CONTRATO PROMESSA
CABEÇA DE CASAL
RESOLUÇÃO
DECLARAÇÃO UNILATERAL
LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
Sumário

SUMÁRIO (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC)
I – Nos termos dos artigos 615.º, n.º 1, al. e), e 609.º, n.º 1, ambos do CPC, é de considerar nula a sentença recorrida na parte em que julga procedente a reconvenção e condena «as Autoras/Reconvindas a pagar ao Réu/Reconvinte a quantia que se vier a liquidar em sede de execução de sentença, correspondente às obras realizadas e efetuadas a título de princípio de pagamento das “Divisões B”, acrescida em dobro das obras realizadas nas “Divisões A e B” », sem nada determinar quanto ao montante máximo da quantia (indemnizatória) a liquidar, seja considerando um dos valores certos que haviam sido peticionados (278.848,82 € ou 287.500,00 €), seja o valor de 54.143,23 € que foi dado como provado ter sido despendido pelo Réu.
II – Muito embora nos termos do art. 410 n.º 1, do CC, ao contrato-promessa sejam aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, tal normativo afasta desse âmbito as disposições legais que, pela sua razão de ser, não se devam considerar extensíveis ao contrato-promessa, como sucede no caso dos autos, não merecendo censura a sentença recorrida na parte em que considerou que o “contrato promessa de permuta” em apreço, celebrado entre a 1.ª Autora, cabeça de casal da herança da qual faz parte o prédio objeto do contrato, e o Réu e o Interveniente principal, não era nulo, mas apenas ineficaz relativamente às herdeiras que não o tinham celebrado.
III – Sendo a promessa válida quanto à cabeça de casal, sucederá apenas que, se não lograr obter o consentimento das demais herdeiras para a celebração do contrato definitivo, incorrerá em responsabilidade civil contratual, já que não pode, por si só, alienar as referidas frações, que fazem (farão) parte da herança (cf. art. 2091.º do CC).
IV – Não tendo sequer as Autoras/Apelantes invocado erro de julgamento da decisão recorrida na parte em que qualificou como abuso do direito a pretensão de verem declarada a nulidade/ineficácia daquele contrato, não pode proceder a ação, muito menos quanto ao “pedido ampliado” (em requerimento de ampliação do pedido, que foi indeferido).
V – Tão pouco pode proceder o pedido reconvencional indemnizatório deduzido subsidiariamente para o caso de o Tribunal - por considerar que o contrato definitivo não podia ser celebrado pela Autora desacompanhada das demais herdeiras - julgar improcedente o pedido reconvencional principal de execução específica, se, como sucedeu no caso, o Tribunal recorrido decidiu (sem que as partes o questionem no presente recurso) que o pedido de execução específica improcedia apenas pelo facto de o prédio não estar ainda constituído em propriedade horizontal, não reconhecendo, antes pelo contrário, que fosse definitivamente inviável o cumprimento do contrato promessa de execução específica “por falta de legitimidade da 1.ª Autora”.
VI – Não assistindo à Autora, cabeça de casal, o direito à resolução do aludido contrato promessa quando comunicou ao Réu que o pretendia “Rescindir/Revogar” (pois não estavam verificados os respetivos pressupostos legais - cf. art. 432.º do CC), é forçoso concluir que o contrato promessa não cessou então por virtude dessa comunicação, assim continuando as partes (outorgantes) vinculadas ao seu cumprimento, até porque o Réu-reconvinte não peticionou, nem sequer implicitamente, a resolução daquele promessa com fundamento no incumprimento definitivo do contrato promessa.
VII – Essa declaração de resolução unilateral do contrato promessa não basta para fazer aquela Autora incorrer na obrigação de indemnizar nos termos previstos na cláusula contratual, a interpretar à luz dos critérios consagrados nos artigos 236.º e 238.º do CC, em que se estipula que “Em caso de incumprimento definitivo do presente contrato por causa imputável ao Primeiro Outorgante, os Segundos Outorgantes, terão direito ao pagamento das obras até então realizadas, e efetuadas a título de princípio de pagamento das Divisões B, acrescido do pagamento em dobro das obras realizadas nas Divisões A e B”.

Texto Integral

Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
AA, BB e CC interpuseram o presente recurso de apelação da sentença proferida na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, intentaram contra DD.
Os autos tiveram início em 15-05-2019 com a apresentação de Petição Inicial, em que as Autoras peticionaram que fosse:
“1. Declarado nulo o contrato promessa de permuta celebrado entre AA, cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu marido FF, por um lado e, DD e EE, por outro, em 19 novembro de 2014, com referência ao prédio sito na Rua 1 4 dos autos;
2. Declarado nulo o contrato de Cessão de Posição Contratual celebrado entre EE, como cedente, por um lado, e, DD, como cessionário, e a Herança Indivisa, aberta por óbito de FF, sendo cabeça de casal a viúva AA, celebrado em 01-10-2015, com referência ao mesmo prédio, doc. 6 dos autos;
3. Declarado nulo o aditamento ao Contrato Promessa de permuta outorgado em 19 de novembro de 2014, este celebrado entre a Herança Indivisa, aberta por óbito de FF, pela cabeça de casal AA, por um lado, e DD, por outro, na qualidade de segundo contraente, com referência ao prédio sito na Rua 1 7 dos autos (“Com fundamento na falta de poderes da cabeça de casal para praticar aqueles atos, uma vez que os direitos relativos a herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros (cf art.º 2091.º do CC) ; Situação que não se verificou, sequer a cabeça de casal detinha autorização para a prática daqueles atos”);
4. Declarado resolvido/revogado o contrato promessa de permuta celebrado em 19-11-2014 e respetivas alterações posteriores, com exclusiva culpa do Réu, devendo este entregar às Autoras as frações por si ocupadas, ou seja, o 3.º andar direito e o 4.º andar direito daquele prédio;
5. Condenado o Réu a pagar às Autoras a indemnização a liquidar em execução de sentença, por impossibilidade de encontrar nesta data o valor da mesma, já que se encontra ocupado, desconhecendo-se o montante dos danos havidos bem como a sua entrega.
Alegaram, para tanto, e em síntese:
- A 1.ª Autora, como cabeça de casal da herança aberta por óbito do seu falecido marido e pai das demais Autoras (e de uma outra filha), herança da qual faz parte o prédio que identifica, celebrou com o Réu e EE, um contrato promessa de arrendamento com opção de compra e um contrato promessa de permuta;
- Nesse contrato promessa de permuta, os segundos outorgantes obrigaram-se, além do mais, a realizar as obras de remodelação do prédio discriminadas no contrato, às quais foi atribuído o valor de 115.000 €;
- Dada a falta de poderes da cabeça de casal para praticar aqueles atos e uma vez que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, o que não se verificou, e aquela não tinha autorização para a prática daqueles atos, o contrato promessa de permuta é nulo.
Juntaram documentos.
Citado o Réu DD, apresentou Contestação, em que se defendeu, por exceção (invocando a ilegitimidade processual por não terem sido demandadas a sociedade “Not So Kinky, Lda.” e o referido EE), impugnação motivada, de facto e de direito, concluindo pela improcedência da ação, alegando designadamente que:
- O facto de a 1.ª Autora não ter legitimidade para celebrar o contrato prometido - já que pressupõe a prática de um ato de disposição de um bem da herança -, não significa que a mesma não tivesse legitimidade e poderes para a celebração do contrato-promessa, tal como tinha legitimidade para celebrar um contrato de arrendamento sobre o imóvel sem as demais herdeiras;
- O Réu aceitou e partiu do pressuposto que a 1.ª Autora estava a agir em representação de todas as herdeiras, pelo que deve ser considerado necessariamente um comprador de boa fé, razão pela qual as Autoras não podem opor esta nulidade ao mesmo;
- Nenhum dos fundamentos que supostamente estão na base da resolução do contrato-promessa de permuta é procedente e não correspondem a qualquer justa causa para a cessação unilateral do mesmo pelas Autoras, tanto assim que, na comunicação enviada, não foi invocado qualquer motivo para a resolução do contrato, tratando-se de uma denúncia ilícita do contrato-promessa de permuta, que o Réu não aceitou.
Deduziu ainda Reconvenção, pedindo a condenação das Autoras na execução do contrato promessa de permuta prometido ou, caso assim não se entendesse, a condenação das Autoras, ou da 1.ª Autora, no pagamento de uma indemnização ao Réu no valor de 278.848,82 €, ou, caso assim não se entendesse, no valor de 287.500,00 €, acrescida de juros moratórios vincendos até integral pagamento; ou caso assim não se entendesse, a condenação das Autoras no pagamento ao Réu da quantia de 545,43 €, a título de reembolso de despesas; em qualquer caso, que fosse autorizada a permanência do Réu no prédio até integral cumprimento da sentença.
Alegou, para tanto e em síntese, que:
- Foram as Autoras que incumpriram o contrato-promessa celebrado, ou pelo menos a 1.ª Autora quando subscreveu as comunicações a “rescindir/revogar” o mesmo;
- Está previsto na Cláusula Décima Primeira do contrato-promessa que o mesmo se encontra sujeito ao regime da execução específica nos termos do art. 830.º do CC, o que desde já se requerer;
- “Caso se entenda que por falta de legitimidade da 1ª A. para celebrar o contrato-prometido a execução do mesmo não é viável, subsidiariamente se requer a condenação das AA., ou pelo menos da 1ª A., no pagamento de uma indemnização”, a liquidar nos termos previstos na Cláusula Décima do contrato-promessa celebrado;
- Esta indemnização não poderá ser inferior a 278.848,82 €, o que resulta da soma dos seguintes montantes: (i) O pagamento das obras realizadas pelo Réu nas Divisões B, que ascendem a 46.474,80 €; (ii) O pagamento em dobro das obras realizadas nas Divisões A e B, que ascendem a 116.187,01 €, o que totaliza 232.374,02 €;
- Caso assim não se entenda - o que se concebe por mero dever de patrocínio -, deverão as Autoras, ou pelo menos a 1.ª Autora, ser condenada no pagamento de uma indemnização, a ser calculado com base no valor atribuído pelas partes às obras realizadas para efeitos de permuta;
- Esta indemnização não poderá ser inferior a 287.500,00 €, o que resulta da soma dos seguintes montantes: (iii) O pagamento das obras realizadas pelo Réu nas Divisões B, que ascendem 57.500,00 €; (iv) O pagamento em dobro das obras realizadas nas Divisões A e B, que ascendem a 115.000,00 €, o que totaliza 230.000,00 €;
- Caso assim não se entenda - o que se concebe por mero dever de patrocínio - o Réu requer que as Autoras sejam pelo menos condenadas a reembolsá-lo de todas as despesas em que incorreu com as partes comuns do prédio, designadamente com o pagamento das contas de luz do prédio, que as Autoras se recusavam a pagar e que totalizam a quantia de 545,43 €, pois o Réu, de boa fé, efetuou estes pagamentos para que o prédio não ficasse sem luz nas zonas comuns;
- O Réu deve ser autorizado a reter as Divisões B do imóvel até integral cumprimento do requerido na presente ação e do cumprimento das obrigações em que as Autoras venham a ser condenadas em sede de sentença.
Mais requereu o Réu que as Autoras fossem condenadas como litigantes de má-fé.
Indicou como valor da reconvenção 287.500 €.
Juntou documentos.
Por ter sido indicado à ação o valor de 30.000,01 €, foram as Autoras, por despacho de 21-10-2019, convidadas a indicar o valor que atribuíam a cada um dos pedidos formulados.
Não o tendo feito, foi, por despacho de 20-11-2019, determinada a extinção da instância relativamente aos pedidos formulados sob os pontos 2, 3 e 5 da Petição Inicial (cf. despacho de 20-11-2019). Mais foi admitida a reconvenção e fixado à causa o valor de 393.848,82 €, por corresponder à soma do valor do pedido formulado no ponto 1. com o valor da reconvenção (ou seja, embora não tenha sido explicitado, terá sido considerada a soma de 115.000 € com 278.848,82 €).
Por despacho de 14-01-2020, foram as Autoras convidadas a fazer intervir EE e “Not So Kinky, Lda.”, sob pena de preterição do litisconsórcio necessário, incidente que veio a ser deferido por despacho de 10-03-2020.
Citada a Chamada Not So Kinky, Lda. não apresentou contestação e veio a ser absolvida da instância por despacho de 10-11-2020, por falta de personalidade judiciária.
O Chamado EE foi citado editalmente, não tendo contestado. Cumprido que foi o disposto no art. 21.º do CPC, o Ministério Público ofereceu o merecimento dos autos.
Foi realizada audiência prévia em 25-01-2023, na qual foi proferido despacho julgando inadmissível o pedido feito sob o n.º 4, porquanto a “resolução” pressupõe a validade do contrato (cuja nulidade se invoca). Foi ainda proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio, enunciados os temas da prova e agendada a audiência final.
As Autoras vieram requerer a “ampliação do pedido”, requerimento que veio a ser indeferido por despacho proferido em 12-04-2024, no decurso da audiência de julgamento.
Em 12-06-2024, foi proferida a Sentença recorrida, cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Pelo exposto, julgo:
a) a ação improcedente;
b) o pedido reconvencional subsidiário procedente e, consequentemente, condeno as Autoras/Reconvindas a pagar ao Réu/Reconvinte a quantia que se vier a liquidar em sede de execução de sentença, correspondente às obras realizadas e efetuadas a título de princípio de pagamento das “Divisões B”, acrescida em dobro das obras realizadas nas “Divisões A e B”, gozando este do direito de retenção das “Divisões B” como garantia do seu crédito.
Mais decido condenar as Autoras como litigantes de má fé em multa de 5 (cinco) UC e, ainda, em indemnização a favor do Réu DD, a qual consistirá no reembolso a este dos honorários da sua ilustre mandatária, devendo as partes pronunciarem-se, nos termos do nº 3 do art. 543º do Cód. Proc. Civil, sobre o montante que deve revestir tal indemnização.
Custas da ação pelas Autoras e da Reconvenção pelo Réu e pelas Autoras na proporção do decaimento.
Registe e notifique.”
Inconformadas com esta decisão, as Autoras vieram interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1.ª – As recorrentes, entre outros pedidos, formularam em primeiro lugar que: “Seja declarado nulo o contrato promessa de permuta celebrado entre AA, cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu marido FF, por um lado e DD e EE, por outro, em 19 novembro de 2014, com referência ao prédio sito na Rua 1 4 dos autos;
2.ª – Na sua fundamentação de direito o tribunal a quo refere, que a cabeça de casal não tem poderes para vender, na qualidade de administradora da herança um qualquer imóvel que integre o património a dividir e que se um dos herdeiros, designadamente o cabeça de casal, vender um dos bens do património hereditário sem intervenção dos demais herdeiros, uma tal venda será ineficaz em relação a esses herdeiros, traduzindo-se numa venda de coisa alheia e que no caso vertente, estando em causa um prédio que integra um património hereditário, é fora de dúvidas que a venda ou a “permuta”, com a consequente transmissão do direito real de propriedade, não poderia deixar de ser efetivada por todas as herdeiras (art.2091.º do Cód. Civil), nomeadamente aquela que não intentou a presente ação (GG);
3.ª – Ainda naquela fundamentação se diz que não obstante, e no que ao pedido reconvencional concerne, se é certo que a determinação dos bens que vão entrar na titularidade efetiva de cada uma das herdeiras está dependente da partilha da herança podendo, em tese, a promessa de permuta vir a ser viabilizada, por outro lado, o contrato definitivo não se mostra passível de execução específica, na medida em que sempre estará dependente, além do mais, da “legalização “das obras que possam levar à constituição da propriedade horizontal e à autonomização das “divisões” em causa;
4.ª - Todos estes fundamentos e reflexões do douto tribunal conduzem, necessariamente, à procedência da ação e não à improcedência da ação, conforme ali é julgado;
5.ª - Sendo nulo o contrato, como o Tribunal a quo o declarou, nos termos do disposto no art.º 289.º n.º 1 do Código Civil, a nulidade tem efeitos retroativos, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado no valor correspondente, seja os valores aplicados, seja os seus rendimentos futuros;
6.ª - A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado, art.º 286.º Código Civil;
7.ª - O Réu desde o início do contrato promessa, declarado nulo, deixou de ter qualquer título válido ocupando, indevidamente, duas frações do prédio, uma por si ocupada e outra em exploração de um Alojamento Local, daí tirando proveitos próprios, não inferiores a dois mil euros mês, calculados aquando do requerimento das AA na ampliação do seu pedido, em 9 de abril de 2024, anterior ao julgamento e que por ter sido indeferido o pedido, foi interposto recurso, que se mantém pendente;
8.ª - O Tribunal a quo também julgou o pedido reconvencional subsidiário, formulado pelo Réu, procedente condenando as AA/Reconvindas a pagar ao Réu/reconvinte a quantia que se vier a liquidar em sede de execução de sentença, gozando este do direito de retenção das Divisões B, (duas frações) como garantia do seu crédito.
9.ª - Os pedidos formulados pelo Réu na sua contestação, em sede de reconvenção, o Tribunal a quo não considerou aqueles valores invocados uma vez que todas as faturas foram emitidas por terceiros, que não o Réu, precisamente a sociedade das relações do Réu, que levou a cabo aquelas obras efetuadas e as pagou, que fora inquilina das AA, no mesmo prédio, explorando um Alojamento Local de quatro andares, sem pagamento de quaisquer rendas, obrigando as AA a proceder a uma ação de despejo, contra aquela sociedade por não pagamento de rendas que não previstas na execução das obras levadas a efeito;
10.ª - Tendo peticionado, o Réu reconvinte, valores certos com fundamento em faturas não legíveis, não pode o tribunal, por iniciativa própria ir para além do pedido, ou seja, relegar para execução de sentença de um valor que ficou demonstrado não ter suporte legal, além de se arrastar o processo para lá do razoável, sendo certo que o mesmo vem de 2019 e o Réu ocupa aquelas frações, duas, sem pagamento à herança de quaisquer valores, desde o ano de 2014, em seu proveito um alojamento local, em uma das frações ocupadas;
11.ª - O Tribunal a quo, eventualmente por alguma situação sugestiva, na análise do processo e julgamento, entendeu haver má-fé das AA ao invocarem a nulidade daquela promessa contratual, concluindo-se que as AA, verdadeiramente procederam de má-fé pelos fundamentos ali elencados;
12.ª - Em análise concreta ao processo não se pode concluir que exista má-fé das AA, no seu comportamento processual. Aliás aquela herança, proprietária do imóvel é a única que se encontra prejudicada pela promessa do negócio, ao invés o único beneficiado pela promessa do negócio é o Réu que desde 2014, vão dez anos, está na posse de dois andares, os explora por sua conta, aos quais as AA indicaram o valor de dois mil euros/ mês rendas, nada paga, sequer qualquer valor para despesas do prédio.
13.ª – Considerando a nulidade do contrato objeto da ação tem de se concluir que as AA obtiveram vencimento na ação e não o contrário quando na sentença recorrida se julga a improcedência da ação, em cujos fundamentos ocorre ambiguidade ou obscuridade tornando a decisão ininteligível em caso de execução da sentença;
14.ª – Ao decidir-se como ficou decidido na sentença recorrida, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 609.º n.º 1; 615.º n.º 1, alíneas c) e e), e aplicou indevidamente o disposto no artigo 542.º, todos do CPC.
Terminaram as Apelantes requerendo que se declare a ação procedente e a reconvenção do Réu improcedente, por não provada, com as legais cominações, nomeadamente a procedência do pedido formulado pelas Autoras através do seu requerimento de 9 de abril de 2024 de ampliação do pedido, cujo recurso se encontra pendente.
Foi apresentada alegação de resposta pelo Apelado, em que defendeu que seja mantida a sentença.
Os autos foram remetidos, pela primeira vez, a este Tribunal da Relação em 15-01-2025, tendo, entretanto, baixado à 1.ª instância para notificação da alegação de recurso de alegação ao Ministério Público, em representação do Interveniente principal, não tendo sido apresentada alegação de resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se a sentença é nula, nos termos do art. 615.º n.º 1, alíneas c) e e), do CPC, por ambiguidade ou obscuridade dos seus fundamentos, tornando a decisão ininteligível;
2.ª) Se foi ou deve ser declarada a nulidade do contrato promessa de permuta e se devem ser declarados os efeitos daí decorrentes, com a procedência da ação, incluindo quanto ao “pedido ampliado”;
3.ª) Se as Autoras não estão obrigadas a pagar ao Réu a quantia indemnizatória a liquidar;
4.ª) Se as Autoras não devem ser condenadas como litigantes de má fé.
Factos provados
Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
1. As Autoras, juntamente com GG, são herdeiras, habilitadas, de FF, falecido em 21 de setembro de 1993.
2. Da herança aberta por óbito de FF faz parte, além de outros, o imóvel sito na Rua 1 Jorge de Arroios, Lisboa, inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia, sob o artigo 182º, mantendo-se a herança indivisa.
3. Da herança é cabeça de casal a Autora AA.
4. Foram subscritos pela cabeça de casal os seguintes contratos:
A - Contrato Promessa de Arrendamento com opção de compra, celebrado em 19 novembro 2014, por escrito particular, na qualidade de primeiro outorgante ou senhorio e sendo segundos outorgantes ou Inquilinos: DD e EE;
B - Contrato Promessa de Permuta, celebrado em 19 novembro 2014, por escrito particular, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de FF, como primeira outorgante e, sendo segundos outorgantes: DD e EE.
5. No Contrato Promessa de Arrendamento com opção de compra, foi declarado que a Primeira Outorgante dá de arrendamento aos Segundos Outorgantes o 1.º e 2.º andar, esquerdo e direito, do prédio sito na Rua 1, pelo prazo certo de dez anos, com início em 01 de dezembro de 2014 e termo em 01 de dezembro de 2024, findo esse prazo os Segundos Outorgantes comprometem-se a exercer a opção de compra.
6. Foi ainda declarado que, pelo arrendamento e a título de princípio de pagamento do preço dos andares supra descritos, os segundos outorgantes pagarão as seguintes quantias do seguinte modo:
- 900,00 €, pelo arrendamento;
- 250,00 €, a título de princípio de pagamento do preço estipulado na cláusula sétima, o que perfaz a quantia mensal de 1.150,00 €, durante o primeiro ano de vigência do presente contrato;
- 1.800,00 €, pelo arrendamento;
- 500,00 €, a título de princípio de pagamento do preço estipulado na cláusula sétima, o que perfaz a quantia mensal de 2.300,00 €, durante os restantes nove anos de duração do presente contrato;
Mais ficou declarado que na presente data, os segundos outorgantes pagaram ao Primeiro a quantia total de 4.600,00 €, correspondente aos meses de dezembro de 2014, janeiro de 2015 e dezembro de 2024, dos quais 3.600,00 € correspondem aos valores das rendas devidas, e 1.000,00 € referente ao exercício da opção de compra, de que o Primeiro Outorgante dá aqui integral quitação.
7. E ficou declarado que:
1 - O preço de venda dos 1.º e 2.º andar, esquerdo e direito, é de 600.000,00 €;
2 - A quantia paga pelos Segundos Outorgantes, a título de princípio de pagamento do preço de venda identificado no número anterior, durante a vigência do presente contrato, será descontado no preço total de venda.
3 - A qualquer momento os segundos outorgantes poderão antecipar a data de aquisição dos 1.º e 2.º andar, esquerdo e direito, ficando obrigados a pagar o remanescente do preço estabelecido no número 1 da presente cláusula.
4 - O Primeiro Outorgante, na data antecipada pelos Segundos Outorgantes para aquisição conforme estipulado mo número anterior, ou no final do contrato, sempre mediante o pagamento do preço referente ao valor da venda, celebrará a escritura definitiva de compra e venda dos 1.ºs e 2.ºs andar, esquerdo e direito do prédio descrito na Cláusula Primeira.
8. Ficou, ainda, declarado que o Primeiro Outorgante, autoriza os Segundos Outorgantes a explorarem e/ ou subarrendar o 1.º e 2.º andar, esquerdo e direito do prédio aqui em causa, durante o prazo de dez anos, desde que os Segundos Outorgantes requeiram, caso seja legalmente exigido, as competentes e necessárias licenças e/ou autorizações camarárias devidas para o efeito e a suas expensas.
9. Relativamente ao contrato promessa de arrendamento com opção de compra, os promitentes inquilinos - DD e EE - cederam a sua posição contratual, por escrito particular, de 01 outubro de 2015, a Not So KinKy, Lda., contrato esse que foi também subscrito pela ora Autora CC.
10. No Contrato Promessa de Permuta foi declarado que o Primeiro Outorgante é dono e legítimo possuidor do prédio, sito na Rua 1 Jorge de Arroios, Concelho e Distrito de Lisboa, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º .... e inscrito na matriz predial com o art. ... da mesma freguesia, em propriedade total com r/c e quatro andares, todos com lado esquerdo e direito.
11. E, na Cláusula Terceira, declara-se que:
1. O prédio em apreço, necessita de obras de remodelação consideradas necessárias, em quatro frações do Prédio, correspondentes ao 1.º andar esquerdo, 1.º andar direito, 2.º andar esquerdo e 2.º andar direito, doravante designadas apenas por “Divisões A”;
2. O Prédio necessita ainda de obras de remodelação nas Partes Comuns do Prédio, nos termos do anexo I, a este contrato e que faz parte integrante do presente;
3. As frações correspondentes aos 3.º e 4.º andares direitos do Prédio, doravante designados apenas por “Divisões B”, estão em mau estado de conservação, contudo a sua remodelação não está prevista nem é considerada para os termos da cláusula seguinte.
12. Mais se declara na Cláusula Quarta que às obras de remodelação mencionadas no n.º 1 e 2 da cláusula anterior, é atribuído o valor de 115.000,00 € (cento e quinze mil euros).
13. E, na Cláusula Quinta do mesmo contrato promessa, afirma-se que os segundos outorgantes, no âmbito da sua atividade, obrigam-se a realizar obras de remodelação nas Divisões A e nas partes comuns descriminadas no Anexo I, cujo teor se dá por reproduzido.
14. Como contrapartida, pelo trabalho de obras realizado na remodelação das divisões A e Anexo I, o Primeiro Outorgante entregará, a título de princípio de pagamento e pelo prazo de cinco anos, aos segundos Outorgantes, as frações designadas por Divisões B, que ficam provisoriamente na posse dos Segundos Outorgantes, para sua exploração até ao termo do prazo;
15. E, na Cláusula Sétima, declara-se que:
1. As obras referentes as partes comuns do Anexo I e as Divisões A, serão realizadas pelos Segundos Outorgantes no prazo máximo de cinco anos, sendo as mesmas realizadas faseadamente e de acordo com a calendarização em apenso ao presente contrato e rubricado pelas partes.
2. No que respeita as Divisões B do Prédio, as obras a ser efetuadas serão no prazo que os Segundos Outorgantes entenderem por conveniente.
16. Na Cláusula Oitava ficou dito que dentro do prazo de cinco anos previsto no n.º 1 da Cláusula antecedente, os Segundos Outorgantes, assegurarão, por suas expensas, a constituição do Prédio em regime de propriedade horizontal, ficando o Primeiro Outorgante obrigado a assinar e subscrever toda a documentação que se venha a revelar necessária para o efeito;
17. E, na Cláusula Nona, foi declarado que:
1. Decorrido o prazo de cinco anos, concedido para a realização das obras das Divisões A e Anexo I, as mesmas, têm que estar concluídas e recebidas pelo Primeiro Outorgante.
2. Com a receção das Divisões A e Anexo I, compromete-se o Primeiro Outorgante por pagamento em espécie, a efetuar a transmissão definitiva da propriedade das Divisões B, que ocorrerá através da respetiva escritura pública ou documento particular autenticado e pelo preço indicado na Cláusula Quarta;
3. Os encargos e despesas com quaisquer emolumentos e/ou documentação necessária para a realização do contrato definitivo fica a cargo dos Segundos Outorgantes;
18. Mais ficou escrito, na Cláusula Décima do contrato, que em caso de incumprimento definitivo do presente contrato por causa imputável aos Segundos Outorgantes, o Primeiro Outorgante fica com a faculdade de fazer suas, todas as obras efetuadas e/ou quantias recebidas até a data; 2. Em caso de incumprimento definitivo do presente contrato por causa imputável ao Primeiro Outorgante, os Segundos Outorgantes, terão direito ao pagamento das obras até então realizadas, e efetuadas a título de princípio de pagamento das Divisões B, acrescido do pagamento em dobro das obras realizadas nas Divisões A e B, bem como terá direito ao pagamento das quantias despendidas na obtenção de documentos e/ou emolumentos para a realização da escritura definitiva.
19. Relativamente a este contrato, e com data de 1 outubro de 2015, foi efetuada, por documento particular, a Cessão de Posição Contratual entre DD e EE, no qual este cede àquele a sua posição no contrato.
20. Com data de 18 novembro de 2016, foi efetuado um aditamento ao contrato inicial, em que aparece como Segundo Outorgante DD e como Primeiro Outorgante – Herança Indivisa Aberta por óbito de FF representada por AA, onde se declara, no considerando n.º I, que: a Primeira Contraente é dona e legítima proprietária do prédio urbano sito em Lisboa, na Rua 1 Jorge de Arroios, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art. ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º ...., destinado a habitação e comércio.
21. Na cláusula 1.ª deste aditamento faz-se referência às obras já executadas e discriminam-nas:
1- Ambos os contraentes aceitam como executadas as obras constantes do Relatório de Vistoria anexo como documento um, e que fica a fazer parte integrante deste Aditamento, sem prejuízo de o Segundo Outorgante não subscrever ou concordar inteiramente com o conteúdo do mesmo;
2 - Sem prejuízo do referido no número antecedente, os Contraentes aceitam como executadas todas as obras previstas na Clausula 7.ª do Contrato, exceto as que indicam de seguida: (I) Fachada – reparação e pintura, substituição das portas e janelas, reparação e limpeza das princas e pintura (corresponde aos pontos 1.1 e 1.2 do Anexo I do Contrato; (II) Tardoz – reparação e pintura, substituição das portas e janelas (corresponde ao ponto 2.1 do Anexo I do Contrato; (III) Pintura das escadas-conclusão (corresponde ao ponto 5.2 do Anexo I do Contrato; (IV) Elevador – assegurar o regular funcionamento e operacionalidade do mesmo (corresponde ao ponto 6. Do Anexo I do Contrato;
3 - O Segundo Contraente garante a boa execução e funcionalidade do telhado do prédio pelo período de dois anos a contar da assinatura do presente Aditamento.
22. Na cláusula 2.ª do aditamento, o Segundo Contraente aceita ainda executar as seguintes obras:
- Reparação do alçado lateral, com pintura e substituição de azulejos e janelas e reparação de portadas;
- Afagamento e enceramento da escada;
- Reparação das redes do gás no interior das frações correspondentes aos terceiros e quarto andares esquerdo;
2. A Primeira Contraente prescinde da realização pelo Segundo Contraente dos seguintes trabalhos previstos no Anexo I do Contrato:
- Recuperação do tardoz do prédio (pintura e varandas) – ponto 2.1 das Zonas Comuns do Anexo I do referido Contrato;
- Colocação de Videoporteiro (mantendo-se o sistema de botoeira) - ponto 5.4 das zonas comuns do anexo I do referido contrato;
- Colocação de estrado para suposto nivelamento do logradouro - ponto 2 das divisões A-1.º andar do anexo I do referido contrato;
A primeira contraente aceita que todas as portadas sejam apenas reparadas.
23. E, na cláusula 3.ª deste aditamento, o Segundo Contraente aceita e obriga-se a executar as obras ainda em falta, constantes do quadro anexo como documento um e as descritas na cláusula segunda deste aditamento, no prazo máximo de um ano, a contar da presente data.
24. Com data de 18 novembro de 2016, a cabeça de casal emitiu, a favor de DD, Procuração atribuindo os seguintes poderes:
Para junto da EDP ou qualquer outro fornecedor de eletricidade, requerer e contratar o que entender necessário para o fornecimento de energia ao prédio urbano sito em Lisboa, na Rua 1
Para junto da Câmara Municipal de Lisboa requerer e tratar tudo o necessário, designadamente, licenças, relativamente às obras necessárias no supra indicado prédio;
Para tratar de tudo o que se mostre necessário à constituição da propriedade horizontal do indicado prédio.
25. Os apartamentos correspondentes aos 3.º e 4.º andares direitos, foram ocupados pelo Réu DD desde o início do contrato.
26. O Réu DD, em 18 novembro de 2016, tendo requerido nos serviços da Câmara Municipal de Lisboa a constituição de propriedade horizontal tendo por base proposta e descritivo em desacordo com os projetos aprovados e ou licenciados, sendo que em todas as plantas se apresentam desconformidades com o edifício aprovado, sendo o processo indeferido em 13-07-2018, por tais motivos.
27. O alojamento local instalado nos 1.º e 2.º andares, esquerdo e direito, foi explorado, vindo a ser declarada insolvente a sociedade para a qual foi cedida pelo Réu a sua posição contratual.
28. O “esquerdo e direito” foram “anexados” num só fogo.
29. A Cabeça de Casal, através de carta registada com A/R, datada de 02 outubro de 2018, dirigida ao Réu, que a recebeu, declarou que “rescinde/revoga com efeitos imediatos aquele contrato denominado Contrato Promessa de Permuta”, solicitando a entrega das frações ocupadas no prazo de trinta dias.
30. Como o Réu não procedeu à entrega, por carta registada com A/R, datada de 02 fevereiro de 2019, insistiu a cabeça de casal por aquela entrega.
*
31. Foi HH, sócio da sociedade Not So Kinky, Lda., que apresentou o Réu às Autoras.
32. Também foi este que apresentou ao Réu o projeto de recuperação imobiliária do prédio e que estabeleceu contactos com as Autoras, sendo o único intermediário nas comunicações iniciais.
33. Não só as Autoras BB e CC acompanharam todas as negociações, como ao longo da execução dos contratos era com as mesmas que o Réu comunicava.
34. As Autoras estiverem sempre acompanhadas por advogado, com quem o Réu lidou e falava diretamente, que sempre se apresentou como representante da herança e não apenas da Autora AA.
35. As Autoras BB e CC remetiam para o advogado a resolução de diversas questões e muitas vezes respondiam às solicitações que lhes eram colocadas pelo Réu através desse mandatário.
36. Foi a própria Autora CC que encaminhou o Réu para entrar em contacto com o novo advogado.
37. As Autoras BB e CC estavam de acordo com a celebração destes contratos e a realização destes negócios.
38. A Procuração referida em 24. apenas foi passada quando o Réu concordou com todos os termos do aditamento ao contrato promessa e depois de sucessivas insistências por parte deste.
39. O Réu sempre teve dificuldade em executar as obras a que se obrigou de forma continuada, estando sujeito a inúmeras interrupções devido à falta de cooperação das Autoras.
40. Antes da celebração dos Contratos em causa, já tinham sido promovidas diversas alterações no prédio que não são consentâneas com o projeto registado na Câmara Municipal de Lisboa.
41. Um dos motivos do indeferimento do projeto apresentado pelo Réu, por parte da CML, foi o facto de o projeto do prédio registado na Câmara Municipal de Lisboa ter menos um piso do que o prédio tem atualmente, ou seja, o 4.º piso do prédio não foi devidamente legalizado, nem objeto de qualquer processo de licenciamento.
42. As Autoras tinham conhecimento da alteração efetuada no 1.º andar e consentiram na mesma, e sabiam que esta circunstância ia obstar à constituição do prédio em propriedade horizontal nos termos do relatório obtido pelas próprias sobre as obras realizadas em 18 de julho de 2016.
43. O próprio Réu transmitiu as suas preocupações sobre este tema, em 19 de junho de 2017.
44. O Réu pediu um orçamento com vista à execução de todas as obras elencadas nos anexos ao contrato-promessa de permuta e o valor ascendia a 152.000,00 € mais IVA.
45. Relativamente às Divisões A, ou seja, os 1.º e 2.º andares, as Autoras não receberam os valores de renda previstos e, por esse motivo, avançaram com a ação de despejo e cobrança da dívida à Not So Kinky, Lda..
46. Em 10 de novembro de 2017, depois de mencionar as obras já realizadas e as que ainda tinha de realizar, o Réu fez notar às Autoras que estas estavam dependentes da sua intervenção junto dos arrendatários do prédio.
47. Que teriam de viabilizar o acesso a essas frações com vista à substituição das janelas, bem como combinar com os arrendatários quando seria realizada a obra nas escadas do prédio - uma vez que as mesmas não poderiam ser utilizadas pelos mesmos durante determinados períodos -, sob pena de o Réu não conseguir realizar estes trabalhos de forma cabal e satisfatória.
48. Nessa altura, o Réu dá conhecimento às Autoras das dificuldades que se iriam verificar na constituição do prédio em propriedade horizontal.
49. O Réu interpelou a Autora AA para efetuar uma vistoria às obras já executadas, o que não foi promovido.
50. O elevador, que foi mandado reparar pelo Réu, não se encontrava operacional porque as Autoras sempre se recusaram a assinar o contrato de manutenção do mesmo, não tendo o Réu poderes para o efeito.
51. Com as obras já realizadas, nas Divisões A e B e partes comuns, o Réu despendeu, pelo menos, 54.143,23 €.
52. O Réu pagou contas de fornecimento de luz às partes comuns do prédio no valor de, pelo menos, 447,76 €.
Das nulidades da sentença
As Apelantes sustentam que a sentença é nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alíneas c) e e), do CPC, alegando, em síntese, que: nos seus fundamentos ocorre ambiguidade ou obscuridade, sendo a decisão ininteligível, porquanto, tendo sido reconhecida a nulidade do contrato objeto da ação e a inviabilidade da execução específica, se impunha julgar a ação procedente; por outro lado, o crédito reconvencional não foi reconhecido pelo facto de não haver comprovativos de quaisquer pagamentos de obras, por si levadas a efeito; tendo sido peticionado pelo Réu reconvinte o pagamento de valores certos, com fundamento em faturas não legíveis, não pode o Tribunal, por iniciativa própria, ir para além do pedido ao relegar para execução de sentença o apuramento de um valor que ficou demonstrado não ter suporte legal.
O Apelado discorda, argumentando, em síntese, que: as alegações das Apelantes se fundamentam em pressupostos erróneos e numa leitura enviesada da sentença; não têm razão quando consideram que o Tribunal a quo reconheceu a nulidade do contrato promessa de permuta; o Tribunal a quo tomou – e bem – a posição oposta, considerando o referido contrato-promessa de permuta válido e que, ao tentarem impugnar a validade do contrato-promessa, as Autoras incorriam em abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do CC; o facto de a execução específica do contrato-promessa (pedida a título reconvencional) estar dependente da constituição do prédio em propriedade horizontal em nada afeta a validade do contrato, pois até se considerou não ser impossível a constituição do prédio em propriedade horizontal; logo, a sentença sob análise não padece de qualquer nulidade nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, não existindo nenhuma oposição ou incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão ora recorrida, nem a mesma pode ser considerada ambígua, obscura ou ininteligível; tão-pouco procede a argumentação das Apelantes no sentido de o Tribunal a quo estar a ir “além do pedido” na sua condenação no pedido reconvencional, antes tendo a condenação sido feita em conformidade com o pedido formulado, uma vez que a questão da realização das obras foi suscitada nos autos pelas próprias Autoras, discutida e objeto de decisão, não se verificando a causa de nulidade invocada nos termos dos artigos 609.º, n.º 1, e 615.º, n.º 1, al. e) do CPC.
Vejamos.
O artigo 615.º, n.º 1, do CPC, sob a epígrafe, “Causas de nulidade da sentença”, preceitua, no que ora importa, que a sentença é nula quando:
“c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
(…) e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Como é sabido, a nulidade a que se refere a citada alínea c) apenas se verifica quando se constate que os fundamentos de facto e/ou de direito da sentença não podiam logicamente conduzir à decisão que veio a ser tomada no segmento decisório da sentença ou quando neste se verifica uma obscuridade ou ambiguidade que torna a própria decisão, isto é, a parte decisória da sentença, ininteligível. A este respeito, destacamos, pela sua clareza, a explicação de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, págs. 734-737: “Também a ininteligibilidade da parte decisória da sentença, contemplada na alínea c), quando subsista após a rejeição da arguição de nulidade, pelo juiz ou pelo tribunal de recurso, ou após a falta desta arguição (ver os arts. 615-4 e 617-1), merece a qualificação de nulidade. Com efeito, embora a ininteligibilidade, decorrente de ambiguidade ou obscuridade, tenha o tratamento da anulabilidade, carecendo de arguição da parte, a falta desta ou a sua rejeição tem o efeito de tornar definitivamente inaproveitável a sentença, por falta de decisão compreensível (…) No regime atual, a obscuridade ou ambiguidade, limitada à parte decisória da sentença, só releva quando gera a ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236-1 CC e 238-1 CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar. Sendo assim, se o vício não for corrigido, a sentença não poderá aproveitar-se, sendo nula, nos termos gerais dos arts. 280-1 CC e 295 CC. (…)
Os casos das alíneas b) a e) do n.º 1 (excetuada a ininteligibilidade da parte decisória da sentença: ver o n.º 2 desta anotação) constituem, rigorosamente, situações de anulabilidade da sentença, e não de verdadeira nulidade.
Respeitam eles à estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum).
Ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art. 607-3). (…)
Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determina consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se.”
Neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 09-03-2022, no proc. n.º 4345/12.9TCLRS-A.L1.S1, conforme se retira da seguinte passagem do respetivo sumário:
“I - As nulidades da sentença/acórdão, encontram-se taxativamente previstas no artº. 615º CPC e têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da sentença/acórdão também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença/acórdão, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.
II - A nulidade da sentença/acórdão prevista no 1º. segmento do al. c) do nº. 1 do citado artº. 615º - fundamentos em oposição com a decisão - ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão, existindo, pois, uma contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e conclusão/decisão final.
Atentando no segmento decisório da sentença recorrida, parece-nos evidente que não padece de nenhuma ambiguidade ou obscuridade, sendo claro no sentido da improcedência da ação e da procedência do pedido reconvencional subsidiário.
Tão pouco nos parece que os fundamentos da sentença (aqui remetemos, por economia, para as passagens da fundamentação de direito adiante citadas) estejam em oposição com o assim decidido, mormente quanto à improcedência da ação.
Uma leitura atenta da fundamentação de direito da sentença permite concluir, sem margem para dúvida, que o Tribunal recorrido não considerou inválido o contrato promessa de permuta pelo facto de somente ter sido outorgado pela cabeça de casal, apenas considerou esse contrato ineficaz relativamente às outras herdeiras, afirmando que “as Autoras BB e CC não se podem fazer valer da ineficácia, quanto a elas, da promessa de permuta”, porquanto isso configuraria um inadmissível abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
Por outro lado, os fundamentos em que se estribou a decisão de improcedência da reconvenção quanto ao pedido principal de execução específica em nada contendem com a decisão de improcedência da ação. Com efeito, aquele pedido reconvencional foi julgado improcedente unicamente por se ter entendido que estava «dependente, além do mais, da “legalização” das obras que possam levar à constituição da propriedade horizontal e à autonomização das “divisões” em causa», afirmando-se que “ainda que o objeto do contrato promessa não seja impossível e, nessa medida, determinante da nulidade do mesmo, o contrato de permuta prometido não está ainda em condições de poder ser celebrado”. Portanto, a improcedência desse pedido não adveio, na ótica do Tribunal a quo, da nulidade do contrato promessa, a qual não foi reconhecida na sentença.
Além disso, contrariamente ao que as Apelantes ora alegam, tão pouco resulta da fundamentação da sentença que “o crédito reconvencional não foi reconhecido pelo facto de não haver comprovativos de quaisquer pagamentos de obras, por si (o Réu) levadas a efeito”. Na verdade, o Tribunal recorrido considerou que ao Réu assistia o direito à indemnização peticionada, fundado no incumprimento definitivo do contrato promessa, apenas não dispondo dos elementos necessários para quantificar os respetivos danos.
Portanto, não se verifica a causa de nulidade da sentença prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.
Quanto à outra causa de nulidade da sentença, atinente à condenação em quantidade superior ou objeto diverso do pedido, importa ter em atenção, não apenas o art. 615.º, n.º 1, al. e), do CPC, mas também o disposto no art. 609.º, n.º 1, do mesmo Código, nos termos do qual “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”.
As Apelantes insurgem-se contra a decisão de relegar para execução de sentença créditos que consideram improcedentes/inexistentes, defendendo, se bem percebemos, que a condenação em quantia indemnizatória a liquidar se traduz numa condenação em quantidade superior ou objeto diverso do pedido, porquanto não ficou demonstrada a existência do crédito objeto do pedido reconvencional, já que não existem comprovativos dos pagamentos das obras em causa.
Posta assim a questão, mais nos parece redundar na invocação de um eventual erro de julgamento. No entanto, importa atentar na formulação exata dos pedidos subsidiários atinentes às obras, tendo sido peticionada pelo Réu-reconvinte a condenação das Autoras-reconvindas no pagamento da quantia de 278.848,82 € ou no pagamento da quantia de 287.500,00 €. Na sentença recorrida decidiu-se julgar «o pedido reconvencional subsidiário procedente e, consequentemente, condeno as Autoras/Reconvindas a pagar ao Réu/Reconvinte a quantia que se vier a liquidar em sede de execução de sentença, correspondente às obras realizadas e efetuadas a título de princípio de pagamento das “Divisões B”, acrescida em dobro das obras realizadas nas “Divisões A e B”, gozando este do direito de retenção das “Divisões B” como garantia do seu crédito».
Na fundamentação de direito, referiu-se a este propósito que, «em caso de incumprimento por causa imputável ao Primeiro Outorgante, ora Autora, os Segundos Outorgantes, ora Réu – considerando a cessão da posição contratual do outro subscritor -, terá direito ao pagamento das obras até então realizadas, e efetuadas a título de princípio de pagamento das Divisões B, acrescido do pagamento em dobro das obras realizadas nas Divisões A e B.
A dificuldade põe-se na determinação das obras respeitantes a umas e a outras Divisões, sendo certo que os valores apurados – que não serão os totais – não permitem, por si só, fazer a imputação às “Divisões A” ou “B”, o que se mostra necessário para efetuar o cálculo nos termos acordados.»
Porém, na sentença, nada consta quanto ao montante máximo da quantia (indemnizatória) a liquidar, seja considerando um dos valores certos que haviam sido peticionados (278.848,82 € ou 287.500,00 €), seja o valor de 54.143,23 € que foi dado como provado ter sido despendido pelo Réu (cf. ponto 51), apenas resultando do segmento decisório (e da própria fundamentação de direito da sentença) que a quantificação do dano dependerá do apuramento do valor das obras realizadas nas Divisões A e B, o que pode bem redundar numa decisão condenatória superior ao valor dos referidos pedidos. Não podemos, pois, deixar de concluir que se verifica a invocada causa de nulidade.
Pelo exposto, declara-se nula a decisão recorrida, no tocante à procedência parcial da reconvenção.
Da nulidade do contrato promessa de permuta
Na fundamentação de direito da sentença, foram tecidas as seguintes considerações:
«Na presente ação é pedido se declare “nulo” determinado contrato promessa de permuta subscrito pela Autora AA, cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu marido FF, por um lado, e DD e EE, por outro, com referencia a determinadas “divisões” de determinado imóvel, em propriedade total, por alegada falta de poderes da cabeça de casal para praticar aquele ato, uma vez que os direitos relativos à herança, da qual o mesmo prédio faz parte, só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, o que não se verificou, nem aquela tinha autorização para a prática daqueles atos.
Nos termos do art. 2079º do Cód. Civil, “A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal.”
Nos poderes de administração incluem-se aqueles que visam a valorização e proteção do património hereditário.
Quanto ao conteúdo genérico dos poderes e deveres do cabeça-de-casal, nada diz a lei.
Nas palavras de Rabindranath Capelo de Sousa (in “Lições de Direito das Sucessões”, II, 2ª ed., págs. 76/77): “Daí que, para sabermos qual o tipo de administração para o cabeçalato previsto nos arts. 2079 e 2091 do Código Civil, tenhamos de indagar o respectivo pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta, nos termos do nº 1 do art. 9 do Código Civil, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que aquelas normas foram elaboradas e as condições específicas do tempo em que são aplicadas. A este respeito, parece-nos que os poderes de administração do cabeça-de-casal se balizam entre os poderes do curador da herança jacente (art. 2048 do C.Civ.), no limite inferior, e os poderes do administrador dos bens comuns do casal (arts. 1678 a 1682 do C.Civ.), no limite superior.”
Neste enquadramento, fácil é concluir que a cabeça de casal não tem poderes para vender, na qualidade de administradora da herança, um qualquer imóvel que integre o património a dividir, em conformidade, de resto, com o expressamente preceituado no art. 2091º do Cód. Civil.
Questão diferente é a de saber se tem legitimidade para prometer vender e dar a posse ou a detenção a terceiro de imóvel pertencente à herança, ou parte dele, mormente visando a realização de obras carecidas no mesmo.
Indiscutível será que ao administrador da herança cumprirá conservar os bens da herança, praticando os atos indispensáveis para o efeito, dentro dos limites de razoabilidade – cfr. art. 2086, nº 1, al. b), do Cód. Civil.
Será razoável considerar que as obras que valorizam um imóvel, assim valorizando o património hereditário, estarão abrangidas pelos poderes que cabem ao cabeça de casal.
Refira-se que uma herança constitui uma universalidade jurídica e, por isso, até à partilha os herdeiros são titulares do direito a uma fração ideal do conjunto, “não podendo exigir que essa fração seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar, sendo certo que só depois da realização da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinados bens da herança” – cfr. Ac. do STJ de 26/01/1999, in BMJ 483 p. 211.
Se um dos herdeiros, designadamente o cabeça de casal, vender um dos bens do património hereditário sem intervenção dos demais herdeiros, uma tal venda será ineficaz em relação a esses herdeiros, traduzindo-se numa venda de coisa alheia – cfr. artigos 892º, 1404º ,1408º, nº 2, e 2091º, nº 1, todos do Cód. Civil -, valendo aqui o aforismo res inter alios acta aliis non prodest nec nocet e nemo plus iuris transferre potest quam ipse habet.
Noutra ordem de considerações, o art. 892º do Cód. Civil “não estabelece a nulidade da venda de coisa alheia em relação ao dono desta, apenas se aplicando na relação entre o alienante e o adquirente; em face dos (...) proprietários do prédio, a venda efectuada (...) é ineficaz” (ver RLJ, Ano 106º, 1973/1974, Vaz Serra, p. 26).
Recebendo o alienante, mormente o cabeça de casal, em partilha, o bem alienado, com tal aquisição validava-se o contrato de venda (cfr. art. 895º do Cód. Civil), sendo que essa obrigação, de sanar a nulidade da venda, impunha-se-lhe nos termos do artigo 897º, nº 1, do Cód. Civil, em caso de boa fé do comprador.
Tal obrigação de convalidação vale apenas, é certo, para o interveniente no contrato de compra e venda não se transmitindo, por constituir ato exclusivamente pessoal, ao herdeiro que vier a adquirir o bem; no entanto, porque de uma tal situação podem resultar prejuízos para o comprador de boa fé, o instituto do abuso do direito proporcionará uma resposta para aqueles casos em que os herdeiros, sabendo da alienação, aceitam que se lhes adjudique, e não ao vendedor, um bem integrativo do património hereditário para, depois, o reivindicarem ao comprador de boa fé.
No caso vertente, estando em causa um prédio que integra um património hereditário, é fora de dúvidas que a venda ou a “permuta”, com a consequente transmissão do direito real de propriedade, não poderia deixar de ser efetivada por todas as herdeiras (art. 2091º do Cód. Civil), nomeadamente aquela que não intentou a presente ação (GG).
Não obstante, o contrato em análise nos autos consubstancia uma “promessa” e não uma efetiva alienação.
Por outro lado, as Autoras aguardaram cerca de 5 anos para propor a presente ação e, em todo esse período, agiram como validando e pretendendo o cumprimento do contrato.
As Autoras, a coberto da falta de assinaturas de todas, pretendem a restituição de determinados andares (“divisões”) no pressuposto que o Réu os ocupa sem nenhum título válido, o que não é o caso.
As “divisões” em causa foram entregues ao ora Réu como contrapartida, pelo trabalho de obras realizado na remodelação de outras “divisões” e “partes comuns” do prédio e “a título de princípio de pagamento e pelo prazo de cinco anos”.
As Autoras BB e CC não se podem fazer valer da ineficácia, quanto a elas, da promessa de permuta quando é certo que não só consentiram como estavam a par e eram as impulsionadoras do negócio, sendo certo que sempre estiveram acompanhadas por advogado.
Ainda que assim não fosse, é nossa convicção que qualquer decisão judicial deve ser norteada sempre por uma ideia de justiça que por vezes não se coaduna com a aplicação cega das regras legais. Circunstâncias da vida que a generalidade e a abstração das leis não podem contemplar justificam em certos casos a intervenção de princípios gerais de direito que servem melhor esse ideal de justiça.
Ora, creio que, na presente ação, os factos provados sempre obrigariam a apreciar o mérito da questão à luz do princípio geral da boa fé.
A noção de abuso do direito foi sempre referida em termos de contornos difíceis, conforme se depreende dos ensinamentos de Manuel de Andrade, in “Teoria Geral das Obrigações”, 1958, p. 63 e 64, tendo-se desenhado duas correntes: a subjetivista, que coloca como critério decisivo ter o titular do direito procedido com mero intuito de prejudicar o lesado; e a objetivista, segundo a qual o abuso do direito se manifesta na oposição à função social do direito, excedendo-se anormalmente o seu uso.
Como é consabido, o Código Civil de 1966 consagrou no art. 334º o abuso do direito na conceção objetiva, dispondo que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. O abuso do direito é, assim, o excesso patente dos limites impostos pela boa fé, não se tornando necessário que tenha havido a consciência de se excederem esses limites.
E tem sido entendido que para determinar quais os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes o julgador deverá atender às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade, devendo para apurar do fim social ou económico do direito considerar os juízos de valor positivamente consagrados na lei.
(…) Ensina Baptista Machado, no estudo “Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium”, in “Obra Dispersa”, Vol I, p. 415 a 418, e RLJ anos 116, 117 e 118, nº 3735, p. 171 e ss., que o funcionamento do instituto depende da verificação de três pressupostos:
1º - uma situação de confiança, isto é, uma conduta ou omissão (simples passividade) de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura; por outras palavras, uma conduta ou omissão (inércia) que desperta na contraparte a convicção de que também no futuro se comportará, coerentemente, da mesma maneira;
2º - um investimento na confiança, o que significa que a contraparte, com base na situação de confiança criada, toma decisões ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos (não removíveis ou dificilmente removíveis a não ser com a paralisação do direito) se aquela confiança vier a ser frustrada;
3º - a boa fé da contraparte que confiou, ou seja, que a contraparte tenha agido tomando o cuidado e as precauções usuais no tráfego jurídico, desconhecendo uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real.
(…) A doutrina, sobretudo a alemã, tem elaborado com base na jurisprudência dos tribunais superiores, uma série de hipóteses típicas concretizadoras da cláusula geral da boa fé. Destaca-se a proibição de venire contra factum proprium, que visa impedir uma pretensão incompatível ou contraditória com a anterior conduta do pretendente; ocorre sempre que uma pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou negócio invocando, por exemplo, uma determinada causa de resolução, denúncia, nulidade ou anulação, quando já tinha feito crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito.
(…) Para concluir esta apreciação de índole teórica da figura do abuso do direito, refira-se ainda que, sem prejuízo de outras eventuais consequências, perante uma situação de abuso do direito a consequência normal é a paralisação do direito, ou seja, em princípio, o abuso do direito tem de considerar-se equivalente à falta de direito (por todos, cfr. Antunes Varela, obra citada, p. 102).
Volvendo ao caso dos autos, perante as considerações expostas em conjugação com a factualidade provada, nomeadamente o facto de (todas) as Autoras sempre terem estado ao corrente do negócio, tendo sido elas a promovê-lo, e pretendendo, simultaneamente, a declaração de invalidade do negócio e a validação da obrigação do Réu de realizar obras nos termos previstos no mesmo, tendo havido tradição e a outorga de procuração com vista ao exercício, em sua representação, dos compromissos assumidos, e tendo tal situação perdurado no tempo durante cerca de 5 anos, sem que as Autoras tivessem feito saber ser sua intenção invocar nulidades, sempre a sua conduta seria vista como violadora do princípio da confiança que nelas foi depositada pelo Réu, no momento da celebração do contrato promessa, e, assim, contrária à boa fé.
As Apelantes defendem que o contrato promessa em apreço é nulo, como o Tribunal a quo o declarou, pretendendo que sejam extraídas as devidas consequências nos termos do disposto no art. 289.º n.º 1 do Código Civil, incluindo as que foram indicados no seu requerimento de “ampliação do pedido”.
O Apelado pronunciou-se contra esta pretensão, argumentando, em síntese, que: as alegações de recurso das Apelantes fundamentam-se em pressupostos erróneos e numa leitura enviesada da sentença; não têm razão quando consideram que o Tribunal a quo reconheceu a nulidade do contrato promessa de permuta, pois o Tribunal tomou – e bem – a posição oposta, considerando o referido contrato-promessa de permuta válido; entendeu o Tribunal que “as Autoras BB e CC não se podem fazer valer da ineficácia, quanto a elas, da promessa de permuta quando é certo que não só consentiram como estavam a par e eram as impulsionadoras do negócio, sendo certo que sempre estiveram acompanhadas por advogado”; ao tentarem impugnar a validade do contrato-promessa, as Apelantes incorrem em abuso de direito, nos termos do art. 334.º do CC, na modalidade de venire contra factum proprium.
Vejamos.
É manifesto que a pretensão das Apelantes decorre de uma interpretação errada das considerações de direito desenvolvidas na sentença recorrida, pois não foi, em parte alguma da fundamentação de direito, afirmado que o contrato promessa em apreço era nulo ou que enfermava de um qualquer vício conducente à sua nulidade ou mesmo anulabilidade. Apenas se entendeu que o contrato promessa era ineficaz relativamente às herdeiras que não o tinham celebrado, mas julgou-se a ação totalmente improcedente, porque se considerou que a atuação das Autoras, ao invocarem a ineficácia do contrato, configurava um inadmissível abuso do direito, nos termos do art. 334.º do CC.
Sempre se dirá, posto que a nulidade dos contratos é matéria de conhecimento oficioso (cf. art. 286.º do CC), serem acertadas as considerações feitas na sentença recorrida a este respeito. O contrato promessa não é nulo. Com efeito, muito embora nos termos do art. 410 n.º 1, do CC, ao contrato-promessa sejam aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, a verdade é que esse mesmo normativo afasta desse âmbito as disposições legais que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensíveis ao contrato-promessa, aqui se incluindo, por exemplo, o art. 892.º do CC. Nesta linha de pensamento, num caso próximo, veja-se o acórdão do STJ de 31-05-2005, proferido na Revista n.º 1521/05 - 6.ª Secção, conforme se alcança das seguintes passagens do respetivo sumário (disponível em www.stj.pt):
“III - É de considerar válido tal contrato-promessa, na medida em que, apesar de prometer vender coisa que então ainda não lhe pertencia, carecendo por isso de legitimidade para celebrar o contrato prometido, o promitente a poderia vir adquirir, ou poderia vir a obter acordo para participação dos demais herdeiros na venda, antes do vencimento da sua obrigação, por forma a poder oportunamente vendê-la ao promissário ou sucessor deste.
IV - Todavia, é impossível a execução específica deste contrato-promessa, uma vez que, permanecendo a herança indivisa, todos os herdeiros eram titulares do património hereditário, regendo-se a sua situação, em relação a esse património, pelo disposto no art.º 2091, n.º 1, do CC.
V - Com efeito, se o herdeiro, não obstante a indivisão, dispuser sozinho de determinados bens integrados no património hereditário, devem ser aplicadas as disposições legais respeitantes à compropriedade, face ao disposto no art.º 1404 do mesmo Código. O que significa que a disposição de parte especificada do património hereditário sem consentimento dos demais herdeiros seria havida como disposição de coisa alheia (art.º 1408, n.º 2, do CC), e, por isso, nula (art.º 892 do CC), situação que impede a procedência do pedido de execução específica.
Não está errada a decisão recorrida, por não ter declarado essa nulidade, sendo de concluir, tão só, pela sua ineficácia.”
As Apelantes não invocam nenhum erro de julgamento da decisão recorrida na parte em que qualificou como abusiva a atuação das Autoras/Apelantes ao pretenderem ver declarada a ineficácia do contrato. Assim, não cumpre sindicar o que foi decidido a esse respeito.
Nem tão pouco tem cabimento, como é óbvio, apreciar da procedência do (suposto) pedido constante do requerimento de ampliação do pedido, já que essa ampliação do pedido foi indeferida e não há notícia de que o despacho que assim decidiu tenha sido revogado ou anulado no âmbito do recurso interposto.
Improcedem, neste particular, as conclusões da alegação de recurso.
Da reconvenção
Como vimos a sentença recorrida é nula na parte em que julgou parcialmente procedente a reconvenção. Impõe-se agora tomar posição a esse respeito (cf. art. 665.º do CPC). Sendo certo que também foi suscitado erro de julgamento de direito quanto a esta parte da decisão recorrida, atentemos nas considerações constantes da fundamentação de direito da sentença:
«Não obstante, e no que ao pedido reconvencional concerne, se é certo que a determinação dos bens que vão entrar na titularidade efetiva de cada uma das herdeiras está dependente da partilha da herança, podendo, em tese, a promessa de permuta vir a ser viabilizada, por outro lado, o contrato definitivo não se mostra passível de execução específica, na medida em que sempre estará dependente, além do mais, da “legalização” das obras que possam levar à constituição da propriedade horizontal e à autonomização das “divisões” em causa.
Ou seja, ainda que o objeto do contrato promessa não seja impossível e, nessa medida, determinante da nulidade do mesmo, o contrato de permuta prometido não está ainda em condições de poder ser celebrado.
Por sua vez, se, por um lado, não se vê que se mostre impossibilitada a permuta nos termos prometidos, por outro lado, o facto de a 1ª Autora, através de carta registada com AR, ter declarado que “rescinde/revoga com efeitos imediatos aquele contrato denominado Contrato Promessa de Permuta”, solicitando a entrega das frações ocupadas demonstra a sua vontade expressa de não querer cumprir a prometida permuta.
Nesta conformidade, é seguro considerar o seu incumprimento definitivo na medida em que o seu comportamento revela inequivocamente a desvinculação das obrigações decorrentes do contrato promessa – cfr. Acórdão do STJ de 02/02/2017, in www.dgsi.pt – o que legitima a pretensão do Réu em receber uma indemnização nos termos previstos na Cláusula Décima do contrato.
Foi então acordado, em termos que se entende vincularem todas as Autoras, já que, não obstante as 2ª e 3ª não terem subscrito o documento em que o mesmo foi vertido, estiveram envolvidas diretamente no negócio e com o mesmo concordaram, que, em caso de incumprimento por causa imputável ao Primeiro Outorgante, ora Autora, os Segundos Outorgantes, ora Réu – considerando a cessão da posição contratual do outro subscritor -, terá direito ao pagamento das obras até então realizadas, e efetuadas a título de princípio de pagamento das Divisões B, acrescido do pagamento em dobro das obras realizadas nas Divisões A e B.
A dificuldade põe-se na determinação das obras respeitantes a umas e a outras Divisões, sendo certo que os valores apurados – que não serão os totais – não permitem, por si só, fazer a imputação às “Divisões A” ou “B”, o que se mostra necessário para efetuar o cálculo nos termos acordados.
Assim, tais valores terão que ser relegados para liquidação em execução de sentença.
No que respeita à obrigação de entrega das “Divisões B” (3º e 4º andares direitos) ocupadas pelo Réu - uma vez reconhecido o incumprimento definitivo da promessa de permuta relativa às mesmas -, sendo certo que este detém um crédito resultante, pelo menos em parte, de despesas feitas por causa delas, o mesmo goza do direito de retenção - cfr. arts. 754º, 755º, nº 1, al. f), e 759º, todos do Cód. Civil.
Por tudo quanto fica dito, forçoso se torna concluir pela improcedência da ação e pela procedência do pedido reconvencional subsidiário.»
As Apelantes pugnam pela improcedência deste pedido, pelas razões suprarreferidas.
O Apelado discorda dessa pretensão, argumentando, em síntese, que: releva para efeitos de determinar a obrigação de indemnizar (i) a verificação de que foram feitas obras no prédio e (ii) o incumprimento do contrato-promessa de permuta imputável às Autoras, sendo que nada nos termos do negócio celebrado entre as partes impedia o Réu de subcontratar as obras ou de faturar as mesmas através de uma empresa sua, para efeitos de planeamento fiscal, o que, de facto, sucedeu; tendo as Autoras incumprido o contrato-promessa celebrado, ao tentar, de forma ilegal, “rescindir/revogar” o mesmo, e não sendo possível a execução específica, ficam obrigadas a pagar ao Réu uma indemnização pelas obras realizadas, sem prejuízo de carecer de liquidação, tendo o Réu direito de retenção sobre as Divisões em causa.
Apreciando.
O contrato promessa em apreço, dito de permuta, envolve prestações típicas de diferentes negócios, além do contrato promessa propriamente dito, designadamente da empreitada e do mandato, sendo certo que o seu cumprimento integral depende, como bem entendeu o Tribunal recorrido, da constituição do prédio em propriedade horizontal, para que assim possam vir a ser alienadas/permutadas as futuras frações, correspondentes aos 3.º e 4.º andares, designadas como divisões B.
Importa atentarmos nos precisos termos em que a reconvenção foi deduzida, tal como resulta dos artigos 139.º a 151.º da Contestação: os pedidos subsidiários foram formulados, não apenas para o caso de improcedência do pedido reconvencional principal (atinente à condenação das Autoras na execução do contrato promessa, leia-se, execução específica), mas também para o caso de se entender que “por falta de legitimidade da 1ª A. para celebrar o contrato-prometido a execução do mesmo não é viável”. Não é claro o sentido desta afirmação, mas tendemos a considerar, face ao mais alegado na Contestação, que o pedido reconvencional indemnizatório foi deduzido subsidiariamente, para o caso de o Tribunal julgar improcedente a reconvenção quanto ao pedido de execução específica (absolvendo as Autoras da instância ou do pedido), por considerar que não poderia o contrato definitivo ser celebrado pela Autora desacompanhada das demais herdeiras.
Ora, o Tribunal recorrido considerou que o contrato promessa era válido e eficaz relativamente às Autoras e que o pedido de execução específica apenas não podia proceder porque o prédio não estava ainda constituído em propriedade horizontal, não reconhecendo, antes pelo contrário, que fosse definitivamente inviável o cumprimento do contrato promessa de execução específica “por falta de legitimidade da 1.ª Autora”.
Portanto, a improcedência do pedido de execução específica nos precisos termos em que foi julgada, não obsta a que o Réu possa, caso o prédio venha a ser constituído em propriedade horizontal e a Autora / cabeça de casal não cumpra o contrato promessa, intentar nova ação peticionando a execução específica do contrato promessa (em litisconsórcio necessário legal contra todas as herdeiras, incluindo a herdeira, GG, cuja intervenção principal, como associada das Autoras-reconvindas, não foi requerida nos presentes autos) - cf. art. 621.º do CPC.
Posto isto, parece-nos que terá ficado prejudicado o conhecimento dos pedidos reconvencionais subsidiários, incluindo do último, atinente ao reembolso das despesas com as contas da luz (e que terá sido considerado implicitamente prejudicado pela 1.ª instância).
Admitindo, por mera hipótese, que assim não se entenda, parece-nos importante sublinhar que o contrato promessa foi celebrado unicamente pela cabeça de casal, inexistindo um contrato promessa formalmente válido quanto às demais Autoras (cf. art. 412.º, n.º 2, do CC). Sendo a promessa válida quanto à cabeça de casal, sucederá apenas que, se ela não lograr obter o consentimento das demais herdeiras para a celebração do contrato definitivo, incorrerá em responsabilidade civil contratual, já que não pode, por si só, alienar as referidas frações, que fazem (farão) parte da herança (cf. art. 2091.º do CC).
Porém, nos presentes autos e sem perder de vista a causa de pedir da reconvenção, não se pode considerar que as 2.ª e 3.ª Autoras incorreram em responsabilidade contratual - e assim se tenham constituído na obrigação de indemnizar - pelo incumprimento do contrato que, na verdade, não celebraram, sendo certo que nem o Ré-reconvinte alegou que o tivessem celebrado, limitando-se a invocar o incumprimento definitivo do contrato promessa e o teor da cláusula décima do mesmo.
Impõe-se, aliás, interpretar essa cláusula, procurando apreender o seu sentido, à luz dos critérios consagrados nos artigos 236.º e 238.º do CC. Ora, atentando não apenas no teor literal da cláusula, mas também no restante clausulado contratual em que se insere, parece-nos que o “incumprimento definitivo do presente contrato por causa imputável ao Primeiro Outorgante” corresponde a uma situação em que, por causa imputável ao Primeiro Outorgante, o contrato não venha a ser cumprido, não se dando a transmissão definitiva da propriedade das divisões B nos termos estipulados na cláusula nona, nem a execução específica prevista na cláusula décima primeira.
Com efeito, seria ilógico e certamente esteve arredado do pensamento das partes que o Réu pudesse, por exemplo, beneficiar da execução específica (fundada no incumprimento definitivo do contrato) e, do mesmo passo, ter direito a ser indemnizado nos termos previstos na cláusula décima, com o “pagamento das obras até então realizadas, e efectuadas a título de princípio de pagamento das Divisões B, acrescido do pagamento em dobro das obras realizadas nas Divisões A e B”. Logicamente, sendo as obras realizadas e tendo sido efetuadas a título de princípio de pagamento das futuras divisões/frações B, com vista à (prometida) transmissão da propriedade das mesmas ao Réu, não teria cabimento que este pudesse, cumprido coercivamente o contrato promessa, por via da execução específica, fazer seu o valor daquelas obras, isto é, a contrapartida acordada pelas partes para a transmissão do direito de propriedade.
Posto isto, não se diga que, no caso dos autos, em face da declaração de resolução unilateral por parte da Autora, é forçoso concluir que o contrato não será cumprido, como se essa declaração bastasse para determinar a cessação do contrato.
A este propósito, veja-se o artigo de Adriano Squilacce e Alexandre Mota Pinto, “A Resolução Ilícita: Uma Contradição Nos Termos?”, disponível online, com abundantes referências da doutrina, incluindo Pedro Romano Martinez (“Da Cessação do Contrato”, 2.ª Edição, Almedina, 2006, páginas 222-223), lembrando que, segundo este autor, apesar de a resolução ilícita originar a extinção do contrato, não está vedada a possibilidade de subsistência do vínculo, conquanto estejam cumulativamente verificados três pressupostos: (i) o cumprimento das prestações ainda seja possível; (ii) a parte lesada mantenha interesse no contrato; (iii) a execução do contrato não seja excessivamente onerosa para o declarante da resolução ilícita. No seu referido artigo, Adriano Squilacce e Alexandre Mota Pinto, salientam ser “(…) muito importante notar que se a lei, enquanto regra geral, não permite a desvinculação ad nutum dos contratos, o entendimento de que a resolução ilícita extingue, de per se, o vínculo contratual (sem prejuízo de responsabilidade contratual) aparentemente introduziria uma incongruência sistemática.
Porém, seguindo de perto esta linha de pensamento, já não atentará contra a unidade do ordenamento jurídico o entendimento de que a resolução ilícita tem o efeito de cessar automaticamente o contrato, apenas nos casos em que a lei admite a denúncia ad nutum (sem prejuízo de eventual responsabilidade por força do incumprimento do prazo de pré-aviso).
De acordo com esta solução híbrida que adoptamos, a «resolução ilícita» só fará cessar automaticamente o contrato quando seja admissível a denúncia discricionária, cujo âmbito de aplicação está restrito aos contratos de execução continuada ou duradoura (v.g. contrato de agência) em que as partes não estipularam um prazo de vigência (ou na hipótese de um período mínimo de vigência legalmente previsto já ter decorrido — cfr., a este propósito, o artigo 30.º, n.º 3, do Decreto-lei n.º 231/81, de 28 de Julho, sobre o contrato de associação em participação). Em rigor conceitual, esta solução suscita a discussão relativa à forma de cessação do contrato: por efeito de uma «verdadeira» denúncia ou por força de uma resolução ilícita?
Questão mais académica, de formulação, e que como tal não interessa a estas nossas cogitações de cariz eminentemente prático. De facto, à semelhança da denúncia, a resolução de contratos duradouros ou de execução continuada apenas produz, em regra, efeitos para o futuro —cfr. artigo 434.º, n.º 2, do Código Civil.”
Esta posição vem, aliás, na esteira da defendida por Paulo Mota Pinto, também lembrada no citado artigo, referindo que para esse autor “a resposta à questão em análise não tem, necessariamente, de ser uma resposta afirmativa ou negativa para todos os contratos, devendo variar consoante a modalidade do contrato em que ocorra a resolução ilícita (falamos em «modalidade» e não em «tipo» de forma propositada).
Com efeito, Paulo Mota Pinto entende que a solução a adoptar depende da circunstância de o declarante da resolução ilícita ter, ou não, o direito a denunciar o contrato. Para este Autor, caso o resolvente ilícito tivesse a possibilidade de extinguir o contrato através de uma denúncia ad nutum (o que, desde logo, implica que estejamos perante um contrato celebrado por tempo indeterminado), então a resolução ilícita extingue o vínculo contratual já que a declaração de resolução pode ser convertida numa declaração de denúncia. Nos demais casos, este Autor entende que a resolução sem fundamento é ineficaz, já que não estão cumpridos os pressupostos inerentes ao direito potestativo de resolução (in Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Volume II, Coimbra, 2008, páginas 1674-1676, nota 4861).”
Ora, transpondo estas considerações para a situação em apreço, sendo evidente que à Autora, cabeça de casal, não assistia o direito à resolução do aludido contrato promessa (a “Rescindir/Revogar” o mesmo, nos termos da declaração de 02-10-2018), por não estarem verificados os respetivos pressupostos legais (cf. art. 432.º do CC), é inevitável concluir que o contrato promessa não cessou, continuando as partes (outorgantes) vinculadas ao seu cumprimento, até porque o Réu-reconvinte não peticionou, nem sequer implicitamente, a resolução daquele promessa com fundamento no incumprimento definitivo do contrato promessa por parte das Autoras ou da 1.ª Autora. Aliás, resulta da sua Contestação que, não obstante o que considerava ser uma denúncia ilícita do contrato promessa por parte da(s) Autora(s), pretendia o cumprimento do contrato promessa, pelo que peticionou a respetiva execução específica, alegando também, no art. 103.º da Contestação, que, em resposta à comunicação/declaração de resolução, transmitiu à 1.ª Autora que não aceitava a cessação do contrato-promessa e que se opunha à rescisão do mesmo.
Acresce ainda que, como o Tribunal recorrido bem assinalou, resulta dos factos provados ter sido a 1ª Autora, e apenas esta, a declarar, através de carta registada com AR, que pretendia “Rescindir/Revogar, aquele contrato”. Ora, mesmo que seja de considerar que este seu comportamento revela inequivocamente a desvinculação das obrigações decorrentes do contrato promessa, não nos parece que isso possa traduzir igualmente, no contexto fáctico apurado, uma tal intenção, por parte das demais Autoras (admitindo, por mera hipótese, que também estivessem contratualmente vinculadas), tanto mais estando provado que, ao longo da execução dos contratos era com as mesmas que o Réu comunicava, sendo as Autoras BB e CC que remetiam para o advogado a resolução de diversas questões e muitas vezes respondiam às solicitações que lhes eram colocadas pelo Réu através desse mandatário.
Face ao teor da Petição Inicial, apenas podemos constatar que as Autoras consideravam que o contrato promessa celebrado pela cabeça de casal era nulo e que havia sido incumprido culposamente pelo Réu, não se podendo retirar daqui uma recusa categórica de cumprimento do contrato promessa, tanto mais agora que o Tribunal julgou improcedente a ação, não declarando nulo (nem ineficaz) o contrato em apreço.
Portanto, a aludida comunicação de 02-10-2018 não basta para conduzir à aplicação da cláusula décima do contrato, não sendo de enjeitar, contanto o prédio venha a ser constituído em propriedade horizontal, que o contrato possa ainda vir a ser cumprido ou objeto de ação de execução específica intentada contra todas as herdeiras.
Logo, não assiste ao Réu-reconvinte o direito de crédito em apreço, nem muito menos o direito de retenção, pois, independentemente da licitude da detenção que o Réu vem fazendo do prédio, se trata de um direito real de garantia de uma obrigação que não podemos considerar constituída.
Assim, será revogada a decisão recorrida na parte em que julgou procedente a reconvenção.
Resta referir que não é de conhecer do pedido de reembolso de despesas relativas à conta de luz, pelas razões suprarreferidas. Sempre se dirá que, se assim não se entendesse, os factos alegados e provados são insuficientes para justificar a procedência do mesmo, mormente com fundamento no enriquecimento sem causa, até porque se desconhece se as Autoras são (ou não) as titulares do contrato de fornecimento de eletricidade.
DA LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Na sentença citou-se o disposto no art. 542.º, n.º 2, alíneas a) e b) do CPC, acrescentando as seguintes considerações:
«Do conjunto dos factos provados (e não provados), resulta fora de dúvidas que as Autoras fizeram afirmações que sabiam não serem verdadeiras, sobre factos relevantes, mormente o alegado desconhecimento e falta de autorização para o negócio das 2ª e 3ª, com vista a obter o efeito útil da “entrega” por força da preterição de formalidades pelas mesmas criadas.
Repare-se que não estamos no domínio de teses controvertidas na doutrina ou jurisprudência, nem sequer no campo da indagação e interpretação de regras de direito. Estamos sim perante simples factos!
Assim, ao abrigo do disposto no art. 543º, do Cód. Proc. Civil, deverão as Autoras serem condenadas em multa e em indemnização, porque peticionada pelo Réu.»
As Apelantes defendem, em síntese, que: da análise concreta ao processo não se pode concluir que exista má-fé das Autoras, no seu comportamento processual; a herança, proprietária do imóvel é a única que se encontra prejudicada pela promessa do negócio, ao invés o único beneficiado pela promessa do negócio é o Réu que desde 2014, vão dez anos, está na posse de dois andares, os explora por sua conta, nada pagando, sequer um valor para despesas do prédio.
O Apelado, por sua vez, discorda desta pretensão, argumentando, em síntese, que: as Apelantes tinham perfeita consciência das obrigações que assumiram, mas vieram dolosamente, na ação por si proposta, invocar fundamentos que sabem não corresponder à realidade e omitindo factos relevantes, pretendendo com isso conseguir um objetivo ilegal; faltaram à verdade quanto à suposta falta de vontade e conhecimento do negócio por parte das 2.ª e 3.ª Autoras, ao suposto incumprimento pelo Réu das suas obrigações de realização de obras no imóvel, e à suposta má fé deste, acusando-o de se aproveitar da vulnerabilidade e idade da 1.ª Autora em seu próprio proveito, quando sabiam perfeitamente que tais alegações não correspondiam à realidade e que foram as próprias que, por interesses económicos e com vista a obter uma rentabilidade maior do imóvel, incumpriram sucessivamente o contrato-promessa de permuta.
Vejamos.
Preceitua o art. 542.º do CPC, no seu n.º 2, que se diz litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
“a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”
Nos presentes autos, além dos factos provados, importa considerar a circunstância de as Autoras terem alegado um conjunto de factos que não lograram provar, designadamente que:
a) os negócios foram firmados pela cabeça de casal, sem qualquer autorização das restantes herdeiras, as quais não comparticiparam nos mesmos;
(…) c) o Réu DD não procedeu às obras que se propusera e algumas que foram efetuadas a seu mando “prejudicaram os proprietários”, tendo “estes” de proceder a alterações e correções, a fim de poderem estabilizar o prédio e obter as necessárias licenças camarárias;
(…) e) o Réu, nos contratos promessa celebrados com a cabeça de casal, tinha pleno conhecimento que os contratos definitivos não se concretizavam, dado os demais herdeiros daquela herança, bem como falta de licença de utilização do prédio;
f) as obras de remodelação não ultrapassariam o valor de trinta mil euros e o valor atribuído a dois andares, naquela zona e características do prédio, sempre de valor superior a seiscentos mil euros;
g) o Réu, aquando da celebração dos contratos promessa sub judice, com a cabeça de casal, tinha plena consciência da impossibilidade de cumprimento dos mesmos, dado as outras interessadas na herança não terem subscrito tais contratos, bem assim, algumas delas desconhecerem totalmente a existência dos mesmos, dado as divergências entre as herdeiras e que eram do conhecimento do Réu;
h) após a entrega dos 1º e 2º andares, pela empresa a quem o Réu cedeu a sua posição, a “herança”, a fim de os tornar habitáveis e lançá-los no mercado imobiliário, vem fazendo as obras necessárias para o efeito, que não foram executadas segundo o contrato promessa de permuta.
Ora, dada a natureza de alguns destes factos e tendo em atenção a matéria de facto provada nos pontos 31 a 52, é forçoso concluir que as Autoras, dolosamente ou, pelo menos, com negligência grave, alteraram a verdade dos factos e omitiram factos relevantes para a decisão da causa, litigando de má-fé, pelo que não se verifica erro de julgamento a este respeito.
Assim, procedem em parte as conclusões da alegação de recurso, ao qual será concedido parcial provimento nos termos suprarreferidos.
Vencido o Réu-reconvinte quanto à reconvenção, é responsável pelas custas da reconvenção. No recurso, ficaram vencidas as Apelantes/Autoras, - considerando que é de manter a decisão de improcedência da ação - e o Apelado/Réu-reconvinte, em conformidade com o acima referido quanto à improcedência da reconvenção; logo, são responsáveis pelo pagamento das custas do recurso, afigurando-se-nos adequado, tendo em atenção os critérios que presidiram à fixação do valor da causa e face aos termos do decaimento das partes, fixar a proporção da respetiva responsabilidade em 29% para as Autoras/Apelantes e 71% para o Réu/Apelado (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se, em consequência, a sentença recorrida na parte em que julgou parcialmente procedente a reconvenção, decidindo-se, em substituição, julgar totalmente improcedente a reconvenção, mantendo-se quanto ao mais a sentença recorrida.
Decide-se ainda condenar o Réu-reconvinte no pagamento das custas da reconvenção e condenar as Autoras/Apelantes e o Réu/Apelado no pagamento das custas do recurso, na proporção de 29% e 71%, respetivamente.
D.N.

Lisboa, 09-10-2025
Laurinda Gemas
Pedro Martins
António Moreira