale por dizer que, no entender do arguido, uma boa aplicação do direito ao caso determinaria a aplicação de uma pena mais reduzida – preconizando o mesmo, concretamente, que tal pena deverá fixar-se em 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período – sendo que, segundo a visão do Ministério Público, a situação vertente reclamaria a aplicação de uma pena única mais elevada.
Vejamos então se lhes assiste razão.
Não deixando de ter presente que nos recursos sobre a medida da pena, ao tribunal ad quem caberá tão somente verificar o respeito pelas normas e pelos princípios gerais que regulam tal matéria, não abrangendo a reapreciação a realizar no recurso «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada»1, analisemos então as circunstâncias do caso em apreço no que tange à determinação da pena única aplicada ao arguido no cúmulo jurídico realizado pelo tribunal a quo. Pela prática dos quatro crimes de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º, 1, al. b), c) e e) e 2, al. a), do CP, o acórdão recorrido optou pela aplicação ao arguido das pena parcelares de 3 de prisão quanto a três deles e de 2 anos e 8 meses de prisão quanto a um deles, penas que, por se encontrarem numa relação de concurso, foram integradas no cúmulo jurídico que determinou a aplicação da pena única de 5 anos e 6 meses de prisão.
Sobre a matéria da determinação da medida da pena única que agora nos ocupa, o tribunal discorreu nos termos acima transcritos.
*
Atento o disposto no artigo 77º, n.º 1 do Código Penal “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única.”
O pressuposto essencial para a efetuação do cúmulo jurídico de penas parcelares é a prática de diversas infrações pelo mesmo arguido antes de transitar em julgado a condenação por qualquer delas. Ou seja, para se proceder ao cúmulo jurídico é necessário que se verifiquem requisitos de ordem processual e material, nomeadamente, que se trate de penas relativas a crimes praticados antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles, que se trate de crimes cometidos pelo mesmo arguido e que se trate de penas parcelares da mesma espécie.
A finalidade subjacente às regras estabelecidas para a punição do concurso de crimes é a de permitir avaliar em conjunto factos que têm contemporaneidade processual. Ora, é precisamente esta situação que se verifica nos presentes autos quanto ao concurso efetivo e real dos crimes pelos quais o arguido foi condenado, importando, pois, apurar, tomando em consideração para a medida da pena os factos e a personalidade do agente, se a pena única aplicada ao arguido se revela adequada.
Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material “(…) é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente(…).”2 Tudo deverá passar-se “(…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências especiais de socialização).(…)”3
Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderado em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso.
* Atentemos na factualidade provada relativa à situação pessoal do arguido, que extraímos dos factos provados, e que, conjuntamente com a análise dos factos subjacentes às condenações dos crimes em concurso (quatro crimes de violência doméstica agravada), relevam na ponderação que nos cumpre realizar:
- No que aos factos atinentes às condições socioeconómicas concerne, ficou provado que o arguido:
41) É filho único, tendo os estádios da infância e adolescência desenvolvido-se isentos de conflitos relevantes, num ambiente afetivo compensador, veiculador de normas de conduta socialmente adequadas;
42) Completou o 9º ano de escolaridade, em frequência de curso de formação em serralharia;
43) Entre 2000 e 2006 cumpriu serviço militar, tendo durante esse período conhecido a primeira companheira, da qual tem uma filha nascida em … 2006;
44) Essa relação terminou cerca de ano e meio após o nascimento da filha, tendo esta ficado aos cuidados da avó paterna e do pai;
45) Após a conclusão do serviço militar, trabalhou na área da construção civil até 2010 e posteriormente passou a fazer trabalhos sazonais na área agrícola e extração de cortiça, interpolados por períodos de desemprego;
46) Em 2014 assumiu a relação conjugal com a outra companheira, da qual tem dois filhos gémeos, tendo residido com a companheira, os filhos de ambos e a sua mãe, na residência desta última;
47) Após a separação do casal, passou a viver só com sua mãe;
48) Em 2019 iniciou relação de intimidade com DD, tendo dessa relação nascido uma filha;
49) Atualmente estrutura o seu quotidiano em função da ocupação em atividades na área agrícola e extração de cortiça bem como no convívio familiar, com a atual companheira, com quem vive em coabitação há cerca de dois meses numa relação descrita por esta como boa pois trata-a bem, é atencioso, carinhoso e preocupado;
50) Detém projetos de vida aparentemente pouco consistentes, que revelam uma estrutura de personalidade de alguma imaturidade e dificuldade em gerir e solucionar adversidades quotidianas;
Relativamente aos seus antecedente criminais, ficou provado que:
51) Por sentença datada e transitada em julgado a 24/10/2012, proferida no âmbito do proc. n.º 146/11.0…, foi o arguido condenado pela prática, a 06/07/2011, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. no artigo 3.º, do DL n.º 2/98, de 03 de janeiro, na de 80 dias de multa à taxa diária de € 5, tendo a mesma sido julgada extinta a 21/08/2013;
52) Por sentença datada de 10/03/2013 e transitada em julgado a 10/10/2013, proferida no âmbito do proc. n.º 218/13.6…, foi o arguido condenado pela prática, a 10/09/2013, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. no artigo 3.º, do DL n.º 2/98, de 03 de janeiro, na de 150 dias de multa à taxa diária de € 5, tendo a mesma sido julgada extinta a 19/06/2015;
53) Por acórdão datado de 19/12/2019, transitado em julgado a 31/01/2020, proferido no âmbito do proc. n.º 95/18.0…, foi o arguido condenado pela prática, em concurso efetivo, de dois crimes de violência doméstica, p. e p. no artigo 152.º, n.º 1, al. b) e d), e 2, do Código Penal, e um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa por igual período sujeita à frequência de um programa contra agressores dirigido à problemática da violência doméstica e a acompanhamento médico-psiquiátrico; *
A fixação da moldura penal do concurso efetivo e real, de acordo com as regras doutrinarias e jurisprudenciais, no caso subjudice, encontra-se possibilitada pela igual natureza das penas a considerar no concurso – 4 penas parcelares de prisão – devendo ter como limite mínimo a pena parcelar mais grave – 3 anos de prisão – e como limite máximo a soma aritmética das penas parcelares – 11 anos e 8 meses de prisão.
Os crimes em concurso real e efetivo preenchem o mesmo tipo penal – o tipo de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c) e e) e 2, al. a), do Código Penal – afetando, por isso, o mesmo bem jurídico. Pese embora cometidos em ocasiões diferentes, todos os crimes foram praticados mediante um modus operandi comum, revelando o meio de execução similitudes, com um desvaliosíssimo propósito, concretizado, de molestar persistentemente a saúde psíquica e física de pessoas que lhe eram próximas, e que o mesmo deveria proteger. O arguido agrediu, não só a sua ex-companheira, não só um dos seus filhos, mas sim aquela e todos os seus três filhos menores – pessoas cuja especial vulnerabilidade resulta evidente em razão dos referidos vínculos familiares, que as colocam em situação de dependência económica e/ou emocional. Agrediu-os física e psicologicamente. E fê-lo de forma persistente, subsistindo uma resolução criminosa reiterada. Tais circunstâncias, associadas à prática anterior de outros dois crimes de violência doméstica e de outros dois crimes de natureza diversa – conforme resulta do elenco das condenações do arguido acima consignado – revelam, a nosso ver, um quadro global de ilicitude e gravidade, que se manifesta numa atuação criminógena superior a uma mera e coincidente ocasionalidade no cometimento dos crimes.
Acresce que, como bem faz notar, quer o acórdão recorrido, quer o Ministério Público no seu recurso, releva necessariamente, o facto de o arguido ter persistido nos seus comportamentos mesmo após a realização do primeiro interrogatório de arguido detido, no qual lhe haviam sido aplicadas medidas de coação que vedavam quaisquer contactos com a ex-companheira.
Por fim, no que às exigências de prevenção especial diz respeito, assume particular relevo o facto de o arguido ter praticado os crimes que foram objeto de condenação nos presentes autos, e que integram o concurso de crimes que agora apreciamos, durante o período da suspensão da execução da pena de prisão que lhe havia sido aplicada por crimes de natureza semelhante, por acórdão transitado em julgado a 31.01.2020. Com efeito, conforme resulta do facto provado n.º 53: “Por acórdão datado de 19/12/2019, transitado em julgado a 31/01/2020, proferido no âmbito do proc. n.º 95/18.0…, foi o arguido condenado pela prática, em concurso efetivo, de dois crimes de violência doméstica, p. e p. no artigo 152.º, n.º 1, al. b) e d), e 2, do Código Penal, e um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa por igual período sujeita à frequência de um programa contra agressores dirigido à problemática da violência doméstica e a acompanhamento médico-psiquiátrico;” Tal como consta do acórdão recorrido, o arguido tem “(…) projetos de vida aparentemente pouco consistentes, que revelam uma estrutura de personalidade de alguma imaturidade e dificuldade em gerir e solucionar adversidades quotidianas. Tal aponta para exigências elevadas porquanto nem a pena de prisão aplicada o impediu de voltar a delinquir precisamente nos mesmos moldes (…)”.
Tendo em conta a apreciação global efetuada – e não podendo, ademais, olvidar-se, que no acórdão acima referido o arguido foi já condenado na pena de 5 anos de prisão, suspensa por igual período, pela prática, em concurso efetivo, de dois crimes de violência doméstica, p. e p. no artigo 152.º, n.º 1, al. b) e d), e 2, do Código Penal, e um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal – não partilhamos, pois, do entendimento exposto na decisão recorrida no sentido de que a pena única a aplicar ao arguido deverá fixar-se em 5 anos e 6 meses de prisão, dentro de uma moldura global de 3 anos a 11 anos e 8 meses,
Menos ainda poderemos concordar com a posição do arguido no recurso, no sentido de que a pena única não deveria ser superior a cinco anos. Relativamente ao argumentário do arguido – essencialmente composto por uma vasta dissertação sobre o crime de violência doméstica, com especial enfoque na perspetiva sociológica – no que à economia do recurso aproveita, deixamos duas notas. A primeira é que o arguido não foi condenado como reincidente, pelo que não se compreende a convocação do artigo 75º do CP. A segunda é que o relatório social a que alude o artigo 370º do CPP, não vinculativo, como bem assinala o recorrente, foi tido em conta para a determinação da pena única, não se tendo ignorado ou escamoteado a informação relevante que o mesmo contém. O que sucede é que as circunstâncias aí referidas, designadamente o facto de o arguido ter refeito a sua vida com outra companheira, não têm a virtualidade de atenuar as exigências de prevenção especial nos termos propugnados pelo recorrente.
*
Pelas razões expostas, levando em conta os factos que foram objeto das condenações em concurso, analisados conjuntamente e de forma integrada com as demais condenações a que acima fizemos referência, subscrevemos a argumentação expendida pelo Ministério Público nas suas alegações de recurso no sentido de que a pena única de 5 anos e 8 meses de prisão se revela insuficiente para assegurar as finalidades da punição.
Em síntese, diremos que a atuação criminógena e persistente do arguido emerge como reveladora de uma manifesta indiferença relativamente aos valores e bens jurídicos que o tipo penal em causa visa proteger. A reiteração das condutas, associada à gravidade dos factos subjacentes às condenações integradas no cúmulo, torna elevada a sua culpa e acentua as necessidades de prevenção geral e especial.
Assim, atendendo à gravidade e às circunstâncias atinentes à globalidade dos factos praticados, à natureza dos crimes e à personalidade refletida nos mesmos e no mais que evidencia o percurso de vida do arguido, entendemos que a medida da pena única encontrada pelo tribunal “a quo” se revela desajustada, por insuficiente, não podendo deixar de fixar-se uma dosimetria mais próxima do meio da sua moldura abstrata, ainda que abaixo da propugnada pelo Ministério Público, afigurando-se-nos adequada a pena de 7 anos de prisão, que se fixará.
*
B) Do arbitramento das reparações às vítimas.
Alega o Ministério Público no seu recurso que as quantias arbitradas às vítimas, a título de reparação dos danos sofridos, se revelam insuficientes.
Preceitua o artigo 21.º, n.º 2 do Regime Jurídico da Violência Doméstica, aprovado pela Lei n.º 112/2009, de 16.09 que “para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”. Por seu turno, decorre do artigo 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal, que “não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a titulo de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vitima o imponham”.
Considerando que nos presentes autos os ofendidos dos crimes de violência doméstica agravada, pelos quais o arguido foi condenado, não deduziram pedido cível, nem se opuseram ao recebimento da reparação prevista no artigo 82.º-A, n.º 1 do CPP, sempre seria de equacionar a atribuição da mesma nos termos previstos conjugadamente em tal normas legais, como, aliás, foi feito no acórdão recorrido.
A questão trazida pelo Ministério Público no seu recurso reporta-se apenas à adequação dos montantes arbitrados.
Dando aplicação às normas citadas, o tribunal recorrido, após ter reconhecido a existência de danos provocados pelas condutas criminosas e, bem assim, a inexistência de pedidos de indemnização civil deduzidos pelos ofendidos, procedeu ao arbitramento das reparações àqueles, o que fez com a seguinte fundamentação: “(…) Da factualidade provada nos presentes autos resulta que o arguido praticou quatro crimes de violência doméstica agravada, não tendo as vítimas deduzido qualquer pedido de indemnização civil nem se opuseram à determinação de uma reparação nos termos do instituto ora em análise. Assim, impõem-se a fixação de uma quantia a arbitrar pelos prejuízos sofridos.
Tendo em conta as concretas condutas do arguido – injúrias, ameaças e agressões físicas (quanto aos filhos EE e FF) –, o período temporal em que tais foram efetuadas, a frequência com que praticadas e as consequências que delas resultaram, não há dúvidas que foram provocados danos cuja intensidade é passível de distinção entre a ofendida e o ofendido porquanto, como já analisado, os deste foram mais extensos e intensos.
Assim, nos termos do disposto nos artigos 494.º e 496.º, n.º 4, do Código Civil, atendendo à situação económico-financeira do arguido e ao seu grau de culpa, recorrendo às regras da experiência comum e apelando a juízos de equidade, decide-se, ao abrigo do disposto nos artigos 82.º-A, do Código de Processo Penal e 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, arbitrar a cada um dos ofendidos a indemnização de € 500 a título de reparação pelos prejuízos sofridos em consequência dos crimes cometidos.(…)”
Ressalvado o devido respeito, a verdade é que não compreendemos a fundamentação da decisão recorrida no trecho transcrito. Vejamos:
- Refere-se que, quanto aos filhos EE e FF, não há dúvida que as condutas do arguido causaram danos, “cuja intensidade é passível de distinção entre a ofendida e o ofendido”, porquanto “os deste foram mais extensos e intensos”;
- Nada refere quanto às ofendidas DD e GG;
- Em desalinho com as duas anteriores premissas, no dispositivo, arbitra-se aos quatro ofendidos a mesma quantia, 500,00 €.
Pois bem, quanto ao arbitramento das reparações aos ofendidos, e no que aqui releva, diremos, em breve síntese, o seguinte. Pese embora o citado artigo 21.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09 imponha que se dê sempre aplicação do disposto no artigo 82º-A do CPP, estabelecendo que as vítimas do crime de violência doméstica beneficiam sempre de particulares exigências de proteção, não deixa de exigir que se verifiquem os pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual e do dever de indemnizar para que lhes seja arbitrada a reparação a que alude o citado artigo, o que deverá ser feito através da aplicação de critérios de equidade, conformados pelos factos tidos por provados nos autos. Esta é, a nosso ver, a posição a que, respeitando embora os valores atinentes à necessidade de proteção da vítima que se visam assegurar com a previsão da norma em causa, nos parece mais consentânea com o respeito, também necessário, pelos pressupostos do direito ao ressarcimento de danos causados por factos ilícitos.4
Assim, em cumprimento do regime legal estabelecido pelas disposições conjugadas dos artigos 21, nºs 1 e 2 da Lei n° 112/2009 de 16.09 e 82°-A do CPP, deverá o julgador realizar uma análise casuística da situação, ponderando a factualidade e as várias circunstâncias apuradas, com especial destaque para a conduta do agressor e para as consequências sentidas pela vítima e, verificando-se os pressupostos da responsabilidade civil, decidir de acordo com a equidade.
Assumimos que a falta de referência, no acórdão recorrido, aos danos das ofendidas DD e GG, na parte da fundamentação em que discorre sobre a reparação (nos termos acima assinalados) se deveu a mero lapso5, pelo que daremos prevalência ao dispositivo do acórdão. Assentando em que a matéria de facto provada atesta que das condutas criminosas do arguido resultaram danos para os quatro ofendidos, danos que, atenta a sua relevância, merecem a tutela do direito, resta-nos apreciar, nos termos sobreditos, se as quantias aos mesmos arbitradas se revelam adequadas e proporcionais ou se, conforme sustenta o Ministério Público, se mostram insuficientes.
A equidade surge como o critério norteador, obrigatório e decisivo, da fixação das reparações em causa. Também aqui, à semelhança do que sucede na determinação dos montantes indemnizatórios, não poderemos deixar de recorrer às estatuições do artigo 496º, nº 3 e 494º, ambos do Código Civil, que determinam que na fixação do quantum indemnizatório, o juiz deverá fazer uso de critérios de equidade, tomando em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e a do lesado, bem como as demais circunstâncias concretas relevantes.
No caso sub judice, já vimos que a culpa não pode deixar de considerar-se acentuada, atendendo à censurabilidade que merece a conduta do demandado, traduzida numa reiterada violação do dever de respeito da integridade física, do bem estar psicológico e da honra da ex-companheira e dos seus três filhos menores. Importa igualmente atender ao período temporal durante o qual foram praticadas as condutas ilícitas – cerca de 5 meses, de outubro de 2023 a março de 2024 – à gravidade das sequelas, especialmente psicológicas, sofridas pelos ofendidos – consignadas nos pontos 37. e 39. dos factos provados6. Igualmente se impõe considerar as condições socioeconómicas do demandado, que se encontram exaradas nos pontos 41. a 50. dos factos provados.
Assim, atendendo às razões expostas e dando aplicação aos mencionados critérios acima explanados, somos a concluir que o montante encontrado pelo Tribunal a “quo” para ressarcimento dos danos de natureza não patrimonial resultantes para os ofendidos da prática pelo arguido dos crimes de violência doméstica agravada se revela insuficiente. Considerando as desvaliosas condutas sancionadas nos autos, o contexto em que as agressões foram perpetradas pelo arguido, o período temporal durante o qual as mesmas ocorreram, as concretas sequelas sofridas pelos ofendidos, especialmente ao nível psicológico, e a condição económica do lesante, revela-se, a nosso ver, justo e equitativo fixar o montante indemnizatório acima do valor encontrado pelo tribunal recorrido, mas ainda assim, aquém dos montante peticionados no recurso. Nesta conformidade, e sempre com o subjetivismo inerente à realização do juízo equitativo aqui reclamado, afigura-se-nos mais conforme aos critérios norteadores do cálculo em causa, fixar o montante indemnizatório em 1 000,00 € (mil euros) para cada ofendido7.
Impõe-se, pois, julgar o recurso apresentado pelo Ministério Público parcialmente procedente também nesta parte, alterando-se o valor das reparações nos termos sobreditos.
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III- Dispositivo.
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, em alterar a sentença recorrida, fixando:
a) A pena única, resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão aplicadas ao arguido nos presentes autos, em 7 (sete) anos de prisão;
b) As quantias arbitradas às vítimas, a título de reparação, em 1.000,00 (mil euros) para cada uma delas.
- Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido.
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Sem custas quanto ao recurso interposto pelo Ministério Público.
Custas pelo recorrente quanto ao recurso interposto pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais).
(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)
Évora, 30 de setembro de 2025
Maria Clara Figueiredo
Francisco Moreira das Neves
Beatriz Marques Borges
Sumário
I - Atendendo à atuação criminógena e persistente do arguido, à gravidade e às circunstâncias atinentes à globalidade dos factos praticados, à natureza dos crimes – quatro crimes de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º, 1, al. b), c) e e) e 2, al. a), do CP – à personalidade refletida nos mesmos, à circunstância de o arguido ter praticado os crimes durante o período da suspensão da execução da pena de prisão que lhe havia sido aplicada por crimes de natureza semelhante, entendemos que a medida da pena única encontrada pelo tribunal “a quo” se revela desajustada, por insuficiente, não podendo deixar de fixar-se uma dosimetria mais próxima do meio da sua moldura abstrata, afigurando-se-nos adequada a pena de 7 anos de prisão.
II - Considerando as desvaliosas condutas sancionadas nos autos, o contexto em que as agressões foram perpetradas pelo arguido, o período temporal durante o qual as mesmas ocorreram (cerca de 5 meses), as concretas sequelas sofridas pelos ofendidos – a ex-companheira e os três filhos menores do arguido – especialmente ao nível psicológico, e a condição económica do lesante, revela-se, a nosso ver, justo e equitativo fixar o montante da reparação a que aludem os artigos 21, nºs 1 e 2 da Lei n° 112/2009 de 16.09 e 82°-A do CPP, em 1 000,00 € (mil euros) para cada ofendido.
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1 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 197, Aequitas – Editorial Notícias, 1993.
2 Ac. STJ de 18 de Novembro de 2009, proc. nº 702/08.3GDGDM.P1.S, disponível em www.dgsi.pt.
3 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pp. 291.
4 Neste preciso sentido se pronunciou o STJ, no acórdão datado de 02.05.2018, relatado pelo Conselheiro Lopes da Mota. Entendimento que também tivemos já ocasião de defender no acórdão desta Relação de 05.12.2023, proferido no processo nº 644/22.0PBEVR.E1, que relatámos, e que foi igualmente defendido no acórdão da Relação do Porto de 15.12.2016, relatado pelo Desembargador Manuel Soares, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Também Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, Lisboa, 2018, na anotação ao artigo 82º-A do CPP, página 505, refere que “(…) As únicas condições da reparação oficiosa da vítima são a prova de danos causados à vítima, a condenação do arguido pelo crime imputado e a não oposição da vítima à reparação (…)” .
5 Que, aliás, não foi sinalizado pelo Ministério Público no recurso.
6 “ 37) Ao agir da forma descrita, o arguido sabia que molestava a saúde psíquica de DD, que a ofendia na sua honra e consideração, que fazia com que ela receasse pela sua integridade física e vida, que a acossava, que limitava e condicionava a sua liberdade de decidir quando e com quem se relacionar e de decidir para onde ir, que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava grande sofrimento físico e psíquico, o que pretendeu e fez de forma reiterada.
(…) 39) Ao ofender verbalmente e ao ameaçar DD na presença da filha menor de ambos, ao agredir CC na presença das crianças GG, FF e EE e ao agredir fisicamente estes dois últimos na presença daquela irmã, o arguido sabia que molestava a saúde psíquica e física dos filhos, que os perturbava, que lhes provocava receio e insegurança, sofrimento físico e psíquico e que influenciava negativamente os respetivos desenvolvimentos, o que pretendeu e fez, com consciência de que estava obrigado a velar pela saúde física e psíquica dos mesmos e a proporcionar-lhes condições que permitissem a sua educação, bem-estar e desenvolvimento são e integral;”
7 Não se vislumbrando razões sustentadoras de eventual distinção das reparações quanto aos montantes arbitrados, conquanto, no que diz respeito às sequelas que aqui valorizamos, a matéria de facto provada não ostenta diferenciação relevante na situação dos quatro ofendidos.