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VÍCIOS DO ARTº 410º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
PESSOA PARTICULARMENTE INDEFESA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Sumário
– A 2.ª instância conhece nos limites das conclusões (art. 412.º, n.º 1, CPP) e de vícios intrínsecos do art. 410.º, n.º 2, apreciando-os ex officio quando emergem do próprio texto decisório. – Cumprimento estrito do ónus do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, CPP (identificação de pontos, indicação de provas e passagens gravadas), não bastando a mera negação ou remissões genéricas para reabrir a apreciação probatória. – Duplicação de pontos como provados e não provados configura vício do art. 410.º, n.º 2, al. b), suprível por rectificação quando a motivação revela inequivocamente o sentido efectivo, sem necessidade de reenvio (art. 426.º, n.º 1, CPP). – Interpretação do art. 152.º, n.º 1, al. d), CP: “pessoa particularmente indefesa” é conceito normativo densificado funcionalmente pela concreta diminuição da capacidade de autoprotecção em contexto doméstico, aferida à luz da prova (DMF, perícias e documentação) e das regras da experiência (art. 127.º, CPP). – Determinação segundo os arts. 71.º e 77.º, CP (culpa, prevenção e cúmulo jurídico), ponderando ainda pressupostos da suspensão da execução (art. 50.º, CP) e adequação de penas acessórias de proibição/afastamento com fiscalização electrónica (art. 152.º, n.ºs 4 e 5, CP).
Texto Integral
Acórdam no Tribunal da Relação de Lisboa
I - RELATÓRIO
1.1. No processo n.º 2083/23.6PBFUN foi julgado em processo comum (Tribunal colectivo), pelo Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Funchal - JC Criminal - Juiz 3, o arguido AA, com os demais sinais dos autos, a quem o MP imputara a prática, como autor material, em concurso real e na forma consumada, de 2 (dois) crimes de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1 al. d), n.º 2 al. a), 4 e 5 do Código Penal.
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1.2. Realizada a Audiência de discussão e julgamento foi proferido o seguinte segmento decisório: (transcrição)
(…) ➢ Condenar o arguido, AA, pela prática de cada um dos 2 crimes de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152º, n.ºs 1, al. d) e 2, al a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; ➢ Em cúmulo jurídico das sobreditas penas parcelares, na pena única de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão. ➢ Condenar o arguido na pena acessória de afastamento da residência ou do local de trabalho dos ofendidos e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, pelo período de 2 anos. ➢ Condenar o arguido no pagamento das custas do processo e nos demais encargos, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC (cf. arts. 513º, n.ºs 1, 2 e 3 e 514º do CPP). * Mais delibera este Tribunal Colectivo: ➢ Condenar o arguido a pagar aos ofendidos, BB e CC, a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), a cada um a título de reparação. (…)
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1.3. Inconformado, recorreu o arguido, que formulou as seguintes conclusões: (transcrição) (…) 1.O arguido negou os factos referidos no ponto 3 dos factos provados. 2.Pelo que deverá o facto provado nº3 ser considerado não provado. 3.Com base nas declarações do arguido prestadas na sessão de julgamento realizada a 23-04-2025 (Min. 19:38 a 20:17) deverão os factos provados nºs 4 e 5 serem considerados não provados. 4.Para além de o arguido ter negado o facto provado nº6, o assistente CC e a ofendida BB não confirmaram os referidos factos. (cfr. declarações para memória futura prestadas pelo assistente e pela ofendida). 5.Pelo que deverá o referido facto ser considerado não provado. 6.Para além de o arguido ter negado o facto provado nº7, o assistente CC e a ofendida BB não confirmaram o referido facto. (cfr. Declarações para memória futura prestadas pelo assistente e pela ofendida). 7.Pelo que deverá o referido facto ser considerado não provado. 8.Quanto ao facto provado nº 8, da prova produzida não resulta provado que a ofendida tem “dificuldade respiratória” e “é acompanhada a nível psiquiátrico devido a ataques de ansiedade extrema, situação essa agravada com o comportamento diário do arguido.” (cfr. declarações para memória futura prestadas pelo assistente e pela ofendida e declarações prestadas pelo arguido na audiência de julgamento de 23-04-2025). 9.Pelo que deverá meramente ser considerado provado que “A ofendida BB tem problemas de saúde, nomeadamente asma.”, considerando-se não provado o remanescente. 10.Quanto ao facto provado nº9, da prova produzida, ainda que resulte que o assistente tenha problemas de saúde, s.m.e., não resulta apurado que os mesmos sejam graves, nem que tenha acompanhamento médico frequente. 11.Pelo que deverá considerar-se provado que “O assistente CC, sofre igualmente problemas de saúde, tendo sido já sujeito a intervenção cirurgia ao coração.”, dando-se como não provado a menção a “graves” e a “tendo acompanhamento médico frequente”. 12.Quanto ao facto provado nº11, o arguido negou os referidos factos (cfr. Minuto 01:01:34 a 01:01:44 da sessão de julgamento realizada a 23-04-2025). 13.Acresce que o assistente CC e a ofendida BB não confirmaram os referidos factos. (cfr. declarações para memória futura prestadas pelo assistente e pela ofendida). 14.Pelo que deverá o referido facto ser considerado não provado. 15.Quanto aos factos provados nºs 12 a 17, com base no depoimento do arguido deverão os factos provados nºs 12 a 17 serem considerados não provados. 16.Quanto ao facto provado nº19, com base nas declarações prestadas pelo arguido na audiência de julgamento realizada a 23-04-2025, deverá o referido facto ser considerado não provado. 17.Quanto aos factos provados nºs 20 e 21, para além de o arguido ter negado os referidos factos, ninguém confirmou os referidos factos. 18.Pelo que deverão os referidos factos ser considerados não provados. 19.Quanto ao facto provado nº22, para além de o arguido ter negado os referidos factos, ninguém confirmou os referidos factos. 20.Acresce que o Arguido não exigia, antes pedia dinheiro à ofendida. (cfr. Min. 19:38 a 20:17 do seu depoimento) 21.Pelo que deverá o referido facto ser considerado não provado. 22.Quanto aos factos provados nºs 23 a 28, para além de o arguido ter negado os referidos factos, ninguém confirmou os referidos factos. 23.Pelo que deverão os referidos factos ser considerados não provados. 24.Os factos provados nºs 29 a 31 foram simultaneamente levados aos factos não provados sob as alíneas B) a D) 25.Para além de o arguido ter negado os referidos factos, ninguém confirmou os referidos factos. 26.Pelo que deverão os referidos factos ser considerados não provados. 27. Quanto aos factos provados nºs 32 e 33, para além de o arguido ter negado os referidos factos, ninguém confirmou os referidos factos. 28.Pelo que deverão os referidos factos ser considerados não provados. 29.Quanto ao facto provado nº34, s.m.e., resulta da prova produzida que o arguido pedia (e não exigia) dinheiro à ofendida (cfr. Min. 19:38 a 20:17 das declarações do arguido) 30.Pelo que deverá o referido facto ser considerado não provado. 31.Quanto aos factos provados nºs 35 a 42, considera o arguido que da prova produzida, designadamente do seu depoimento prestado na audiência de julgamento de 23-04-2025, não resultaram provados os referidos factos. 32.Sendo certo que, considera o arguido, designadamente, que não foram dirigidas ao assistente e à ofendida expressões injuriosas, nem o arguido agrediu a ofendida. 33.Por outro lado, a expressão constante do facto provado nº 41“são pessoas particularmente indefesas”, trata-se de um conceito indeterminado e normativo, não devendo ser levado aos factos provados. 34.Pelo que, deverão os factos provados nºs 35 a 42 ser considerados não provados. 35.O Arguido AA foi condenado pela prática de cada um dos 2 crimes de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152º, n.ºs 1, al. d) e 2, al a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão. 36.Para efeito do preenchimento do disposto no art. 152º, nº1, al. d) do Código Penal não basta que o ofendido seja indefeso, sendo necessário que o mesmo seja particularmente indefeso. 37.Considera o Recorrente que não ficou provado que o assistente e a ofendida constituam pessoas particularmente indefesas, designadamente que estavam impossibilitados de se proteger devido a especial vulnerabilidade ou fragilidade da vítima, sem capacidade de movimentos, destreza ou discernimento para esboçar uma defesa. 38.O facto de terem alguns problemas de saúde não é suficiente para serem consideradas pessoas particularmente indefesas. 39.Pelo que deverá o Recorrente ser absolvido da prática dos crimes de violência doméstica. 40.Caso assim não se entenda, dir-se-á que a pena em que foi condenado é excessiva, devendo o arguido ser condenado numa pena de prisão inferior. 41. Considera o Recorrente que a censura do facto e a ameaça da pena é adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição. 42.Pelo que, em caso de condenação pela prática dos dois crimes de violência doméstica, deverá o Recorrente ser condenado pela prática de cada um dos 2 crimes na pena inferior a 2 anos e 6 meses de prisão. 43.Sendo em cúmulo jurídico das sobreditas penas parcelares na pena única inferior a 3 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução durante o mesmo período, e sujeito a regime de prova. 44.Sendo absolvido da pena acessória de afastamento da residência ou do local de trabalho dos ofendidos e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, pelo período de 2 anos, assim como do pagamento de indemnizações. 45.Decidindo como decidiu, o douto acórdão recorrido violou o disposto nos art.s 50º, 71º, 152º, nº1, al. d), nº2, al. a), 4 e 5 do Código Penal. (…)
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1.3. Notificado para o efeito, o MP junto do tribunal a quo apresentou a sua resposta ao recurso, pugnando pelo incumprimento do ónus de especificação da impugnação da matéria de facto (art. 412.º, n.ºs 3 e 4 CPP; FJ 3/2012), sustentando a correcção da valoração probatória (declarações para memória futura, exames e documentação), e encara como vício de conhecimento oficioso a contradição insanável do art. 410.º, n.º 2, al. b), realçando que os pontos 29-30 não podem ser simultaneamente provados e não provados. Pugna pela manutenção da pena única e justifica a não suspensão, com excertos do próprio acórdão.
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1.4. Nesta Relação, a senhora Procuradora Geral Adjunta apresentou o seu parecer onde acompanha, no essencial, a resposta do MP da 1ª Instância, acrescentando que a contradição resulta de lapso na inclusão dos factos 29-31 nos provados, uma vez que a motivação da decisão de facto afirma, ipsis verbis, que “não foi produzida qualquer prova (…) dos factos 29 a 31”, sendo por isso possível a correcção pontual, mantendo-se no mais a decisão.
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1.5. No âmbito do disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não respondeu ao parecer.
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1.6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do citado código.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. O objecto dos recursos definem-se pelas conclusões que os recorrentes extraíram da motivação, de harmonia com o art.º 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com nulidade do acórdão (art.º 379.º, n.º 1, do CPP) e os vícios da decisão e as nulidades que não se considerem sanadas (art.º 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP). In casu, seguindo as questões elencadas pelo próprio recorrente, as questões que importa decidir, são as seguintes:
1. Existência de vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão sobre a matéria de facto (art. 410.º, n.º 2, al. b) CPP), atinente aos factos 29-31 (provados vs. não provados).
2. (ii) Âmbito do conhecimento do tribunal ad quem sobre matéria de facto e cumprimento (ou não) do ónus do art. 412.º, n.ºs 3 e 4 CPP pelo recorrente (impugnação ampla, com indicação de pontos, provas e passagens).
3. (iii) Preenchimento do tipo objectivo do art. 152.º, n.º 1, al. d), CP, na vertente «pessoa particularmente indefesa»: critérios, prova e suficiência da matéria de facto quanto à especial vulnerabilidade dos ofendidos.
4. (iv) Medida concreta e cúmulo jurídico das penas (arts. 71.º e 77.º CP) — adequação, proporcionalidade e fundamentação.
5. (v) Pressupostos de suspensão da execução da pena (art. 50.º CP) — prognose social, prevenção e motivação da recusa.
6. (vi) Adequação da pena acessória de proibição de contactos/afastamento com fiscalização electrónica (art. 152.º, n.ºs 4 e 5 CP).
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2.2. DA DECISÃO RECORRIDA
Para bem decidir importa atentar na factualidade, no segmento que ora nos importa, em que assentou a condenação proferida, expendendo os factos que o tribunal deu por assentes e não assentes e respectiva motivação da decisão de facto: (transcrição) (…) FACTOS PROVADOS * Instruída e discutida a causa, mostra-se provada a seguinte factualidade: Da Acusação 1. O arguido AA é filho da ofendida BB e do assistente CC com quem habita na residência sita na .... 2. O arguido vive com o assistente e a ofendida, seus pais, na residência supra, desde... de 2021, quando regressou de ..., de onde foi deportado por crime de ameaças a funcionário público da segurança social de .... 3. Desde... de 2021 até pelo menos ... de 2024, com o regresso do arguido e coabitação com o mesmo, o assistente e a ofendida não têm tido descanso, sossego, nem paz, pois o arguido é consumidor de drogas nomeadamente, Bloom, Haxixe entre outras, consumindo de forma descontrolada e várias vezes ao dia. 4. O arguido AA pede dinheiro quase todos os dias à ofendida BB, sua mãe, nas quantias aproximadas de 10 ou 20 €, por dia para satisfazer os seus vícios de drogas. 5. E por forma a terem paz em casa, a ofendida, sua mãe dá o dinheiro que o mesmo exige. 6. Se a ofendida BB se recusa a entregar o valor pedido, o arguido torna-se violento verbalmente, proferindo expressões dirigidas a esta como: a. Filha da Puta; b. Sua sacana do caralho, c. Vaca de Merda; d. Cabra, e. Ensebada 7. Quando o assistente CC chama à atenção do arguido para cessar o seu comportamento para com a sua mãe, este dirige-se ao assistente e chama-lhe: a. “porco”; b. Invejoso, c. Filho da Puta; d. Sacana; 8. A ofendida BB tem problemas de saúde, nomeadamente dificuldade respiratória, asma e é acompanhada a nível psiquiátrico devido a ataques de ansiedade extrema, situação essa agravada com o comportamento diário do arguido. 9. O assistente CC, sofre igualmente graves problemas de saúde, tendo sido já sujeito a intervenção cirurgia ao coração, tendo acompanhamento médico frequente. 10. O arguido é toxicodependente há largos anos, desde a sua adolescência, tendo já feito vários tratamentos para esse efeito. 11. Em datas não concretamente apuradas, mas entre ... e ... de 2023, pelo menos três vezes o arguido dirigiu-se à ofendida BB, sua mãe e proferiu expressões como: a. «não sabes com quem estas te meter, vou-te matar, não me conheces ainda». 12. Nesse contexto, no dia ... de ... de 2023, pelas 19horas e 10min, após a ofendida BB ter mencionado ao arguido, a necessidade de arranjar trabalho, este descontente, iniciou contenda com esta, danificando vários objetos existentes na residência e da propriedade desta e do assistente. 13. Na tentativa de terminar a contenda, o assistente CC interveio em defesa da ofendida, apenas de calções, uma vez que se encontrava a tomar banho quando ouviu a discussão em causa. 14. O arguido AA virou-se contra o assistente, desferindo vários pontapés e socos atingindo várias partes do corpo deste. 15. Dessa agressão o assistente CC, sentiu dores e mal-estar, não tendo carecido de tratamento médico no .... 16. Da actuação do arguido, o assistente CC sofreu as seguintes lesões: a. Face: equimose avermelhada na região frontal com 10,0x6,0cm; escoriação com 5,0x1,0cm na hemiface direita; escoriação com 1,0cm de maior diâmetro no pavilhão auricular direito; ulcera na superfície interna do lábio inferior; hemorragia conjuntival à esquerda 17. Lesões essas que, em condições normais determinam 10 (dez) dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral. 18. Nas mesmas circunstâncias no dia ... de ... de 2023, o assistente e a ofendida saíram de casa no final do dia, durante apenas uma hora e quando entraram em casa depararam-se, de imediato, com cheiro a gás. 19. O assistente e a ofendida, quando foram verificar, o arguido havia ligado as 4 (quatro) bocas do fogão e havia saído de casa, sabendo que os seus pais iriam regressar. 20. No dia ... de ... de 2024, o arguido passou o dia inteiro a pedir dinheiro à ofendida, tendo esta se queixado de dores no peito, sendo que no final do dia virou-se para esta e ainda disse: “ainda vai doer mais”. 21. Não tendo conseguido o dinheiro que havia exigido à ofendida, o arguido enviou mensagem a esta: a. “dema que tenho que sair antes que fique de noite”. 22. Entre o dia ... e ... de 2024, o arguido mantém o seu comportamento, exigindo dinheiro à ofendida. 23. Neste circunstancialismo, no dia ..., pelas 11horas, a ofendida BB, que habitualmente encontra-se fora de casa para evitar estar sozinha com o arguido, chegou à sua residência onde foi de imediato abordada pelo arguido que se encontrava muito exaltado, tendo este proferido: a. "o outro filho da puta anda com a minha camurcina", referindo-se ao seu progenitor, alegar que o mesmo estava com a sua roupa. 24. A ofendida BB tentou dialogar com o arguido para lhe fazer ver que o seu pai, assistente, não estava com a sua roupa vestida. 25. Contudo, sem que nada o fizesse prever, o arguido desferiu um soco na face da ofendida, na maçã do rosto do lado direito e outro soco na zona do peito. 26. Dessa atuação a ofendida sentiu grandes dores. 27. De seguida, como se nada tivesse acontecido o arguido exigiu à ofendida que fosse recuperar os seus bens, deslocando-se para o seu quarto de dormir onde danificou inúmeros objetos que são dos seus pais. 28. A ofendida BB ao aperceber-se que o arguido se tinha fechado no seu quarto fugiu de casa dirigindo-se para casa de sua irmã. 29. Pelas 12H00, quando a ofendida se dirigia para sua residência e o arguido havia saído de casa a fim de se deslocar em direção à metadona, cruzaram-se no caminho. 30. Nesse momento o arguido dirigindo-se à ofendida disse: "Já foste fazer bruxedo", tendo esta o ignorado e de seguida, chamou a PSP, tendo dado origem ao NUIPC 347/24.0PBFUN. 31. No dia ..., o arguido não exigiu dinheiro à ofendida, mas deixou um papel debaixo da porta, dirigido a esta com os dizeres: “deixa-me 5euros”. 32. Entre o dia ... e ... de 2024, o arguido continua a perturbar a vida da ofendida e do assistente exigindo dinheiro. 33. A ofendida BB passa o dia todo fora de casa para não estar com o arguido, com receio deste. 34. O arguido não trabalha, não tem meios próprios de rendimentos e consome diariamente produtos estupefacientes não concretamente apurados exigindo dinheiro à ofendida para pagar esses consumos. 35. As expressões supra referidas e dirigidas aos seus pais, são proferidas diariamente pelo arguido nos últimos anos. 36. Na sequência das expressões supra proferidas, a ofendida BB e o assistente CC vivem diariamente com medo que o arguido os agrida, ou os mate. 37. O arguido agiu de forma livre com o propósito de atingir e atingindo o corpo e saúde da ofendida BB e do assistente CC, sabendo que lhes provocava as dores descritas. 38. Em consequência da conduta do Arguido sentiu-se a Ofendida humilhada e diminuída na sua condição de Mãe. 39. Em consequência da conduta do Arguido sentiu-se o assistente humilhado e diminuído na sua condição de Pai. 40. O Arguido quis dirigir as palavras supra descritas, estando ciente que as mesmas atingiam a honra e consideração da ofendida BB e do assistente CC, assim como, lhes quis causar receio pelas suas vidas e integridade física, limitando as suas liberdades de agir, o que conseguiu. 41. O Arguido quis com a sua conduta infligir maus tratos físicos e psíquicos à ofendida BB e ao assistente CC, bem sabendo que os mesmos são seus Pais e por motivos de saúde física, e as condições de vivência diária perturbada desde ... de 2021, são pessoas particularmente indefesas, e mereciam- como merecem - respeito e consideração próprios dessas qualidades. 42. Em todas as ocasiões o Arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e ainda assim não se absteve de as praticar * Resultantes da Discussão da Causa * 43. AA, de 40 anos, encontra-se preso, no ..., desde o dia 1 do mês em curso, à ordem do presente processo. À data dos alegados factos, residia com os progenitores em casa destes, contudo, AA a ... de ... de 2024, foi sujeito a uma medida de afastamento dos progenitores, pelo que teve de abandonar a habitação destes, passando a pernoitar na rua, onde se encontrava à data da prisão. O arguido emigrou para ... com 23 anos, tendo vários relacionamentos afectivos de curta duração, veio posteriormente, a ter dois filhos de um relacionamento, que terminou passado um ano. Os dois filhos, de 12 e 11 anos, permanecem em ... com a progenitora, também esta natural da ..., onde se desloca para visitar a família. Nestes períodos, os pais do arguido visitam os netos e mantêm contacto telefónico com estes, no tempo em que se encontram em .... AA veio a ser deportado em ..., regressando a casa dos progenitores, não voltando a ter qualquer contacto com os filhos. Os progenitores, vítimas do presente processo, revelam algum constrangimento face à atual situação do filho, mormente a mãe, que se apresenta ansiosa e preocupada com a situação vivenciada pelo filho, mencionando que já se deslocou ao estabelecimento prisional com intenção de o visitar, lamentando não o ter conseguido. O pai, pese embora lamente a situação, menciona não lhe desejar mal, contudo, pretende que este deixe o mundo das drogas, não os maltrate e que se torne independente. AA tem o 9º ano de escolaridade, tendo desistido da escola por vontade própria, revelando frágil apetência pelos estudos. O arguido nunca manteve um compromisso sério na área laboral, enquanto na ..., executando várias tarefas em várias áreas, por curtos períodos de tempo, vivendo a expensas dos progenitores. AA iniciou o consumo de bebidas alcoólicas com cerca de 12 anos e aos 14 anos o consumo de estupefacientes. Chegou a estar internado para desintoxicação, integrou o Programa da metadona, contudo, sem sucesso mantendo os consumos de drogas até ser preso. O arguido apresenta fracas competências pessoais e sociais, revelando dificuldades de adesão a contextos estruturados e na resolução de problemas. Em termos sociais existe uma imagem negativa, sendo conhecido o seu percurso de toxicodependência e a violência que exercia sobre os progenitores. O presente processo, para além da privação de liberdade, parece não ter tido impacto na vida do arguido, que adota uma atitude desculpabilizante, negando a prática dos factos descritos nos presentes autos, imputando a culpa aos progenitores (vítimas). O arguido mantém um discurso difuso e descontextualizado, fazendo referência a “magia negra”. No Estabelecimento Prisional, não recebe visitas e encontra-se inativo. O arguido não se revê numa condenação, sentindo-se vítima do sistema e dos pais. Da articulação com a PSP, o arguido tem pendentes os NUIPC’s, 760/23.0PBFUN e 347/24.0PBFUN, indiciado por crimes contra a integridade física, por factos alegadamente ocorridos em ........2023 e ........2024 respetivamente. AA apresenta assim um percurso de vida caracterizado pelo excessivo consumo de bebidas alcoólicas e de substâncias psicoativas, que iniciou em idade precoce. Esta adição parece ter interferido na sua saúde psicológica, ainda que se desconheça a existência de diagnóstico de perturbação mental. Desenvolveu um percurso de vida de incumprimento de normas, regras e limites, com dificuldade de adesão a contextos estruturados. No Estabelecimento Prisional mantém um percurso normativo, sem registo de infrações. 44. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais averbados no seu Certificado de Registo Criminal: ✓ Pela prática em ...1.../03 de um crime de crime de ameaças ✓ Pela prática em ...1.../09 de um crime de condução sob o efeito do álcool ou de estupefacientes; ✓ Pela prática em ...1.../05 de um crime de ameaças; ✓ Pela prática em ...1.../11 de um crime de ameaças, Foi condenado na pena de 15 meses de prisão. * FACTOS NÃO PROVADOS Com interesse para a decisão a proferir não se provaram outros factos. Designadamente, não se provou que: Da Acusação A. O arguido AA pede dinheiro quase todos os dias à ofendida BB, sua mãe, nas quantias aproximadas de 30, 40 ou 50 Euros por dia para satisfazer os seus vícios de drogas. B. Pelas 12H00, quando a ofendida se dirigia para sua residência e o arguido havia saído de casa a fim de se deslocar em direção à metadona, cruzaram-se no caminho. C. Nesse momento o arguido dirigindo-se à ofendida disse: "Já foste fazer bruxedo", tendo esta o ignorado e de seguida, chamou a PSP, tendo dado origem ao NUIPC 347/24.0PBFUN. D. No dia ..., o arguido não exigiu dinheiro à ofendida, mas deixou um papel debaixo da porta, dirigido a esta com os dizeres: “deixa-me 5euros”. * Da Motivação Fáctica O juízo probatório alcançado pelo Tribunal fundou-se na análise global e sistemática das declarações prestadas pelo arguido em julgamento, dos prestados pelos ofendidos em sede de Declarações para Memória Futura e da prova pericial e documental constante dos autos, tudo perspetivado e analisado à luz das regras da livre apreciação e da experiência comum, tal como emerge do art. 127º, do Código de Processo Penal, com a concorrência de critérios objetivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação e de convicção que se passará a enunciar. Com efeito, vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova, cristalizado no referido art. 127º do CPP. Tal consagração legal não significa, contudo, que o julgador possa proceder arbitrária e caprichosamente à avaliação da prova, ou que a lei lhe ofereça a faculdade de julgar como lhe aprouver, sem provas ou mesmo contra as que forem produzidas. Antes pelo contrário, este princípio significa que o tribunal deve julgar segundo a consciência que formou. E essa convicção é formada, não em obediência a regras preestabelecidas, a quadros, critérios ou ditames impostos por lei, mas sim através da influência que as provas produzidas exerceram no espírito do julgador, após as ter apreciado e avaliado segundo critérios de valoração racional e lógica, segundo a sua experiência, sendo que, neste particular aspeto, não pode deixar de dar-se a devida relevância à perceção direta que a imediação e a oralidade conferem ao julgador. Assim, ao dar como provada e não provada a factualidade supra descrita referente à atividade delituosa assacada ao arguido, o tribunal apreciou a prova produzida de acordo com o seu valor probatório e as regras da experiência, segundo dita o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no citado art. 127º do CPP que, se por um lado se afasta de um sistema de prova legal, i.e., baseada em regras legais predeterminantes do seu valor, por outro, não admite também uma apreciação fundada apenas na convicção íntima e subjetiva do julgador. O Tribunal fundou-se, pois, nas regras de experiência e na ponderação de toda a prova, quer junta aos autos quer produzida em audiência, e o juízo sobre a certeza e a verdade material dos factos resultou, sobretudo, dos seguintes meios de prova que abaixo hão-de ser descritos. Importa ainda sinalizar, antes de nos abalançarmos na motivação da factualidade provada e não provada, que a audiência de discussão e julgamento decorreu com o registo da prova (declarações do arguido; depoimentos da testemunha) em sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do tribunal. Esta circunstância, permitindo uma ulterior reprodução dessas declarações e depoimentos e um efectivo controlo do modo como o Tribunal formou a sua convicção, deve, nesta fase do processo, revestir-se de alguma utilidade, nomeadamente, dispensando o relato detalhado das declarações e depoimentos prestados. Assim, esse registo, será ponderado no cumprimento do estatuído no art.º 374º, n.º 2, do CPP, onde se impõe a exposição, tanto quando possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão sobre a matéria de facto, com o exame crítico das provas enumeradas. * Isto dito, e concretizando, o arguido, AA, prestou declarações em julgamento. Admitiu que pedia ocasionalmente dinheiro a sua mãe para os seus consumos 5 ou 10€ que esta lhe dava voluntariamente. Consumia 2 ou 3 pacotes de bloom por dia, que deixou de consumir quando deu entrada no EPF. Nega todos os fatos de que vem acusado, não tendo explicação para o fato de os pais terem apresentado queixa contra si. Não se dá bem com os pais porque eles são cúmplices um do outro. Perguntado respondeu ainda que continua a frequentar a casa dos pais apesar de estar proibido por medida de coação de afastamento, justificando-se com o fato de não ter onde ficar e também não conseguir fixar-se num trabalho remunerado. Quanto aos factos que dizem respeito às bocas do fogão deixadas abertas, refere que foram os pais que os deixaram acesos. A verdade é que, e consultando o seu relatório social, o arguido, ou é despedido pouco tempo depois de começar a trabalhar, ou não se adapta ao trabalho e vem embora, desta forma encontrando-se sem emprego certo desde ..., altura em que voltou de .... Assume postura desculpabilizante, culpando o sistema, a magia negra e a bruxaria pelo declínio da sua vida, e que ninguém lhe dá o seu justo valor. Da mesma forma, diz que se veio embora de ... e, apenas quando interpelado, assumiu que de lá foi expulso após aí ter cumprido pena de prisão. Ora, como já se adiantou, os ofendidos, pais do arguido, foram ouvidos em sede de declarações para memória futura que, de resto, foram transcritas no processo. E foram esses depoimentos, devidamente sopesados e analisados, prestados de forma serena, isenta, sofrida e com evidente ressonância afetiva, e sem qualquer animosidade relativamente ao filho, que permitiram ao tribunal dar por provado, na sua totalidade, o acervo factual relacionado com os crimes de violência doméstica em presença. De resto, nesses mesmos depoimentos, de forma honesta, admitiram que gostavam muito do filho mas terem muito medo dele ( cfr fls. 456 “gosto muito do meu filho, mas tenho um medo imenso”). Demonstraram ter uma enorme preocupação com ele, mas sentirem-se impotentes perante as condutas agressivas que este assume para com eles, ou perante as condutas do arguido de destruir o que vai encontrando pela frente. Foi aliás esse o motivo que os levou a, depois de apresentada a queixa e o incumprimento da medida de coação, se dirigirem ao tribunal, por duas vezes, através de requerimento pedir ajuda e demonstrar esse mesmo receio. – fls. 415 e 473. De realçar também o carinho com que se referem ao arguido, seu filho. Foi elaborado relatório pericial de psicologia forense relativamente a ambos os ofendidos (progenitores do arguido), os quais bem patenteiam e corroboram as declarações dos ofendidos. – fls. 371 a 374 e 378 a 381. Veja-se, a este propósito, o aí referido para o assistente CC, a titulo de exemplo, “Os relatos produzidos por CC relativamente aos alegados factos ocorridos entre ... e 2024 (e que constam dos autos), caracterizam-se pela espontaneidade e inteligibilidade.” “CC foi capaz de produzir um relato com precisão, descritivo e com detalhe” “ De salientar ainda que os relatos de CC revelaram consistência quer ao longo da presente avaliação, quer com os relatos fornecidos pela esposa, que terá testemunhado os alegados episódios de violência dirigidos a CC.” “o relato do avaliado apresenta, um número significativo de indicadores frequentemente encontrados em testemunhos baseados em experiências efetivamente vividas. Entre estes, salientamos a coerência interna e factual, o enquadramento temporal e contextual dos factos, a relação dos mesmos com circunstâncias do quotidiano, o grau de detalhe, a espontaneidade e congruência nas suas descrições em diferentes momentos da avaliação, de recolha de informação (ex., autos) e com o relato de outros informantes (ex., esposa).” “No que diz respeito à relação paternofilial, CC evidencia sentimentos ambivalentes, na medida em que, por um lado sente-se revoltado com os comportamentos do filho, prevendo a sua reincidência, e por outro triste pela atual situação de sem abrigo do filho.”. Relativamente à ofendida “BB revelou um discurso fluente, lógico, coerente e congruente com outras fontes de informação (nomeadamente informação facultada por Esse Tribunal e marido, CC). Contudo, revelou-se reticente em explorar a sua rede de apoio, com receio de expô-la a possíveis represálias por parte do alegado agressor ou por em causa a sua segurança junto destes, caso volte a ser necessário” “A presente avaliação permitiu perceber que a violência terá assumido diferentes expressões – física, verbal, psicológica. Assim, dos comportamentos abusivos referidos por BB, destacou-se o recurso à violência psicológica (ex., insultos); e o maltrato físico (ex., empurrão, murro no peito) e pressão para facultar-lhe dinheiro. De forma consistente, BB descreveu ainda outras condutas abusivas do seu filho e que consistiam em partir e danificar objetos de forma intencional, tal como fazer ruídos durante a noite para perturbar o sossego familiar” “Os relatos produzidos por BB relativamente aos alegados factos ocorridos entre ... e 2024 (e que constam dos autos), caraterizam-se pela espontaneidade e inteligibilidade. Ainda que, por vezes, revelasse alguma dificuldade em evocar datas de ocorrência dos alegados factos (aspeto comum em relatos de violência doméstica que se referem a situações continuadas), BB foi capaz de produzir um relato com precisão, descritivo e com detalhe, sobretudo na forma como reconstitui os atos, as localizações, as interações verbais e as reações dos protagonistas envolvidos. De igual modo, mostrou-se capaz de narrar de forma clara a sequência dos eventos ocorridos, fazendo referência a pistas ambientais e contextuais, habitualmente presentes em relatos verdadeiros. De referir ainda que os relatos de BB revelaram consistência, quer ao longo da sessão, quer com os relatos do marido, que terá testemunhado os alegados episódios de violência dirigidos a BB Para além do desconforto visível em BB na abordagem das alegadas agressões, o recurso a medidas estandardizadas de avaliação de sintomatologia permitiu concluir sobre a existência de níveis de perturbação psicológica clinicamente significativos” “o relato da avaliada apresenta, um número significativo de indicadores frequentemente encontrados em testemunhos baseados em experiências efetivamente vividas. Entre estes, salientamos a coerência interna e factual, o enquadramento temporal e contextual dos factos, a relação dos mesmos com circunstâncias do quotidiano, o grau substancial de detalhe, a espontaneidade e congruência nas suas descrições em diferentes momentos de avaliação, de recolha de informação (ex., autos) e com o relato de outros informantes (ex., marido).” “a vivência atual de BB é compatível com a situação de maus tratos retratada nos factos vertidos na acusação e de acordo com o período aí referido” Quanto ao dinheiro que o arguido pedia a mãe, referiu esta que era 5 ou 10€, razão pela qual os restantes montantes não se deram como provados. Não foi produzida qualquer prova, testemunhal ou documental, dos fatos vertidos na acusação sob os números 29 a 31, razão pela qual não foram dados como provados. Quanto aos fatos referidos nos artºs 22 a 27 da acusação, resultaram assentes pela conjugação do Auto de noticia de fls. 213 a 217, com o relatório pericial de fls. de fls. 291, datado do mesmo dia da agressão e ainda das fotografias juntas a fls. 254 e 255. Já o dolo que presidiu à conduta delituosa do arguido, por ele não afirmado, retirou-o o tribunal do conjunto de circunstâncias de facto dadas como provadas supra, apreciado à luz das regras a que alude o mesmo art. 127º do CPP, já que estamos perante uma realidade que não é apreensível diretamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum (cfr., neste sentido, a título meramente exemplificativo, o Ac. do TRE de 09/10/2001, em CJ, T. IV, pág. 285 e segs.; os Acs. do TRC de 03/12/2008 e de 04/03/2015; o Ac. do TRG de 08/05/2017, estes disponíveis em www.dgsi.pt). Relevantes foram assim, nesta sede, os relatórios periciais: DE FLS. 59 a 60; DE FLS. 291 e 292; DE FLS. 371 A 374; DE FLS. 378 A 381. Restante prova documental: Auto de notícia –de fls. 4 a 8; (na sua objectividade) Fichas de avaliação de risco – ELEVADO- de fls. 21 a 24, 63 a 68; 230 a 233, 273 a 278; Inquéritos pendentes em nome do arguido – de fls. 29; Certidões de nascimento – de fls. 30 a 32; Fotografias – de fls. 37 a 42, 254 e 255; Aditamentos - de fls. 62, 70, 272; Mensagens – de fls. 173 a 176, 185; Auto de notícia do NUIPC 347/24.0PBFUN – de fls. 210 a 217; (na sua objectividade). Assim fundou o Tribunal o seu convencimento para dar como provada e não provada, respectivamente, a matéria factual que como tal se deixou vertida supra. Quanto à factualidade respeitante à situação pessoal, económica e familiar do arguido e seu percurso de vida, a que se aludiu, foi valorado o relatório social a ele referente, com que os autos foram instruídos. Por fim, no que se refere à ausência de passado criminal do arguido, tal como se deixou expressa supra, baseou o tribunal o seu convencimento na análise do seu Certificados de Registo Criminal, junto aos autos que tal atesta. (…)
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2.3. Apreciando
2.3.1. Existência de vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão sobre a matéria de facto (art. 410.º, n.º 2, al. b) CPP), atinente aos factos 29-31 (provados vs. não provados).
A questão suscitada é um vício intratextual, de conhecimento oficioso, que emerge do próprio corpo da decisão recorrida, independentemente de reexame probatório ou de elementos exógenos ao texto decisório. Esta delimitação do vício tem relevância teórico-prática, pois, de um lado, discute-se a natureza e a intensidade da contradição que descaracteriza a coerência lógico-interna da decisão; de outro, apura-se o remédio processual adequado, interrogando a aplicabilidade do artigo 426.º do CPP, que regula o reenvio para novo julgamento quando, existindo vícios dos elencados nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, «não for possível decidir da causa».
Não obstante este enquadramento e considerando a existência efectiva de tal contradição, a correcção pode, e deve ser realizada por rectificação da decisão de facto, dispensando-se o reenvio, na medida em que a motivação de facto explicita de forma categórica que «não foi produzida qualquer prova» dos factos 29 a 31, esclarecendo qual o efectivo pensamento decisório do tribunal a quo e permitindo, por isso, a eliminação do erro sem necessidade de renovação de prova. Este entendimento resulta expressamente do parecer do Ministério Público junto desta Relação, que cita ipsis verbis a motivação de facto, bem como das peças recursórias e da resposta do MP em 1.ª instância, onde se identifica a duplicidade literal desses pontos. A caracterização dogmática do vício também se encontra reproduzida na resposta, enfatizando que a contradição relevante é aquela que, por si só e por referência ao texto da decisão, se apresenta como irredutível e irremediável por via hermenêutica, inviabilizando a reconstrução coerente do iter lógico do julgador.
A contradição insanável reconduz-se ao fenómeno lógico de afirmar e negar, no mesmo acto decisório, a mesma proposição fáctica, de modo a que nenhuma operação interpretativa razoável permita conciliá-la sem violar o texto da decisão. A sua detecção opera intramuros, quer dizer, decorre da leitura sistemática do acórdão, por si só considerado ou em articulação com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos estranhos ao seu texto. É nesse sentido que apenas releva a contradição «insanável, irredutível», que não se deixa integrar mediante a leitura global e coerente da fundamentação e do dispositivo.
Ou seja, este vício existe quando o texto da decisão contém proposições antagónicas que se excluem mutuamente, prejudicando a «lógica interna» da decisão e impedindo o controlo racional do iter cognoscitivo do julgador. No plano metodológico, o vício não se confunde com o erro de julgamento sobre a prova, com a insuficiência desta ou com a errónea aplicação do direito; trata-se de um defeito estrutural da peça decisória, enquanto documento jurisdicional dotado de coerência, e, por isso, é de conhecimento oficioso pelo tribunal ad quem, independentemente do cumprimento, pelo recorrente, do ónus de especificação do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, CPP. A resposta do MP é clara ao separar os planos: por um lado, censura o incumprimento do ónus de impugnação ampla; por outro, reconhece, autonomamente, a existência do vício dos factos 29-31, que o tribunal de recurso deve apreciar ex officio, por resultar do texto da decisão.
In casu, o acórdão inclui, no elenco dos «Factos provados», os pontos 29, 30 e 31, relativos a um encontro na via pública e a expressões dirigidas à ofendida, bem como a um papel com pedido de dinheiro. Todavia, os mesmos exactos enunciados são replicados no elenco dos «Factos não provados», sob as alíneas B), C) e D). A resposta do Ministério Público em 1.ª instância identifica essa duplicação, qualificando-a como contradição insanável; o parecer do Ministério Público junto desta Relação, por seu turno, reforça a análise e mostra que a própria motivação de facto do acórdão recorrido contém afirmação inequívoca no sentido de que «não foi produzida qualquer prova [...] dos factos vertidos na acusação sob os números 29 a 31, razão pela qual não foram dados como provados», revelando, sem margem razoável para a dúvida, que a inclusão desses pontos no rol dos provados resulta de um lapso de integração ou de transcrição. Esta constatação é decisiva para o desenho do remédio processual: se o vício existe e é estrutural, a motivação fornece a chave para o saneamento por rectificação, já que torna patente o «pensamento real» do julgador, o qual foi o de não dar por provados os pontos 29-31. A leitura conjugada de recurso, resposta e parecer confirma, assim, a natureza intrínseca do vício, a sua circunscrição estrita aos factos 29-31 e a possibilidade de o expurgar sem determinar o reenvio, precisamente porque o elemento decisivo — a falta de prova — se encontra afirmado no próprio texto da motivação da decisão de facto.
O artigo 426.º, n.º 1, do CPP estabelece que, «sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas…». O reenvio configura, pois, um mecanismo funcionalmente instrumental ao dever de decisão do tribunal ad quem: accionado quando a deficiência estrutural impede a decisão útil sobre o mérito do recurso, e somente nessa medida. A estrutura condicional da norma remete para um juízo de necessidade: «não for possível decidir da causa»; e para um juízo de proporcionalidade: reenvio total ou parcial, conforme o âmbito do vício e a sua repercussão no thema decidendum. O reenvio não é uma consequência automática de todo e qualquer vício do art. 410.º, n.º 2 do CPP; exige-se antes uma relação de causalidade entre o defeito da decisão e a impossibilidade prática de o tribunal de recurso suprir a deficiência sem renovação de prova ou sem violação das prerrogativas da 1.ª instância em matéria de imediação e oralidade. In casu, como se mostrará, a motivação do acórdão fornece os dados suficientes para suprir a contradição através de rectificação do texto decisório, razão pela qual a cláusula condicional do artigo 426.º do CPP não se verifica, sendo possível decidir da causa — i.e., sanar o vício e, no mais, apreciar o mérito — sem reenvio. Esta posição preserva o equilíbrio normativo entre a tutela da coerência decisória e a economia processual, evitando uma remessa inútil quando o próprio acórdão revela, de modo explícito, o sentido fáctico que o julgador pretendeu fixar relativamente aos pontos 29-31.
É o que ocorre no acórdão sob censura: a motivação expressa que não houve prova dos factos 29-31 e que, por isso, «não foram dados como provados», contrariando, por via directa, a sua existência no elenco dos factos provados. A ratio do reenvio é, ademais, indissociável da necessidade de renovação de prova — por exemplo, quando a contradição não se resolve no texto e há dúvidas insuperáveis sobre o efectivo convencimento do julgador. Não é este o caso, pois não há margem de indeterminação: a motivação da decisão de facto afasta a prova e recusa a sua valoração positiva; logo, a eliminação dos pontos 29-31 do elenco dos factos provados não traduz uma nova apreciação probatória, mas a restauração do que já foi decidido em sede de motivação.
É princípio assente que os vícios do artigo 410.º, n.º 2, CPP são de conhecimento oficioso, podendo e devendo ser apreciados pelo tribunal ad quem independentemente do cumprimento, pelo recorrente, do ónus de especificação do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4. Tal natureza oficiosa decorre da teleologia do sistema recursório: certos defeitos estruturais comprometem a validade racional do acto decisório e, por isso, não podem ser deixados ao abandono por razões meramente formais. A resposta do MP releva a autonomia entre a crítica ao incumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto — que, no limite, poderá conduzir à rejeição parcial do recurso nos termos do artigo 417.º, n.º 6, al. b) — e o reconhecimento do vício de contradição insanável, o qual, por incidir na «perfeição formal» da decisão, impõe o seu tratamento ex officio. Consequentemente, a sanação do vicio não está condicionada pelo modo deficiente como o recorrente articulou a impugnação; o tribunal ad quem pode, e deve, expurgar a contradição e, no mais, manter a decisão recorrida quando o restante edifício fáctico-jurídico se mostra sólido. Este entendimento preserva a integridade do sistema de garantias, sem descurar a disciplina dos ónus recursórios, e coaduna-se com a casuística recolhida no processo, onde a impugnação ampla dos factos falhou na indicação de passagens gravadas, mas o vício de duplicação dos factos 29-31 emerge claramente do texto do acórdão.
Quando a própria motivação da decisão de facto do acórdão recorrido contém a afirmação categórica de inexistência de prova relativamente aos pontos contraditórios, a rectificação da decisão de facto limita-se a fazer coincidir o elenco com a motivação, sem reabrir a apreciação probatória e nem incide sobre a imediação.
Conclui-se que: i) o acórdão recorrido enferma do vício de contradição insanável entre fundamentação e decisão de facto, por duplicação dos factos 29-31 como provados e não provados; ii) a própria motivação de facto resolve a ambiguidade, afirmando que não foi produzida prova dos factos 29-31 e que, por isso, não foram dados como provados; iii) por força do artigo 426.º, n.º 1, CPP, o reenvio só tem lugar se não for possível decidir; iv) no caso, é possível e suficiente decidir por via de rectificação, sem renovação de prova, expurgando os pontos 29-31 do elenco dos provados; v) a regularidade processual não é afectada pela não aplicação do reenvio; pelo contrário, é promovida, assegurando coerência, economia e tutela efectiva.
Termos em que se procede à rectificação dos factos provados, eliminando-se tais pontos do elenco dos factos provados, os quais permanecem como não provados.
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2.3.2 Âmbito do conhecimento do tribunal ad quem sobre matéria de facto e cumprimento (ou não) do ónus do art. 412.º, n.ºs 3 e 4 CPP pelo recorrente (impugnação ampla, com indicação de pontos, provas e passagens).
Sobre esta questão suscitada, primariamente importa dizer: (i) que o tribunal de recurso só conhece, em matéria de facto, nos estritos limites traçados pelas conclusões e pelo cumprimento do ónus técnico de especificação; (ii) que a mera discordância ou a reposição da narrativa do arguido não abre a via de reexame global da prova; e (iii) que, no caso, o recorrente não densifica os requisitos formais nem materiais, propondo leituras genéricas e sem sustentação áudio idónea, razão por que o ora Tribunal da Relação deve afastar a pretendida reapreciação ampla e, se necessário, rejeitar a impugnação nessa parte (art. 417.º, n.º 6, al. b), CPP).
É entendimento pacifico de que «os recursos têm como âmbito as questões suscitadas nas conclusões das motivações», sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (v.g., vícios do art. 410.º, n.º 2), criando uma verdadeira fronteira cognitiva para o tribunal ad quem. Ou seja, o Tribunal da Relação não pode substituir-se ao recorrente na construção do objecto do recurso; ela conhece do que é concluído, como é concluído e na medida em que o recorrente cumpre os ónus de densificação técnica que tornam cognoscível a impugnação de facto (e.g., indicação de pontos impugnados e provas vinculadas). Esta premissa é determinante: fora do que é levado às conclusões, não há controvérsia cognoscível, e dentro do que é levado, apenas o que obedece aos critérios do 412.º, n.ºs 3 e 4, CPP, pode desencadear reapreciação. No caso sub judice, a resposta do MP traça o mapa das insuficiências do recorrente ao nível das conclusões, que, longe de densificarem os requisitos legais, operam por remissões vagas às declarações do próprio arguido e por fórmulas conclusivas insustentadas. Daí resultar a consequência processual: cognição do Tribunal da Relação aos vícios de conhecimento oficioso (que foram, aliás, identificados quanto à contradição insanável dos pontos 29-31) e à matéria de direito, não a uma reapreciação ampla da prova.
O artigo 412.º, n.º 3, CPP impõe ao recorrente três especificações cumulativas: (a) concretos pontos de facto incorrectamente julgados; (b) concretas provas que impõem decisão diversa; (c) provas a renovar.
O Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2012 de 18.041 pacificou que, na ausência de consignação de início e termo em acta, basta a referência a concretos excertos transcritos que, no entendimento do recorrente, imponham solução diversa. Este entendimento não requer (nem permite) uma “nova audiência” na Relação; antes, exige uma arquitectura precisa do recurso que permita ao tribunal ad quem localizar com rigor o que se impugna e porquê, confrontando pontos de facto com passagens e provas invocadas. Assim, o ónus não se cumpre com declarações gerais ou meras afirmações de negação: é indispensável anexar à impugnação o conteúdo específico das provas e o modo como impõem (não apenas sugerem) a decisão diversa. In casu, a impugnação de uma vasta série de pontos (v.g., 3; 6-9; 20-21; 23-28; 32-33; 35-42) assenta exclusivamente na sua negativa em audiência e na alegação de que ofendidos “não confirmaram” os factos em declarações para memória futura, sem identificar quais passagens gravadas, onde e como imporiam decisão diversa; sem isolar os conteúdos específicos de outras provas (periciais/documentais); e sem propor renovação de meios com finalidade definida. Esta forma abstracta de impugnar viola frontalmente o 412.º, n.ºs 3 e 4: não densifica pontos, não referencia passagens, não explicita a força impeditiva das provas invocadas. A consequência, exposta na resposta, é inevitável: falta de especificação mínima para delimitar o âmbito cognoscível e, em última ratio, rejeição parcial ao abrigo do art. 417.º, n.º 6, al. B) do CPP. No caso, o Tribunal da Relação, mesmo podendo adoptar solução menos drástica (conhecer estritamente o cognoscível), não pode suprir o ónus do recorrente, nem tornar cognoscível o que não foi minimamente especificado.
O recurso contém um único apontamento com alguma densidade empírica: a transcrição de um excerto do depoimento do próprio arguido (min. 19:38 a 20:17), a propósito do facto 34 (pedir vs. exigir dinheiro). Contudo, mesmo aqui, o recorrente não cumpre o ónus completo: (i) não confronta o excerto com a totalidade dos meios probatórios relevantes (declarações para memória futura dos ofendidos; relatórios de psicologia forense; prova documental) que sustentaram a convicção do tribunal a quo; (ii) não demonstra que esse excerto impõe decisão diversa; (iii) não articula por que motivo o excerto prevalece sobre a restante prova (credibilidade, coerência, corroboração). O núcleo aglutinador do juízo de facto residiu nas declarações para memória futura — devidamente valoradas e explicadas — e em documentação convergente, que o recorrente ignora. Assim, a invocação de um segmento isolado do seu próprio depoimento não satisfaz o 412.º, n.ºs 3 e 4; muito menos impõe a alteração.
A letra do 412.º, n.º 3, al. b), CPP é inequívoca: o recorrente deve indicar as provas que impõem decisão diversa. É necessário mostrar que, se as passagens forem ponderadas correctamente, a decisão recorrida não poderia manter-se. Esse teste de incompatibilidade decisiva não é cumprido com negações genéricas, com a reiteração da versão do arguido, ou com excertos descontextualizados. No caso, o acórdão sob censura expõe um exame crítico da prova (art. 127.º CPP), alicerçado no conjunto dos elementos disponíveis, especialmente nas declarações para memória futura, e que a impugnação do recorrente omite esse quadro. Fica, assim, por cumprir o patamar mínimo do 412.º, n.º 3, al. b), inviabilizando a reponderação ampla.
O n.º 4 impõe uma disciplina de localização: quando a prova é gravada, o recorrente deve indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação. Esta exigência visa impedir a reabertura global da prova em sede de Relação e permitir uma reponderação fáctica cirúrgica, limitada aos pontos controvertidos. O Tribunal da Relação Relação não procede a um “julgamento de novo”; aprecia, antes, a razoabilidade da convicção formada, nos pontos e com as passagens que o recorrente oferece — e apenas nesses limites. In casu, a impugnação omite sistematicamente as passagens concretas (com excepção do breve excerto já analisado), o que, para além de não delimitar o objecto cognoscível, não dá ao tribunal ad quem as ferramentas necessárias à reponderação. Donde, a estreiteza do conhecimento ao que está processualmente bem colocado, com a correlata improcedência do mais.
A falha do recorrente no cumprimento do 412.º, n.ºs 3 e 4 são as seguintes:
O recorrente lista concretamente os pontos impugnados, mas na motivação e conclusões limita-se a dizer que “o arguido negou” ou que “ninguém confirmou”, sem passagens nem fundamentação probatória compatível com o quadro legal (v.g., 3; 6-9; 20-21; 23-28; 32-33; 35-42).
Mais, o acórdão sob censura expõe um processo lógico-racional de formação da convicção — com explicitação da credibilidade atribuída aos ofendidos (declarações para memória futura), a conjugação com relatórios periciais e prova documental, e o respeito pelas regras da experiência —, de modo a permitir o controlo pelo Tribunal da Relação (art. 127.º CPP). O recorrente, ao ignorar esse exame crítico e ao não censurar, com passagens e fundamentação idóneas, os pilares do juízo probatório, não cria condições para que este Tribunal ad quem reabra os segmentos fácticos impugnados. A presunção de correcção da convicção fundada em imediação e oralidade não se desfaz por via de simples argumentação do arguido.
Em conclusão:
Diante do incumprimento dos ónus do 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, este Tribunal da Relação (i) limita a sua cognição aos vícios de conhecimento oficioso (que foram sanados por rectificação quanto aos pontos 29-31) e à matéria de direito; (ii) negar provimento à alteração da matéria de facto nos mais, por não ter sido demonstrada, com base em passagens concretas, a imposição de decisão diversa; (iii) rejeitar a impugnação fáctica deficiente (art. 417.º, n.º 6, al. b)).
Mantém-se, pois, a decisão de facto (uma vez corrigido o vício formal dos pontos 29-31, já tratado noutra sede) e nega-se provimento à impugnação ampla da matéria de facto.
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2.3.3. Preenchimento do tipo objectivo do art. 152.º, n.º 1, al. d), CP, na vertente «pessoa particularmente indefesa»: critérios, prova e suficiência da matéria de facto quanto à especial vulnerabilidade dos ofendidos.
O conceito “pessoa particularmente indefesa” é um conceito normativo aberto que requer densificação casuística à luz de factos que revelem uma diminuição relevante da capacidade de autoprotecção, não bastando meros rótulos (idade, doença, deficiência) descontextualizados. A própria motivação do acórdão recorda que a tutela do art. 152.º incide sobre o livre desenvolvimento da personalidade e a integridade (arts. 25.º e 26.º CRP) em contexto relacional próximo, o que exige olhar para a funcionalidade concreta do ofendido e para a dinâmica relacional do controlo e medo. Deste modo, nem todos os idosos são particularmente indefesos, nem toda a doença o será; é necessário um quadro fáctico que evidencie especial fragilidade instrumentalizada pelo agente. Isso mesmo, aliás, é assumido também pelo próprio recorrente, que reconhece a necessidade de concreta demonstração, mas erra na aplicação, por exigir um patamar de completa ausência de defesa que não é legalmente requerido no art. 152.º do CP.
A peça recursória cita jurisprudência de crimes de homicídio qualificado para insinuar que “particular indefesa” equivaleria a completa ausência de defesa, exigindo incapacidade de movimentos, destreza ou discernimento — i.e., um estado de paralisia ou incapacidade quase absoluta. Tal leitura, além de deslocada do contexto típico do homicídio, incorre num maximalismo probatório não exigido pela al. d) do n.º 1 do art. 152.º, cujo foco é a violência intrafamiliar e o aproveitamento, pelo agente, de vulnerabilidades situacionais (saúde, idade, dependências) que, conjugadas com a coabitação e a relação de dominação, reduzem a capacidade efectiva de autoprotecção. Ao exigir “completa ausência de defesa”, o recorrente reescreve o tipo, confundindo “indefesa particularmente qualificada” com “indefesa absoluta” e desconhecendo a relevância jurídico-penal do contexto de coabitação e do padrão continuado de maus-tratos.
A matéria de facto provada traça um quadro claro: coabitação do arguido com os pais desde ... de 2021; consumo diário e descontrolado de substâncias; pedidos quase diários de dinheiro com imposição e insultos; e, sobretudo, estado de saúde dos ofendidos: a mãe com dificuldades respiratórias (asma) e acompanhamento psiquiátrico por crises de ansiedade exacerbadas pelo comportamento do arguido; o pai com patologia cardíaca significativa e acompanhamento médico regular. Este contexto, em que o arguido controla o espaço doméstico e exige dinheiro, explodindo em violência verbal e intimidatória quando contrariado, traduz uma relação assimétrica onde a vulnerabilidade clínica e emocional dos ofendidos reduz a sua capacidade real de reacção e queixa, potenciando a submissão ao agressor para “ter paz”. É precisamente esta funcionalidade diminuída — e não um conceito abstracto — que o tribunal a quo valorizou, em consonância com o traço típico do art. 152.º do CP.
O acórdão sob censura explicita que a convicção do tribunal assentou num quadro probatório coeso: (i) declarações para memória futura dos ofendidos, (ii) relatórios de psicologia forense, (iii) prova documental (autos, fotografias, mensagens), com exame crítico expresso que explica por que razão estes meios prevalecem sobre as declarações do arguido. Esta arquitectura probatória é particularmente adequada para apreender a vulnerabilidade funcional: as DMF (declarações para memória futura) fixam o impacto do padrão violento na saúde e no quotidiano dos ofendidos; os relatórios forenses oferecem suporte técnico; e a documentação corrobora a persistência e intensidade dos comportamentos. O recorrente ignora, em grande medida, este núcleo de prova e centra-se na sua versão, sem demonstrar incompatibilidade decisiva — o que é insuficiente.
A qualificação do ofendido como “particularmente indefeso” resulta da confluência de quatro vectores: (i) vulnerabilidade funcional objectiva (condição de saúde, ansiedade, fragilidade psicofísica) com repercussão prática; (ii) exploração dessas fragilidades pelo agente em ambiente doméstico; (iii) coabitação e dependência prática (ex.: necessidade de evitar conflitos cedendo a exigências); (iv) demonstração de que tais factores reduziram a capacidade de reacção ou de busca de ajuda. O acervo fáctico satisfaz estes vectores: os progenitores vivem no mesmo espaço, o arguido exige dinheiro e recorre a intimidação quando contrariado; a mãe apresenta asma e perturbações ansiosas agravadas pelo ambiente; o pai tem doença cardíaca e é alvo de insultos quando procura proteger a mãe. A resultante é uma “indefesa particularmente qualificada” na dinâmica concreta do lar, não um mero “selo” etário.
O recorrente tem razão num ponto abstracto: idade/doença, só por si, não bastam. Todavia, no caso, não se está perante “só por si”. A factualidade provada descreve patologias relevantes associadas a um padrão de coerção e medo potenciado pela coabitação, em que as vítimas cedem para evitar escaladas; isto excede em muito a referência abstracta a idade/doença. Os próprios excertos do recurso que invocam jurisprudência sublinham a necessidade de concretização fáctica — exigência que a decisão recorrida cumpre, pois densifica a vulnerabilidade em termos funcionais e relacionais. Daí que o argumento do recorrente, ao insistir num teste de “indefesa total” ou numa presunção de não-preenchimento por inexistir paralisia, seja juridicamente infundado e probatoriamente contrariado pelo conjunto de meios valorados.
A estratégia manifestada em sede de recurso padece de dois vícios metodológicos: (a) selecção de standards associados a outro tipo (homicídio qualificado) para maximizar o limiar de “indefesa”, deslocando a medida exigível ao art. 152.º; (b) desconsideração do contexto relacional de coabitação e do padrão reiterado, que, no crime de violência doméstica, é vector essencial para a leitura da vulnerabilidade. Ao assim proceder, o recorrente ignora que a ratio do art. 152.º é justamente o aproveitamento, em ambiente doméstico, de fragilidades que, sem o contexto de proximidade e controlo, poderiam não assumir relevância jurídico-penal idêntica.
Mas mais:
A apreciação da prova é feita segundo a livre convicção, submetida às regras da lógica e da experiência, devendo a motivação tornar transparente o itinerário racional. No caso, o acórdão explica por que atribui credibilidade às declarações para memória futura e como articula relatórios e documentos, permitindo o controlo nesta 2.ª instância. O recorrente, ao não atacar com passagens concretas esses elementos, não logra abalar a convicção formada. Ao contrário, os elementos probatórios convergem: vulnerabilidade clínica e emocional das vítimas, pressão diária por dinheiro, agressividade verbal e ambiente intimidatório.
O art. 152.º, n.º 1, al. d), exige coabitação com a pessoa particularmente indefesa; o n.º 2, al. a), agrava quando o facto ocorre no domicílio comum. Esta estrutura normativa evidencia que o espaço doméstico e a proximidade relacional funcionam como “amplificador” da vulnerabilidade: quem domina o espaço, ritmos e rotinas tem maior capacidade de instrumentalizar fragilidades e reduzir resistências. No caso, o arguido regressa ao lar, impõe um padrão de pedidos e insultos e, quando contrariado, eleva a agressividade; a mãe reage com evitamento e ansiedade; o pai, com fragilidade cardíaca, é alvo de hostilidade quando intervém. A leitura conjunta destes elementos sustenta a qualificação, à luz da ratio protectora do tipo.
Admitindo por hipótese o critério exigente invocado pelo recorrente (maior “densidade” de indefesa), a descrição fáctica ainda assim passaria no crivo, pois documenta limitações respiratórias e ansiedade reactiva na mãe, com impacto no quotidiano; patologia cardíaca relevante no pai; e um regime de coabitação em que o arguido, sob consumo de estupefacientes, exerce pressão contínua por recursos e desencadeia agressividade quando contrariado. Em termos de capacidade de defesa, isto significa menor aptidão para confronto verbal ou físico, maior propensão à cedência e maior risco de descompensação clínica. O standard funcional de indefesa qualificada — “incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz” em face das qualidades e do contexto — resulta preenchido, sem necessidade de postular paralisia ou demência.
O recurso insinua que a expressão “são pessoas particularmente indefesas” seria “conceito indeterminado” e, por isso, indevido nos factos provados. A objecção confunde planos. É legítimo (e metodologicamente frequente) que o segmento de factos inclua enunciados-ponte de natureza fático-valorativa quando imediatamente sustentados em substrato descritivo (saúde, ansiedade, coabitação, padrão de maus-tratos). O que a decisão tem de garantir — e garantiu — é que o juízo conclusivo resulta de factos base explicitados e controláveis, o que aqui ocorre: as condições clínicas e a dinâmica de dominação constam da matéria provada e da motivação. Assim, mesmo se se preferisse deslocar a expressão para a fundamentação jurídica, a qualificação manter-se-ia, pois assenta num núcleo fáctico robusto e não em mero rótulo.
Em suma, o preenchimento do tipo objectivo do art. 152.º, n.º 1, al. d), CP está demonstrado: os progenitores do arguido são “pessoas particularmente indefesas” em razão de vulnerabilidades funcionais concretas, exploradas num contexto de coabitação e de padrão reiterado de maus-tratos. A argumentação do recorrente falha por (i) transpor indevidamente standards de homicídio qualificado; (ii) exigir “indefesa total”; (iii) ignorar a prova estruturante (DMF, relatórios, documentos) e o exame crítico; (iv) desconsiderar o papel potenciador da coabitação. Mantem-se, pois, a qualificação jurídico-penal, negando-se provimento ao recurso nesta parte.
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2.3.4. (iv) Medida concreta e cúmulo jurídico das penas (arts. 71.º e 77.º CP) — adequação, proporcionalidade e fundamentação.
A determinação da pena concreta faz-se “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (art. 71.º, n.º 1, CP), dentro da moldura abstracta do tipo. O acórdão sob censura enuncia o modelo da moldura: entre um tecto de tutela óptima dos bens jurídicos/expectativas comunitárias e um valor abaixo do qual a pena deixaria de cumprir a sua função tutelar, actuam as exigências de prevenção especial e o limite inultrapassável da culpa (art. 40.º, n.º 2, CP). O acórdão reconstrói expressamente este padrão e enuncia as categorias do n.º 2 do art. 71.º (ilicitude, grau de culpa, personalidade, contexto, conduta anterior e posterior). O juízo efectuado pelo tribunal a quo abrange: elevada ilicitude; dolo directo e intenso; impacto físico e psíquico nos ofendidos (declarações e relatório de psicologia forense); e pressão intimidatória geradora de medo.
Em concurso real de crimes, a pena única obedece ao art. 77.º, n.º 1 CP: tem em conta, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, formando o “ilícito global”. A decisão explicita a moldura do cúmulo: mínimo na pena parcelar mais elevada (2A6M) e máximo a soma das penas (5A). O acórdão fixa a pena única de 3A10M, dentro da moldura, após ponderar gravidade dos factos, temporalidade, personalidade, percurso de vida e integração social e profissional. A motivação identifica explicitamente tais factores e a razão de ser da pena agregada, não se verificando quaisquer lacunas.
O acórdão recorrido destaca a gravidade concreta da violência doméstica, em coabitação, assente num padrão reiterado de maus-tratos, com agudização do medo e sofrimento psíquico das vítimas. A culpa surge como intensa, atenta a direcionalidade dolosa e a persistência da conduta, e o relatório de psicologia forense sinaliza sintomatologia de depressão e stresse pós-traumático no ofendido, relacionável com as vivências maltratantes (elemento de ilicitude e de ofensividade). Esta valoração fornece sustentação suficiente à opção por penas parcelares de 2A6M e pelo cúmulo em 3A10M, afastando o risco de abstracção.
O acórdão explicita a dialéctica prevenção geral / prevenção especial. Quanto à primeira, releva a protecção reforçada da dignidade e integridade das vítimas no domicílio comum, espaço de especial vulnerabilidade (qualificativa do art. 152.º, n.º 2, al. a), CP); quanto à segunda, pondera-se a personalidade do arguido e o percurso revelador de dificuldades em adoptar conduta conforme ao direito (incluindo antecedentes relevantes, ainda que não por violência doméstica). A pena única de 3A10M, aquém do máximo do cúmulo e acima do mínimo, posiciona-se como resposta suficiente para estabilizar expectativas normativas e necessária à contenção da perigosidade específica, sem exceder a medida da culpa.
O recorrente invoca excesso e pede redução das penas parcelares e da pena única, com suspensão. Porém, não enfrenta os pilares essenciais do acórdão recorrido no que tange a esta matéria: (i) não contesta, com argumentos idóneos, o grau de ilicitude e o dolo descritos; (ii) não ataca o impacto psíquico documentado; (iii) não contrapõe elementos que neutralizem as exigências de prevenção. As motivações limitam-se a fórmulas conclusivas e a argumentos ad hominem (p. ex., “não há antecedentes por violência doméstica”), irrelevantes per se à luz do art. 71.º.
A crítica ao acórdão sob censura confunde planos: a medida das penas (arts. 71.º e 77.º) e a substituição por suspensão (art. 50.º). A sentença tratou autonomamente a suspensão, qualificando-a poder-dever condicionado a prognose social favorável e a compatibilidade com as finalidades preventivas (prevenção geral e especial). Concluiu-se negativamente, por ausência de prognose e por exigências de prevenção acentuadas, sobretudo face ao risco de reiteração e à situação habitacional (“só tem a casa dos pais”), que potenciaram a imposição da pena acessória de afastamento com controlo electrónico. Logo, ainda que o limiar formal de 5 anos esteja cumprido, a suspensão não é imposta, e o seu indeferimento não contamina a medida fixada.
O intervalo do cúmulo (2A6M–5A) ficou definido. A fixação em 3A10M revela ponderação intermédia-superior, explicada por: pluralidade de vítimas (ascendentes em coabitação), persistência temporal, agudização dos efeitos e perfil do arguido. Não se trata de um máximo punitivo, mas de uma resposta calibrada abaixo da soma, justificando-se pela intensidade do padrão e pela necessidade de tutela acrescida do domicílio. A decisão transcreve os critérios do art. 77.º e elenca os factores relevantes que apoiam a posição escolhida.
A aferição do quantum da pena repousa no exame crítico da prova: declarações (incluindo para memória futura), relatórios de psicologia forense e documentação. A sentença cita trechos periciais que estabelecem nexo entre as condutas e os sintomas clinicamente significativos dos ofendidos, densificando a ilicitude e a necessidade de tutela. Logo, o raciocínio de graduação não é apodíctico: está sustentado no conjunto probatório e nas regras da experiência; o recurso não contrapõe elementos probatórios concretos que imponham diferente leitura no plano da ilicitude e da culpa.
No plano da proporcionalidade: (i) necessidade — a pena é exigida para proteger eficazmente bens jurídicos num contexto doméstico, após padrão reiterado; (ii) adequação — o quantum é apto a satisfazer prevenção geral/ especial, atento o histórico e a personalidade; (iii) proibição do excesso — a posição em 3A10M, intra limites do cúmulo, e a explicitação de factores do art. 71.º, n.º 2, afastam a censura de excesso manifesto invocado pelo recorrente. O recorrente não demonstra por que medida inferior cumpriria as mesmas finalidades com igual suficiência; o ónus argumentativo não carece de sustentação.
O recorrente sustenta: “tem antecedentes, mas não por violência doméstica” e são de ...1.../2013; propõe pena inferior e suspensão. O acórdão pondera passado criminal e perfil (inclusive condenação anterior com expulsão em ...), mas não faz disso um elemento agravante; integra-os no quadro global do art. 71.º, n.º 2. A ausência de antecedentes específicos por violência doméstica não neutraliza o padrão actual de agressividade e pressão em ambiente doméstico, nem o efeito vitimizador relevado pelo relatório.
A pena acessória de afastamento com controlo electrónico (2 anos) foi autonomamente fundamentada, para protecção dos ofendidos e redução do risco de reaproximação; não serve, porém, para compensar com “descida” da pena principal. As esferas são funcionalmente distintas: a pena principal responde ao ilícito-culpa; a acessória responde a exigências cautelares de protecção. O acórdão tratou coerentemente estas dimensões, sem redundâncias, e explicitou que a acessória se iniciará após o cumprimento da pena. Não há lugar, pois, a “dupla valoração” que imponha redução do quantum.
Recorde-se: o art. 77.º recomenda que tudo se passe como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global, sopesando conexão temporal, qualitativa e pessoal. O ilícito global aqui retractado — violência sobre ambos os progenitores, no domicílio, com resultados psíquicos assinaláveis — justifica a pena única algures acima do mínimo do intervalo, sem roçar o máximo. Esta centralidade é explicitada na decisão. O recorrente não indica qualquer parâmetro normativo ou factual que imponha deslocar o equilíbrio para baixo.
Conclui-se que a 1.ª instância: (i) aplicou correctamente os arts. 71.º e 77.º CP, com motivação suficiente e específica; (ii) fixou penas parcelares proporcionadas (2A6M cada) e um cúmulo equilibrado (3A10M), todos intra limites e coerentes com a culpa e a prevenção; (iii) autonomizou a questão da suspensão (art. 50.º), indeferindo-a com base em prognose desfavorável e exigências preventivas acentuadas; (iv) estruturou a pena acessória de forma complementar e não substitutiva.
Mantém-se a medida concreta das penas parcelares e a pena única resultante do cúmulo (arts. 71.º e 77.º CP), por se mostrarem adequadas, necessárias e proporcionais às finalidades de prevenção geral e especial, dentro do limite ditado pela culpa.
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2.3.5. (v) Pressupostos de suspensão da execução da pena (art. 50.º CP) — prognose social, prevenção e motivação da recusa.
O art. 50.º, n.º 1, CP institui um poder-dever (poder vinculado): sempre que a pena aplicada não exceda 5 anos e se conclua que a simples censura e a ameaça da prisão realizam de modo adequado e suficiente as finalidades da punição, o tribunal suspende a execução. A suspensão não é um favor; é uma medida de conteúdo pedagógico e reeducativo, dependente de juízo de prognose favorável e subordinada a finalidades exclusivamente preventivas (geral e especial), não de culpa (limite máximo, art. 40.º, n.º 2, CP). A decisão recorrida expõe esta matriz, e explicita que o juízo se formula no momento da decisão, olhando a personalidade, as condições de vida, a conduta ante et post factum e o circunstancialismo do crime.
A prognose não exige certeza; basta uma “esperança fundada” de que a socialização em liberdade é alcançável, aceitando o tribunal um risco fundado e calculado.
O acórdão segue este quadro e, depois, aplica-os ao caso: pondera os traços de personalidade evidenciados, o padrão de comportamento e o impacto criminal do contexto, concluindo pela inexistência de uma esperança fundada que legitime confiar na socialização em liberdade.
A suspensão é compatível com a prevenção geral apenas quando o mínimo de tutela das expectativas comunitárias o consente. O acórdão sublinha que as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico limitam o valor da socialização em liberdade; em crimes de violência doméstica, a comunidade exige resposta firme, sob pena de violação da confiança na norma. Nesta linha, o tribunal pondera a gravidade típica e concreta e assinala que, neste caso, a suspensão não satisfaria o patamar mínimo de defesa da ordem jurídica, sendo necessária a execução da pena para reafirmação normativa.
No vector de prevenção especial, o acórdão distingue reintegração e a contenção do risco. Embora reconheça, em abstracto, o valor da socialização em liberdade, conclui que não estão verificados os pressupostos materiais para confiar na autodisciplina do arguido, face ao padrão de agressividade, à dinâmica de coabitação e à assinalada fragilidade das vítimas. A execução da pena é vista como necessária para neutralizar o risco e proteger as vítimas, correspondendo à função defensiva da prevenção especial.
A decisão enuncia o quadro legal, identifica as finalidades preventivas, distingue culpa de prevenção e aplica os elementos típicos ao caso, chegando a uma prognose desfavorável. Fá-lo em termos específicos, não tabelares: invoca as necessidades de reafirmação normativa em crimes de violência doméstica, a dinâmica persistente de maus-tratos e intimidação, e a falta de indicadores sólidos de autocontenção futura. Trata-se, pois, de motivação suficiente e controlável em sede de recurso, não se verificando qualquer nulidade por omissão de pronúncia ou deficiência de fundamentação.
O recorrente invoca o art. 50.º CP e conclui, em termos genéricos, que a censura do facto e a ameaça da pena seriam adequadas e suficientes, pedindo pena única inferior a 3A10M, suspensa com regime de prova. Porém, a sua argumentação não enfrenta os fundamentos preventivos desenvolvidos no acórdão, nem oferece elementos actuais demonstrativos de uma viragem comportamental que imponha prognose favorável. A mera invocação de ausência de antecedentes específicos por violência doméstica é irrelevante: o juízo de suspensão mira o futuro, avaliando riscos a partir da personalidade, condições de vida e padrão evidenciado.
O pressuposto formal (pena não superior a 5 anos) está verificado. Mas os pressupostos materiais — prognose favorável e compatibilidade com a prevenção geral e especial — não. O acórdão relembra que a ampliação do tecto formal para 5 anos não converte a suspensão numa solução “normal”; antes reforça a exigência de ponderação criteriosa em crimes de elevada reprovação social, como o de violência doméstica, em que a densidade das exigências preventivas frequentemente prevalece.
A recusa da suspensão articula-se com a imposição da pena acessória de afastamento com fiscalização electrónica (2 anos). Tal pena acessória não substitui as finalidades da pena principal; protege as vítimas e reduz o risco de reaproximação. A decisão ressalva a sua autonomia funcional: não serve para compensar uma descida do quantum principal, nem para suprir a ausência de condições de socialização em liberdade. A lógica é complementar: execução da pena para reafirmação e defesa do sistema, e acessória para protecção específica.
A suspensão não é exigível quando crie um défice de tutela dos bens jurídicos, atenta a gravidade e a repercussão social do crime. A decisão explicita que a violência doméstica reclama resposta firme e peremptória; em tais contextos, e neste caso, a execução da pena é necessária para estabilizar expectativas normativas e para proteger as vítimas, sem exceder o limite da culpa. O recurso não demonstra como a suspensão realizaria, com igual suficiência, as finalidades preventivas.
Em suma:
Embora preenchido o pressuposto formal do art. 50.º CP, os pressupostos materiais não se mostram verificados: o tribunal formulou prognose social desfavorável, à luz da personalidade e do padrão comportamental revelados, e assinalou exigências de prevenção (geral e especial) que obstam à socialização em liberdade neste momento.
Improcede, pois, a suspensão da execução da pena (art. 50.º CP), por inexistência de prognose favorável e por imperativos de prevenção geral e especial, mantendo-se a execução da pena e a pena acessória de afastamento com fiscalização electrónica, nos termos do acórdão recorrido.
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2.3.6. (vi) Adequação da pena acessória de proibição de contactos/afastamento com fiscalização electrónica (art. 152.º, n.ºs 4 e 5 CP).
O art. 152.º, n.º 4, prevê que, em condenações por violência doméstica (mesmo quando caiba pena mais grave por outra norma), podem ser aplicadas as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima, de proibição de uso e porte de armas e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção, por 6 meses a 5 anos. O n.º 5 densifica a primeira: a proibição de contacto deve incluir o afastamento da residência ou local de trabalho da vítima e o respectivo cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. A ratio é dupla: cessar o ciclo de vitimação no espaço de proximidade e reduzir o risco de reaproximação/coerção, garantindo tutela prospectiva dos bens jurídicos (integridade, liberdade, tranquilidade) e confiança da vítima na ordem jurídica. Foi este o quadro normativo que o acórdão explicitou e aplicou.
O tribunal a quo motivou a necessidade da pena acessória com base em dados específicos do caso: (i) o arguido admite não ter onde viver e considera a casa dos pais como única solução habitacional; (ii) existem fundados receios de que regresse ao lar e importune os ofendidos; (iii) a sua personalidade impulsiva e a adição foram destacadas; (iv) face às elevadas necessidades cautelares, fixou-se a acessória em 2 anos; (v) a fiscalização electrónica foi justificada por circunstâncias concretas que reclamam essa técnica para protecção eficaz.
A escolha do período de 2 anos situa-se intra limites (6 meses–5 anos) e revela uma ponderação intermédia: não é o mínimo, porque o risco não é residual; não se aproxima do máximo, porque a finalidade é prudencial e reeducativa, não punitiva. O tribunal a quo valorou gravidade, persistência e perfil do arguido, bem como as necessidades cautelares que o caso reclama, concluindo por um patamar razoável de tutela prolongada para estabilização da segurança das vítimas no pós-prisão.
O recorrente pugnou pela não aplicação da pena acessória (e por suspensão da pena principal), sem rebater a fundamentação específica relativa ao risco de reaproximação e à impulsividade/adição. Não indica factos novos que neutralizem o perigo nem demonstra a inutilidade da fiscalização electrónica. Ao nível técnico, a sua argumentação é conclusiva e desancorada de factos que imponham solução diversa, limitando-se a afirmar que a medida seria “excessiva”.
A recusa da suspensão (juízo de prognose desfavorável) e a imposição da pena acessória coadunam-se: se a simples censura e a ameaça de prisão não bastam para prevenir a reincidência, então barreiras adicionais na fase de reinserção são necessárias. O acórdão fundamentou a prognose com base em consumos, impulsividade, fragilidades pessoais e pressão sobre as vítimas, o que reforça a pertinência da pena acessória como complemento de protecção no pós-cumprimento.
Dito isto, a pena acessória de proibição de contactos/afastamento com fiscalização electrónica por 2 anos mostra-se adequada, necessária e proporcional, devidamente fundamentada e articulada com a execução da pena principal. A pretensão de não aplicação da pena da acessória não procede por falta de demonstração de alternativa menos gravosa com idêntica eficácia de protecção e por não impugnar os fundamentos específicos de risco identificados. Mantem-se integralmente a pena acessória nos termos fixados.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta Relação em:
1.Julgar o recurso parcialmente procedente, ao abrigo do artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, apenas para rectificar a decisão de facto do acórdão recorrido, no seguinte sentido:
a. eliminar do elenco dos factos provados os pontos 29, 30 e 31;
b. manter o correspondente conteúdo como factos não provados, sob as alíneas B), C) e D), tal como já enunciado no acórdão recorrido.
2.No mais, negar provimento ao recurso, confirmando-se integralmente a decisão recorrida, designadamente:
a. a qualificação jurídico-penal dos factos como dois crimes de violência doméstica (art. 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a), do Código Penal);
b. as penas parcelares fixadas e a pena única de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, resultante do cúmulo jurídico (arts. 71.º e 77.º do Código Penal);
c. o indeferimento da suspensão da execução da pena (art. 50.º do Código Penal);
d. a pena acessória de proibição de contactos/afastamento das vítimas, com fiscalização electrónica, pelo período de 2 (dois) anos (art. 152.º, nºs 4 e 5, do Código Penal), a iniciar-se após o cumprimento da pena de prisão.
3.Determinar a anotação da presente rectificação no texto da decisão de facto.
4.Sem custas, atenta a procedência parcial do recurso.
5.Notifique.
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Lisboa e Tribunal da Relação, data e assinatura digitais Processado e revisto pelo relator (artº 94º, nº 2 do CPP). O relator escreve segundo a antiga ortografia
Alfredo Costa
João Bártolo
Carlos Alexandre
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1. Publicação: Diário da República n.º 77/2012, Série I de 2012-04-18, páginas 2068 - 2099