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SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CRIME DE ABUSO SEXUAL DE MENORES
Sumário
I-Como decorre do artigo 50º nº1 do Código Penal subjazem à decisão de suspensão da execução da pena razões reportadas às exigências de prevenção geral e especial sendo que na ponderação destas não se pode descurar a salvaguarda daquelas. II-É indispensável para suspensão da execução da pena que o Tribunal, em face dos factos provados, atendendo à personalidade do agente, ao seu percurso e condições de vida, sua conduta anterior e posterior ao crime e, ainda, às concretas circunstâncias deste logre formular um prognóstico favorável com relação ao comportamento futuro do agente mas sempre sem descurar a necessidade de as consequências penais serem dissuasoras da criminalidade bem como a tutela dos bens jurídicos legalmente protegidos. III- Circunstâncias reveladoras de um percurso de fraco investimento escolar e profissional, de dependência económica, de consumos abusivos e de ausência de ressonância crítica e de empatia com a vítima menor de idade indiciam uma personalidade distanciada do dever ser jurídico-penal e dos valores nucleares da sociedade e indiferente ao sofrimento da vítima. IV- A suspensão da execução da pena só deve ser aplicada quando as exigências de prevenção especial e geral fiquem asseguradas.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1-RELATÓRIO:
Nos autos de processo comum com intervenção de Tribunal Singular nº283/22.5PQLSB que correm os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa- Juiz 9 foi em 20 de maio de 2025 proferida sentença, com o seguinte dispositivo, ao que nos interessa para apreciação dos recursos:
1.JULGA a acusação deduzida pelo Ministério Público, procedente, por provada e, em consequência CONDENA o arguido AA pela prática, como autor material, de um crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravado, previsto e punível pele artigo 172.°, n.°1, alínea b), em conjugação com o artigo 177.°, n.°1, alínea c), ambos do CP, na pena de 3 (três) anos de prisão, cuja execução SUSPENDE pelo período de 3 anos (artigo 50.°, n.°s 1 e 5, do CP), com sujeição a regime de prova (artigos 53.° e 54º do CP).
2.O regime de prova assentará num plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio da DGRSP.
O arguido deverá, para além do mais (artigo 54.°, n.°2, do CP):
a. Responder às convocatórias do técnico de reinserção social ou do Tribunal;
b. Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos pertinentes que lhe sejam solicitados;
c. Informar o técnico de reinserção social e o tribunal sobre alterações de residência ou emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso;
d. Efectuar - com o seu consentimento - acompanhamento psicoterapêutico e/ou médico, na eventualidade de tal se mostrar necessário às finalidades do regime de prova, perante a natureza do crime da presente condenação - crime contra a autodeterminação sexual - e ao tratamento do seu síndrome alcoólico (artigos 52.° n.°2, e 54.°, n.°2, proémio, do CP).
(…)
*
Notificado da sentença dela recorreu o Ministério Público extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:
A) O presente recurso é interposto da sentença proferida em 20.02.2025 que condenou o arguido AA pela prática de um crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, p. e p. nos artigos 172°, n° 1 al. b) e 177°, n° 1 al. c), ambos do Código Penal, na pena de três anos de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período, sujeita a regime de prova.
B) Não conformado, o Ministério Público pretende que tal pena seja cumprida de forma efetiva.
C) Por força da aplicação do disposto no artigo 16°, n° 3 do Código de Processo Penal, foi o arguido acusado em processo comum com intervenção do Tribunal singular, sendo o teto máximo abstratamente aplicável é de cinco anos.
D) Face aos circunstancialismos que rodeiam a prática dos factos e relação com a vítima menor BB, não se verificam.
E) O arguido era namorado da mãe da menor BB, a qual conhecia desde que era pequena, até por ter mantido um relacionamento com a irmã (menor) do pai da BB, sendo mencionado como “padrasto” por aquela.
F) A menor tinha 14 anos de idade na data dos factos.
G) O arguido encetou o contacto sexual com a mesma e manteve-o mesmo depois daquela o afastar e tentar repelir a sua conduta, indicando, depois, que a menor deveria manter segredo.
H) A menor, desde pelo menos o ano de 2022, é acompanhada em psicologia, apresentando perturbação depressiva, com sintomas de desvalorização, diminuição da capacidade de pensar ou de concentração, pensamentos de morte e de agitação ou lentificação psicomotoras marcadas (...).
I) O arguido não revelou qualquer empatia pela vítima menor (cfr. Relatório elaborado pela DGRSP), mostrando aborrecimento com o processo crime, negando os factos em sede de julgamento.
J) O arguido tem um filho que é primo da menor BB e tem uma filha que é meia-irmã desta... e, mesmo assim, mostrou-se completamente indiferente ao sofrimento da mesma bem como revelou ausência de auto-control e insensibilidade à protecção face a esta menor com quem tem relações de afinidade.
K) A suspensão da execução da pena de prisão não cumpre as finalidades da prevenção geral, fortíssima face à (infeliz) regularidade com que este tipo de crime é praticado, em regra, e como é o caso, por agente próximo da vítima menor.
L) Dificilmente é compreendida a manutenção em liberdade de alguém tão próximo à família e à vítima menor nos autos.
M) Não basta a ausência de antecedentes criminais para chancelar a não aplicação de uma pena de prisão efetiva.
N) As circunstâncias que envolveram o cometimento do crime, bem como conduta posterior, revelando o arguido ser totalmente insensível ao sofrimento da menor (meia-irmã e prima dos seus filhos), negando totalmente a prática dos factos, encarando o processo como um aborrecimento, e a personalidade do agente, revelada no facto mas também nas condicionantes da sua vida; a sua manutenção de consumos alcoólicos, sendo tais consumos existentes na data da prática dos factos; a sua indiferença às consequências da prática do facto, não permitem concluir pela adequação e suficiência de uma suspensão da execução da pena de prisão.
O) Consideramos, assim, que a “simples censura e ameaça de prisão” sejam suficientes para assegurar as necessidades de prevenção geral e especial deste concreto arguido.
P) Pugna-se pela revogação da sentença, nesta parte, determinando-se a alteração do regime de execução da pena de prisão apicada de três anos, determinando-se o cumprimento efetivo da mesma.
*
Também o arguido interpôs recurso da decisão recorrida extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:
1-O ora Recorrente foi condenado na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de um crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravado.
2 - No humilde entender da Defesa, a prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com a prova documental junta, impunha a absolvição do arguido pela prática do crime de que vinha acusado.
3-O erro de julgamento sobre a matéria de facto ocorre quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que tenha sido feita prova em audiência de julgamento de que tal facto realmente ocorreu.
4- No caso vertente, e com o devido respeito por melhor opinião, da prova produzida em audiência de julgamento, da prova documental junta e das regras da experiência, deveriam ter sido dados como não provados os factos 10 a 24 da matéria de facto provada com a seguinte redacção: 1.No decurso de tais festejos o arguido ingeriu bebidas alcoólicas em quantidade não exactamente apurada, ficando a exalar um forte hálito a álcool. 2.Quando o arguido entrou, dirigiu-se para a sala e deitou-se, vestido com a roupa que trazia da rua, ao lado da vítima. 3.Quer a mãe da vítima, CC, quer o menor DD já dormiam, permanecendo acordada apenas a vítima. 4.Esta encontrava-se deitada sobre o seu lado direito, i.e., virada para o irmão DD, e o arguido deitou- se por detrás dela, na mesma posição, encostando o seu corpo ao da vítima (em conchinha). 5.De seguida, passou o braço por cima do corpo daquela, colocou a mão entre as suas calças e as cuecas e começou a acariciar a vulva da vítima, por cima da cueca, fazendo movimentos para cima e para baixo, durante cerca de três minutos. 6.Durante este lapso temporal a vítima tentou afastar o braço do arguido, mas este usou da força e manteve-o na mesma posição, continuando com a mão a acariciar a vulva da vítima com movimentos para cima e para baixo. 7.Exasperada, a vítima agarrou-se ao irmão DD, que entretanto acordara e estava a chorar, puxou-o para si e pô-lo entre as suas pernas, de forma a impedir que o arguido prosseguisse com a sua conduta. 8.Perante isto, o arguido, retirou a mão e o braço e segredou ao ouvido da vítima: “Não contes a ninguém, fica o nosso segredo”. 9.De seguida, o arguido levantou-se e foi-se deitar do lado da sua namorada e mãe da vítima, i.e., na extremidade oposta do sofá-cama. 10.Em consequência da conduta do arguido a vítima sentiu-se incomodada, sentindo-se mal com o seu próprio corpo, não conseguindo esquecer o que viveu e que guardou, só para si, durante cerca de dois anos, até que desabafou com uma professora da sua escola. 11.Ao agir da forma descrita, o arguido conhecia, a idade da vítima, filha da sua então companheira. 12.Com efeito, à data dos factos a vítima chamava o arguido de padrasto, e o arguido, chamava a vítima de enteada. 13.O arguido prevaleceu-se dessa posição de influência, autoridade e confiança que sabia deter sobre a vítima para concretizar os seus intentos. 14.O arguido bem sabia que, ao atuar desta forma, i.e., acariciando a vulva da vítima, punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual, o que fez para satisfazer os seus instintos libidinosos. 15.O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”
5- Para tanto deveria ter sido atendido o depoimento prestado em sede de audiência de discussão e julgamento de CC, com início às 12h03m e termo às 12h16m, gravado no sistema integrado de gravação digital em uso no Tribunal, entre o minuto 59:20 e 1 h 11:00
6- Disse a testemunha que era a mãe da BB e que naquela noite se recordava de o arguido ter chegado e se ter ido deitar ao seu lado. Esclareceu que no dia seguinte acordaram, tomaram o pequeno-almoço e que a BB apenas se foi embora por volta da hora do almoço. Mais esclareceu que a BB nunca demonstrou qualquer alteração de comportamento, que continuou a conviver com o arguido a quem sempre cumprimentou e falou.
7- A testemunha CC foi muito objectiva no seu depoimento e é a única que naquele dia, local e hora se encontrava presente, pelo que é a única testemunha directa dos factos.
8- As testemunhas EE e FF, não presenciaram quaisquer factos, apenas tendo relatado ao tribunal aquilo que lhes foi relatado pela BB.
9- Conforme consta do relatório de acompanhamento psicológico da BB, a ausência da figura paternal na sua vida, segundo a sua avó é "um tema muito sensível para a BB provocando-lhe muita angústia, crises de choro e ansiedade. "
10- Tais elementos probatórios impunham que o tribunal a quo, valorando o depoimento da testemunha CC, e conjugando-o com os documentos junto aos autos, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum concluísse que o arguido não praticou os factos descritos na acusação.
11- Bastou as declarações de uma menor contra um adulto para a prova ser valorada no sentido da condenação, não tendo sido minimamente assegurados os direitos constitucionais do arguido.
12- Em processo penal vigora a presunção de inocência. O princípio "in dúbio pro reo" é um princípio fundamental do nosso processo penal, que decorre da presunção constitucional de inocência. Em caso de dúvida o tribunal decide a favor do arguido absolvendo-o.
13-O tribunal alicerçou a sua decisão nas declarações da vítima BB, no entanto, não atendeu ao seu comportamento com o arguido, que continuou sempre com base numa boa relação com o mesmo.
14 - Motivo pelo qual é de considerar que o douto Tribunal a quo andou mal quando condenou o Recorrente.
Termina pugnando pela revogação da sentença recorrida e sua absolvição.
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Admitido o recurso do Ministério Público o arguido apresentou resposta de que extraiu as seguintes conclusões:
1-O ora Recorrente foi condenado na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de um crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravado.
2- No humilde entender da Defesa, a prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com a prova documental junta, impunha a absolvição do arguido pela prática do crime de que vinha acusado, tendo o arguido recorrido da douta sentença.
Sem conceder,
3- No entanto, veio igualmente o Ministério Público recorrer pugnando pela substituição da pena por uma pena de prisão efectiva.
4- No caso vertente, e com o devido respeito por melhor opinião, bem andou na douta sentença ao suspender na sua execução a pena de prisão a que o arguido foi condenado
5- à luz da legislação penal portuguesa e da jurisprudência consolidada, defende-se que, sempre que estejam verificados os pressupostos do artigo 50° do CP, deve o tribunal optar pela suspensão da execução da pena de prisão, por se tratar de uma medida adequada, suficiente e mais conforme ao fim das penas.
6- A privação da liberdade só se justifica quando nenhuma outra medida permita alcançar os objectivos da punição, respeitando assim o princípio da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana.
7-O artigo 40° consagra de forma inequívoca, a finalidade de prevenção especial positiva, numa lógica de contenção do poder punitivo. O recurso à prisão apenas se legitima quando todas as restantes medidas se revelarem inidóneas à prossecução dessas finalidades.
8- A jurisprudência tem reafirmado, de modo reiterado, a natureza excepcional da pena de prisão efectiva. A suspensão da pena permite acompanhar e condicionar o comportamento do condenado.
9- Estes arestos refletem a adesão jurisprudencial ao princípio da intervenção mínima e ao princípio da ultima ratio da pena de prisão, interpretando os artigos 40° e 50° do CP de forma harmoniosa e conforme com a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente com o artigo 1o (dignidade da pessoa humana) e artigo 18º (princípio da proporcionalidade).
10- A suspensão da pena traduz uma solução penalmente eficaz, socialmente adequada e economicamente racional, promovendo uma justiça restaurativa.
11- A aplicação da pena de prisão efectiva só se justifica em situações limite, onde a gravidade objectiva dos factos torne inexequível qualquer outra medida penal alternativa.
12- Qualquer outra solução constituiria violação dos princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação penal.
13- Motivo pelo qual é de considerar que o douto Tribunal a quo andou bem quando condenou o Recorrido na pena de prisão suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova.
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Admitido o recurso do arguido o Ministério Público do Tribunal recorrido apresentou a sua resposta extraindo da mesma as seguintes conclusões:
A) O presente recurso é interposto da sentença proferida em 20.02.2025 que condenou o arguido AA pela prática de um crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, p. e p. nos artigos 172°, n° 1 al. b) e 177°, n° 1 al. c), ambos do Código Penal, na pena de três anos de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período, sujeita a regime de prova.
B) Não conformado, o arguido veio invocar que deveria ter sido dada como não provada a matéria de facto de 9. a 24. com base na valoração da testemunha CC e com base na contradição da versão da vítima menor com a versão do arguido - de uma menor contra a de um adulto.
C)Estamos perante, como em muitos casos de crimes sexuais contra menores, entre apenas duas versões - do ofendido e da vítima, mas isso não pode ser o argumento para com isso invocar que há sempre dúvida e por isso, absolvição por “in dúbio pro reu”.
D) O Tribunal fundamentou, devida e exaustivamente, as razões pelas quais foram valorados os depoimentos prestados da vítima e consideradas não credíveis as declarações do arguido e da sua (ainda) namorada, CC, mãe da ofendida.
E) E quanto às declarações para memória futura prestadas pela ofendida/vítima, bastava-se pela sua audição para concordar em absoluto com a valoração do Tribunal: “caracterizaram-se pela simplicidade, honestidade, sinceridade, assertividade e coerência, proporcionando, ademais, um retrato detalhado - pormenorizado - do evento. Coonestando a fidedignidade das declarações repare-se que a vítima, quando chamada a narrar o acontecimento, em várias etapas do processo apresentou uma descrição praticamente idêntica e uniforme do sucedido. (...) A vítima, acrescente-se, jamais evidenciou o ensejo de inflar ou amplificar a conduta do arguido, prejudicando-o (...), afirmando (...) ele estava muito bêbado(sic)”.
F) E é com base em todo o acervo probatório (elementos documentais, periciais, depoimentos) que o Tribunal conclui que o depoimento da vítima “superou e derrubou a versão apresentada pelo arguido’, tendo o Tribunal explanado num parágrafo as contradições entre as versões (os pontos concretos em que as versões eram díspares ou opostas), pelo que igualmente não se verifica qualquer insuficiência ou ausência de fundamentação desta valoração.
G) Nada temos a apontar à (menor) valoração das declarações da testemunha CC com a qual concordamos em absoluto! (vide - “afastamento, desinteresse e mesmo uma certa frieza - para não dizer hostilidade - relativamente à filha (...) utilizando a mesma terminologia quase idêntica” à do arguido. (...) crença da testemunha na inocência do arguido - veja-se a reação
extremamente dura no tocante ao corte de relações com a filha (…).
H) Deverá. ASSIM, ser mantida a decisão proferida quanto à matéria de facto dada como provada e consequente condenação, pugnando-se, conforme nosso recurso, pela execução efetiva da pena de prisão aplicada.
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Remetido o recurso a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora Geral-Adjunta emitiu parecer aderindo ao recurso e resposta do Ministério Público do tribunal recorrido e nada mais aduzindo pelo que não houve nem tinha de haver lugar ao disposto no artigo 417º nº2 do CPP.
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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Nada obsta ao conhecimento do mérito dos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo arguido cumprindo, assim, apreciar e decidir.
2-FUNDAMENTAÇÃO:
2.1- DO OBJETO DOS RECURSOS:
É consabido, em face do preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º nº 1 todos do Código de Processo Penal, que o objeto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, devendo, assim, a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por serem obstativas da apreciação do seu mérito, nomeadamente, nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase e previstas no Código de Processo Penal, vícios previstos nos artigos 379º e 410º nº2 ambos do referido diploma legal e mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.1
Destarte e com a ressalva das questões adjetivas referidas são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar2.
A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva3, “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Assim à luz do que o recorrente Ministério Público invoca no seu recurso delimitado pelas conclusões a questão a dirimir é se deve a pena de prisão aplicada ao arguido ser de prisão efetiva.
No que respeita ao recorrente arguido as questões são:
- se a sentença recorrida padece de erro de julgamento quanto aos factos provados 9 a 24.
- se a sentença recorrida violou o princípio do in dubio pro reo.
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2.2- DA APRECIAÇÃO DO MÉRITO DOS RECURSOS:
Exara a sentença recorrida, na parte que releva para a apreciação dos recursos interpostos, o que a seguir se transcreve:
1. FACTOS PROVADOS
1.1 Da acusação
A vítima, BB, nasceu a ... de ... de 2006, e é filha de GG e de CC.
O arguido AA nasceu a ... de ... de 1988 e, à data dos factos seguidamente narrados, era namorado da mãe da vítima.
Da relação entre o arguido e a mãe da vítima viria a nascer a menor HH, irmã uterina da vítima.
O namoro entre o arguido e CC terminou em ... de 2022.
Sucede que a vítima foi comemorar a passagem do ano de 2020 para o de 2021 com a sua mãe, então grávida da irmã HH, o seu irmão (consanguíneo) DD, de cinco anos de idade, e com o arguido a casa de familiares deste, sita em ....
No dia ... de ... de 2021, depois de todos festejarem na rua a passagem do ano, pouco depois da meia-noite a vítima, a sua mãe e o irmão DD, recolheram-se na dita casa, ficando os três a dormir na sala, num sofá-cama.
A mãe da vítima ficou deitada numa das extremidades do sofá, a vítima na outra extremidade e o irmão DD entre as duas.
A vítima deitou-se com a roupa que trazia da rua, designadamente umas leggings (calças justas ou coleantes de tecido ou malha elásticos) e uma camisola.
Enquanto isso, o arguido permaneceu na rua para continuar a festejar com amigos e só entrou em casa pelas 02h00.
No decurso de tais festejos o arguido ingeriu bebidas alcoólicas em quantidade não exatamente apurada, ficando a exalar um forte hálito a álcool.
Quando o arguido entrou, dirigiu-se para a sala e deitou-se, vestido com a roupa que trazia da rua, ao lado da vítima.
Quer a mãe da vítima, CC, quer o menor DD já dormiam, permanecendo acordada apenas a vítima.
Esta encontrava-se deitada sobre o seu lado direito, i.e., virada para o irmão DD, e o arguido deitou-se por detrás dela, na mesma posição, encostando o seu corpo ao da vítima (em conchinha).
De seguida, passou o braço por cima do corpo daquela, colocou a mão entre as suas calças e as cuecas e começou a acariciar a vulva da vítima, por cima das cuecas, fazendo movimentos para cima e para baixo durante aproximadamente de três minutos.
Durante este lapso temporal a vítima tentou afastar o braço do arguido, mas este usou da força e manteve-o na mesma posição, continuando com a mão a acariciar a vulva da vítima com movimentos para cima e para baixo.
Exasperada, a vítima agarrou-se ao irmão DD que, entretanto, acordara e estava a chorar, puxou-o para si e pô-lo entre as suas pernas, de forma a impedir que o arguido prosseguisse com a sua conduta.
Perante isto, o arguido retirou a mão e o braço e segredou ao ouvido da vítima: “Não contes a ninguém, fica o nosso segredo”.
De seguida, o arguido levantou-se e foi-se deitar ao lado da sua namorada e mãe da vítima, i.e, na extremidade oposta do sofá-cama.
Em consequência da conduta do arguido a vítima sentiu-se incomodada, sentindo-se mal com o seu próprio corpo, não conseguindo esquecer o que viveu e que guardou, só para si, durante cerca de dois anos, até que desabafou com uma professora da sua escola.
Ao agir da forma descrita, o arguido conhecia a idade da vítima, filha da sua então companheira.
Com efeito, à data dos factos a vítima chamava o arguido de padrasto, e o arguido, chamava a vítima de enteada.
O arguido prevaleceu-se dessa posição de influência, autoridade e confiança que sabia deter sobre a vítima para concretizar os seus intentos.
O arguido bem sabia que, ao atuar desta forma, i.e., acariciando a vulva da vítima, punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual, o que fez para satisfazer os seus instintos libidinosos.
O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
1.2 Da instrução e discussão da causa
O arguido não tem antecedentes criminais registados.
Em relatório de acompanhamento psicológico da vítima, datado de .../.../2022 e da autoria da sua psicóloga assistente, exarou-se:
A BB é acompanhada, semanalmente, em psicologia por apresentar indicadores de uma Perturbação Depressiva com Outra Especificação, designada por depressão breve recorrente, uma vez presente um humor deprimido e sintomas de depressão, tais como sentimentos de desvalorização, diminuição da capacidade de pensar ou de concentração, pensamentos de morte e de agitação ou lentificação psicomotoras marcadas, durante 2-13 dias pelo menos uma vez por mês, de carácter permanente, segundo os critérios de diagnóstico do DSM-V.
DADOS DO ACOMPANHAMENTO E INTERVENÇÃO
O acompanhamento psicológico iniciou-se no presente ano letivo, no mês de ..., ao qual a BB compareceu de forma assídua e pontual. Em virtude de se ter começado a terapia relativamente há pouco tempo, priorizou-se o estabelecimento e fortalecimento de uma relação terapêutica securizante e de confiança, de modo a que a jovem se sentisse confortável e acolhida para expor as suas vivências, conflitos internos e angústias.
Diante a dinâmica relacional e terapêutica, a BB apresenta ainda algumas reservas, sentindo a necessidade de estar em atividade, quer de forma individual mediante estímulos sensoriais ou em díade através de um jogo lúdico, descomprimindo e retirando a carga emocional da partilha de algumas das suas vivências.
Também, como defesa à sua integridade psíquica, e antecipando uma possível deceção, a jovem adota muitas vezes uma atitude de denegação face à relação de proximidade com a técnica, reflexo de uma projeção da sua angústia de perda do objeto.
Por último, a BB apresenta-se como uma jovem simpática e educada, com sentido do humor. A sua forma de estar oscila, por vezes, numa atitude baseada no exagero e excitação, contrabalançada entre uma revalorização de si ou depreciação.
CONCLUSÕES
Tomando em consideração o supramencionado, considera-se pertinente que a BB continue a beneficiar do acompanhamento psicológico, no próximo ano letivo, visando um crescente fortalecimento emocional e crescimento pessoal, minimizando a sua marcante angústia de perda do objeto através da relação terapêutica com o clínico.
Em relatório de avaliação psicológica elaborado a .../.../2022 pela mesma profissional fez- se constar:
MOTIVO DE AVALIAÇÃO
A BB foi sinalizada para avaliação psicológica pelo corpo docente da escola, por se apresentar emocionalmente frágil. A avó acrescentou, em anamnese, que em 2017 a BB fora acompanhada em psicologia devido a limitações ao nível cognitivo e emocional, nomeadamente baixa autoestima e ansiedade, a par de dificuldades em-verbalizar os seus afetos e angústias.
PROCEDIMENTOS
•Entrevista clínica com a avó
•Dados observados na avaliação
•Matrizes Progressivas de Raven (SPM) - Escala Geral
•WISCIII — Escala de Inteligência de Wechsler para crianças
•TAT-Thematic Apperception Test DADOS RELEVANTES DA ENTREVISTA CLÍNICA COM A II
De acordo com os dados fornecidos pela avó em anamnese, a gestação da BB e as aquisições ao nível do desenvolvimento decorreram dentro da normalidade
Desde os 2 anos de idade, após separação dos pais, a BB encontra-se ao cuidado dos avós paternos. Foi mantendo até ao presente, uma relação com a mãe, ainda que o contacto nem sempre se mostre muito regular e o pai revela-se praticamente inexistente, não o vendo há sensivelmente 5 anos, estando este a residir noutro país. Todavia, a relação entre pai e filha nem sempre fora assim, sendo por isso, de acordo com a avó, um tema muito sensível para BB, provocando-lhe muita angústia, crises de choro e ansiedade.
Socialmente, exibe um comportamento normativo e adaptativo tanto com os adultos como com o grupo de pares, envolvendo-se em atividades extracurriculares com facilidade. Porém, as suas amizades são pouco constantes e estáveis.
Emocionalmente, a BB é descrita pela avó como uma jovem muito influenciável e emocionalmente frágil, tendo passado por vários episódios de ataques de pânico, resultando em urgências hospitalares e, por conseguinte, encontra-se a ser acompanhada em consultas de adolescência no .... A avó acrescenta, ainda, que a neta se isola muito no quarto a ouvir músicas de cariz melancólico e já escreveu textos alusivos a suicídio. RESULTADOS OBTIDOS
► Dados observados na avaliação
Ao longo do processo avaliativo, a BB apresentou-se com uma conduta simpática e educada, comparecendo em todas as sessões marcadas, manifestando predisposição para se encontrar nas mesmas. Todavia, em momentos de passagem de provas psicológicas, a BB revela maior aborrecimento e desinteresse comparativamente aos momentos de conversação entre a díade.
Na primeira sessão de avaliação, a BB abordou de imediato algumas das suas angústias, confrontando-se com o seu vivido emocional. Tendo sido notório que a BB precisava de fazer uma descarga verbal e emocional naquele espaço, que ela prontamente identificou como securizante e contentor. No entanto, nas seguintes sessões, já não foram tão marcantes os indicativos ansiosos e de humor deprimido, mas um discurso impulsivo e por vezes acelerado.
►Matrizes Progressivas de Raven (SPM) - Escala
No que concerne às aptidões gerais de inteligência, os resultados de BB revelaram um percentil inferior a 5, quando comparado com população da mesma faixa etária, revelando uma capacidade intelectual muito inferior, ao nível da inteligência geral e do raciocínio lógico-dedutivo.
►Escala de inteligência de Weschsler para crianças (WISC-111)
Procedeu-se à aplicação da escala de inteligência de Wechsler para crianças,
WISC-III, no sentido de avaliar o nível de desenvolvimento cognitivo da BB, obtendo, igualmente, resultados diferenciados ao nível das várias competências cognitivas. Os resultados da BB revelam um Quociente de Inteligência Total (QJ.) representativo de um desempenho Médio Inferior para a sua faixa etária, caracterizado por resultados heterogéneos nas provas de cariz verbal e manipulativo, verificando-se um QJ. Verbal Inferior e um QJ. de Realização Médio para a sua faixa etária. Também, ao nível dos índices Fatoriais se registaram resultados bastante heterogéneos, tendo a BB obtido um desempenho Inferior no índice de Compreensão Verbal e um desempenho Médio e Médio Superior nos índices de Organização Percetiva e de Velocidade de Processamento, respetivamente.
Os presentes resultados refletem dificuldades especificamente acentuadas ao nível das capacidades intelectuais cristalizadas, particularmente influenciadas pelo contexto sociocultural, pelo que a BB revelou resultados inferiores à média em todas as subescalas verbais, com mais de 3 desvios padrão abaixo da mesma excetuando a subescala Semelhanças que se apresenta ligeiramente inferior à média. Contrariamente, as suas capacidades intelectuais fluidas revelam-se dentro dos valores normativos, não sendo influenciadas pelo contexto de uma forma tão direta, uma vez que dependem sobretudo do raciocínio lógico-dedutivo. Realça- se, porém, que a BB revelou um desempenho abaixo da média nas Gravuras e Disposição de Gravuras, o que qualitativamente nos pode indicar dificuldades na compreensão de situações sociais.
►TAT-Thematic Apperception Test
O TAT é uma prova projetiva com imagens figurativas, que procura recolher informações sobre a personalidade, ao mobilizar um conjunto de mecanismos mentais.
No geral, a BB acede aos conflitos implícitos pelo conteúdo latente apresentado nos cartões TAT, resolvendo os mesmos, maioritariamente, mediante uma solução do tipo auto-punitiva. Paralelamente, as suas narrativas desenvolvem-se sob temáticas de cariz negativo e, por vezes, marcadas por representações massivas, bem como os afetos por ela explícitos, caracterizados por zanga, raiva, decepção e sentimentos de abandono, mágoa e tristeza. Também, as relações desenvolvidas nas narrativas apresentam-se como pouco confiáveis, conflituosas e pouco satisfatórias, projetando dificuldades ao nível da esfera social.
Face à apresentação dos cartões, como defesa à sua integridade psíquica, observou-se como mecanismos de defesa o recurso a uma marcante dramatização e descrição ao detalhe, porém com o desenvolvimento da narrativa e ao surgir uma certa desorganização no discurso e abordagem a temas de cariz negativo, a BB, por vezes, ao ter essa consciência tenta minimizar o impacto do enredo criado.
Salvaguarda-se, ainda, que apesar de ser projetado ao longo de toda a prova uma visão negativa do mundo, a BB mantém em si o vislumbre de uma idealização de um futuro melhor, de encontrar um caminho mais satisfatório para si, ainda que não deposite grande esperança no mesmo.
CONCLUSÕES
Através da análise dos dados recolhidos na avaliação psicológica é possível constatar, que a BB cognitivamente apresenta limitações acentuadas ao nível da componente Verbal, revelando um vocabulário reduzido, expressão verbal e informativa insuficiente e dificuldades ao nível da compreensão. Por sua vez, estas dificuldades acabam por se relacionar com os resultados das duas provas de Realização (Completamento de Gravuras e Disposição de Gravuras) em que a BB apresentou um desempenho inferior à média, revelando assim, algumas limitações ao nível do entendimento que faz das situações sociais e do seu quotidiano, em que têm por base a comunicação e a compreensão verbal, por sua vez deficitárias.
O conhecimento que obtém do meio, a forma como encara o mesmo, e considerando a sua baixa autoestima, é originado na BB um estado emocional ansioso, caracterizado por tensão, agitação e quando emocionalmente mais fragilizada, surtem episódios de ataques de pânico. Concomitantemente, o quadro clínico da BB pressupõe indicadores de uma Perturbação Depressiva com Outra Especificação, designada por depressão breve recorrente, uma vez presente simultaneamente um humor deprimido e sintomas de depressão, tais como sentimentos de desvalorização, diminuição da capacidade de pensar ou de concentração, pensamentos de morte e agitação ou lentificação psicomotoras marcadas, durante 2-13 dias pelo menos 1 vez por mês, de caráter permanente, segundo os critérios de diagnóstico do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-V). Salvaguarda-se, que um dos desencadeadores do estado depressivo e ansioso da BB recai sobre a angústia abandónica face às figuras parentais, e das relações sociais pouco estáveis e sustentadas que a jovem desenvolve, a par de uma inteligência emocional diminuída.
Em relatório de acompanhamento psicológico de ... de 2023, sempre da sua psicóloga assistente e sobre a justificação da necessidade de apoio, pode ler-se
A BB apresenta Perturbação Depressiva, com Outra Especificação, designada por depressão breve recorrente, que se caracteriza pela constância e consistência dos sintomas por período prolongado (superior a 6 meses) e que influenciam o funcionamento adaptativo. A depressão afeta pensamentos, sentimentos, comportamentos e perceções, provocando ideação suicida, vontade de desistir de forma constante e dominante. O acompanhamento psicológico é determinante para elaboração prognóstica, sendo essencial ser regular, constante e duradouro.
ALTERAÇÕES ESPECÍFICAS DA FUNCIONALIDADE
Apresenta um humor deprimido e sintomas de depressão, tais como sentimentos de desvalorização, diminuição da capacidade de pensar ou de concentração, pensamentos de morte e de agitação ou lentificação psicomotoras marcadas, durante 2-13 dias pelo menos uma vez por mês, de carácter permanente, segundo os critérios de diagnóstico do DSM-V.
HISTÓRICO DE TRATAMENTOS
A BB iniciou o acompanhamento psicológico em 2022, mantendo-se até ao presente. Como objetivos terapêuticos, visa-se um progressivo fortalecimento emocional e crescimento pessoal, de modo a minimizar as suas angústias e conflitos internos, assim como potenciar um reconhecimento e aceitação de vivências e sentimentos associados às mesmas. Desta forma, é-lhe proporcionado um espaço e uma relação segura e de confiança, para que a BB se sinta confortável a expor-se emocionalmente e a partilhar temáticas de índole pessoal. No entanto, apesar de aderir à dinâmica relacional, revela, ainda, algumas resistências em aprofundar os assuntos que traz para a sessão. Observando-se, o recurso ao jogo como um facilitador da comunicação, retirando carga emocional às partilhas que faz, mas também como uma fuga às mesmas, de modo a não existir um aprofundamento e a própria conseguir ter esse controlo, não se envolvendo na totalidade.
HISTÓRICO DE MELHORIAS
Como fatores positivos à terapia e consequentes objetivos, ressalva-se o comprometimento que a BB revela face à mesma, apresentando uma assiduidade e pontualidade eximia. Todavia, apesar de haver uma intenção em envolver-se na dinâmica relacional e em estabelecer uma relação de proximidade com a Psicóloga, a BB tem ainda muito presente a angústia de perda de objeto, culminando numa atitude de denegação a esta proximidade, como defesa a uma possível deceção. Desta forma, continua a ser necessário fortalecer a relação terapêutica, tornando-se progressivamente mais segura para ela. CARACTERIZAÇÃO DO APOIO
A BB beneficia de acompanhamento em psicologia semanalmente, a título individual e presencial, em contexto escolar. A fim de, se potenciar uma estimulação da capacidade de controlo emocional e funcional, com intenção de conservar estados de maior tranquilidade e acalmia, reflexão positiva e adequação emocional e comportamental, diminuindo assim os sentimentos depressivos.
Ainda da autoria da sua psicóloga assistente exara-se em relatório de .../.../2023:
Para os devidos efeitos, e por me ser solicitado para fins de processo-crime, levanta-se, presentemente, o sigilo profissional. Neste âmbito, a titular das responsabilidades parentais da menor foi informada, tendo sido solicitada autorização para divulgar informação nos termos previstos no Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses (pontos 2.7 e 2.14)
Declara-se, que BB, encontra-se em acompanhamento psicológico desde ... de 2022, até ao presente.
À data de ... de ... de 2022, a BB apresentou-se, em sessão e acompanhada pela Técnica do Gabinete de Apoio à Família (de seu nome JJ). A Técnica questionou a BB se a criança pretendia explicar o que havia acontecido ou se preferia que a Técnica começasse por abordar o assunto e depois se ausentasse para que a BB continuasse individualmente com a Psicóloga. A jovem consentiu que a Técnica abordasse o assunto, tendo-me sido dito que a BB, após uma aula com a Diretora de turma, revelou à mesma, que há dois anos, na noite da passagem de ano, sofreu um abuso por parte do padrasto, tendo este tocado nas suas partes íntimas. E desta forma escola comunicou às autoridades o sucedido, e que, nesse mesmo dia, a Polícia Segura esteve no recinto escolar e falado com a jovem.
Seguidamente, a Técnica ausentou-se. BB continuou em silêncio, e só descreve o que aconteceu após ter sido questionada. Assim, a BB relatou que na passagem de ano, em que a mãe estava grávida da irmã mais nova, o padrasto havia saído e, quando regressou a casa, vinha embriagado. Aquando a chegada dele refere que estava no sofá com o irmão, que se encontrava a dormir, aproximou-se dela e começou a tocar-lhe na vagina, entre a roupa, dizendo ao ouvido que era um segredo dos dois. O irmão, a dada altura, começou a chorar, pegou nele, que estava ao seu lado deitado, e colocou o entre as suas pernas tendo o padrasto findado o abuso. Durante o abuso, BB referiu que a mãe se encontrava em casa a dormir.
A justificação que a BB mencionou para não ter contado a ninguém prendeu-se por medo e receio de que a mãe não acreditasse nela.
Emocionalmente, ao longo do seu relato, a BB manifestou uma certa apatia e desconforto em descrever o episódio. Convém, ainda, referir que não chorou mostrando desconforto emocional face ao que viveu naquela noite.
Por último, é do seguinte teor o relatório do exame pericial psicológico elaborado pelo
INMLCF (.../.../2023):
O presente relatório baseia-se no estudo e análise integrada dos seguintes documentos, métodos e técnicas:
2.1. Pesquisa Documental: partes do Processo de Inquérito n.°283/22. SPQLSB que corre termos no DIAP Regional de Lisboa - 2a Secção - Lisboa, remetidas a este Instituto para efeitos de consulta e, relatório de acompanhamento psicológico, datado de .../.../2022 (documento disponibilizado pela avó paterna da jovem);
2.2. Observação clínica;
2.3. Entrevistas clínico-forenses;
2.4. Avaliação instrumental: Matrizes Progressivas de Raven - forma geral, Mini-Mult (versão reduzida do MMPI), SCL 90-R (escala de auto-avaliação de sintomas de desajustamento emocional), SDQ, - Strengths and Diffculties Questionnaire (versão cuidadores e versão jovem) e PCL-C (Post-Traumatic Stress Disorder Checklist - versão civis).
2.5. Informação Colateral: Entrevista com a avó paterna da jovem.
[...]
4.1.Observação Clínica
BB mantém uma interação adequada com a perita colaborando com empenho e interesse na execução de todas atividades propostas, apesar de admitir ter respondido a alguns itens do instrumento de avaliação de personalidade de forma aleatória. O contacto é adequado embora com alguma inibição quando se abordam, em contexto de entrevista, os factos que determinaram a instauração do processo em curso. O seu discurso fica aquém do esperado para o grupo etário, do ponto de vista da riqueza do vocabulário e da articulação de ideias. Aborda de forma tranquila a vida escolar, relações com pares e atividades de lazer.
Apresenta-se orientada no tempo e no espaço e demonstra estar adaptada à realidade. Evidencia capacidade simbólica. Não se observam alterações ao nível do pensamento, do humor, da atenção e concentração. A memória a curto e a longo prazo está mantida. Não apresenta alterações no comportamento psicomotor, com motricidade geral e fina harmoniosas.
4.2.Entrevista à jovem
Solicitada a pronunciar-se sobre os factos que estiveram na origem do processo em curso refere “(...) há 2 anos atrás, no Ano Novo ... fui passar a casa do meu tio com a minha mãe e o meu irmão, a minha mãe estava grávida da minha irmã ... fui a casa do meu tio, o pai do meu primo, o AA namorou alguns anos 12 anos com a minha tia, irmã do meu pai, a tia KK (...) fomos para a rua à meia-noite ... eu e o meu irmão estávamos a brincar um bocado na rua e ele, o AA, foi para a rua beber com os amigos ... voltou para casa todo bêbado (...) ele vive com a mãe também estava, no quarto dela (...) deitou-se ao lado de mim no sofá, na sala e meteu a mão entre as minhas calças e as minhas cuecas... depois o meu irmão acordou ... o meu irmão levantou-se e deitou-se no meio das minhas pernas o AA levantou-se e foi para ao pé da minha mãe para o sofá-cama na sala e dormiu com ela a noite toda ... foi para a outra ponta do sofá, só havia um sofá na sala”(sic).
No que concerne à revelação dos factos descritos relata que “(....) falei há um mês atrás à DT ... na sala estávamos a falar sobre tráfico humano e aquilo veio- me à cabeça ... desabafei com a minha DT (...) nunca mais voltei a ver ... os meus avós ficaram em choque e a minha mãe ficou sem acreditar e mesmo assim continua-se a dar com ele ... ela costuma estar lá em casa dele ... ele é o pai da minha irmã HH que nasceu no dia ... de ... de 2020 ou 2021 (...) a minha mãe vive com a avó da parte da mãe mas passa os fins de semana na casa dele” (sic).
Questionada sobre eventuais ameaças ou recompensas por parte do alegado agressor, nega a sua existência afirmando “(...) ele estava muito bêbado”(sic).
Questionada sobre a situação familiar relata que vive com os avós paternos desde os 2 anos “(...) a minha mãe e o meu pai não tinham condições para ficar comigo e deram-me aos avós (...) vivo com a minha avó que tem 61 anos e trabalha nas limpezas na GNR e com o meu avô com 62 anos, que está reformado porque tem problemas de coração ... mora também o LL, com 11 meses, filho de outro senhor e o MM com 14 anos, filho do AA e a tia com 28 anos, desempregada (...) o LL e o MM são filhos da tia, irmã do pai, que namorava com o AA”(sic).
No que concerne ao percurso escolar relata ter concluído o 9º ano “( ... ) estou à espera dos resultados do exame para saber se passo, para ir para o curso de restauração e pastelaria” (sic).
Informa beneficiar de (…) apoio da psicóloga na escola, desde o 7º ano por causa do meu pai... há 7 anos o meu avô trabalhava fora, no ... e o meu pai estava com ele eu e a minha avó fomos lá viver 2 anos mas não nos habituámos muito bem lá ... eu estava no 3° ano...voltámos para Lisboa e o meu pai fez denúncia à polícia que não tinha condições e recebia maus tratos por parte dos meus avós... ficava a martelar na minha cabeça ... comecei com apoio ao estudo no 5º ano, nunca chumbei... perdi 2 anos quando fui para o ...”(sic).
Identifica como atividades preferidas gosto de jogar à bola, faço teatro, dança, ando de bicicleta... passo tempo numa associação, a associação nacional de futebol de rua ... quando veem que não estou bem vão comigo para um gabinete e falam comigo ... tenho amigos na associação” (sic).
Indagada sobre relações de namoro refere “(...) não tenho namorado agora... tive um namorado há 3 meses, namoramos 4 meses mas não nos estávamos a entender ... ele desconfiava de mim ... conheci-a por uma amiga minha que andava com ele ... eles acabaram e ela apresentou-me a ele” (sic).
No que concerne aos contactos com a mãe refere "(...) já não estou com ela há algum tempo ... não posso estar perto do pai da minha irmã (...) o meu pai vive no ..., há 7 anos que não falo com ele" (sic).
5.1. Avaliação Cognitiva
- Matrizes Progressivas de Raven (forma geral)
Os testes das Matrizes Progressivas de Raven foram desenvolvidos para avaliar de maneira simples, rápida e não ambígua, as capacidades edutiva e dedutiva, componentes da Inteligência Geral. A forma geral do instrumento permite determinar a capacidade do indivíduo, no momento do teste, apreender figuras sem significado que se submetem à sua observação e descobrir as relações que existem entre elas, imaginar a natureza da figura que completaria o sistema de relações implícito e, ao fazê-lo, desenvolver um método sistemático de raciocínio. A prova foi expressamente concebida para reduzir a dependência do item no conhecimento adquirido, no conteúdo cultural e escolar durante a obtenção em processos básicos de capacidade intelectual. O grau de dificuldade do teste é progressivamente crescente, quer das próprias séries, quer dos itens que as constituem. Esta dificuldade deve-se, não à complexidade das figuras, mas sim à complexidade progressiva das relações entre as figuras.
O resultado obtido pela examinanda, que se enquadra no percentil 10 e 25, permite classificá-la no nível inferior ao esperado para o grupo etário no que concerne à capacidade intelectual (grau IV).
5.2. Avaliação da Personalidade e de Psicopatologia - Mini-Mult (versão reduzida do MMPI)
O Mini-Mult é um questionário de 71 itens e corresponde a uma versão reduzida do Inventário Multifásico e Personalidade de Minnesota (MMPI). Trata-se de um instrumento que permite a avaliação das principais características da personalidade através de 8 escalas clínicas que representam traços de personalidade e permitem a deteção de psicopatologia. A prova é ainda constituída por 3 escalas de validade (L, F, K) que pretendem avaliar a competência dos indivíduos para responder às perguntas e determinar a sua atitude perante a prova, permitindo interpretar a eventual existência de distorções e defensividade. As escalas clínicas, por outro lado, visam a avaliação dos seguintes traços de personalidade: hipocondria, depressão, histeria, psicopatia, paranoia, psicastenia, esquizofrenia e hipomania.
Através da análise do perfil obtido através do Mini-Mult, mais especificamente das escalas de validade (escala L, com T<60, escala F, com T<70 e escala K, com T<60) e de acordo com as hipóteses de Vincent, constata-se que se trata de um perfil válido típico de indivíduos que apresentam uma atitude honesta durante a realização da prova.
A diferença entre as notas brutas F e K ou índice de dissimulação de Gough (no valor de - 1) remete para uma atitude honesta nas respostas.
A análise das pontuações obtidas nas escalas clínicas permite constatar que todas as escalas se encontram dentro dos valores normativos, pelo que não se identificam alterações significativas nas dimensões avaliadas pelo instrumento.
Apresenta um sistema de defesas psíquicas eficaz na gestão da ansiedade
(AI=34), com dificuldades de internalização (QI=0,82).
- Escala de auto-avaliação de sintomas de desajustamento emocional (SCL - 90-R)
A SCL 90-R é um inventário multidimensional, composto por 90 itens, pontuados através do método de Likert, para a auto-avaliação de sintomas de paranoide e psicoticismo) e em três índices globais (índice de Severidade Global, Total de Sintomas Positivos e índice de Perturbação de Sintomas Positivos). As desajustamento emocional. Avalia a psicopatologia em termos de nove dimensões primárias de sintomas (somatização, obsessão/compulsão, sensibilidade interpessoal, depressão, ansiedade, hostilidade, ansiedade fóbica, ideação pontuações obtidas nos 3 índices globais foram os seguintes: ISG=0,67; TSP=48; IPSP=1,27. No que concerne ao índice de Severidade Global (ISG=0,67), sendo o ponto de corte para a população portuguesa 1,23, conclui-se que a examinanda não apresenta sintomas de desajustamento emocional.
A análise global dos resultados remete para a inexistência de dificuldades. Não se observa tendência para minimizar ou exacerbar sinais de desajustamento emocional. As pontuações alcançadas nas escalas clínicas permitem concluir que BB não apresenta sintomatologia psiquiátrica.
-Questionário de Capacidades e de Dificuldades (SDQ)
O SDQ_é um questionário de fácil preenchimento que oferece informação sobre o comportamento de crianças e jovens nos seus ambientes de vida mais importantes - na escola e na sua casa faz a triagem, de forma breve, para perturbações de externalização e internalização e aborda o seu impacto e sobrecarga nos pais. Este questionário é constituído por 25 itens, refere-se aos acontecimentos dos últimos seis meses e gera cinco subescalas: (1) sintomas emocionais, (2) problemas de comportamento, (3) hiperatividade, (4) problemas de relacionamento com os colegas e (5) comportamento pró-social. Faculta ainda uma pontuação total de dificuldades.
Os resultados podem ser interpretados como normais, limítrofes e anormais, tendo por base valores estandardizados. Foi utilizada a versão para cuidadores, preenchida pela avó paterna de BB e a versão para jovens, preenchida pela examinanda.
Os resultados obtidos no questionário SDQ preenchido pela avó paterna da examinanda permitem concluir que para o total das dificuldades integra a categoria anormal (24 pontos). As pontuações obtidas são anormais em toda as escalas: sintomas emocionais (8 pontos), problemas de comportamento (4 pontos), hiperatividade (7 pontos), problemas de relacionamento com os colegas (5 pontos) e, comportamento pró-social (6 pontos).
A análise dos resultados obtidos no questionário SDQ_preenchido pela examinanda permitem concluir que para o total das dificuldades integra a categoria normal (13 pontos). As pontuações obtidas são normais nas escalas: problemas de comportamento (0 pontos), comportamento pró-social (9 pontos), problemas de relacionamento com os colegas (2 pontos) e, hiperatividade (3 pontos). Na escala sintomas emocionais (8 pontos) o resultado é anormal.
-Post-Traumatic Stress Disorder Checklist - versão civis (PCL-C)
A PTSD Checklist (PCL) é um instrumento de auto relato desenvolvido para avaliar a Perturbação Pós-Stresse Traumático (PTSD) sendo útil na identificação da severidade dos sintomas e no diagnóstico. Permite avaliar os 17 sintomas fundamentais para o diagnóstico de PTSD, segundo o DSM-IV-TR e é composto por frases relacionadas com a vivência de experiências stressantes do passado e com as reações a um acontecimento específico. A resposta aos 17 itens é dada numa escala de Likert de 5 pontos (sendo pedido ao indivíduo para assinalar em que medida apresentou os sintomas descritos no último mês). A cotação do instrumento permite obter a pontuação total de severidade dos sintomas e estabelecer se o indivíduo apresenta os critérios de diagnósticos definidos no DSM-IV-TR.
No caso da examinanda foi solicitado que preenchesse o instrumento considerando as experiências identificadas pela própria “foi na noite de ano novo, ele chegou a casa bêbado e começou a mexer nas minhas calças e cuecas”. A pontuação total obtida é de 27, havendo 3 itens sintomáticos e 14 não sintomáticos.
Atribui uma classificação moderada (3) aos seguintes itens: “Evitar pensar ou falar sobre o acontecimento vivido ou evitar ter sentimentos relacionados com ele”, “Evitar atividades ou situações que possam lembrar-lhe o acontecimento” e “Sentir-se distante e alheada dos outros”.
Estes resultados indicam que BB não apresenta sintomatologia compatível com o diagnóstico de Perturbação Pós- stresse Traumático, de acordo com a definição do DSM-IV-TR (ponto de corte superior a 30, de acordo com o estudo de Walker, Newman, Dobie, Ciechanowski, ôcKaton, 2002).
6.1. Entrevista à avó paterna da jovem
Questionada sobre o percurso de desenvolvimento da examinanda relata “(...) tem bom desenvolvimento ... tem apoio desde os 8 ou 9 anos, era hiperativa, tomou ritalina ... foi seguida no ... ... depois fomos para o ..., integrou-se bem na escola, aprendeu a língua ... eu não aprendi nada ... depois regressei, o meu marido não tinha contrato de trabalho ... o meu filho não queria que a BB viesse connosco ... recebia € 1500 pela BB (...) a BB vive connosco desde os 2 anos (...) a mãe da BB gosta muito de barracas ... barricou-se com a miúda na esquadra de ... e depois foram ao Tribunal e a BB foi entregue pelo Tribunal no dia ... de ... de 2011 (...) quando veio para o pé mim não usava fralda nem chucha e depois começou a fazer xixi e cocó nas cuecas ... não sei se foi da mudança... depois deixou as cuequinhas” (sic).
Sobre os factos que deram origem ao processo judicial em curso refere “(...) sei que ela no dia ... sou chamada à escola, não... ela chegou a casa e na casa de banho estava muito chorosa, disse: - Não sabia a vossa reação e por isso não contei (...) contou que o tio meteu as mãos entre as calças e as cuecas ... contou primeiro à DT dela a DT chamou-me à escola e disse que tinha que chamar a polícia, tinha que comunicar à polícia, disse que primeiro tinha que comunicar ao meu marido ... liguei para ele e ele já estava no corredor da escola, esse rapaz tem um filho da minha filha, é a minha filha não é a mãe da BB ... o MM eles estiveram juntos 12 anos ... ela voltou para minha casa, a BB há 5 anos fez a comunhão e quis convidar o tio ... meu marido viu que havia muita confiança entre o AA e a mãe da BB ... ela gostava dele como um tio e não achou bem ela estar grávida dele” (sic).
Prossegue o relato sobre a neta “(...) o meu marido encontrou um caderno, falava em morte ... uma coisa muito esquisita ... levei aquilo à DT dela e depois mostrei à psicóloga dela ... foi encaminhada para o ... ... chorava e olhava para mim de olhos abertos ... eu sempre tive razão, havia mais qualquer coisa ... foi um ano em que não fazia mais nada senão andar a caminho da escola ... depois desabafou e melhorou ... isola-se muito, fica fechada no quarto ... foi seguida em ..., em pedopsiquiatria, teve alta há menos de 1 ano, tomava sertralina ... era seguida pelo doutor Hugo”(sic).
No âmbito escolar relata “(...) na escola não há queixas dela é um bocadinho um bocado lenta, em casa, parte-me o caco ... mentir, mentir ainda não a apanhei ... a gente tem que dizer a verdade porque a verdade vem sempre ao de cima (...) nesse ano ela teve crises de ansiedade, muitos choros por 2 vezes chamaram o 112 na escola e foi para hospital... em casa também chegou a ter crises mas não foi para o hospital, nesse dia os bombeiros foram lá e disseram que era um ataque de ansiedade e que não era preciso ir ao hospital” (sic)
Convidada a descrever as principais características de personalidade da examinanda afirma “( ...) em casa é muito teimosa, com o telefone ... faz dança, faz teatro, graffitis, joga futebol ... vai entrar como voluntária no Jardim de infância, da praia de campo do bairro ... ... por minha vontade já lhe tinha partido o telemóvel... não cumpre os horários: - BB apaga a luz desliga o telefone!” (sic).
Refere como pretensão no âmbito do processo judicial em curso ( ..) só queria que isto se resolvesse rapidamente, só não queria que ele fosse preso porque se ele vai preso ele mata-se e é pai do meu neto também” (sic).
CONCLUSÕES
BB mostra-se disponível e recetiva face ao processo de avaliação. Mantém uma interação adequada com a perita executando todas as tarefas solicitadas, embora admita ter respondido aleatoriamente a alguns itens do questionário de avaliação da personalidade. Apresenta um discurso que, do ponto de vista da organização e riqueza do vocabulário fica aquém do esperado para o grupo etário. Ao nível cognitivo evidencia competências inferiores à média esperada para a idade. Evidencia, no entanto, competências suficientes para percecionar e interpretar acontecimentos bem como aptidões mnésicas que lhe permitem evocar experiências por si vividas. Não se observam, à data da avaliação, indicadores de tendência para fantasiar sobre os relatos efetuados.
Apresenta um quadro clínico de depressão mantendo o adequado acompanhamento clínico em consulta de psicologia.
Não se apura, à data da avaliação, sintomatologia compatível com um quadro de perturbação de stresse prós traumático associado às experiências potencialmente traumáticas (e.g. abusos sexuais) de que terá sido vítima. Sugere-se, no entanto, a manutenção do acompanhamento psicoterapêutico já iniciado com vista ao desenvolvimento de competências socioemocionais que lhe permitam melhorar a funcionalidade.
Com base em entrevista com o arguido; consulta das peças processuais enviadas pelo tribunal (acusação); em entrevista ao arguido e em contacto telefónico com a sua progenitora; e na consulta da informação do ..., relata a DGRSP:
1- CONDIÇÕES PESSOAIS E SOCIAIS
As condições pessoais e sociais do arguido, de trinta e seis anos de idade, sofreram algumas alterações desde o período a que reportam os alegados factos.
À data dos alegados factos, AA residia com a companheira que estava grávida da filha comum, presentemente com três anos de idade, contactando frequentemente com a vítima, menor, sua então enteada. O casal separou-se há dois anos, por motivos que o próprio dissocia da emergência processual de foro judicial. Desde então, o arguido regressou à habitação materna, onde reside com a progenitora e uma irmã, maior, que estuda em ..., integrando o agregado aos fins-de-semana.
No plano escolar, refere ter concluído apenas o 7º ano de escolaridade, registando quatro reprovações no 8º ano, por fraca assiduidade. Frequentou um curso profissional de acompanhante de crianças, do qual desistiu próximo da sua conclusão, alegando não lograr usufruir de disponibilidade mental para acompanhar o filho mais velho após lidar diariamente com crianças.
AA encontra-se desempregado há um ano. Profissionalmente apresenta um percurso pouco diferenciado e maioritariamente sem vínculos estáveis, tendo trabalhado nas áreas do telemarketing, jardinagem, restauração e construção civil.
Na época dos alegados factos o arguido verbaliza que realizava trabalhos pontuais na construção civil.
Na atualidade, em termos económicos depende da progenitora, que ao que apurámos aufere o vencimento mínimo nacional, realizando alguns negócios de vendas em plataforma online. A habitação onde reside é camarária, encargo assumido pela progenitora, contemplando um acordo de pagamento decorrente da acumulação de dívidas. O arguido indica, também, ter uma dívida que ascende aos onze mil euros, associada a um crédito automóvel. Este fator, associado a outras questões como a degradação da sua imagem pessoal são elencados como elementos que contribuem para a baixa viabilidade de se vir a reinserir profissionalmente por uma via formal.
AA é natural de Lisboa, onde cresceu no agregado da progenitora, avós maternos e quatro irmãos. Desconhece a identidade do progenitor, contudo, há mais de vinte anos que o padrasto, recentemente falecido com doença oncológica, se assumiu como figura de vinculação segura. A progenitora é auxiliar de ação educativa.
O desenvolvimento do arguido foi marcado, desde cedo, por problemáticas de saúde, referindo que aos treze anos e durante dez anos apenas se alimentou de líquidos, na sequência de uma patologia (eventual mononucleose infeciosa). AA sofre de ansiedade e stress, para os quais tem prescrição farmacológica diária, ainda que sem acompanhamento especializado. Refere também ser portador de uma úlcera gástrica e ter sido operado a um pulmão aos vinte e seis anos de idade. AA considera ter uma depressão instalada, apresentando sinais na narrativa e postura consonantes com essa possibilidade. Proclama a necessidade de acompanhamento psicoterapêutico especializado, que refere ter requerido à médica de família, sem perspetiva de marcação. Não obstante na atualidade afirme estar mais equilibrado, o arguido verbaliza ideação e tentativas de suicídio realizadas ao longo da sua vida. A doença que vivenciou aos dez anos de idade é descrita como negativamente impactante e traumática, referindo ter sido abandonado pela namorada com quem viveu entre os treze e os quinze anos de idade, como efeito direto da doença. Ao longo dos anos foi objeto de diversas intervenções cirúrgicas à garganta.
Ainda no âmbito da saúde, que se reveste como área de grande enfoque na vivência do arguido, alude a consumos etílicos como forma desadaptativa de lidar com as frustrações. A este propósito, indica novamente ter solicitado apoio profissional para debelar a problemática, bem como a adição tabágica, aguardando por essa possibilidade.
AA refere ter iniciado a vida sexual ativa aos treze anos de idade, com a namorada com quem coabitou. O arguido narra uma sexualidade satisfatória, com interesses normativos, reconhecendo ainda assim a existência de uma queixa por crime de natureza análoga, pelo facto de a mãe do primeiro filho ser menor quando encetaram o relacionamento afetivo, verbalizando ter sido absolvido.
Afetivamente, o arguido menciona duas relações estáveis. A primeira união de facto durou doze anos e gerou o primeiro filho de AA, atualmente com dezasseis anos de idade. O arguido menciona que o descendente pretende estar com a tia paterna, encontrando-se a decorrer um processo de promoção e proteção do menor.
A segunda relação foi com a mãe da vítima e da sua filha. A segunda ex- companheira/mãe da vítima teve um filho com o irmão da sua primeira companheira, pelo que os dois filhos do arguido são primos direitos. AA afirma manter contactos regulares com a mãe da vítima e da sua filha, com quem não convive mais regularmente por não dispor de condições económicas para os transportes.
Em termos das suas características pessoais, aparenta ser emocionalmente frágil, com consciência dessa vulnerabilidade e com dificuldades ao nível de descentração. O próprio realça a sua ansiedade, a constante reflexão sobre os demais pensamentos, considerando ter poucos amigos por se vir a desiludir com os demais.
2- REPERCUSSÕES DA SITUAÇÃO JURÍDICO-PENAL DO ARGUIDO
No que tange o presente processo, AA verbaliza aborrecimento, pese embora não sinta receio face ao seu desfecho.
O arguido não expressa empatia face à vítima, que afirma ver sem contactos diretos, em virtude de residirem no mesmo contexto socio habitacional.
Em caso de condenação mostra-se disponível para cumprir com o- que for determinado judicialmente- mormente em termos de intervenções especializadas na área da sexualidade.
[...]
3- CONCLUSÃO
De acordo com o que nos foi possível apurar, o percurso vivencial de AA foi marcado por uma patologia precoce e persistente, à qual se vieram a associar outras problemáticas, nomeadamente a nível psicológico.
O percurso do arguido pautou-se, ainda, por fraco investimento escolar e profissional, culminando numa condição económica atual de fragilidade e dependência.
Estes fatores pessoais e sociais de grande vulnerabilidade, associados à fraca empatia pela vítima apresentam-se como aspetos negativos a considerar
O término da relação com a mãe da vítima, bem como a consciência face a alguns dos seus handicaps (e.g. consumos etílicos abusivos) podem ser encarados como aspetos mais positivos.
Em caso de condenação e de aplicação de medida de conteúdo probatório, considera-se que deve englobar um acompanhamento psicoterapêutico especializado, com eventual enforque na vertente da sexualidade e da problemática aditiva.
2.FACTOS NÃO PROVADOS
2.1Da acusação
Nenhuns.
3.MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Previamente à análise crítica da prova produzida e examinada nos presentes autos são pertinentes algumas - breves - considerações sobre a motivação da decisão de facto. Conforme reza o CPP, esta consiste na exposição tanto quanto possível completa, se bem que concisa, dos motivos de facto e de direito da decisão (de facto), com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do julgador (artigo 374.°, n.°2, 2.a parte, do CPP), valendo, para este efeito, somente as provas produzidas ou examinadas em audiência (artigo 355.°, n.°1, do CPP; abrem-se exceções a esta regra, cuja análise agora não importa).
Na valoração da prova e na decisão sobre a matéria de facto rege o princípio da livre apreciação, consagrado no artigo 127.° do CPP, de acordo com o qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. A1urre apreciação encontra-se, portanto, logo delimitada pela necessária observância das máximas da experiência comum, da lógica, da razão e até dos conhecimentos científicos evidentes na esfera-do-leigo> por assim dizer. Em todo o caso, jamais se confunde com uma apreciação voluntarista, discricionária ou arbitrária da prova e não se basta com a mera impressão subjetiva - insuscetível de comunicação - gerada no espírito do julgador pelos vários meios de prova.
Sendo a liberdade de apreciação da prova, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever ou um poder-dever - dever de perseguir idealmente a verdade material- tem a mesma de ser compatibilizada com as garantias de defesa constitucionalmente prevenidas, pois não é admissível a busca da verdade a todo o custo. Por isso impõe a Lei (cf. n.°2 do Artigo 374.° do CPP) um dever alargado de fundamentação na sentença, exigindo nela se desvende o percurso lógico-jurídico trilhado na formação da convicção, v.g., indicando os meios de prova em que assentou a decisão, esclarecendo as razões pelas quais lhes conferiu relevância em detrimento doutros, etc., não só para que a decisão se possa impor aos outros (à comunidade), mas também para permitir o controlo da sua correção pelas instâncias de recurso .
Há a referir que a enunciação dos motivos da decisão de facto não consiste na descrição performativa da prova (a qual, aliás, se mostra registada ou corporizada no processo), quer dizer, não consiste na reprodução mais ou menos exaustiva do seu conteúdo. Não se trata de estabelecer um sucedâneo do principio da oralidade e da imediação na atividade probatória, transformando o dever de fundamentação numa documentação pessoal da oralidade da audiência nem se pretende refletir exaustivamente todas as circunstâncias probatórias, argumentos, intuições, etc., que fundamentam a convicção. Também não exige a Lei que, em relação a cada facto, se autonomize e substancie a razão do decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua atualização se deu na audiência, sob pena de se transformar o ato de decidir numa tarefa impossível. Por último, como resulta do que já ficou dito, o dever de fundamentar não obriga se consigne necessariamente um resumo ou extrato dos depoimentos prestados em audiência ou mesmo o seu resumo, sem embargo de não o postergar, sendo aconselhável o recurso a este modus operandi quando se trata de clarificar e aprofundar os motivos da decisão.
Como é sabido, em processo penal vigora a presunção de inocência perante a cual o encargo da prova (burden of proof) recai inteiramente sobre a parte acusatória (sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, vinculados à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa: artigo 340.°, n.°1, do CPP), ou seja, a esta incumbe a comprovação para além da duvida razoável {standard da prova) de todos os factos jurídico-penalmente relevantes imputados ao arguido.
Ora, no caso, foi efetivamente alcançado este marco da prova para além de toda a dúvida razoável.
Como seria de esperar, o principal e decisivo amparo dos Factos Provados foram as declarações para memória futura prestadas oportunamente pela menor ofendida, BB. Delas decorre a iniludível confirmação desta matéria factual, pois caracterizaram-se pela simplicidade, honestidade, sinceridade, assertividade e coerência, proporcionando, ademais, um retrato detalhado - pormenorizado - do evento. Coonestando a fidedignidade das declarações repare-se que a vítima, quando chamada a narrar o acontecimento, em várias etapas do processo apresentou uma descrição praticamente idêntica e uniforme do sucedido (v, p. ex., o relatório de avaliação psicológica de .../.../2023 e o relatório da perícia psicológica), como também idêntico foi o relato feito à sua professora (cf. infra). A vítima, acrescente-se, jamais evidenciou o ensejo de inflar ou amplificar a conduta do arguido, prejudicando-o: pelo contrário, questionada se o arguido teria praticado mais algum ato da mesma índole prontamente respondeu que não (cf. declarações para memória futura), assim como quando indagada “(...)sobre eventuais ameaças ou recompensas por parte do alegado agressor, nega a sua existência afirmando (...) ele estava muito bêbado (sic) (cf. relatório pericial). Por último, pese embora não exista nenhum exame psicológico direcionado em exclusivo para tal objeto, colhem-se alguns valiosos subsídios no relatório do exame pericial psicológico para cimentar a credibilidade da testemunha/vítima (cf. infra); ali se lê: “[...] de acordo com as hipóteses de Vincent, constata-se que se trata de um perfil válido típico de indivíduos que apresentam uma atitude honesta durante a realização da prova. A diferença entre as notas brutas F e K ou índice de dissimulação de Gough (no valor de - 1) remete para uma atitude honesta nas respostas [..De resto, nenhuma das avaliações psicológicas pôs em causa a veracidade do relato da vítima (cf. infra) - que aceitaram por bom.
Por isso que a fiabilidade e a certeza emergente das declarações da vítima superou e derrubou a versão apresentada pelo arguido, divergente daquela exposta pela vítima fundamentalmente nos seguintes pontos: enquanto esta recontou ter ela própria, o seu irmão DD e a mãe reentrado primeiro em casa e deitado no sofá-cama com a roupa da rua, entrando o arguido cerca de duas horas mais tarde, o arguido referiu que todos os quatro entraram em casa ao mesmo tempo; ao passo que a vítima explanou ter-se recostado com a roupa da rua, o arguido disse ter-lhe arranjado um pijama (ou pelo menos a parte de cima de um pijama); defendendo a vítima que o arguido se deitou ao seu lado (cf. Factos Provados), este descreveu ter-se deitado ao lado da sua então namorada, mãe da vítima, e ali ter permanecido até todos acordarem de manhã; e, naturalmente, que o arguido negou ter praticado qualquer abuso sexual.
Ora, pelas razões já mais bem explanadas supra, todo o juízo de verdade e fidedignidade recaiu nas declarações da vítima BB, o que permitiu não só desmantelar a versão do arguido AA como também firmar os Factos Provados para além de qualquer dúvida razoável.
Tal como a própria vítima atestara, a primeira pessoa a quem revelou o evento foi à sua professora e diretora de turma, EE, estando também presentes duas colegas daquela. No seu depoimento esta testemunha não só corroborou as declarações da vítima nesta parte, como especificou que depois de ter reunido a turma para alertar as estudantes sobre os perigos dos relacionamentos com homens mais velhos, dos namoros através das redes sociais, etc., a aqui vítima, sua aluna, abordou-a, pediu para falar consigo e narrou a situação que teria ocorrido na passagem de ano de ...2...-2021, lavada em lágrimas, posto o que ligou imediatamente à avó paterna da menor (de facto, a sua encarregada de educação) e à polícia (Escola Segura). Aliás, acrescentou, antes ainda desta confidência já notara a vítima mais triste, chorava aparentemente sem razão e, por vezes, tinha episódios de ansiedade (que se mantiveram até ao 10.° Ano, apesar do acompanhamento psicológico). Ainda durante o mesmo dia, a avó da vítima foi à escola e mostrou um caderno no qual aparentemente a neta escrevera que queria morrer. Resta dizer ter-se caracterizado este depoimento pela sinceridade, pela preocupação de jamais faltar à verdade, pelo cuidado com a vítima, assertividade, imparcialidade, objetividade e coerência - tudo desaguando na sua credibilidade sem mácula.
A testemunha CC é mãe da vítima, rmas evidenciou afastamento, desinteresse e mesmo uma certa frieza - para não dizer hostilidade -relativamente à filha; em audiência de julgamento apresentou uma estória sobreponível à versão do arguido AA utilizando mesmo terminologia quase idêntica, pelo que as mesmas razões que levaram ao descrédito da versão daquele valem agora para descredibilizar este depoimento. De resto, do relatório de perícia psicológica se respiga que a vítima mantinha com a mãe um contacto irregular e, hoje em dia, quase nenhum existe por causa do desencadear do processo - cf. aditamento, fls. 118; o pai revela-se praticamente ausente, não o vendo a vítima há cerca de sete anos. Avaliando o depoimento dir-se-á ter sido discernível o vies favorável ao arguido (à data, namorado desta testemunha, pese embora tenham terminado o relacionamento em ... de 2022) e, portanto, deve taxar-se o mesmo como não fidedigno, por isso que imprestável para a formação da convicção seja num sentido seja em outro. Aliás, decorre do processo a crença da testemunha na inocência do arguido - veja-se a reação extremamente dura no tocante ao corte de relações com a filha. Enfim, agora citando o relatório pericial psicológico: “a minha mãe ficou sem acreditar e mesmo assim continua-se a dar com ele ... ela. costuma estar lá em casa dele ... ele é o pai da minha irmã HH que nasceu no dia ... de ... de 2020) a minha mãe vive com a avó da parte da mãe mas passa os fins de semana na casa dele”.
A testemunha FF, avó paterna da vítima, à guarda e cuidados de quem esta se encontra confiada, num depoimento tão comedido como comovido aludiu aos ataques de ansiedade da neta e às deslocações ao hospital por esse motivo; quando lhe relataram o que acontecera ficou escandalizada, pois nunca antes houvera problemas com o arguido e este sempre acarinhara a (então) enteada.
Transitando para a prova documental ou de base documental, toda ela examinada em audiência de julgamento e cujo conteúdo e significado se alcançam sem dificuldades, recenseia- -se: extratos da base de dados da identificação civil de fls. 44-45, relatórios de acompanhamento psicológico de fls. 59-64, 73 e v°, informação clínica de fls. 89-90: aditamento n." 2 de fls. 118; relatório de perícia médico-legal psicológico de fls. 129-134v°; declarações para memória futura— auto de fls. 161 e v°, suportes digitais de fls. 162-163; assento de nascimento de BB, com averbamento relativo à regulação das responsabilidades parentais - 175-176; relatório social para determinação da sanção, elaborado pela DGRSP, de fls. 212ss; e certificado de registo criminal do arguido de fls. 219 e v°.
4 DO DIREITO
4.1 Importa relembrar as disposições incriminatórias referidas na acusação, cuja redação atual foi introduzida pela Lei n.°103/2015, de 24 de agosto.
Assim, nos termos do artigo 172.°, n.°1, alínea b), do CP, “[q]uem praticar ou levar a praticar ato descrito nos n.°s 1 ou 2 do artigo anterior, relativamente a menor entre os 14 e os 18 anos [...] é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.” O artigo 177.°, n.° 1, alínea c), do mesmo Código, sob a epígrafe “Agravação”, dispõe: “[a]s penas previstas nos artigos 163.° a 165.° e 167.° a 176.° são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: [...] c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.”
Maioritariamente, tem-se o crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável como crime de mera atividade e de perigo abstrato ou perigo presumido, quer dizer, a perigosidade da conduta típica em relação ao bem jurídico protegido constitui a ratio legis da incriminação: existe uma presunção legislativa iuris de lure de perigo, justificativa da incriminação e não ilidível judicialmente. Esta arrumação taxonómica do crime, à luz do grau de lesão do bem jurídico, não deixa de suscitar alguma perplexidade porque a técnica das incriminações de perigo abstrato é normalmente funcionalizada à proteção antecipada de bens jurídicos representativos, supra-individuais ou coletivos e o certo é que se considera tutelado neste âmbito um bem jurídico individual ou pessoal, a saber, a liberdade de autodeterminação sexual do menor, a que normalmente acorrem as incriminações de perigo abstrato-concreto (crime de perigo de perigo ou de aptidão) ou de dano .
Apenas se acrescentará o seguinte. Ao referenciar o artigo 171.°, n.°s 1 e 2, do CP, o artigo 172.°, n.°1, proémio, traz à colação o conceito de ato sexual de relevo, que suscita algumas dificuldades em virtude da sua indeterminação. Muito resumidamente dir-se-á que compreensão deste conceito passa, em primeiro lugar, por definir o que seja um ato sexual: sê- lo-á todo o ato que tenha uma natureza objetiva relacionada com a sexualidade, ou seja, que normal e objetivamente seja praticado no domínio das relações sexuais. Em segundo lugar, ao aludir-se ao relevo do ato quer-se significar ser necessária uma certa gravidade para o preenchimento do elemento do tipo, i.e., deve o ato abarcar um atentado sério, grave à liberdade sexual da vítima, invadindo, de uma maneira objetivamente significativa, a reserva pessoal do património íntimo que, no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano. Ou, nas quase sempre invocadas palavras de J. FIGUEIREDO DIAS:
Ao exigir que o ato sexual seja de relevo a Lei impõe ao intérprete que afaste da tipicidade não apenas os atos insignificantes ou bagatelares mas que investigue o seu relevo na perspetiva do bem jurídico protegido (função positiva) é dizer, que determine - ainda que de um ponto de vista objetivo - se o ato representa um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima.
Significa isto que, afinal, não poderá deixar de se analisar caso a caso se a um determinado ato sexual inere a gravidade indispensável à sua relevância típica, devendo atentar-se, na determinação do seu conteúdo e significado, ao circunstancialismo de tempo e lugar e às condições que o rodeiam de modo a ser objetivamente reconhecível pela vítima como sexualmente significativo. Em suma, tem de apurar-se, no caso concreto, se o ato sexual, à luz de toda a sua envolvência, é idóneo a fazer perigar a liberdade sexual da vítima - o que parece aproximar a incriminação dos crimes de perigo abstrato-concreto ou crimes de aptidão.
Do ponto de vista do tipo subjetivo a Lei basta-se com o dolo - mesmo dolo eventual - dispensando qualquer outro elemento subjetivo da ilicitude, v.g., a intenção de satisfazer os impulsos libidinosos do agente.
Aqui chegados, pode indubitavelmente classificar-se como ato sexual de relevo o praticado pelo arguido AA no corpo da vítima, BB. Também não é inquinada por qualquer dúvida a conclusão de que se verificam todos os demais requisitos do crime imputado, seja no plano objetivo seja no plano subjetivo.
Desta sorte, passar-se-á à fase da determinação da pena.
4.2 Ora, em conformidade com o artigo 40.° n.°s 1 e 2, do CP, a aplicação das penas visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na comunidade, não podendo em caso algum ultrapassar a medida da culpa (do agente).
Este desiderato traduz-se nos critérios de determinação da medida concreta da pena (ou determinação da medida da pena), pois comanda o Artigo 71.°, n.° 1, do CP: “[a] determinação da medida da pena dentro dos limites definidos na lei, far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes”. O normativo confirma a orientação da dosimetria da pena em função das categorias da culpa e da prevenção (geral e especial), através da valoração das diversas circunstâncias do caso concreto, agravantes ou atenuantes da culpabilidade, algumas das quais referidas -a título exemplificativo - no n.° 2 do mesmo preceito e sempre relacionadas com o ato punível.
As categorias referidas articulam-se do seguinte modo: em primeiro lugar, a culpa do agente constitui o fator limitativo máximo ou superior da pena - princípio da cuba, segundo o qual não há pena sem culpa nem a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa (cf. artigo
1.° da Constituição da República); em segundo lugar, o limite inferior ou mínimo da pena é designado pela necessidade de tutela dos bens jurídicos verificada no caso concreto, relacionada com a prevenção geral positiva ou de integração - o reforço da consciência jurídica comunitária e do sentimento de segurança perante a violação da norma; finalmente, em terceiro lugar, adentro desta moldura abstrata de 2.° Grau a exata medida da pena será assinalada pelas exigências de prevenção especial, quer na vertente da socialização, quer na efe advertência individual de segurança ou inocuização (neutralização) do delinquente.
No caso, são circunstâncias agravantes a considerar: apesar de não existirem relações de parentesco ou de afinidade, a verdade é que o arguido era então namorado da mãe da vítima, existindo entre ambos uma relação de inegável proximidade tanto assim que o arguido tratava a vítima por enteada e esta tratava o arguido por padrasto incumbindo ao arguido, nessa qualidade, um especial e mais intenso dever de proteção da vítima, cuja confiança, aliás, frustrou; de resto, como o próprio arguido referiu, convive com a vítima desde que esta era criança, frequentando a casa da avó paterna onde a mesma reside com alguma assiduidade por ter tido um relacionamento com uma tia, irmã do pai da vítima; o arguido atuou de surpresa e incentivou a vítima a não contar a ninguém o que se tinha passado, sem qualquer tipo de ameaça, é certo; o ato sexual foi praticado por cima da roupa interior (cuecas) da vítima e, apesar das tentativas de o repelir, o arguido empregou a força e manteve a sua conduta, só cessada porque a vítima colocou entre as pernas o seu irmão, que entretanto acordara e começara a chorar.
Em sentido atenuante constata-se o caráter passageiro e não muito agressivo do contacto físico; a inexistência de antecedentes criminais e a integração social de que beneficia o arguido.
Em resumo, a censurabilidade a dirigir à conduta do arguido é elevada - sem deixar, porém, de considerar a valência do seu objeto, em termos relativos - e apesar de o mesmo não possuir condenações pregressas, pode aventar-se a possibilidade de futuramente se encontrar numa situação propícia à repetição do comportamento, cabendo atribuir à pena um eficaz conteúdo dissuasor. Como se lê no relatório social (cf. supra):
De acordo com o que nos foi possível apurar, o percurso vivencial de AA foi marcado por uma patologia precoce e persistente, à qual se vieram a associar outras problemáticas, nomeadamente a nível psicológico.
O percurso do arguido pautou-se, ainda, por fraco investimento escolar e profissional, culminando numa condição económica atual de fragilidade e dependência.
Estes fatores pessoais e sociais de grande vulnerabilidade, associados à fraca empatia pela vítima apresentam-se como aspetos negativos a considerar
O término da relação com a mãe da vítima, bem como a consciência face a alguns dos seus handicaps (e.g. consumos etílicos abusivos) podem ser encarados como aspetos mais positivos.
Assim, entende-se que as exigências punitivas ficarão salvaguardadas através da pena de 3 (três) anos de prisão.
4.3 O artigo 50.°, n.°1, do CP, dispõe:
O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma suficiente e adequada as finalidades de punição.
O instituto da suspensão da pena de prisão tem dois pressupostos básicos: um pressuposto formal é que a medida concreta da pena de prisão aplicada não seja superior a cinco anos; um pressuposto material é que o tribunal, atendendo à personalidade do arguido e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: isto é, que a simples censura do facto e a ameaça da pena - acompanhada ou não da imposição de regras de conduta, deveres etc. - bastarão para afastar o delinquente da criminalidade.
A suspensão é assim uma medida de teor reeducativo e pedagógico, com uma forte componente de exigência no plano individual, só podendo ser aplicada quando satisfazendo as exigências de prevenção geral positiva - i.e., no sentido de a comunidade suportar a não- execução imediata destas penas - responda também eficazmente às exigências de prevenção especial de socialização, constituindo uma injunção para que o agente conduza a sua vida de acordo com o direito.
No caso, a suspensão da pena permitirá a necessária e suficiente satisfação das exigências de prevenção geral e especial. Com efeito, o arguido está socialmente integrado e não averba antecedentes criminais, de sorte que a censura do facto e a ameaça do cumprimento de uma pena de prisão constituirão certamente advertência bastante e obstáculo à reiteração de comportamentos desviantes, proporcionando, ao mesmo tempo, a indispensável censura pessoal expressada através da condenação penal e a reafirmação da vigência da norma vulnerada.
De todo o modo, considerando as finalidades da suspensão e as características do arguido acima descritas, sujeitar-se-á a suspensão ao regime de prova, em conformidade com o disposto nos artigos 50.° n.°2, 53.° e 54.° do CP, o qual obedece a um específico juízo de adequação da pena de substituição às necessidades concretas de prevenção especial positiva. Com efeito, de acordo com o artigo 53.°, n.°1, do CP, o regime de prova (que não é uma pena de substituição a se, mas uma modalidade da suspensão da execução da prisão) é decretado se for conveniente e adequado a facilitar a reintegração do condenado na sociedade (cf. artigo 50.°, n.°2, do CP). Para além disso, o regime de prova apresenta virtualidades ao nível da própria prevenção geral, seja do ponto de vista (normativo) de estabilização contrafáctica da norma quer do ponto de vista do restabelecimento da paz jurídica e do sentimento de confiança na validade do Direito, permitindo um acompanhamento de proximidade da evolução do arguido e impondo-lhe deveres, obrigações e regras de conduta com visibilidade e conteúdo social que conferem à sanção penal uma externalização controlável e contribuem para erradicar uma eventual imagem de impunidade - também em relação ao próprio arguido.
(…)
Apreciemos, pois, em concreto os recursos interpostos da sentença iniciando a nossa análise pelo recurso do arguido e lembrando que o mesmo invoca erro de julgamento relativamente aos factos provados 9 a 24 bem como a violação do princípio do in dubio pro reo.
É pacífico que a decisão da matéria de facto em sede de recurso pode ser sindicada quer através dos vícios previstos no artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal, a que se convenciona chamar de revista alargada, quer através da designada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º nº3, 4 e 6, do mesmo diploma.
Os vícios consagrados no artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal são de conhecimento oficioso pelo que não está o Tribunal de recurso impedido de os detetar e conhecer, ainda, que o recorrente opte apenas por uma impugnação ampla de matéria de facto como neste caso se verifica.
Ora, prevê o artigo 412º nº3 do Código de Processo Penal que quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto o recorrente deve especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) as provas que devem ser renovadas.
Impondo o nº4 do preceito em questão a exigência de que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Neste caso a apreciação a levar a cabo pelo Tribunal da Relação não se restringe ao texto da decisão (como ocorre no caso dos vícios previstos no artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal) incidindo sobre o que se pode extrair da prova produzida em audiência.
No que se reporta à especificação dos concretos pontos de facto, o ónus a que aludimos só é cumprido com a indicação do facto individualizado que consta da decisão recorrida e se considera incorretamente julgado.
Tal ónus de especificação de factos não se basta, assim, com qualquer indicação genérica dos mesmos.
Ademais e no que respeita à especificação das provas concretas, o ónus previsto no artigo 412º do Código de Processo Penal só é cumprido se for feita a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida.
Destarte é, nomeadamente, insuficiente a indicação genérica de um documento, de uma declaração ou de um depoimento, de uma perícia ou de uma interceção telefónica realizada.
De qualquer modo o recorrente tem o ónus de indicar clara e concretamente o que na matéria de facto quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual oposta à decisão de facto vertida na decisão que impugna, quais os motivos exatos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado.
Ademais e caso esteja em causa meio de prova oralmente produzido em audiência e gravado exige-se a indicação não só do início de termo da gravação, mas a indicação e especificação das concretas passagens que fundam a impugnação tal como resulta do nº4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.
As provas que o recorrente indique nos termos sobreditos e a apreciação das mesmas apresentada no recurso devem não só evidenciar que os factos foram incorretamente julgados pelo Tribunal a quo como fundar a convicção de que se impunha uma decisão diversa da proferida na fixação dos factos provados e não provados.
O recurso sobre a matéria de facto não está configurado no nosso sistema processual penal como um segundo julgamento, mas sim como um mecanismo de correção.
Com efeito e como se refere no AUJ do STJ nº3/2012 de 18 de abril:
«A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas. O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto. Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.»
E como se exara no Acórdão do Tribunal Constitucional4« a impugnação da decisão em matéria de facto terá de assentar na violação dos factos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma seria a inversão dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela de quem espera a decisão.»
A modificação da decisão recorrida pelo Tribunal de recurso só poderá ter lugar se, depois de cumprido o ónus de impugnação previsto no citado artigo 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, se vier a apurar que a decisão recorrida sobre os precisos factos impugnados em face da prova concretamente produzida no processo deveria, necessariamente, ter sido a oposta.
Traduzindo-se o erro de julgamento na inobservância de ditames em matéria probatória quer na vertente da sua validade quer da sua eficácia especial, na violação de princípios como o da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo ou na violação das regras da lógica e da experiência comum.
Destarte o que se exige é um erro e não uma mera divergência de convicção e assim «se a decisão de primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei (artigos 127º e 374º, nº2 do Código de Processo Penal), inexistindo assim violação destes preceitos legais5».
No caso vertente o recorrente insurge-se relativamente aos factos 9 a 24 da matéria de facto provada que especifica e têm o seguinte teor: 1.No decurso de tais festejos o arguido ingeriu bebidas alcoólicas em quantidade não exatamente apurada, ficando a exalar um forte hálito a álcool. 2.Quando o arguido entrou, dirigiu-se para a sala e deitou-se, vestido com a roupa que trazia da rua, ao lado da vítima. 3.Quer a mãe da vítima, CC, quer o menor DD já dormiam, permanecendo acordada apenas a vítima. 4.Esta encontrava-se deitada sobre o seu lado direito, i.e., virada para o irmão DD, e o arguido deitou- se por detrás dela, na mesma posição, encostando o seu corpo ao da vítima (em conchinha). 5.De seguida, passou o braço por cima do corpo daquela, colocou a mão entre as suas calças e as cuecas e começou a acariciar a vulva da vítima, por cima da cueca, fazendo movimentos para cima e para baixo, durante cerca de três minutos. 6.Durante este lapso temporal a vítima tentou afastar o braço do arguido, mas este usou da força e manteve-o na mesma posição, continuando com a mão a acariciar a vulva da vítima com movimentos para cima e para baixo. 7.Exasperada, a vítima agarrou-se ao irmão DD, que entretanto acordara e estava a chorar, puxou-o para si e pô-lo entre as suas pernas, de forma a impedir que o arguido prosseguisse com a sua conduta. 8.Perante isto, o arguido, retirou a mão e o braço e segredou ao ouvido da vítima: “Não contes a ninguém, fica o nosso segredo”. 9.De seguida, o arguido levantou-se e foi-se deitar do lado da sua namorada e mãe da vítima, i.e., na extremidade oposta do sofá-cama. 10.Em consequência da conduta do arguido a vítima sentiu-se incomodada, sentindo-se mal com o seu próprio corpo, não conseguindo esquecer o que viveu e que guardou, só para si, durante cerca de dois anos, até que desabafou com uma professora da sua escola. 11.Ao agir da forma descrita, o arguido conhecia, a idade da vítima, filha da sua então companheira. 12.Com efeito, à data dos factos a vítima chamava o arguido de padrasto, e o arguido, chamava a vítima de enteada. 13.O arguido prevaleceu-se dessa posição de influência, autoridade e confiança que sabia deter sobre a vítima para concretizar os seus intentos. 14.O arguido bem sabia que, ao atuar desta forma, i.e., acariciando a vulva da vítima, punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual, o que fez para satisfazer os seus instintos libidinosos. 15.O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”
No que respeita às provas o recorrente refere a prova documental junta e que não concretiza para além do relatório de acompanhamento psicológico da vítima de que extrai um pequeno segmento e o depoimento prestado em sede de audiência de discussão e julgamento de CC, com início às 12h03m e termo às 12h16m, gravado no sistema integrado de gravação digital em uso no Tribunal, entre o minuto 59:20 e 1h1:00 cujos excertos concretos não indica, limitando-se a fazer a sua interpretação e resumo do depoimento em causa bem como a proceder à sua qualificação.
No que respeita às testemunhas EE e FF nenhuma especificação de excertos ou sequer do início e do termo da gravação de tais depoimentos é empreendida, mas apenas a valoração negativa dos mesmos.
É patente quer a ausência de cumprimento do ónus legal supra aludido quer o exercício de substituição por parte da recorrente ao papel que incumbe ao tribunal.
No caso vertente o que o recorrente faz não é uma impugnação de facto nos termos sobreditos e legalmente previstos, mas uma impugnação da convicção do tribunal recorrido.
Com efeito, o que o recorrente faz é uma impugnação genérica, uma valoração pessoal da prova efetuada, uma impugnação da convicção do Tribunal recorrido assente na diversa e pessoal interpretação do recorrente relativamente à prova, mas tal interpretação não tem, naturalmente, a virtualidade de abalar o julgamento da matéria de facto realizado na 1ª Instância.
Ora, como se exara no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça supracitado: ”Tendo em conta o princípio da apreciação da prova nos termos do artigo 127º do CPP a valoração da prova efectuada pelo tribunal de 1ª instância não se confunde com o modo da sua impugnação em recurso sobre a matéria de facto, que obedecendo a forma processualmente válida, não se traduz em mera exposição pelo recorrente como em seu entendimento faz a valoração da prova sob pena de limitar-se a impugnar a convicção do tribunal recorrido”.
A mera leitura das conclusões da motivação do ora recorrente permitem concluir que o mesmo não cumpriu o ónus processual a que nos referimos.
Em face do que fica exposto, a impugnação ampla da matéria de facto do recurso do arguido tem de ser julgada totalmente improcedente.
O recorrente arguido invoca a violação do princípio do in dubio pro reo alegando que o tribunal alicerçou a sua decisão nas declarações da vítima BB, no entanto, não atendeu ao seu comportamento com o arguido, que continuou sempre com base numa boa relação com o mesmo.
Ora, o princípio do in dubio pro reo assenta numa dúvida insanável, razoável e objetivável e é uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza nos termos referidos sobre os factos decisivos para a solução da causa, o que não se verifica neste caso.
Importa, por outro lado, esclarecer que o comportamento que o recorrente qualifica de manutenção de boa relação é explicado, há muito, pela literatura científica em situações de abuso em contexto familiar, pois que, em tais casos o vínculo estabelecido entre perpetrador e vítima passa a desenvolver-se de modo perverso porquanto a situação que provoca sofrimento à menor decorre num suposto ambiente de afeto e essa contradição causa sentimentos de ambivalência afetiva.
O facto de a menor ser vítima de abuso por parte de alguém que é suposto amá-la e protegê-la torna mais difícil para esta revelar o abuso a outras pessoas, especialmente se o abusador for um sujeito do qual os outros gostam6. E como refere Summit (…) o silêncio que caracteriza a situação abusiva decorre da situação de impotência em que a menor se encontra. Importa não esquecer que a menor vivencia uma situação que é imposta por alguém que, de alguma forma, pelo estatuto ou pelo papel que desempenha na sua vida ou pela coação que utiliza, exerce poder sobre ela.
Assim, a atuação da menor vítima que o recorrente assinala como fator de inverosimilhança e em que poderia assentar a dúvida do tribunal é na verdade uma atuação normal e consentânea com a sujeição a abuso sexual por familiar.
Acresce que o exercício crítico e explicativo da convicção do tribunal a quo é lógico, seguro, assenta em critérios de senso comum e funda-se nos princípios da imediação, da oralidade e do contraditório que são característicos da audiência, revelando absoluto respeito do princípio de livre apreciação da prova previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal e também pelo princípio in dubio pro reo que não tinha de ter aqui qualquer aplicação.
Assim, improcede na íntegra o recurso do arguido.
No que tange ao recurso do Ministério Público tal recorrente insurge-se apenas relativamente à suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao recorrente, por entender, em síntese, que: a suspensão da execução da pena de prisão não cumpre as finalidades da prevenção geral, fortíssima face à (infeliz) regularidade com que este tipo de crime é praticado, em regra, e como é o caso, por agente próximo da vítima menor; que não basta a ausência de antecedentes criminais para chancelar a não aplicação de uma pena de prisão efetiva, que as circunstâncias que envolveram o cometimento do crime, bem como conduta posterior, revelando o arguido ser totalmente insensível ao sofrimento da menor (meia-irmã e prima dos seus filhos), negando totalmente a prática dos factos, encarando o processo como um aborrecimento, e a personalidade do agente, revelada no facto mas também nas condicionantes da sua vida; a sua manutenção de consumos alcoólicos, sendo tais consumos existentes na data da prática dos factos; a sua indiferença às consequências da prática do facto, não permitem concluir pela adequação e suficiência de uma suspensão da execução da pena de prisão.
O tribunal recorrido aplicou ao arguido pela prática, como autor material, de um crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravado, previsto e punível pele artigo 172.°, n.°1, alínea b), em conjugação com o artigo 177.°, n.°1, alínea c), ambos do CP, na pena de 3 (três) anos de prisão, cuja execução suspendeu pelo período de 3 anos (artigo 50.°, n.°s 1 e 5, do CP), com sujeição a regime de prova (artigos 53.° e 54º do CP).
Mais impondo que tal regime de prova assentará num plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio da DGRSP e que o arguido deverá, para além do mais (artigo 54.°, n.°2, do CP):
a. Responder às convocatórias do técnico de reinserção social ou do Tribunal;
b. Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos pertinentes que lhe sejam solicitados;
c. Informar o técnico de reinserção social e o tribunal sobre alterações de residência ou emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso;
d. Efectuar - com o seu consentimento - acompanhamento psicoterapêutico e/ou médico, na eventualidade de tal se mostrar necessário às finalidades do regime de prova, perante a natureza do crime da presente condenação - crime contra a autodeterminação sexual - e ao tratamento do seu síndrome alcoólico (artigos 52.° n.°2, e 54.°, n.°2, proémio, do CP).
A decisão recorrida no segmento referente à suspensão da execução da pena de prisão aplicada refere o seguinte:
O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma suficiente e adequada as finalidades de punição.
O instituto da suspensão da pena de prisão tem dois pressupostos básicos: um pressuposto formal é que a medida concreta da pena de prisão aplicada não seja superior a cinco anos; um pressuposto material é que o tribunal, atendendo à personalidade do arguido e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: isto é, que a simples censura do facto e a ameaça da pena - acompanhada ou não da imposição de regras de conduta, deveres etc. - bastarão para afastar o delinquente da criminalidade.
A suspensão é assim uma medida de teor reeducativo e pedagógico, com uma forte componente de exigência no plano individual, só podendo ser aplicada quando satisfazendo as exigências de prevenção geral positiva - i.e., no sentido de a comunidade suportar a não- execução imediata destas penas - responda também eficazmente às exigências de prevenção especial de socialização, constituindo uma injunção para que o agente conduza a sua vida de acordo com o direito.
No caso, a suspensão da pena permitirá a necessária e suficiente satisfação das exigências de prevenção geral e especial. Com efeito, o arguido está socialmente integrado e não averba antecedentes criminais, de sorte que a censura do facto e a ameaça do cumprimento de uma pena de prisão constituirão certamente advertência bastante e obstáculo à reiteração de comportamentos desviantes, proporcionando, ao mesmo tempo, a indispensável censura pessoal expressada através da condenação penal e a reafirmação da vigência da norma vulnerada.
De todo o modo, considerando as finalidades da suspensão e as características do arguido acima descritas, sujeitar-se-á a suspensão ao regime de prova, em conformidade com o disposto nos artigos 50.° n.°2, 53.° e 54.° do CP, o qual obedece a um específico juízo de adequação da pena de substituição às necessidades concretas de prevenção especial positiva. Com efeito, de acordo com o artigo 53.°, n.°1, do CP, o regime de prova (que não é uma pena de substituição a se, mas uma modalidade da suspensão da execução da prisão) é decretado se for conveniente e adequado a facilitar a reintegração do condenado na sociedade (cf. artigo 50.°, n.°2, do CP). Para além disso, o regime de prova apresenta virtualidades ao nível da própria prevenção geral, seja do ponto de vista (normativo) de estabilização contrafáctica da norma quer do ponto de vista do restabelecimento da paz jurídica e do sentimento de confiança na validade do Direito, permitindo um acompanhamento de proximidade da evolução do arguido e impondo-lhe deveres, obrigações e regras de conduta com visibilidade e conteúdo social que conferem à sanção penal uma externalização controlável e contribuem para erradicar uma eventual imagem de impunidade - também em relação ao próprio arguido.
Do exposto decorre que a decisão recorrida entendeu que a suspensão da pena permitirá a necessária e suficiente satisfação das exigências de prevenção geral e especial assentando tal conclusão na ausência de antecedentes criminais e na integração social do arguido.
Prevê o artigo 50º nº1 do Código Penal que o «tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Como decorre do aludido preceito subjazem à decisão de suspensão da execução da pena razões reportadas às exigências de prevenção geral e especial sendo que na ponderação destas não se pode descurar a salvaguarda daquelas.
Nas palavras de Figueiredo Dias7 «pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente; que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta – bastarão para afastar o delinquente da criminalidade», aduzindo «para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto. Por outro lado, há que ter em conta que a lei torna claro que, na formulação do prognóstico, o tribunal se reporta ao momento da decisão, não ao da prática do facto».
Mais esclarece que, apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime. (…) Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa».
Ademais e como exara no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça8 o instituto em causa «constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que esta impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores inscritos nas normas. (…) Não são, por outro lado, considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas».
É indispensável para suspensão da execução da pena que o Tribunal, em face dos factos provados atendendo à personalidade do agente, ao seu percurso e condições de vida, sua conduta anterior e posterior ao crime e ainda às concretas circunstâncias deste logre formular um prognóstico favorável com relação ao comportamento futuro do agente, mas sempre sem descurar a necessidade de as consequências penais serem dissuasoras da criminalidade bem como a tutela dos bens jurídicos legalmente protegidos
Em suma, a suspensão da execução da pena não deve ter lugar se à mesma se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção criminal uma vez que não é função da ressocialização eliminar a necessidade de as consequências penais serem dissuasoras de criminalidade nem retirar a confiança comunitária no sistema penal ou defraudar a tutela dos bens jurídicos legalmente protegidos.
Assim, só quando as exigências de prevenção na dupla vertente supra enunciada fiquem asseguradas é que a pena de prisão poderá ser suspensa na sua execução.
Ora, no caso vertente a decisão recorrida elenca duas circunstâncias para fundar a suspensão traduzidas na ausência de antecedentes criminais e na integração social do arguido.
Todavia, resulta da decisão recorrida que o arguido tem o 7º ano de escolaridade, vive atualmente com a sua progenitora e uma irmã maior que estuda em ... e só integra o agregado aos fins de semana, está desempregado há mais de um ano e apresenta aos 36 anos de idade um percurso profissional pouco diferenciado e maioritariamente sem vínculos estáveis, tendo trabalhado nas áreas do telemarketing, jardinagem, restauração e construção civil.
Mais resulta da decisão recorrida que o arguido em termos económicos depende da progenitora, que a habitação onde reside é camarária, encargo assumido pela progenitora e que o arguido, tem uma dívida que ascende aos onze mil euros, associada a um crédito automóvel e esse fator, associado a outras questões como a degradação da sua imagem pessoal são elencados como elementos que contribuem para a baixa viabilidade de se vir a reinserir profissionalmente por uma via formal.
E também que o arguido sofre de ansiedade, stress e depressão, tem consumos etílicos abusivos, um filho de 16 anos que vive com a respetiva tia paterna encontrando-se a decorrer um processo de promoção e proteção relativamente ao mesmo e que aquando da prática dos factos o arguido vivia com a mãe da vítima e da sua filha sendo que esta teve um filho com o irmão da sua primeira companheira, pelo que os dois filhos do arguido são primos direitos e que mantém contactos com a mãe da vítima e da sua filha com quem não convive mais regularmente por não dispor de condições económicas para os transportes.
E ainda que o arguido verbaliza aborrecimento relativamente ao processo e não expressa empatia face à vítima que afirma ver sem contactos diretos, em virtude de residirem no mesmo contexto socio habitacional.
Ora, tais circunstâncias são reveladoras de um percurso de fraco investimento escolar e profissional, de dependência económica, de consumos abusivos e de ausência de ressonância crítica e de empatia com a vítima menor de idade e indiciam uma personalidade distanciada do dever ser jurídico-penal e dos valores nucleares da sociedade, indiferente ao sofrimento da vítima, filha da sua ex-companheira e irmã da sua filha.
É indiscutível que as exigências de prevenção geral são intensas pois que estão em causa factos que contendem com valores nucleares da sociedade e que têm como vítima pessoa menor de idade.
Ao contrário da decisão recorrida entendemos que em face de todo o exposto as finalidades da punição quer ao nível da prevenção geral quer ao nível da prevenção especial resultam goradas com a suspensão da execução da sua pena de prisão aplicada ao arguido e que tal conduz ao defraudar das expetativas comunitárias de reposição da ordem jurídica e da confiança nas normas violadas e no cumprimento do direito.
Com efeito, a sua integração social é incipiente e a ausência de antecedentes criminais não é fator que assuma o relevo indispensável em face das demais circunstâncias apuradas como o percurso de vida do arguido pautado por fraco investimento escolar e profissional, de dependência económica, de consumos abusivos e a ausência de ressonância crítica e de empatia com a vítima menor de idade enquanto evidências de uma personalidade distanciada do dever ser jurídico-penal e dos valores nucleares da sociedade e indiferente ao sofrimento da vítima,
Não se considera adequada a formulação feita pela decisão recorrida de um juízo de prognose favorável por se considerar que não se mostram reunidos os pressupostos que possibilitam a suspensão da pena de prisão do arguido previstos no artigo 50º do Código de Processo Penal.
Destarte entende-se ser de proceder o recurso do Ministério Público com a consequente revogação da decisão recorrida no segmento referente à suspensão da execução da pena de prisão, a qual deve ser cumprida de modo efetivo.
3- DECISÓRIO:
Nestes termos e em face do exposto acordam os Juízes Desembargadores desta 3ª Secção em:
a) Não conceder provimento ao recurso do arguido AA.
b) Em conceder provimento ao recurso do Ministério Público e, em consequência, revogar a decisão recorrida no segmento referente à suspensão da execução da pena e determinar a condenação do arguido AA pela prática, como autor material, de um crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravado, previsto e punível pele artigo 172.°, n.°1, alínea b), em conjugação com o artigo 177.°, n.°1, alínea c), ambos do CP, na pena de 3 (três) anos de prisão.
Custas da responsabilidade do arguido recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça (art. 513º do Cód. de Processo Penal e 8º nº9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último).
Notifique sendo o recorrente arguido, ainda, do teor do parecer emitido neste Tribunal da Relação.
*
Nos termos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal exara-se que o presente Acórdão foi pela 1ª signatária elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários e sendo as suas assinaturas bem como a data certificadas supra.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 8 de outubro de 2025
Ana Rita Loja
Lara Martins
Francisco Henriques
_______________________________________________________
1. vide Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995.
2. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do STJ de 29 de janeiro de 2015 processo 91/14.7YFLSB.S1 e de 30 de junho de 2016 proc. 370/13.0PEVFX.L1. S1.
3. Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335.
4. processo nº 198/04, publicado in DR II Série, de 2 de junho de 2004
5. Vide Ac. da Relação de Lisboa de 02.11.2021, proc. 477/20.8PDAMD.L1-5.
6. vide entre outros, Summit, R.C. The Child Sexual Abuse Accommodation Syndrome: child abuse and neglect, 7, 1983, p. 177–193, Violência Sexual Infantil: A Dialética Abusador/Abusado e o sistema de enfrentamento Fabiano FURLAN, Jéssica Aline TANK, Lenize Carnette SCHNELL e Luis Arthur Rangel CYRINO disponível online).
7. Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, § 520
8. de 25-06-2003 proferido no processo 2131/03