NULIDADE DA SENTENÇA
DECISÃO SURPRESA
REVOGAÇÃO DA DOAÇÃO POR INGRATIDÃO
Sumário

(elaborado pela Relatora, nos termos do artigo 663, n.º 7, do Código de Processo Civil)
I - A nulidade da sentença prevista no art.º 615º, n.º 1, al. b), do CPC, só se verifica quando existe uma falta absoluta de fundamentação, ou quando essa fundamentação se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial;
II - Não há decisão surpresa, violadora do princípio do contraditório previsto no art.º 3º, n.º 3, do CPC, quando a solução final alcançada pelo tribunal se moveu dentro do perímetro da causa pedir e do pedido, e num quadro jurídico que se afigurava como expectável ou que, pelo menos, poderia ter sido perspetivado pelas partes;
III - As causas de revogação da doação são apenas as previstas no art.º 974º do CC.
IV. Esse normativo prevê a possibilidade de revogação da doação por ingratidão em duas circunstâncias: “(…) quando o donatário se torne incapaz, por indignidade, de suceder ao doador (…), reportando-se às situações que determinam a incapacidade sucessória por indignidade, previstas no art.º 2034º do CC; e, “(…) quando se verifique alguma das ocorrências que justificam a deserdação”, reportando-se às situações de deserdação, previstas no art.º 2166º do CC.

Texto Integral

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
AA (…) intentou a presente ação declarativa de processo comum contra BB (…), o que fez em 08.03.2024, pedindo a revogação, por ingratidão da Ré na sua indignidade, da doação que o Autor celebrou em 18 de Maio de 2021 a favor da mesma.
Para o efeito, em síntese, alega:
- Por escritura pública celebrada a 18 de maio de 2021, doou à Ré metade indivisa da fração autónoma designada pelas letras “AO”, (…);
- Fê-lo, na sua boa fé, devido à fragilidade de que na altura padecia, com reflexos na sua vontade e cognição, que o levava a estar medicado com ansiolíticos e antidepressivos;
- Fê-lo com a aceitação da Ré;
- Há menos de um ano confirmou que era esse o desiderato e estratégia da Ré, que o enganou, não sendo a mesma merecedora do carinho e bondade que o Autor lhe votou, desmerecendo a sua generosidade e altruísmo;
- O Autor conheceu a Ré há 24 anos;
- Depois de uma relação de namoro, em outubro de 2004, começaram a viver juntos.
- O Autor, na convicção enganada de que os seus sentimentos e os da Ré, na relação que tinham, eram recíprocos, perspetivava viver com ela o resto da vida, o que o levou, 17 anos depois de estarem a viver juntos, a doar-lhe metade do prédio que adquirira e onde viviam;
- Para a compra desse imóvel, pelo preço de 120.000,00 €, o Autor aportou o montante de 85.000,00 € que recebeu da venda que fez de um prédio de que era único proprietário, sendo o valor remanescente do preço pago com as poupanças que o Autor tinha, a que acresce a quantia de 3.500,00 €, também sua, referente aos custos e encargos da formalização da aquisição;
- Quando se determinou a adquirir o imóvel o Autor nunca pensou em colocar a Ré também como titular do mesmo, o que foi levado a fazer pelos estratagemas da Ré que chegou a afirmar que se suicidaria;
- Poucos meses depois de estar “sentada” na titularidade de metade do imóvel que pelo Autor lhe foi doada, a Ré transformou a vida daquele num “inferno”, tendo também colocado fim à relação conjugal com o Autor, começando a relacionar-se amorosamente com outros homens, do qual se destaca um anterior companheiro com quem tinha a perspetiva de vir a viver mal este deixasse a companheira, o que fez sem qualquer inibição, à vista de todos, o que muito envergonhava o Autor;
- A Ré começou também a agredir verbal e fisicamente o Autor, o que, entre outras ocasiões, sucedeu no dia 1 de dezembro de 2022, em que, no interior da casa, a Ré lhe bateu com uma frigideira e, no mesmo dia, mais tarde, voltou a agredir o Autor, pretendendo simular uma atitude inversa;
- Condutas que o Autor relatou às entidades policiais e judiciais competentes, determinadoras da instauração de processos crime por violência doméstica;
- Este comportamento fazia parte da engenharia da Ré que já anteriormente, no dia 29 de novembro de 2022, agrediu o Autor, arranhando-o no peito e rasgando-lhe a t-shirt num acesso de fúria descontrolado;
- A mesma Ré, no período que decorreu entre 10 e 31 de agosto de 2023, na ausência do Autor do país e da casa, entrou e invadiu o quarto do Autor, fechado à chave, de onde lhe roubou os discos rígidos e memórias do seu computador pessoal, 2 pen-“drives”, CDs e livros, títulos de certificados de aforro, assim como todas as pastas pessoais que continham faturas a apresentar da empresa, contratos de serviços, contratos de trabalho e recibos de vencimento de empresas em que o Autor trabalhou e correntemente trabalha, diversos cheques do Banco Best associados à conta (…) de sua única titularidade;
- Essa situação determinou que o Autor tivesse apresentado nova participação criminal;
- O Autor procedeu à colocação de nova fechadura no seu quarto e a Ré repetiu a sua conduta quando, em nova ausência do Autor do país, no período de 11 a 25 de outubro de 2023, voltou a arrombar a fechadura do seu quarto, entrando no mesmo, de onde voltou a roubar documentação que o mesmo o possuía, como cópias das queixas criminais apresentadas, cadernos e apontamentos com notas pessoais da sua vida e de interações com o seu mandatário judicial, com agentes da PSP e da Associação da Vitima de Violência Domestica Casa Maria, bem como equipamento eletrónico, comida e areia para os gatos, roupa de cama e toalhas de banho;
- Essa situação determinou que o Autor tivesse apresentado nova participação criminal;
- O Autor instalou nova fechadura na porta do quarto;
- No dia 26 de outubro de 2023, a Ré, dentro de casa, voltou a injuriar e ameaçar o Autor, acusando-o de roubo, fuga de impostos e abuso de confiança, tendo-o empurrado para fora de casa e impedido a sua entrada na mesma;
- O Autor teve de suscitar, de novo, a intervenção da PSP que ali se dirigiu;
- O Autor apresentou queixa na decorrência de um episódio de violência doméstica ocorrido no dia 20 de fevereiro de 2024;
- No dia 19 de fevereiro de 2024 (entretanto o Autor viu-se na necessidade de instalar um sistema de vídeo vigilância no seu quarto, com câmaras que gravam) a Ré, sabendo que o Autor trabalha em casa, voltou a entrar no quarto do Autor, de onde roubou e destruiu diversos bens, incluindo a fibra ótica que habilita a habitação e que permite que o Autor possa trabalhar remotamente;
- A Ré arromba a fechadura do quarto onde o Autor dorme, trabalha e faz a sua vida, e não tem pejo em o ameaçar, insultar e agredir a qualquer momento, nas ocasiões em que ele está e vai à cozinha da casa para poder confecionar as suas refeições, chegando ao ponto de, ali, furtar os ingredientes que aquele compra para as confecionar, bem como a comida para os gatos que possuem:
- Essas e todas as demais e diárias ofensas, injúrias, ameaças e agressões que a Ré perpetrou contra o Autor, deram origem a processos por violência doméstica com vários aditamentos, que correm termos no Tribunal Criminal de Oeiras, perdendo-se a conta às vezes que o Autor teve de pedir a intervenção das forças de segurança, perante o perigo e risco em que estava a sua integridade física e moral;
- Pelo total desrespeito e ingratidão da Ré para com o Autor, como doador, este encontra-se arrependido da liberalidade que fez à custa do seu património a favor da Ré, pelo que está legitimado, nos termos do art.º 974 do Código Civil, a peticionar a revogação da doação, pela ingratidão e indignidade da Ré.
Com a petição juntou cópia da escritura pública de doação de 18.05.2021.
*
Citada, a Ré contestou.
Invocou a caducidade do direito do Autor, com base no disposto no art.º 976º, n.º 1, do CC, e impugnou, na sua quase totalidade, os factos invocados pelo Autor.
Mais refere:
- A doação que o Autor pretende revogar foi formalizada e aceite pela donatária através de escritura pública;
- Os pressupostos da revogação da doação após a sua aceitação deverão ser encontrados nos regimes da indignidade ou da deserdação, por força da remissão do art.º 974º do CC;
- Ambos os institutos, seja a indignidade (art.º 2034º do CC), seja a deserdação (art.º 2166º do CC), exigem a condenação do donatário pelos crimes enumerados naquelas disposições, cometidos contra o doador ou familiares próximos, ou a recusa em prestar alimentos;
- O Autor não alega nenhum facto que preencha a previsão daquelas normas, pelo que em nenhuma circunstância ficará assente matéria de facto que fundamente uma aplicação da lei que permita a revogação da doação;
- Deste modo, conclui que estão reunidos nos autos os elementos para um saneador-sentença.
*
Notificado para exercer o contraditório relativamente à matéria de exceção invocada pela Ré, o Autor nada disse.
*
Foi preferido despacho, do qual consta:
(…)
Termos em que, visando assegurar a celeridade e a simplificação que devem presidir na tramitação do processo, dispenso a realização da audiência prévia, ao abrigo dos art.ºs 6.º, n.º 1, 547.º e 593.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Notifique.
***
Assim, e por entender que os autos possuem os elementos fáticos necessários à tomada de posição segura, nos termos do art. 595º, nº 1, alínea a) e art. 3º, nº 3 do CPC notifique as partes que se irá proceder à prolação de sentença”.
*
Notificadas desse despacho as partes nada disseram.
*
Foi proferido despacho saneador, no qual se conheceu do mérito da causa, reproduzindo-se aqui o respetivo segmento decisório:
(…)
IV. DECISÃO
Por todo o exposto, julgo a presente ação improcedente e, em consequência:
Absolvo a Ré (…) do peticionado pelo Autor (…)
- Custas da ação pelo Autor (…) – art. 527º do CPC.
- Valor: 47.120,82€ (quarenta e sete mil, cento e vinte euros e oitenta e dois cêntimos) – art. 302º do CPC.
Notifique e registe”.
*
Não se conformando com essa decisão, o Autor dela veio recorrer, formulando as seguintes conclusões:
(…)
Conclusões:
A. A douta sentença recorrida não fez a adequada e justa ponderação dos factos de acordo com os elementos fornecidos pelo processo como não fez a boa aplicação do direito competente, que importa decisão diferente;
B. A mesma não cumpre, integralmente, o previsto e estatuído no Nº 1 do Art. 154 e no Nº 4 do Art. 607 do CPC, porque não está fundamentada, de facto e, especialmente de direito, sendo tal injunção um imperativo, o que determina a sua nulidade;
C. A decisão sob recurso é uma decisão surpresa, considerando que não está aportada na mesma tudo o alegado e aduzido pelo recorrente em termos factuais e jurídicos, obviado que foi o direito de participação do recorrente que, no subsequente desenvolvimento processual, com a prova requerida e que iria requerer, tinha a possibilidade de influir em e com relação a todos os elementos que se encontram com ligação com o objeto da causa, o que determina, também, nos termos do a19 do a sua nulidade;
D. Mal também está a mesma quando decide como decidiu, dando apenas o que deu como provado em face de tudo o alegado, especialmente não considerando tudo o que, em concreto, em termos de violência o recorrente foi vítima e que o determinou a peticionar a revogação da doação;
E. A doação é um ato em que alguém, por espírito de liberalidade, generosidade e espontaneidade, e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou um direito em que atribui a outrem uma vantagem patrimonial com efetiva diminuição do seu património, com sacrifício económico para si e que pode e que pode ser revogada;
F. As causas e motivos de revogação previstos no Art. 974 do CC deverão ser interpretadas numa hermenêutica ampla e não restrita como aquela a que, erradamente, o tribunal a quo considerou;
G. A jusante, também está errada a decisão recorrida, dado que, em face dos factos dados e considerados como provados, mas que na decisão foram estendidos aos que o recorrente peticionou, não podia decidir como decidiu na subsunção dos mesmos ao direito;
H. A indignidade e as causas de deserdação são conceitos abstratos e normativos que se impunham serem apurados pelo tribunal em face do alegado e prova que, não fosse a decisão surpresa, se impunha ser sindicada no sentido de a recorrida, pelas condutas imputadas, se subsumiu as mesmas;
I. A prerrogativa e possibilidade de ser pedida e peticionada a revogação não está condicionada à definição judicial dos institutos da indignidade e da deserdação mas de atitudes, comportamentos e ocorrências que, a se verificarem, podem justificar a subsunção da recorrida aos mesmos;
J. No contraponto também punha a análise e consideração do que obnubilizou a determinação do recorrente nas fragilidades que tinha e padecia, alegadas, quando procedeu à doação que pretende ver revogada”.
*
Notificada, a Ré contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:
(…)
CONCLUSÕES:
A) O recorrente veio pedir a revogação de doação de metade indivisa de fração autónoma com fundamento na ingratidão da recorrida.
B) A referida doação foi formalizada em escritura pública e aceite pela recorrida.
C) O recorrente não alega factos que preencham os pressupostos do regime da indignidade ou da deserdação, necessários para fundamentar a revogação da doação por ingratidão.
D) Não alega condenação da recorrida por crimes praticados contra o recorrente.
E) Nem alega recusa injustificada de prestar alimentos.
F) Por deficiência de alegação, esteve bem o tribunal a quo ao proferir saneador sentença.
G) Também parece inatacável o mérito da decisão, dada a manifesta inexistência de factos aptos a fundamentar uma condenação no pedido.
H) Pelo que, a decisão recorrida deve ser mantida”.
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O recurso foi corretamente admitido, com o modo de subida e efeito adequados.
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II. Questões a Decidir:
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente – art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante apenas designado de CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal são as seguintes:
- Da nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto e de direito;
- Da nulidade da sentença por constituir decisão surpresa;
- Da revogação da doação por ingratidão do donatário.
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III. Fundamentação de Facto:
Para além do que resulta do antecedente relatório, na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. Por escritura pública celebrada em 18 de Maio de 2021, no Cartório Notarial de Oeiras, o Autor doou à Ré metade indivisa da fração autónoma designada pela letra “ AO “(…) – conforme documento nº 1 junto com a Petição Inicial e documento nº 9 junto com a Contestação cujos conteúdos se dão por integralmente reproduzido.
2. O Autor conheceu a Ré há 24 anos.
3. Depois de uma relação de namoro, em Outubro do ano de 2004, começaram a viver juntos.
4. Autor e Ré têm participações mútuas na PSP.
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IV. Mérito do Recurso:
- Da nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto e de direito.
Defende o Apelante que a sentença recorrida não está fundamentada de facto e de direito, o que determina a sua nulidade.
Analisemos.
Nos termos do art.º 615º, n.º 1, b), do CPC, a sentença é nula, designadamente, quando “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o disposto no art.º 607º, n.º 3, do CPC que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
Contudo, conforme foi decidido no Acórdão do STJ de 03.03.2021, Proc. n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, “Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual - nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma - ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.”
Acresce que, conforme resulta do mesmo Acórdão, “Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.”
Também no Acórdão do STJ de 22.01.2019, Proc. n.º 19/14.4T8VVD.G1.S1, disponível no mesmo local, se conclui em termos idênticos: “1. A nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Ou seja, só ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão, quando exista uma falta absoluta de fundamentação, ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial.
Não é o que ocorre no caso em análise.
O Tribunal a quo identificou os factos nos quais alicerça a sua decisão, desde logo, a celebração da escritura pública de doação cuja revogação, por ingratidão, o Autor peticiona, e expôs igualmente as razões de direito que o levaram a concluir que os factos alegados pelo Autor não integram nenhum dos fundamentos com base nos quais a lei, nos termos do art.º 974º do CC, permite a pretendida revogação da doação por ingratidão, o que fez em termos que tornam percetível o sentido decisão.
Se decidiu bem ou mal é questão diferente e que se coloca no plano do erro de julgamento.
Deste modo, não padece a sentença recorrida da nulidade que o Apelante lhe imputa, improcedendo, quanto a essa questão, o recurso em análise.
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- Da nulidade da sentença por constituir uma decisão surpresa.
Defende o Apelante que a sentença recorrida é uma decisão surpresa e, como tal, uma decisão nula, nos termos do art.º 195º do CPC, porquanto “não está aportada na mesma tudo o alegado e aduzido pelo recorrente em termos factuais e jurídicos, obviado que foi o direito de participação do recorrente que, no subsequente desenvolvimento processual, com a prova requerida e que iria requerer, tinha a possibilidade de influir em e com relação a todos os elementos que se encontram com ligação com o objeto da causa”.
Analisemos.
Determina o artigo 3º, n.º 3, do CPC que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
O Tribunal Constitucional tem defendido que o princípio do contraditório integra o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º da CRP.
De acordo com o decidido no Acórdão do TC n.º 177/2000, DR, II série, de 27/10/2000, o princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo civil, exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de – “deduzir as suas razões (de facto e de direito)”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário” e de “discretear sobre o valor e resultados de umas e outras”.
O citado artigo 3º, n.º 3, do CPC consagra expressamente o princípio do contraditório na vertente da proibição da decisão surpresa, isto é, nas palavras de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in “Código de Processo Civil Anotado”, volume I, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 31), “a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes”. Esclarecem os mesmos autores (ob. cit., pág. 32) que “antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho-saneador, sentença, instância de recurso)”.
Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil”, 2ª edição, vol. I, pág. 33, afirma que “a audição excecional e complementar das partes, precedendo a decisão do pleito e realizada fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela”.
Como também se diz no Acórdão da RP de 11.04.2018, processo n.º 1088/14.2T8PRT-A.P1, disponível in www.dgsi.pt, “O sentido útil do nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil é o de que, previamente ao exercício da liberdade subsuntiva do juiz no concernente à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, deve este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tenham razoavelmente podido contar. Mas, sob o enfoque da referida normatividade, o julgador apenas está constituído no dever de observar a contraditoriedade quando esteja em causa uma inovatória e inesperada questão de direito que não tenha, de todo, sido perspetivada pelos litigantes de acordo com um adequado e normal juízo de prognose sobre o conteúdo e sentido da decisão”.
Aqui chegados e revertendo para a concreta situação dos autos, vemos que nos mesmos o Autor peticiona a revogação, por ingratidão, da doação por si efetuada a favor da Ré, formalizada por escritura pública de 18 de maio de 2021, invocando para o efeito o disposto no art.º 974º do CC.
A Ré contestou essa ação, alegando, designadamente, que o Autor não alega nenhum facto que, de acordo com a lei, permita a revogação da doação com tal fundamento.
O Tribunal a quo, em sintonia com a posição da Ré, considerou que a revogação da doação por ingratidão apenas poderia ter por fundamento uma das causas previstas no citado art.º 974º do CC. Assim, estabelecendo esse normativo que “A doação pode ser revogada por ingratidão, quando o donatário se torne incapaz, por indignidade, de suceder ao doador, ou quando se verifique alguma das ocorrências que justificam a deserdação” - sublinhado nosso -, entendeu que os factos alegados pelo Autor não são subsumíveis, nem a nenhuma das causas de indignidade previstas no art.º 2034 do CC, nem a nenhuma das causas de deserdação previstas no art.º 2166º do CC. E, assim sendo, concluiu pela improcedência da ação.
Dúvidas não temos de que solução jurídica encontrada pelo Tribunal a quo se moveu dentro do perímetro da causa pedir e do pedido tal como configurados pelo Autor, prendendo-se tão só com a delimitação do âmbito de aplicação do art.º 974º do CC (normativo que consagra o instituto jurídico no qual o Autor expressamente alicerça a sua pretensão), concretamente, com a definição das situações suscetíveis de preencher os conceitos de “indignidade” e “deserção” de que depende essa aplicação. Entendeu o Tribunal a quo definir esses conceitos, para efeitos de aplicação desse normativo, por referência às causas de indignidade e de deserção previstas, respetivamente, nos art.ºs 2034 e 2166º do CC, concluindo que o Autor não alegou nenhum facto que possa ser reconduzido a uma dessas causas. Tal não constitui decisão surpresa, pois essa solução jurídica era previsível e o Autor tinha obrigação de a prever. E tanto assim é que a própria Ré, na contestação, a veio defender.
Obviamente que, considerando o Tribunal a quo que o Autor não invoca qualquer facto suscetível de conduzir à revogação da doação por ingratidão, é de todo inútil a produção de prova tendente a demonstrar esses factos, não sendo válido o argumento esgrimido pelo Apelante de que lhe foi vedada a possibilidade de produzir essa prova.
Questão diferente, e que nada tem a ver com a invocada nulidade, é a que se prende com o acerto da decisão proferida e que se coloca já no plano do erro de julgamento.
Atento o exposto, conclui-se, também quanto a tal nulidade, pela improcedência do recurso.
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- Da revogação da doação por ingratidão do donatário.
Intentou o Autor a presente ação peticionando a revogação, por ingratidão, da doação por si efetuada a favor da Ré, formalizada por escritura pública de 18 de maio de 2021.
O Tribunal a quo decidiu pela improcedência desse pedido, porquanto entendeu que dos factos alegados pelo Autor não resulta qualquer fundamento legal para a revogação da doação por ingratidão do donatário, nos termos do art.º 974º do CC.
O Apelante discorda.
Defende que “As causas e motivos de revogação previstos no Art. 974 do CC deverão ser interpretadas numa hermenêutica ampla e não restrita como aquela a que, erradamente, o tribunal a quo considerou” – ponto F. das conclusões recursivas; que “A prerrogativa e possibilidade de ser pedida e peticionada a revogação não está condicionada à definição judicial dos institutos da indignidade e da deserdação mas de atitudes, comportamentos e ocorrências que, a se verificarem, podem justificar a subsunção da recorrida aos mesmos” – ponto I. das conclusões recursivas; e que se impunha “a análise e consideração do que obnubilizou a determinação do recorrente nas fragilidades que tinha e padecia, alegadas, quando procedeu à doação que pretende ver revogada” – ponto J. das conclusões recursivas.
Analisemos.
Resulta da factualidade provada que por escritura pública celebrada em 18 de maio de 2021 o Autor doou à Ré metade indivisa da fração autónoma identificada na petição inicial.
Consta dessa escritura pública, junta por cópia com a petição inicial, que a Ré declarou aceitar a doação.
O art.º 940º, n.º 1, do CC, define a doação como “(…) o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberdade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.
Está em causa um ato pelo qual se atribui a outrem uma vantagem patrimonial, com uma efetiva diminuição do património do doador, num verdadeiro espírito de liberalidade, isto é, em termos de simples generosidade ou espontaneidade, sem qualquer outra intenção (cfr. Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol III, pág. 194 e ss.).
A doação importa apenas sacrifícios económicos para o doador, não existindo qualquer contrapartida pecuniária em relação à transmissão dos bens ou da assunção das dívidas, não se verificando a onerosidade mesmo no caso da doação com encargos, prevista no art.º 963º, do CC, os quais não constituem contrapartidas da atribuição patrimonial do doador, mas meras restrições à liberalidade (Ob. Cit., fls. 198).
Enquanto a doação não for aceite, o doador pode livremente revogar a sua declaração negocial, conforme prevê o art.º 969, n.º 1, do CC.
Depois de aceite, conforme sucede no caso dos autos, a mesma torna-se irrevogável, a não ser que se verifique a ingratidão do donatário.
De facto, nos termos do art.º 970 do CC, “As doações são revogáveis por ingratidão do donatário”, explicitando o art.º 974 do mesmo diploma, sob a epígrafe “Casos de Ingratidão”, que “A doação pode ser revogada por ingratidão, quando o donatário se torne incapaz, por indignidade, de suceder ao doador ou quando se verifique alguma das ocorrências que justificam a deserdação.
Cumpre salientar que quando nos art.ºs 970º e 974º do CC se fala em “ingratidão” e em “indignidade”, estão em causa conceitos jurídicos, legalmente preenchidos, que não possuem a extensão ou o significado usualmente considerado.
Conforme a propósito refere Menezes Leitão, Ob. Cit., pág. 208, “O conceito jurídico de ingratidão do donatário tem muito pouco a ver com o seu correspondente significado na linguagem comum, sendo muitíssimo mais restrito.
O art.º 974º do CC prevê a possibilidade de revogação da doação por ingratidão em duas circunstâncias: “(…) quando o donatário se torne incapaz, por indignidade, de suceder ao doador (…), reportando-se às situações que determinam a incapacidade sucessória por indignidade, previstas no art.º 2034º do CC; e, “(…) quando se verifique alguma das ocorrências que justificam a deserdação”, reportando-se às situações de deserdação, previstas no art.º 2166º do CC.
Assim, a doação pode ser revogada por ingratidão, nos termos do art.º 2034º do CC, quando se verifique uma das seguintes situações:
- a condenação do donatário como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o doador, o seu cônjuge, descendente, ascendente, adotante ou adotado;
- a condenação do donatário por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, relativamente a crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos, qualquer que seja a sua natureza;
- ter o donatário, por meio de dolo ou coação, induzido o doador a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impedir; e,
- ter o donatário, dolosamente, subtraído, ocultado, inutilizado, falsificado ou suprimido o testamento, antes ou depois da morte do doador, ou se ter aproveitado desse facto.
E poderá igualmente ser revogada, por ingratidão, quando se verifique uma das situações de deserdação previstas no art.º 2166º do CC, a saber:
- a condenação do donatário por algum crime doloso cometido contra a pessoa, bens ou honra do doador, do seu cônjuge, ou de algum descendente, ascendente, adotante ou adotado, desde que ao crime corresponda pena superior a seis meses de prisão;
- a condenação do donatário por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas;
- ter o donatário, sem justa causa, recusado ao doador ou ao seu cônjuge os devidos alimentos (quer por ser uma das pessoas obrigadas a prestá-los, nos termos do art.º 2009º do CC, quer por se ter transmitido para o donatário tal obrigação, nos termos do n.º 2, do art.º 2011º do CC.
Fora das situações acima taxativamente enunciadas fica vedado ao doador a possibilidade de revogar a doação, pelo que não colhe o argumento do Apelante de que as causas de revogação previstas no art.º 974º do CC devem ser interpretadas “numa hermenêutica ampla e não restrita”.
Nuno Manuel Pinto Oliveira, in “Scientia Iuridica”, Tomo L, n.º 290, Maio/Agosto 2001, pág. 157, refere a propósito que “Face ao carácter taxativo da enumeração legal não é possível fundamentar o ato revogatório nem em comportamentos moralmente censuráveis não enumerados nas normas legais, nem sequer na “ingratidão” ou “indignidade” de pessoas distintas do donatário” Nuno Manuel Pinto Oliveira, in “ Scientia Iuridica, Tomo L, n.º 290, Maio/Agosto 2001, pag.157.
No mesmo sentido, agora na jurisprudência, vejam-se, entre outros, os Ac. da RP de 23.02.2006, processo n.º 0536416 e de 14.03.2016, processo n.º 463/13.4TBFLG.P1 e o Ac. da RE de 10.02.2022, processo n.º 305/19.7T8SSB.E2, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Revertendo para a situação dos autos, lida a petição inicial, teremos necessariamente de concluir que os atos que o Autor alega terem sido praticados pela Ré relativamente à sua pessoa, embora sejam reveladores de um comportamento desajustado e passível de implicações no foro criminal, não são subsumíveis a nenhuma das causas de indignidade ou deserdação acima elencadas, não podendo, como tal, conduzir à revogação da doação por ingratidão do donatário. E o mesmo vale para a invocada “fragilidade” do Autor à data da doação, com reflexos na sua vontade e cognição.
Nesse sentido, era de todo inútil o prosseguimento dos autos por forma a ser dada ao Autor a possibilidade de fazer prova desses factos.
Assim sendo, na improcedência do recurso, confirma-se a decisão recorrida.
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V. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo desta 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa abaixo identificados em julgar improcedente o presente recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante – art.º 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Registe.
Notifique.
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Lisboa, 09.10.2025
Susana Mesquita Gonçalves
Fernando Caetano Besteiro
Paulo Fernandes da Silva