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APREENSÃO DE SALDOS BANCÁRIOS
PRAZO
DURAÇÃO
INQUÉRITO
Sumário
I - A questão da manutenção da apreensão além dos prazos de duração do inquérito sem dedução de acusação, conquanto verificados os pressupostos resultantes do disposto nos arts. 181º e 186º do Cód. Proc. Penal, tendo ainda em vista que essa apreensão pode ser determinante para a recuperação desses activos indevidamente apropriados na sequência de decisão final que determine a sua perda, não constitui qualquer violação daquela presunção e nem de qualquer outro direito tutelado por referência a princípios constitucionais, como já teve o Tribunal Constitucional oportunidade de dizer anteriormente (ac. TC nº 294/2008).
Texto Integral
Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
Relatório
Pelo Tribunal Central de Instrução Criminal – J6 – foi proferida decisão com o seguinte teor: (…) I - Relatório 1.1. A sociedade AA veio peticionar, além do mais, a revogação do decretamento de apreensão determinado contra a requerente, alegando, para tanto e em síntese, o seguinte: - a decretação da apreensão persiste há quase cinco anos, sustentada na promoção do Ministério Público, a qual enuncia factos que são inverídicos, assentes em errados pressupostos de facto, incorrendo em violação dos artigos 181º e 186º do Código de Processo Penal e 7º, n.º 1 e 10º da Lei n.º 5/2021; - o decretamento da apreensão de saldos bancários foi prolatado na sequência da decretação de sucessivas suspensões de operações bancárias, as quais terão sido determinadas e confirmadas judicialmente; - estas medidas sucessivas, restritivas do direito de propriedade da requerente, assentavam na tese inicial do Ministério Público, segundo a qual a requerente não havia efetuado qualquer trabalho para a ...; - no processo de inquérito, a requerente, sempre de forma ativa e transparente, mediante a formulação de diversos requerimentos instruídos com acervo documental composto por mais de cento e trinta e oito documentos, demonstrou a natureza e a dimensão do trabalho realizado na ..., assim como os resultados obtidos, por causa da sua intervenção; - o Tribunal permaneceu imune a este acervo fático; - demonstrada a realização do trabalho pela requerente e a sua profunda relevância para a ..., o Ministério Público aderindo a esta evidência, mas inconformado, vem alterar a sua narrativa indiciária, abandonando a tese da inexistência da prestação de serviços por parte da AA, e vem argumentar, “ex novo”, que o valor cobrado pela realização deste trabalho é demasiado elevado, sustentando o pedido de apreensão de acordo com esta tese; - tal conclusão não tem subjacente qualquer facto concreto; - a AA otimizou o sistema …, extirpou ineficiências, e por via de renegociação das condições contratuais com a …, conseguiu uma poupança imediata de 34 (trinta e quatro) milhões de euros; - a atuação da requerente, evidenciada pelo resultado obtido com o seu trabalho, não deixa margem para dúvidas quanto ao mérito da sua prestação na execução deste contrato; - a preocupação central da AA foi sempre a de aportar resultados positivos para a organização da ... na área de …, centrando a sua conduta na estrita defesa dos interesses da sua cliente; - a atuação da requerente não só é lícita, como cumpriu integral, pontual e meticulosamente com a sua obrigação contratual, tal como reconhecido pela ... em diversa correspondência, na qual sempre agradeceu e demonstrou o reconhecimento do mérito do trabalho desenvolvido pela requerente; - a ... não manifestou em momento algum qualquer descontentamento quanto à prestação de serviços da requerente ou acionou qualquer meio judicial ou extrajudicial, o qual visasse a qualidade da prestação de serviços ou a adequabilidade dos honorários acordados para a execução do trabalho; - inexiste qualquer indício da prática de crime por parte da requerente; - a medida em causa restringe direitos fundamentais, tais como o direito de propriedade da requerente, devendo a ponderação da sua manutenção ser aquilatada de acordo com os critérios da necessidade, adequação e proporcionalidade consagrados no artigo 18º da Constituição da República Portuguesa; - a descoberta da verdade ou a preservação da prova não estão em causa nos autos, os elementos bancários já disponíveis, nomeadamente quanto à titularidade das contas e elementos relativos aos movimentos bancários que espelham as datas, os montantes e o circuito dos fluxos financeiros, demonstram a inexistência de qualquer comportamento ilícito; - a apreensão dos saldos, por si só, não releva qualquer interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, na medida em que essa realidade está demonstrada através de prova documental constante dos apensos bancários; - desde o momento inicial e até ao atual, a investigação não carreou quaisquer elementos probatórios no sentido de confirmar as suspeitas iniciais que originalmente justificaram a aplicação e a manutenção da medida de suspensão das operações bancárias a débito e posteriormente justificaram a decisão de aplicação da medida de apreensão; - não se mostra identificado qualquer comportamento criminoso da requerente; - não tendo as quantias depositadas nas contas bancárias qualquer interesse para a prova, torna-se desnecessária a sua apreensão para o exercício da ação penal, devendo ser restituídas nos termos do artigo 186º, n.º 1 do Código de Processo Penal; - a manutenção da apreensão das contas bancárias da requerente é desproporcionada e desadequada; - esta limitação ao direito de propriedade da requerente viola o princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, uma vez que mantém por tempo indefinido a apreensão de bens e representa verdadeiramente antecipação da pena e constitui a violação do direito a um processo célere, consagrado constitucionalmente, uma vez que os prazos de inquérito não foram observados pelo Ministério Público; - há muito que a prova indiciária reunida na investigação é inequívoca no sentido único decisório admissível, o arquivamento do processo de inquérito; - é inconstitucional a interpretação de que ao abrigo do artigo 181º, n.º 1 do Código de Processo Penal se pode manter a apreensão dos depósitos bancários da requerente, por tempo indeterminado, decorridos que estejam os prazos de inquérito consagrados no artigo 276º do Código de Processo Penal, sem que o Ministério Público tenha deduzido acusação nos termos do artigo 283º do mesmo Código, por violação dos princípios da adequação, proporcionalidade, do princípio da presunção de inocência e do direito constitucional da propriedade privada, tal como se encontram consagrados nos artigos 18º, n.º 2, 32º, n.º 2 e 62º da Constituição da República Portuguesa; - permitir a manutenção desta medida de apreensão para além do prazo legal de duração do inquérito cria à requerente uma situação de incerteza jurídica, bem como constitui violação do princípio constitucional da igualdade e do princípio constitucional da proporcionalidade, eternizando sem termo certo, de forma totalmente arbitrária, excessiva e anárquica as restrições ao direito de propriedade privada e de livre iniciativa privada da requerente. A requerente não juntou aos autos qualquer prova do por si alegado. 1.2. Notificado para o efeito, o Ministério Público deduziu oposição, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 178º, n.º 8 do Código de Processo Penal. Para prova do alegado, o Ministério Público juntou aos autos dois documentos e os apensos jurisdicionais G, AB, T, AF e AJ. (…) III - Fundamentação 1. A questão sub judice consiste em saber se subsistem ou não os requisitos legais para a manutenção da apreensão cautelar dos saldos bancários das contas tituladas pela requerente 1.1. O artigo 178º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Objeto e pressupostos da apreensão”, prescreve, no seu n.º 1, que: “São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico (…)”. De acordo com o artigo 178°, n.º 7 do Código de Processo Penal que “os titulares dos instrumentos, produtos ou vantagens podem requerer a modificação ou a revogação da medida de apreensão”. Nos termos do artigo 186º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os animais, as coisas ou os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito”. Acrescenta o n.º 2 do artigo 186º do Código de Processo Penal que: "logo que transitar em julgado a sentença, os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado". O artigo 181º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Apreensão em estabelecimento bancário”, prescreve, no seu n.º 1, que: “O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objetos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome”. A apreensão de saldos bancários prevista no artigo 181º do Código de Processo Penal é um meio de obtenção e conservação de prova que poderá simultaneamente funcionar como meio de garantia patrimonial, que visa assegurar a execução ou a perda a favor do Estado de quantias que constituam vantagem de factos ilícitos típicos, nos termos definidos nos artigos 109º e 110º do Código Penal. O artigo 109º do Código Penal, sob a epígrafe “Perda de instrumentos”, dispõe o seguinte: “1 - São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática. 2 - O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz. 3 - Se os instrumentos referidos no n.º 1 não puderem ser apropriados em espécie, a perda pode ser substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A. 4 - Se a lei não fixar destino especial aos instrumentos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.”. Por sua vez, o artigo 110º do Código Penal, sob a epígrafe “Perda de produtos e vantagens”, estabelece o seguinte: “1 - São declarados perdidos a favor do Estado: a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem. 2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem. 3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado. 4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A. 5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz. 6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.”. Versando os autos principais de inquérito sobre investigação relativa, além do mais, à prática de crime de branqueamento de capitais, previsto e punível pelo artigo 368º-A do Código Penal, é aplicável in casu o regime especial de recolha de prova, quebra de segredo profissional e perda de bens a favor do Estado previsto na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro (artigo 1º, n.º 1, alínea i)). 1.2. In casu, por despacho proferido a fls. 6562 a 6584 dos autos principais de inquérito e datado de 15 de abril de 2021, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, foi decretada a apreensão dos saldos bancários das contas associadas ao n.º 54056570, em euros (com o ...) e em dólares norte-americanos (USD) (com o ...), domiciliadas no ... (...), da conta n.º ..., com o ..., domiciliada no ... (...) e da conta com o ..., domiciliada no ... (...), todas tituladas pela requerente, nos termos do artigo 181º, n.º 1 do Código de Processo Penal, com fundamento na existência de indícios de que as quantias depositadas nas aludidas contas constituem vantagens provenientes da prática de factos típicos ilícitos, nomeadamente de crimes cometidos contra o Estado … e do crime de branqueamento de capitais, previsto e punível pelo artigo 368º-A do Código de Processo Penal, tendo como crimes precedentes os crimes objeto do processo crime n.º 48/2019, a decorrer perante a Justiça de ..., no âmbito do qual foi proferido despacho de acusação, em ... de ... de 2024, contra BB, CC, DD, EE e ..., por crimes de peculato, burla qualificada, abuso de poder, falsificação de documento, associação criminosa, participação económica em negócio, tráfico de influência, branqueamento de capitais, fraude fiscal e fraude fiscal qualificada. Em 2 de junho de 2021, a requerente deduziu um incidente de revogação da decisão de apreensão de saldos bancários, que foi autuado por apenso e correu termos sob o n.º 227/20.9TELSB-G, no âmbito do qual o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, por douto acordão proferido em 7 de julho de 2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, manter a apreensão decretada, em 15 de abril de 2021, dos saldos bancários das seguintes contas por si tituladas: contas associadas ao n.º 54056570, em euros e em dólares norte-americanos (USD), domiciliadas no ... e conta n.º ..., domiciliada no ..... No aludido acordão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do apenso n.º 227/20.9TELSB-G, considerou-se indiciada a seguinte matéria de facto, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido: “1- A Requerente AA foi constituída em ........2004, em ........2004 passou de sociedade por quotas a SA e, desde ........2010, a sua sede é na .... 2- ........2015: Criação de Comissão de reajustamento da organização do sector petrolífero, que previa a existência de um comité de avaliação e análise, por Despacho Presidencial nº 86/15 do ... FF. 3- ........2015: Celebração de contrato de prestação de serviços entre o ... e a ..., com sede em ... e representada por BB, contrato de consultadoria fixado em €8.500.000,00, com vista a que o comité supra referido fosse assessorado por técnicos para analisar as melhores práticas com vista a aumentar a eficiência do sector do petróleo. 4- ........2016: Foi aprovado o modelo de reajustamento da organização do sector petrolífero e o respectivo calendário de implementação, por Decreto Presidencial nº 109/2016. 5- ........2016: Autorização do Ministro das Finanças de ... para realização de pagamento à ... no valor de 1.818.182,00€. 6- ........2016: Autorização do Ministro das Finanças de ... para realização de um pagamento à ... no valor de 4.545.455,00€. 7- BB exerceu funções de presidente do conselho de administração da ... entre ........2016 e ........2017. 8- Final de ... de 2016: Os trabalhos que foram propostos à AA, como ..., e a ter início no final de ... de 2016, implicaram o desenvolvimento de serviços na ..., implementando, em conjunto com várias consultoras, cada uma na sua área de especialização, as decisões vertidas no Decreto Presidencial 109/16 e as orientações que resultaram do estudo prévio levado a cabo pela .... Além da AA, estavam envolvidas, no projecto de implementação do modelo aprovado, as seguintes entidades como consultoras: ... — entidade gestora e coordenadora do projecto de ajustamento e reorganização do sector. ... — entidade com vasta experiência em processos de transformação da indústria de ..., organização e operações. ... — entidade para a área da auditoria, consultoria financeira, fiscal e de operações. ... — entidade com experiência na consultoria estratégica e na transformação empresarial. ... — firma de advocacia com experiência em ... e no sector ... / ... — entidades responsáveis pela área de capital humano. Em ...de 2016, têm início os trabalhos da AA na .... De ... de 2016 a... de 2017, a equipa de consultores envolvida no projecto foi sendo reforçada, conforme a evolução dos trabalhos: 12 consultores alocados ao projecto entre ... e ... de 2016 16 consultores entre ... e ... desse mesmo ano. 17 consultores entre ... e ... de 2017. 18 consultores entre ... e ... de 2017. 23 consultores entre ...e ... de 2017. 34 consultores entre ... e ... de 2017 (9 dos quais contratados especificamente para ingressar a equipa de formação "on-the-job" deslocada permanentemente em ..., nas instalações da ...) (conforme doc. De fls. 56-58). Tendo a AA ficado responsável pela componente …, participou na execução de inúmeras tarefas em colaboração com diversas equipas das várias empresas envolvidas no projecto, nomeadamente a ...) — ..., a ..., a ... e a .... 9 - ........2017: Abertura de duas contas bancárias junto do ... em nome da ..., contas que, até ........2017, tinham como autorizados principais as pessoas de BB e de GG. 10- ........2017: Constituição da Sociedade ... com sede no ... tendo como beneficiária EE e HH como .... Em ........2017 a ... passou a denominar-se .... 11- O ... autorizou a ... a ceder a sua posição contratual a terceiros e autorizou a ... a assumir os custos incorridos com a consultadoria – através de uma adenda não assinada. ........2017: A ... cedeu a sua posição contratual à sociedade .... 13- ........2017: ... – subsidiária da ... celebra com ... contrato de consultadoria. 14- Entre ...-...-2017 a ...-...-2017 foram realizadas transferências bancárias com destino à ... no montante de: 60.219.836,95€ a partir da conta em euros da ... junto do ...; 59.505.778,10usd, a partir da conta usd titulada pela ... junto do .... 15- A conta em USD, conta ... n° 73050816.15.001, foi creditada, ao longo do ano de ..., com montantes vindos do ..., de ..., num montante total próximo dos 56 milhões de USD, mas também vindos de uma sucursal da ... nas ilhas ..., via ..., de ..., no montante total de USD 57.865.770,22, e ainda de uma outra conta da ... no ..., no montante total de cerca de 40 milhões de USD. 16- A conta em Euros da ..., conta ... n° 73050816.10.001, foi creditada, ainda em ... de 2017, com uma transferência no montante de € 67.065.000,00 com origem numa conta do ..., a partir de uma conta em nome da entidade .... 17- Todas essas operações a débito nas contas ... da ... com destino à ... foram justificadas como sendo pagamentos de prestações de serviços alegadamente contratadas entre a ... ou o ... e as entidades ..., numa primeira fase, e a entidade ..., que a partir de ... de 2017 passou a chamar-se .... 18- Estes factos, por suscitarem suspeitas sobre o sentido das operações que, em final de mandato BB determinou a débito de contas da ... e a favor de entidade da sua esfera, são objecto de inquérito crime que corre os seus termos em ..., Processo n° 48/19 que corre termos junto do ... e onde foi determinada a constituição como arguidos dos referidos BB, EE e CC — processo que deu origem a um pedido de cooperação internacional registado neste DEIAP com o NUIPC 216/20.3... TELSB. 19. A AA figura como titular de contas junto do ..., em Euros e USD, associadas ao n° 54056570, tendo sido registadas, na conta em Euros, a partir de ... de ... de 2017, 10 transferências e em ... 3 transferências, todas com origem no ... nas contas da ..., que atingiram, até ... de 2018, um total de 10.366.895,23 euros, os quais começaram, por numa primeira fase, ser aplicados em depósitos a prazo. (conforme apenso bancário 2 e balancete geral junto ao apenso de busca 11). A AA recebeu em ...-...-2016 uma transferência com origem na ... no valor de 118.839,46€, em ...-...-2017 no valor de 154.209,85€ e em ...-...-2017 no valor de 554,40€ (conforme resulta do Apenso Bancário 2 e balancete geral. Deste modo, do Apenso Bancário 2 resulta que, em .../.../2017, .../.../2017, .../.../2017, .../.../2017, .../.../2017, .../.../2017, .../.../2017, .../.../2017, .../.../2017, .../.../2017, .../.../2018, .../.../2018 e .../.../2018, a ... transferiu para a referida conta bancária ... n.° ..., respectivamente, os valores de 436.391,23 euros, 942.360,48 euros, 666.550,04 euros, 913.506,19 euros, 296.431,84 euros, 1.002.098,67 euros, 210.900,00 euros, 748.800,00 euros, 2.262.058,39 euros, 1.859.754,91 euros, 933.630,00 euros, 51.404,07 euros e 43.009,41 euros, no montante global de 10.366.895,23 euros. Tais montantes, inicialmente aplicados em depósitos a prazo, foram depois transferidos para outras contas da mesma AA, designadamente junto do ... e do ..., e mesmo para contas no exterior, já em data recente. 20- A AA é titular da conta ... n° ..., para a qual foi transferido, a partir da conta ... em ... de ... de 2019, o montante de € 1.200.000,00. 21- AA é titular de conta junto do ..., com o ..., para onde também foram encaminhados fundos, quer com origem na conta ..., quer com origem na conta .... 22- Em ... e ... de 2019, a conta da AA junto do ... foi debitada por várias transferências, num total de cerca de 2,7 milhões de euros, para contas domiciliadas no .... 23- A partir das contas da AA são feitos pagamentos para a ..., que tem como gerente DD. 24.Conforme resulta do 16 do Auto de Busca e Apreensão de fls 2-6 do Apenso de Busca 1, a AA emitiu à ... e ... a facturação supra.”. Em ... de ... de 2021, a requerente deduziu um incidente de revogação da decisão de apreensão de saldo bancário da conta por si titulada sediada no ..., o qual foi autuado por apenso e correu termos sob o n.º 227/20.9TELSB-AF, e no âmbito do qual foi proferida decisão, datada de ... de ... de 2022 e transitada em julgado, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, que indeferiu a pretensão da requerente. Em ... de ... de 2023, a requerente deduziu um incidente de revogação da decisão de apreensão de saldo bancário das contas por si tituladas, o qual foi autuado por apenso e correu termos sob o n.º 227/20.9TELSB-AJ, e no âmbito do qual foi proferida decisão, datada de ... de ... de 2023 e transitada em julgado, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, que indeferiu a pretensão da requerente. Dos elementos constantes dos autos principais de inquérito e respetivos apensos subsistem os indícios da utilização do sistema financeiro nacional para desenvolvimento de operações de desvio de fundos da empresa pública ..., sua circulação por contas no exterior e posterior regresso a contas nacionais sob a esfera de BB, existindo fundadas razões para crer que os montantes apreendidos nas contas bancárias da requerente eram indevidos e constituíam vantagem de factos ilícitos (vide acordão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 7 de julho de 2022 no apenso n.º 227/20.9TELSB-G.L1). A tese defendida pela requerente, invocando a inexistência de indícios da origem ilícita dos valores depositados nas aludidas contas, não logrou convencer o Tribunal da sua bondade e acerto, na medida em que não se mostra sustentada em termos probatórios. Efetivamente, a requerente não juntou aos autos qualquer prova do por si alegado de modo a infirmar os indícios que sustentaram a decisão de apreensão, não se vislumbrando a existência nos autos de qualquer contrato que sustente a prestação de trabalhos por parte da requerente a favor da ... a partir de finais de ... de 2016, nem qualquer documento que ateste a celebração de contrato entre a requerente e qualquer empresa subsidiária da ..., nem qualquer outro documento suscetível de definir o objeto, o prazo, o modo de prestação de serviços, as condições, o número e a identificação dos trabalhadores/colaboradores da requerente envolvidos e o número de horas de serviços concretos prestados e os respetivos valores. Nestes termos e nos constantes da oposição do Ministério Público, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, verifica-se que a apreensão dos saldos bancários das contas tituladas pela requerente foi efetuada nos termos legalmente previstos e os pressupostos de facto e de direito que determinaram tal apreensão mantêm-se inalterados, mostrando-se tal medida necessária, desde logo, para impedir a dissipação dos valores ilegitimamente subtraídos e assegurar a possibilidade de executar uma eventual declaração de perda dos produtos/vantagens do crime a favor do Estado, nos termos do artigo 110º do Código Penal. Assim sendo, subsistindo os pressupostos que determinaram o decretamento da apreensão dos saldos bancários das contas tituladas pela requerente e não se verificando o circunstancialismo a que alude o artigo 186º do Código de Processo Penal, inexiste fundamento legal para determinar a revogação da apreensão à luz do disposto no artigo 178º, n.º 7 do Código de Processo Penal. Face ao exposto, não se vislumbrando a existência de qualquer vício que cumpra declarar, deverá ser julgado totalmente improcedente o presente incidente. * IV. Decisão Face ao exposto, julgo totalmente improcedente o incidente suscitado pela sociedade AA e, consequentemente, indefiro o pedido de revogação da apreensão dos saldos bancários das contas tituladas pela requerente. (…)
Inconformada com a decisão, a Requerida interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões: (…) I. Da Omissão de Pronúncia 1. A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. 2. A pronúncia cuja omissão determina a consequência prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP – a nulidade da sentença – deve incidir sobre problemas, os concretos problemas, as questões específicas sobre que é chamado a pronunciar-se o tribunal (o thema decidendum). 3. Ora, in casu, precisamente a sentença é nula por padecer de evidente omissão de pronúncia, na medida em que, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a questão da inconstitucionalidade suscitada na Petição da Recorrente quanto à manutenção da medida de apreensão, 4. Bem como, o Tribunal de 1.ª Instância não decidiu a questão de direito suscitada quanto à manutenção da medida de apreensão criar uma situação de incerteza jurídica, eternizando sem tempo as restrições de direito de propriedade privada e da livre iniciativa privada da Recorrente . 5. Estas questões submetidas ao tribunal constituem o “thema decidendum”, como complexo de problemas concretos sobre o qual este é chamado a pronunciar-se, abordar e resolver. 6. A omissão de pronúncia constitui, pois, uma patologia da decisão manifestada na apontada incompletude da decisão. 7. O que conduz à omissão de pronúncia, gerando a nulidade desta Decisão judicial. II. Inconstitucionalidade da interpretação do art.º 181.º do Cod Processo Penal 8. A apreensão de saldos bancários restringe direitos fundamentais, tais como o direito de propriedade da Recorrente, o que obriga o julgador a ponderar a sua manutenção de acordo com os critérios da necessidade, adequação e proporcionalidade consagrados no artigo 18° da CRP. 9. Precisamente, estes princípios foram manifestamente violados, pela sentença em crise, que decidiu manter a medida de apreensão de contas bancárias, apesar de o processo de inquérito persistir há mais de 5 anos, esgotadas todas as diligências probatórias realizadas pelo Ministério Público, sem decisão de encerramento. 10. O Tribunal a quo não ponderou, na sua decisão, se era proporcional e adequado manter a apreensão, restringindo o direito de propriedade da Recorrente, há mais de cinco anos, sem perspectivar, no horizonte o desfecho da investigação. 11. Esta duração injustificada do processo de inquérito e da medida de apreensão ofendem o desiderato fundamental do um processo Penal, a celeridade processual. 12. Permanece um direito fundamental de todos os cidadãos obter justiça num prazo razoável, tal como consagrado nos artigos 20.º/4 e 32.º/2 da Constituição e no artigo 6.º/1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 13. Consequentemente, é a protecção dos direitos fundamentais, que exige ao Juiz de Instrução, enquanto juiz das liberdades ou juiz das garantias, a avaliação da validade de uma medida de apreensão, decretada num processo de inquérito cujo prazo de duração máximo (14 meses) foi há muito ultrapassado. 14. Razão pela qual o legislador português previu de forma expressa, no artigo 276.º do CPP, os prazos de duração máxima do inquérito, não optando por uma formulação vaga ou indeterminada no que tange ao seu entendimento de que o inquérito deve ser célere. 15. Desconsiderar tais prazos, como o fez o Tribunal de 1.ª Instância, implica uma derrogação do princípio da legalidade consagrado logo no artigo 2.º do CPP e, consequentemente, das ideias de que nulla poena, nullum crimen y nulla coactio sine lege e implica uma violação do disposto no artigo 20.º, n.º 5, da CRP: “para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”. 16. Por outro lado, aquilo que inapagavelmente subjaz à ideia que a sentença transmite- de que se pode investigar sem prazo- é a convicção de que o arguido é culpado: ainda não se encontraram indícios bastantes da sua culpa, mas com mais tempo eles encontrar-se-ão. 17. Tal interpretação é inadmissível, a presunção de inocência tem de ser levada a sério em todas as suas implicações e repercussões, impondo a conclusão oposta: não se encontraram elementos suficientes para sustentar a responsabilidade criminal do investigado dentro do prazo dado pelo legislador, por isso ele é inocente. 18. Um atraso demasiado longo, como o caso dos autos, não será nunca justificado, sob pena de a complexidade relativa do caso poder levar ao esvaziamento da garantia do prazo razoável. 19. É, nesta estrita medida, inconstitucional a interpretação pugnada pelo Tribunal a quo quanto à aplicação do art. 181º, n.º 1, do CPP, a qual consubstancia uma violação flagrante dos princípios da adequação, proporcionalidade, bem como, do princípio da presunção da inocência e do direito constitucional da propriedade privada, tal como se encontram consagrados nos artigos 18°, n.º 2, 32º, nº 2, e 62º da CRP. Nestes termos e nos melhores de direito deve o Presente Recurso lograr obter provimento e como tal ser revogada a sentença proferida pelo Tribunal a quo, devendo ser prolatado Acórdão o qual decide revogar a medida de apreensão decretada nestes autos, fazendo assim V. Ex. Justiça. (…)
O Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo: (…) Questão prévia I. O douto despacho recorrido, através do qual se manteve uma medida de apreensão, não é uma sentença, pois que não conhece a final do objecto do processo (art. 97.° n.° 1 al. a) e 379.° n.° 1 al. c) do CPP). II. A ocorrer uma omissão de pronúncia como alega a recorrente, tal vício não geraria uma qualquer nulidade, mas uma mera irregularidade, a qual deveria ter sido arguida no prazo e nos termos estabelecidos no art. 123.° n.° 1 do CPP; tal não sucedeu e determina a sanação do invocado vício. III. É pois manifesta a improcedência desta pretensão, impondo-se a sua rejeição, nos termos do art. 420.° n.° 1 al. a) do Código de Processo Penal (CPP) e do Assento do STJ n.° 10/1992 de 24/06/1992. *** Resposta à motivação de recurso Da alegada omissão de pronúncia (sem prejuízo da questão prévia). IV. A Mma. JIC a quo apreciou a questão que lhe foi colocada pela ora recorrente, qual seja, a de saber se os saldos das contas bancárias da requerente deveriam ou não continuar apreendidos, e, fundamentou cabalmente a sua decisão. V. A omissão de pronúncia só se verifica quando o Juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos. VI. A argumentação e a interpretação jurídicas da ora recorrente relativa ao suposto impacto do tempo decorrido na manutenção da apreensão, não eram as questões a decidir. Contudo, ainda assim o Tribunal a quo fez alusão a tal questão. VII. O douto despacho recorrido não padece do invocado vício de omissão de pronúncia. Da alegada violação de princípios e normas VIII. Para aferir da legalidade da manutenção da apreensão, não importa averiguar do tempo decorrido desde o início da investigação ou desde o decretamento da apreensão, mas sim se permanecem/subsistem os pressupostos de facto e de direito que justificaram a decisão de apreensão. Ora, tais pressupostos permanecem inabaláveis. IX. A manutenção da apreensão para além do termo do prazo máximo de duração do Inquérito fixado pelo art. 276.° do CPP não viola os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade consagrados no art. 18.° n.° 2 da CRP, ou o direito de propriedade privada estabelecido no art. 62.° da CRP, ou o princípio da legalidade do art. 2.° do CPP, ou o direito a um processo célere previsto nos arts. 20.° n.° 5 e 32.° n.° 2 da CRP, ou o princípio da presunção de inocência previsto no art, 32.° n.° 2 da CRP. X. O douto despacho recorrido não viola quaisquer princípios ou normas jurídicas, inffaconstitucionais ou constitucionais, designadamente os indicados pela recorrente, tendo o Tribunal a quo efectuado uma correcta interpretação e aplicação do art. 181.° n.° 1 do CPP. (…)
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O recurso foi admitido, com forma, modo e efeito devidos.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, remetendo para as conclusões da resposta ao recurso, emitiu parecer no sentido da improcedência do mesmo.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, veio o processo à Conferência.
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Objecto do recurso
Resulta do disposto conjugadamente nos arts. 402º, 403º e 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal que o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o Tribunal está ainda obrigado a decidir todas as questões que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem a decisão, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 daquele diploma, e dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do mesmo Cód. Proc. Penal, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito, tal como se assentou no Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995 [DR, Iª Série - A de 28.12.1995] e no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº 10/2005, de 20.10.2005 [DR, Iª Série - A de 07.12.2005].
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º, por remissão do artº 424º, nº 2, ambos do mesmo Cód. Proc. Penal, resulta ainda que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem preferencial:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão (artº 379º do citado diploma legal);
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela chamada impugnação alargada, se deduzida [artº 412º], a que se segue o conhecimento dos vícios enumerados no artº 410º nº 2 sempre do mesmo diploma legal.
Finalmente, as questões relativas à matéria de direito.
Tendo em vista este princípio, que será de adaptar à apreciação de qualquer decisão que venha à apreciação pelo Tribunal de recurso, averigue-se o caso.
A Requerida, nas conclusões do recurso, fixa o objecto de apreciação nas seguintes questões:
- nulidade da sentença por omissão de pronúncia: o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a questão da inconstitucionalidade suscitada e não decidiu a questão de direito suscitada quanto à manutenção da medida de apreensão;
- compatibilidade com os princípios constitucionais da decisão de manter a apreensão decorridos que são cerca de cinco anos sobre a mesma.
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Fundamentação
Ficou transcrita [quase integralmente, mas no que releva] a decisão recorrida.
Atento o objecto do recurso, importa conhecer.
Vem a Requerida dizer que a decisão recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia, não se tendo pronunciado sobre o thema decidendum.
Antes de tudo, importa concretizar a questão. Efectivamente, para que se verifique a nulidade da sentença por omissão de pronúncia (que o reclamante invoca), é necessário que o Tribunal deixe de se pronunciar sobre questões pertinentes para o objecto do processo. No entanto, a eventual não ponderação de algum argumento, tese ou doutrina esgrimidos pelos sujeitos processuais escapa ao referido vício decisório, desde que a questão colocada e em cuja discussão se insiram seja efectivamente apreciada e decidida ou não faça parte do objecto da decisão. Este entendimento é pacífico e generalizado, a nível jurisprudencial, como nos dá conta, entre muitos outros, o Ac. do STJ de 02.02.20061.
Ora, nós sabemos que a decisão deve pronunciar-se sobre as questões suscitadas que tenham relevância, atento o objecto do processo.
Mas não apenas isto.
É que para este vício da sentença se verifique (artº 379º do Cód. Proc. Penal), é preciso que estejamos perante um acto decisório que revista essa natureza (artº 97º, nº 1, al. a) do Cód. Proc. Penal), ou seja, constitua uma decisão que conheça a final do objecto do processo.
Neste caso, porém, e tal como diz o Ministério Público como questão previa na sua resposta, não estamos aqui perante uma decisão que ponha termo ao processo, mas perante um despacho, ainda que decisório da questão (incidental) que aprecia.
Assim como o processo se não confunde com o incidente (inominado) em causa, também a decisão que recaia sobre esse incidente não constitui verdadeira sentença.
Conquanto seja um acto decisório, não é uma sentença.
Conquanto deva ser fundamentado (artº 97º, nº 1, al. b) do Cód. Proc. Penal), não é susceptível de ser-lhe apontada a nulidade a que alude o artº 379, nº 1, al. c) do mesmo diploma legal.
A decisão, para que se considere fundamentada, e ainda que não seja sentença, deve pronunciar-se sobre o thema decidendum, sendo este o limite anterior e posterior da intervenção do decisor.
Mas qual é aqui o thema?
O que está em causa é um requerimento da aqui Requerente, dirigido ao processo, em que expressamente requer o levantamento da apreensão que se mostra vigente.
Ora, quanto a essa questão, que constitui o objecto do referido requerimento, a decisão é muito clara, respondendo-lhe directamente: a apreensão mantém-se, indeferindo-se o requerido nos termos dos fundamentos que ali expressa.
Não se mostra, neste circunspecto, qualquer questão por esclarecer, até porque, como sabe a requerente, os requerimentos que tem dirigido ao processo com igual objectivo têm seguido o mesmo formalismo, notificando-se o Ministério Público para se pronunciar sobre o requerido levantamento e decidindo-se depois pela sua manutenção.
Assim, não há qualquer omissão de pronuncia da decisão nesse sentido, porque esta devia pronunciar-se, e só esse era o seu conteúdo obrigatório, sobre o que lhe foi pedido.
No entanto, o Ministério Público vem também dizer que, não estando nós perante uma sentença, não pode a Requerente imputar-lhe um vício que a lei de processo reserva para actos daquela natureza.
E tem, de facto, razão.
Estamos no âmbito de um incidente (inominado), previsto como tal no Cód. Proc. Penal – conjugando-se o disposto no artº 178º, ns. 7 e 8 do Cód. Proc. Penal – que termina com um despacho judicial que, conhecendo da necessidade de manter ou não a apreensão, decida em conformidade.
Este despacho, devendo cumprir os deveres gerais de fundamentação previstos no artº 97º, nº 1, al. b) citado, decidindo o incidente que é um procedimento lateral em face do objecto do processo em que se ordenou a apreensão, não decide o objecto desse processo, pelo que não pode considerar-se decisório no sentido de ter a natureza de sentença e poderem ser-lhe apontados os vícios inerentes a esta natureza.
Tendo de ser fundamentada a decisão, pode ser ela objecto de oposição, até por recurso, por se considerar sem a fundamentação exigida pelo referido artº 97º.
Mas não é susceptível de ser-lhe oposto qualquer dos fundamentos referidos no artº 379º citado, norma pensada especificamente para as decisões que visem o substrato essencial do processo, a apreciação global da prova após pleno exercício do contraditório. Pois que só assim faz sentido o tipo de impugnação que aí vem descrita.
E não estando nós perante uma decisão no referido sentido, a invocada omissão seria atacável enquanto irregularidade do acto, apenas, no respectivo prazo (artº 123º do Cód. Proc. Penal), pelo que o direito estaria precludido aquando da interposição deste recurso.
Ou seja, a considerar-se que a questão da constitucionalidade suscitada devia ter merecido argumento na fundamentação da decisão que, por isso, devia ter-se pronunciado sobre ela, essa omissão de conhecimento constitui uma irregularidade, vício devia ter sido arguido/invocado como tal, no respectivo prazo (artº 123º do Cód. Proc. Penal), tendo-se sanado por via de o não ser, e sendo insusceptível de fundamentar agora neste recurso.
Pelo que, sendo este recurso inadmissível quanto ao referido fundamento, e verificando-se que todo o restante objecto recursivo se dirige à viabilização dele, nada sendo aqui cindível, nada mais haverá aqui a decidir.
É, pois, de improceder nesta parte o recurso, improcedência essa que, caso fosse fundamento único de recurso, determinaria a manifesta improcedência dele (artº 420º, nº 1, al. a) do Cód. Proc. Penal).
Mas a recorrente vem ainda suscitar a questão de saber - e tomando-a nesta singularidade que permite, sem reportar a questão apenas ao fundamento antes aduzido, caso em que estaria prejudicado o conhecimento -, ainda que destacando esse conteúdo daquele prejudicado objecto, se o facto de a apreensão se manter há cerca de cinco anos [atenta a data do requerido], atentar as consequentes inerências na vida da visada, não constitui, em si mesmo, uma violação da Constituição, desde logo da presunção de inocência aí consagrada.
Estamos em crer que este singular fundamento objectivado daquela forma e sem reporte necessário à questão já decidida pode e deve ser aqui conhecido.
Vejamos, pois.
Tal como se referenciou na decisão de que se recorre, a apreensão de saldos bancários foi determinada em 15.04.2021, por despacho judicial, e nos termos do artº 181º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, porquanto se considerou indiciado que as quantias depositadas nas aludidas contas constituem vantagens provenientes da prática de factos típicos ilícitos, nomeadamente de crimes cometidos contra o Estado … e do crime de branqueamento de capitais, previsto e punível pelo artigo 368º-A do Código de Processo Penal, tendo como crimes precedentes os crimes objeto do processo crime n.º 48/2019, a decorrer perante a Justiça de ..., no âmbito do qual foi proferido despacho de acusação, em ... de ... de 2024, contra BB, CC, DD, EE e ..., por crimes de peculato, burla qualificada, abuso de poder, falsificação de documento, associação criminosa, participação económica em negócio, tráfico de influência, branqueamento de capitais, fraude fiscal e fraude fiscal qualificada2.
Sucessivamente têm vindo a ser deduzidos incidentes para levantamento daquela, mantendo-se ela e indeferindo-se, portanto, os fundamentos invocados para alteração daquela situação, incidentes esses que, inclusivamente, mereceram intervenção deste Tribunal quando recorridas as decisões, confirmando as mesmas.
Os indícios em que sucessivamente se faz assentar a manutenção da apreensão são os que vêm sucessivamente também a ser reconhecidos pelas referidas decisões de manutenção.
Nem esses indícios aqui se discutem, porque não é a avaliação dos indícios que pode estar em causa para esta nossa apreciação, pois que esse era conteúdo da questão que acabou de se considerar suscitada a destempo e nessa parte improcedente o recurso, e nem aqui se trata de avaliar os pressupostos da apreensão que já foram suficientemente escrutinados, até por este Tribunal de recurso.
Do que se trata, simplesmente, pois que é esse o conteúdo sobrante e limite à disponibilidade de cognição deste Tribunal, é saber se uma apreensão que dura há cinco anos assente pressupostos que não se alteraram se compatibiliza com os princípios da nossa Constituição, desde logo com a presunção de inocência que, por via dessa duração e falta de decisão definitiva sobre aqueles pressupostos, parece eternizar a apreensão, convertendo-a numa decisão antecipada de culpabilidade quando, em benefício do visado, devia partir-se do ponto inverso.
Não é nova a questão e nem aqui se pretende ser original.
De facto, já o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre esta concreta questão, entendendo que a duração da medida não conflitua com a protecção constitucional dos direitos, desde logo considerando não haver violação da referida presunção.
Destacamos o acórdão do Tribunal Constitucional nº 294/20083 em que se deixa claro que a manutenção da apreensão além dos prazos de duração do inquérito sem dedução de acusação, conquanto verificados os pressupostos resultantes do disposto nos arts. 181º e 186º do Cód. Proc. Penal, tendo ainda em vista que essa apreensão pode ser determinante para a recuperação desses activos indevidamente apropriados na sequência de decisão final que determine a sua perda, não constitui qualquer violação daquela presunção e nem de qualquer outro direito tutelado por referência a princípios constitucionais.
Estarão em causa fundamentalmente três ponderações fundamentais.
Em primeiro lugar, a circunstância de a apreensão ser feita no cumprimento da legalidade imposta, ou seja, verificando-se os pressupostos do artº 181º do Cód. Proc. Penal.
Esta legalidade está sucessivamente confirmada nestes autos, resultando da resposta do Ministério Público a este incidente mesmo uma cronologia pormenorizada dos requerimentos, decisões e manutenção dessa apreensão, com profícuo fundamento para que integralmente se remete por economia e relevância lateral neste momento.
Em segundo lugar, a circunstância de assentar a manutenção na verificação sucessiva desses pressupostos, em face da avaliação das exigências processuais, seja, do que se mostre ainda necessário acautelar no processo cuja investigação está ainda em curso.
E as decisões têm todas considerado que, mantendo-se a investigação e não tendo havido qualquer decisão no âmbito dela que permita desconsiderar a necessidade da referida medida, ela é de manter.
Em terceiro lugar, a circunstância de, estando em causa a investigação de criminalidade complexa, que envolva também complexos actos de recolha, avaliação e validação de prova, não sendo por isso respeitado o prazo de inquérito e sem que tenha, a requerimento de algum interessado, sido deferido incidente de aceleração processual ou, tendo sido deferido, haja justificação validade hierarquicamente para prorrogar os respectivos prazos, ser evidenciado que a apreensão se mantém porque não há decisão no inquérito por motivo justificado.
Assim, enquanto se mantiver o justo interesse da apreensão, quer para fins probatórios quer para fins de recuperação desses activos no final do processo, é de considerar justificada a apreensão e, por isso, legal e, como tal, constitucionalmente compatível com as garantias dos cidadãos em geral e do processo penal em particular.
Como se diz na decisão referida supra: (…) O artigo 276.º do CPP determina, na verdade, a fixação de prazos de duração máxima do inquérito, de acordo com a situação do arguido, o tipo legal de crime e a complexidade da respectiva investigação, podendo o Procurador-Geral da República determinar, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, a aplicação do regime de aceleração processual, nos termos do artigo 109.º, quando tenham sido ultrapassados esses prazos. Todavia, a única consequência que decorre do incumprimento desses prazos, ou daqueles que forem fixados em aplicação do mecanismo previsto no artigo 109º, é a agora estabelecida no artigo 89º, n.º 6, do CPP, na redacção da Lei n.º 47/2007, de 27 de Agosto (que se entende ser imediatamente aplicável), que se traduz na possibilidade de levantamento do segredo de justiça, a requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido. Nada permite, por outro lado, concluir que a ausência de libelo acusatório, no termo do prazo máximo definido para a duração do inquérito, representa a inexistência de índicios da prática de crime, já que esse prazo é meramente ordenador e a sua ultrapassagem, para além da consequência processual há pouco mencionada, não tem quaisquer efeitos preclusivos. (…)
Assim, mostrando-se justificada a apreensão nos referidos termos, o prazo de duração da mesma não conflutua com os princípios constitucionais.
Nem por via desta legalidade que inere à sua determinação e sucessiva manutenção, assente no pressuposto da sucessiva verificação do respeito pelo conteúdo normativo do artº 181º citado, nem por via, como também vem de se suscitar, de qualquer desconformidade entre esta interpretação que se faz daquele dispositivo com o Texto Fundamental.
De facto, também a esse respeito se pronunciou o mesmo Ac. Tribunal Constitucional, aí se escrevendo: (…) Conforme o Tribunal Constitucional tem sublinhado noutras ocasiões e constitui entendimento doutrinário assente, o direito de propriedade, tal como previsto no artigo 62º, n.º 1, da Constituição, não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições definidas noutros lugares do texto constitucional ou na lei, quando a Constituição para ela remeter, ainda que possa tratar-se de limitações constitucionalmente implícitas (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição revista, Coimbra, pág. 801; Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, Coimbra, pág. 628). Referindo-se especialmente às apreensões em processo penal (estando então em causa a norma do artigo 178º, n.º 3, do CPP de 1987, na sua redacção originária), o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87 (publicado no Diário da República n.º 33, I Série, de 9 de Fevereiro de 1987), afirmou que as apreensões, quando autorizadas ou ordenadas pela autoridade judiciária, nos casos referidos nesse preceito, não podem deixar de considerar-se um limite imanente ao direito de propriedade, daí se extraindo a sua completa conformidade com a garantia constitucional. E, na mesma linha de orientação, o acórdão n.º 340/87 (publicado no Diário da República n.º 220, II Série, de 24 de Setembro de 1987) entendeu que o artigo 108º do Código Penal de 1982 (também na sua redacção originária), quando prevê a perda a favor do Estado de objectos de terceiro, não é inconstitucional, por violação do direito de propriedade, por ser de considerar que esse direito constitucional pode ser sacrificado em homenagem aos valores da segurança das pessoas, da moral ou da ordem pública enquanto elementos constitutivos do Estado de Direito democrático. No caso vertente, não se vê que a manutenção da aprensão de quantias para além dos prazos legalmente fixados para o termo do inquérito, represente uma restrição ilegítima do direito de propriedade por violação do princípio da proporcionalidade, designadamente na sua dimensão de adequação aos fins visados pela lei. Vimos que a apreensão tem a dupla função de meio de obtenção de prova e de garantia patrimonial do eventual decretamento de perda de valores a favor do Estado (cfr. Damião da Cunha, Perda de bens a favor do Estado, Centro de Estudos Judiciários, 2002, pág. 26), e, nesse sentido, tem pleno cabimento que enquanto providência processual instrutória ela possa manter-se até à fase de julgamento e venha apenas a ser declarada extinta com a sentença final (absolutória ou condenatória), quando nela tenha sido entretanto fixado o destino a dar aos bens apreendidos. A apreensão de bens ou valores que constituam o produto do crime não está relacionada, por isso, com quaisquer vicissitudes processuais, mas unicamente com os próprios fins do processo penal, e é justificada à luz do interesse da realização da justiça, nas suas componentes de interesse na descoberta da verdade e de interesse na execução das consequências legais do ilícito penal. E neste plano de compreensão tem relevo chamar a atenção para o facto de estarmos perante formas de criminalidade económica-financeira organizada que é de muito difícil prova e relativamente à qual o legislador sentiu necessidade, através da mencionada Lei n.º 5/2002, de adoptar medidas especiais de controlo e repressão, mediante a derrogação do segredo fiscal e bancário, para facilitar a investigação criminal (artigos 2º a 5º), a permissão do registo de voz e de imagem, como específico meio de produção de prova (artigo 6º), e a previsão de um mecanismo especial de perda de bens a favor do Estado tomando por base a presunção de obtenção de vantagens patrimoniais ilícitas através da actividade criminosa (artigo 7º) – sobre estes aspectos, Damião da Cunha, ob. cit., págs. 7-10). Num outro plano, os recorrentes invocam ainda a violação do princípio da presunção da inocência do arguido e do direito ao processo célere, tal como consagrados no artigo 32º, n.º 2, da Constituição. (…)
Nestes termos, que aqui se subscrevem e reafirmando os fundamentos da decisão recorrida no estrito âmbito desta apreciação, mantendo-se os factos indiciados em investigação e nenhum elemento justificante se apresente com a virtualidade de derrogar aquela apreensão, sendo ela conforme ao direito e à Constituição, também nesta parte é de improceder o recurso.
Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente não provido o recurso.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC’s, a que acrescem os demais encargos legais.
Notifique.
Lisboa, 08 de Outubro de 2025
Hermengarda do Valle-Frias
Lara Martins
João Bártolo
Texto processado e revisto.
Redacção sem adesão ao AO
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1. Processo nº 05P2646 [Relator Cons. Simas Santos] – cit. no Ac. TC nº 268/2024 de 03.04.2024.
2. Destaques nossos.
3. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080294.html.