FALTA DE CONTRADITÓRIO
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário

A falta de contraditório prévio sobre um pedido de remoção dos autos de um interveniente processual e do respetivo Mandatário constitui nulidade processual que, arguida tempestivamente, se projeta e invalida a decisão que acolhe esse pedido.

Texto Integral

Processo n.º 3227/25.9T8VNG-B.P1


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Sumário:

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Relator: Des., João Diogo Rodrigues
Adjuntos: Des., Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira;
Des., Anabela Andrade Miranda.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto,

I- Relatório

1- No processo judicial que AA instaurou, no dia 15/04/2025, contra a sociedade, A..., Ldª, veio aquela requerer a declaração de insolvência desta última, com a medida cautelar de nomeação de administrador judicial provisório e apreensão de todos os seus bens.

2- Por despacho proferido no dia 23/04/2025, foi nomeado o referido administrador judicial “com poderes para proceder à inventariação e apreensão dos bens que compõem o estabelecimento comercial da requerida de forma a salvaguardar a sua dissipação, dado que os mesmos constituem a única garantia de salvaguarda dos direitos dos credores”.

3- Nessa sequência, no dia 21/05/2025, foi pela Administradora Judicial Provisória, lavrado termo de entrega de imóvel onde funcionava o estabelecimento da Devedora e inventariados os bens móveis nele existentes.

4- Posteriormente, no dia 23/05/2025, BB e CC, vieram requerer a junção de procuração forense aos autos e a associação a eles da Mandatária pelos mesmos constituída.

5- E, no dia 25/05/2025, vieram requerer, entre o mais, o seguinte:

“- Que se digne determinar a imediata notificação da Exma. Senhora Administradora Provisória da Insolvência da sociedade A..., Lda., para:

a) Restituir de imediato a posse dos imóveis aos Requerentes;

b) Devolver os bens móveis constantes do Anexo I ao acordo de cessação, indevidamente apropriados ou listados;

c) Abster-se de quaisquer novos atos de ingerência, turbação ou esbulho, relativamente ao locado e seus bens;

Sob pena de incorrer em responsabilidade civil pelos prejuízos causados.

(…)”.

Declararam ainda juntar 7 documentos e procuração forense.

6- No dia subsequente (26/05/2025), a Requerente da Insolvência respondeu pugnando, além do mais, pelo indeferimento do requerido, por ser intempestivo.

7- Os referidos Intervenientes replicaram.

8- No dia 27/05/2025, foi relegado o conhecimento do dito requerimento apresentado no dia 25/05/2025, para momento oportuno.

9- A Requerente de Insolvência, por sua vez, veio, depois, requerer a concretização da citação da Devedora numa outra morada e acrescentou:

“Mais requer, tendo verificado que há outros intervenientes e mandatários registados na árvore do CITIUS, que os mesmos sejam removidos pois não há razão nenhuma nesta fase, em que só há dois intervenientes, para que terceiros tenham acesso ao processo.

Ressalva-se apenas, quanto à Dra. DD, e apenas se esta vier declarar representar o requerido, já que esta declarou representar os gerentes/sócios do mesmo:

Req. de 26.05.25, ref.ª 42580615, em qualquer dos documentos juntos: «(…) a pedidos dos m/ clientes EE e esposa, gerentes da sociedade A..., LDA (…)» — (…).

Ora, ou a IM consigna expressamente representar o requerido, assim sendo lícito o acesso privilegiado ao processo visualizando todos os actos processuais, ou não o faz, assim não devendo ter acesso antes da declaração de insolvência”.

10- Foi, então, no dia 09/06/2025, proferido o seguinte despacho (na parte com interesse para este recurso):

“Os intervenientes acidentais BB e CC e Il. Mandatária (cuja procuração forense não foi junta aos autos) foram inseridos na árvore do citus por forma a ser efetuada a notificação do despacho de 27-05-2025 no que se refere ao requerimento por estes apresentado.

Atentos os motivos invocados e uma vez que o incidente deduzido é prematuro, e que será oportunamente decidido, após notificação deste despacho remova os intervenientes e Il. Mandatária do processo”.

11- Os já aludidos Intervenientes, BB e CC, vieram, então, no dia 17/06/2025, requerer que:

“a) [Seja declarada] a nulidade do despacho proferido em 09/06/2025;

b) que seja imediatamente reposto o acesso da mandatária aos autos, com efeitos retroativos;

c) que tome de imediato conhecimento sobre o requerimento apresentado em 25/05/2025, devendo seguir-se os demais trâmites processuais até final”.

12- Contra esta pretensão manifestou-se a Requerente da Insolvência, pedindo que os Intervenientes sejam “condenados, nos termos do art. 531.º CPC numa taxa de justiça sancionatória, sem prejuízo de eventual condenação como litigantes de má fé nos termos gerais”.

13- Subsequentemente, no dia 30/06/2025, foi tomada a seguinte decisão sobre o requerimento apresentado pelos Intervenientes no dia 17/06/2025:

“(…)

O despacho em apreço [datado de 09/06/2025] apreciou requerimento apresentado em 25-05-2025 na qual BB e CC apresentam “REQUERIMENTO COM PEDIDO DE SEPARAÇÃO DE BENS E RESTITUIÇÃO IMEDIATA DA POSSE”, com fundamento na alegada propriedade dos bens apreendidos, por ora a título cautelar.

Neste requerimento de 25-05-2025 a Il. Mandatária afirma anexar/juntar 7 documentos e procuração forense.

Por despacho proferido em 27-05-2025 foi decidido somente que oportunamente o Tribunal se pronunciará quanto ao requerido. Mais foi feita alusão que a Il. Mandatária não tinha junto procuração forense, sendo que efetivamente não o fez, como afirma, com o sobredito requerimento de 27-05-2025. De facto, por lapso do Tribunal a que não é alheio o facto de se afirmar juntar 7 documentos e procuração, quando apenas foram juntos 7 documentos, a procuração foi junta em 23-05-2025.

A alegada devedora/insolvente ainda não foi citada, nem tão pouco a insolvência decretada.

O incidente suscitado é, por isso, prematuro e inoportuno, dado que não correrá nestes autos principais mas por apenso, caso se verifique a sua necessidade e pressupostos (o que por exemplo não sucede se a insolvência não for decretada e for julgada a ação improcedente, e consequentemente levantada a medida cautelar de apreensão dos bens).

De facto, o incidente conhece a tramitação prevista nos artigos 141.º e seguintes do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, que conhece os prazos e pressupostos previstos, designadamente, no artigo 144.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, para cujo teor se remete.

Tal requerimento apresentado em 27-05-2025 já obteve respostas e contraditórios sucessivos, em 26-05-2025 e em 03-06-2025, e em 05-06-2025, sendo que neste último a Requerente da insolvência, AA, requer o seguinte: “Mais requer, tendo verificado que há outros intervenientes e mandatários registados na árvore do CITIUS, que os mesmos sejam removidos pois não há razão nenhuma nesta fase, em que só há dois intervenientes, para que terceiros tenham acesso ao processo. Ressalva-se apenas, quanto à Dra. DD, e apenas se esta vier declarar representar o requerido, já que esta declarou representar os gerentes/sócios do mesmo: Req. de 26.05.25, ref.ª 42580615, em qualquer dos documentos juntos: «(…) a pedidos dos m/ clientes EE e esposa, gerentes da sociedade A..., LDA (…)» — (…). Ora, ou a IM consigna expressamente representar o requerido, assim sendo lícito o acesso privilegiado ao processo visualizando todos os actos processuais, ou não o faz, assim não devendo ter acesso antes da declaração de insolvência.”.

Foi na sequência deste requerimento da Requerente AA que o Tribunal, verificando que lhe assistia razão, decidiu que “Atentos os motivos invocados e uma vez que o incidente deduzido é prematuro, e que será oportunamente decidido, após notificação deste despacho remova os intervenientes e Il. Mandatária do processo.”, dado que a Il. Mandatária, Sra. Dra. DD, apenas representa os intervenientes que não são parte no presente processo principal que visa conhecer da alegada situação de insolvência de A..., Lda..

Desta feita, não se vislumbra ter existido qualquer nulidade pela desassociação da Il. Mandatária que irregularmente se encontrava com acesso aos autos pois não representa nenhuma parte na ação, nem se impediu os requerentes de exercerem o seu direito a reclamar a restituição de bens imóveis e móveis sua propriedade, apenas se determinou, ao abrigo do dever de gestão processual, proibição de prática de atos inúteis e adequação formal do processo (artigos 6.º, 130.º e 547.º do Código de Processo Civil), que tal incidente fosse tramitado e decidido em momento próprio.

Note-se que o contraditório é concedido às partes no processo, antes da decisão de quaisquer questões de direito ou de facto, salvo em caso de manifesta desnecessidade (artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

Os presentes autos revestem natureza urgente e a apresentação de requerimentos anómalos e respostas entorpece o seu andamento, pelo que cabe ao Tribunal assegurar a escorreita e adequada tramitação.

Ademais, verifica-se que também foi deduzido incidente de reclamação de créditos nestes autos e o Il. Mandatário subscritor não foi, nem tinha de o ser, associado ao processo, tendo o Tribunal despachado no mesmo sentido, de que o incidente deveria ser deduzido em sede e momento próprios.

Pelo exposto, indefere-se a invocada nulidade processual nos termos do artigo 195.º, n.º 1, a contrário, do Código de Processo Civil.

Custas pelos Requerentes atenta a improcedência, as quais se fixam no mínimo legal, nos termos do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil”.

14- Inconformados com esta decisão, dela recorrem os indicados Intervenientes, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:

“1ª.- O despacho recorrido, proferido em 30/06/2025, indeferiu a arguição de nulidade deduzida pelos recorrentes relativamente ao despacho de 09/06/2025, que, entre outros, os excluiu dos autos e impediu o acesso da respetiva mandatária e considerou requerimento prévia apresentado pelos recorrentes (em 25/05/2025) de intempestivo;

2ª.- A referida decisão enferma de erro de julgamento sobre matéria de facto, ao considerar que a mandatária não havia junto procuração forense, quando a mesma foi efetivamente apresentada nos autos em 23/05/2025, com registo no sistema Citius;

3ª.- A decisão viola os princípios do contraditório, por ter sido proferida sem prévia audição dos recorrentes ou da mandatária, e com produção de efeitos imediatos, sem respeito pelos prazos legais de reação;

4ª.- A exclusão sumária da mandatária e dos recorrentes foi determinada com base em requerimento de uma parte interessada (credora da insolvência), que não apresentou qualquer prova de impedimento ou conflito de interesses, pretendendo apenas desacreditar a mandatária e obter ganho ilegítimo com a venda de património de terceiros;

5ª.- A mandatária nunca representou a sociedade devedora nem seus gerentes no presente processo, não tendo sido junto qualquer documento ou procuração que o demonstrasse, pelo que não existe qualquer fundamento para a sua exclusão;

6ª.- Os recorrentes, embora não formalmente constituídos como partes principais, são terceiros diretamente interessados, na medida em que invocam a posse legítima e a titularidade de bens móveis e imóveis apreendidos pela administradora judicial;

7ª.- O requerimento apresentado pelos recorrentes em 25/05/2025 não é um incidente de separação de bens nos termos do art. 141.º do CIRE, mas sim um pedido possessório e restitutório, com natureza reativa a ato de esbulho, tutelado pelos 1276.º e seguintes do Código Civil;

8ª.- A qualificação do requerimento como “intempestivo” assenta em erro de direito manifesto, consubstanciando nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC;

9ª.- O despacho recorrido recusa conhecer de forma injustificada um requerimento que visa salvaguardar o direito de propriedade dos recorrentes sobre bens que nunca integraram a esfera jurídica do devedor, violando o direito de acesso aos tribunais previsto no art 2º do CPC;

10ª.- Em suma, os Recorrentes, legítimos proprietários dos imóveis e bens móveis identificados nos autos, encontram-se, até à presente data, privados do seu património, na sequência de uma atuação indevida da administração da insolvência, respaldada por despachos judiciais que não só ignoraram a prova documental junta, como impediram o seu direito à defesa e ao contraditório;

11ª.- Apesar de terem reagido atempadamente por via judicial, os recorrentes viram-se excluídos dos autos e impedidos de aceder ao processo, perpetuando-se uma situação de esbulho e de violação grosseira dos seus direitos fundamentais;

12ª.- A manutenção desta exclusão constitui uma denegação de justiça e um atentado ao direito de propriedade consagrado no artigo 62.º da CRP;

13ª.- Impõe-se, pois, a admissão do presente recurso com efeito suspensivo, de forma a cessar de imediato os efeitos de uma decisão que mantém uma situação material e juridicamente insustentável;

14ª- A decisão recorrida consubstancia violação dos direitos fundamentais dos recorrentes, designadamente o direito ao processo justo (art. 20.º CRP), o direito de propriedade privada (art. 62.º CRP) e o direito à ação em defesa da posse (arts. 1276.º e ss do Código Civil);

15ª.- O despacho de 09/06/2025 deve ser declarado nulo e deve ser revogado o despacho de 30/06/2025, que indeferiu a arguição de nulidade, mantendo os efeitos ilegítimos do despacho anterior;

16ª.- O despacho recorrido viola, entre outras, as seguintes disposições:

- disposições supra constitucionais: Protocolo Adicional n.º 1, art. 1.º da CEDH

- disposições constitucionais: arts 20º e 62º da CRP

- disposições legais: arts 141º, 144º e 149º todos do CIRE e arts 406º, 837º, 879º e 1276º todos do CC; e

- disposições processuais: art 2º, 3º n.º 3, 48º, 195º, n.º 1, 613º a 617º e 615º n.º 1 als c) e d) todos do CPC.

Quanto ao valor do recurso:

17 - Nos termos do artigo 296.º do CPC, o valor da causa (e, por consequência, do recurso) é determinado pelo conteúdo económico da pretensão formulada.

18 - Ora, a atribuição do valor de € 450.000,00 pela requerente da insolvência à ação (pedido de insolvência) não tem qualquer correspondência com o objeto jurídico efetivo do pedido formulado pelos Recorrentes, o qual se limita à restituição da posse de bens móveis e imóveis.

19 - Com efeito, trata-se de um pedido de natureza possessória e restitutória, visando apenas a reposição da posse sobre imóveis e bens móveis que nunca integraram a massa insolvente, sendo alheios ao processo de insolvência.

20 - Assim, o valor adequado à ação – e, por consequência, ao recurso – deve ser fixado nos termos do artigo 304.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, em € 30.000,01.

Nestes termos, e nos mais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, requerem a V. EXA que seja o presente recurso julgado procedente por provado e, em consequência:

a) Seja declarado nulo o despacho de 09/06/2025 e todos os actos praticados posteriormente;

b) Seja revogado o despacho de 30/06/2025, que indeferiu a arguição de nulidade, mantendo os efeitos ilegítimos do despacho anterior;

c) Que seja reposto o acesso da mandatária e dos recorrentes aos autos;

d) Que seja ordenada a admissão de requerimento de 25/05/2025, com subsequente prolação de decisão judicial a proferir conforme a justiça, a lei e o direito”.

15- A Requerente da Insolvência respondeu, terminando com estas conclusões:

“A. As conclusões delimitam o recurso e revelam que o recorrente está inconformado e pretende ver revogada pela Relação a decisão proferido pelo Mmo. Tribunal recorrido em 09.06.25

B. O recurso interposto é intempestivo por terem decorrido substancialmente mais do que 15 dias desde a sua prolacção

C. Ao reclamarem do despacho, os recorrentes renunciaram ao direito ao recurso

D. O valor do recurso tem de ser o valor dos imóveis cuja separação se requer, a qual deve ser fixada em € 424620,00 (quatrocentos e vinte e quatro mil seiscentos e vinte euros)

E. Os recorrentes não são partes na acção, na fase processual em que a insolvência requerida se encontra, pelo que não devem ter acesso ao processo na qualidade de intervenientes, devendo apenas ter acesso, quando justificado, pelo direito temporário de consulta aos autos.

F. Não há lugar ao incidente de separação e restituição antes da insolvência ter sido declarada

G. O recurso deve ser liminarmente rejeitado, assim se fazendo a habitual

JUSTIÇA!”.

16- Posteriormente, no dia 15/07/2025, o recurso foi admitido [com subida imediata, em separado e efeito devolutivo] e fixado “provisoriamente à causa o valor de € 30,000,01”.

17- Este despacho foi notificado aos Apelantes e Apelada por oficio expedido por via eletrónica, no dia 16/07/2025.

18- No dia 15/07/2025, foi proferida sentença declarando a insolvência da Devedora, A... Lda.

19- A Requerente da Insolvência veio requerer, depois, a declaração de nulidade do despacho que fixou o valor da causa, mas essa nulidade foi julgada improcedente.

20- Remetidos os autos a este Tribunal, preparada que está a deliberação, importa tomá-la.

II- Questões prévias

Quanto ao valor da causa, o mesmo, como vimos, foi fixado por despacho proferido no dia 15/07/2025, o recurso foi admitido [com subida imediata, em separado e efeito devolutivo] e fixado “provisoriamente à causa o valor de € 30,000,01”.

Este despacho foi notificado aos Apelantes e Apelada, por ofício expedido por via eletrónica, no dia 16/07/2025, e apenas foi objeto de reclamação, por parte da Apelada. Todavia, essa reclamação foi julgada improcedente não houve outra qualquer reação.

Assim, o referido despacho deve considerar-se transitado em julgado, pelo que sobre o seu objeto, ou seja, sobre o valor da causa, não poderá haver nova pronúncia [artigos 620.º, n.º 1, 621.º e 628.º, do CPC). Em suma, essa questão não será objeto da nossa análise.

Quanto à inadmissibilidade deste recurso, entendemos que a Apelada não tem razão.

O despacho que os Apelantes declararam pretender impugnar é o proferido no dia 30/06/2025, que indeferiu a arguição de nulidade deduzida pelos Apelantes, relativamente ao despacho de 09/06/2025 e, embora estes lhe atribuam outros vícios, a dita nulidade não pode deixar de ser aqui sindicada, pois que foi objeto do despacho recorrido.

Como tal, este recurso (que, repetimos, incide sobre o despacho proferido no dia 30/06/2025 e não sobre o que foi prolatado, antes, no dia 09/06/2025) não é intempestivo. Isto porque aquele despacho primeiramente referido foi notificado aos Apelantes por ofício eletrónico no dia 01/07/2025 e o aludido recurso foi interposto no dia 14/07/2025. Ou seja, antes de expirado o prazo de 15 dias, previsto no artigo 638, n.º 1, 2ª parte, do CPC (cfr. artigo 9.º, n.º 1, do CIRE).

Daí que se admita nos termos e com o efeito atribuído (artigo 14.º, n.º 6, do CIRE).


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III- Mérito do Recurso

1- O objeto dos recursos, como é sabido, é, em regra, delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC].

Assim, levando em consideração este critério, importa decidir, no caso presente, se o despacho proferido no dia 09/06/2025 é nulo, ao contrário do que se decidiu no despacho recorrido (prolatado no dia 30/06/2025).

2- Levando em consideração os factos descritos no relatório supra exarado – que são os únicos relevantes – vejamos, então, como decidir a referida questão:

No essencial, aquilo contra o qual os Apelantes se insurgem é contra a ordem que foi dada no despacho prolatado no dia 09/06/2025 para que eles próprios e a sua Mandatária fossem removidos do processo. E isso porque, além de identificarem o erro de julgamento atinente à procuração que aí se referiu estar em falta, quando a mesma já tinha sido junta anteriormente, também não aceitam que essa ordem tivesse sido dada “sem prévia audição dos recorrentes ou da mandatária, e com produção de efeitos imediatos, sem respeito pelos prazos legais de reação”. O que, a seu ver, viola o princípio do contraditório, “o direito ao processo justo (art. 20.º CRP), o direito de propriedade privada (art. 62.º CRP) e o direito à ação em defesa da posse (arts. 1276.º e ss do Código Civil)”.

E, a nosso ver, têm razão. No aspeto processual, obviamente.

Com efeito, nem foi cumprido o contraditório prévio em relação ao pedido da Apelada para a referenciada remoção, nem, depois, foi respeitado o direito dos Apelantes a impugnarem a ordem para essa mesma remoção, antes de a mesma ser cumprida. Pelo contrário, determinou-se que, após a notificação do despacho onde essa ordem se contém, a mesma fosse de imediato cumprida. O que constitui, efetivamente, um atropelo aos mais básicos princípios que vigoram na nossa ordem jurídica, no domínio processual civil. Sobretudo, o princípio do contraditório.

Este princípio, na verdade, emana de um outro que se traduz na exigência constitucional da tutela jurisdicional ser obtida através de um processo equitativo (artigo 20.º da CRP); ou seja, “um processo justo na sua conformação legislativa (exigência de um procedimento legislativo devido na conformação do processo), mas também (…) um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais”[1].

Ora, uma das formas de alcançar este resultado no âmbito estritamente civil, é conferindo às partes o direito ao contraditório; ou seja, o direito de as mesmas invocarem as pertinentes razões de facto e de direito que sejam necessárias para a defesa das suas posições processuais, o direito a oferecerem as próprias provas, a controlar aquelas que são apresentadas pela parte contrária e ainda o direito de se pronunciarem sobre o valor probatório de todas elas.

O direito ao contraditório, porém, não se esgota na sua dimensão defensiva contra a atuação alheia, como tradicionalmente era encarado. A esta conceção, válida mas limitada, acrescentou a moderna doutrina uma noção mais lata de contraditoriedade, “entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[2].

Embora detentoras de interesses materiais conflituantes, as partes são chamadas no moderno processo civil a uma atitude cooperante na realização da justiça.

Por isso se diz que, mais do que a defesa contra a atuação alheia, o direito ao contraditório encerra hoje também a possibilidade das partes concorrerem, ativamente, com todos os elementos aos seu dispor, para a resolução do litígio de forma materialmente adequada; ou dito por outras palavras, de forma justa.

É neste pressuposto que se impõe ao juiz o dever de “observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem” – artigo 3.º, n.º 3, do CPC.

Ora, foi este princípio que no referido despacho de 09/06/2025 não foi respeitado. Não foi respeitado antes, nem depois. Tal como não foi respeitado o direito à eventual impugnação da já falada ordem de remoção.

Assim, tal ordem não pode deixar de ser considerada prematura e processualmente, inválida.

Não se trata – repare-se – de um vício da decisão, enquanto ato. É uma invalidade que decorre da irregularidade do próprio procedimento. Como se refere no Ac. RP de 17/05/2022([3]), “[a] decisão (a sentença ou o despacho), tal qual qualquer outro acto processual, ‘pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença’. Só os vícios que respeitem a esta segunda perspectiva (sentença – ou despacho – como acto) quadram na previsão do nº 1 do art. 615º do CPC e por isso, ainda que o proferimento da sentença (ou de qualquer outra decisão) antes do termo do prazo para dedução da oposição (ou de pronúncia da parte sobre qualquer requerimento da contraparte) possa considerar-se uma nulidade processual, tal não significará que padeça de qualquer das nulidades enumeradas no art. 615º, nº 1 do CPC.

Ora, no caso, como decorre do já exposto, estamos perante uma nulidade processual. Não, claro, uma nulidade principal, por não respeitar a qualquer um dos vícios previstos nos artigos 186.º a 194.º, do CPC, mas, antes, uma nulidade secundária, que foi oportunamente arguida pelos Apelantes (artigos 149.º, 195.º, n.º 1 e 199.º, do CPC) e que, por isso mesmo, não podia deixar de ser conhecida e declarada.

Mas, não foi. No despacho recorrido, pelo contrário, essa nulidade foi julgada improcedente.

Por conseguinte, esse despacho não pode deixar de ser revogado e declarada a dita nulidade.

É o que basta para julgar procedente este recurso.


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IV- Dispositivo:

Pelas razões expostas, acorda-se em conceder provimento ao presente recurso e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido e declara-se nulo o despacho reclamado (proferido no dia 09/06/2025), na parte impugnada.


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- Em função deste resultado, as custas deste recurso serão pagas pela Apelada - artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.


Porto, 30/9/2025
João Diogo Rodrigues
Alberto Taveira
Anabela Miranda
_________________
[1] Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, pág. 415.
[2] José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais, 2ª Edição Reimpressão, Coimbra Editora, págs 108 e 109.
[3] Processo 1320/14.2TMPRT.P1, consultável em www.dgsi.pt, aludindo aos ensinamentos de Miguel Teixeira de Sousa, ‘Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária’, comentário de 22/09/2020 a acórdão do STJ 2/06/2020, no blog do IPPC, no sítio https://blogippc.blogspot.com (acesso em Maio de 2022), processo no qual o ora relator figurou como adjunto.