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VEÍCULO
INCÊNDIO
DATA
PRESUNÇÃO
Sumário
Sumário I – Espera-se num veículo que circule sem que subitamente se incendeie, tal como se espera numa máquina de lavar roupa que seja utilizada sem que subitamente se incendeie. Ou seja, é expectável que esses bens possuam essa característica respeitante à segurança na sua utilização – trata-se de um requisito objectivo de conformidade nos termos do art. 7º nº 1 al. c) do DL 84/2021. II - Portanto, se o bem não possui essa característica de segurança, há falta de conformidade. III – No caso concreto, a falta de conformidade manifestou-se dentro do prazo previsto no art. 13º nº 1 do citado diploma legal, e por isso, presume-se existente à data da venda ao apelado, presunção essa que a apelante não ilidiu como lhe competia.
Texto Integral
Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I - Relatório
AA instaurou acção declarativa comum contra MFGCar, Lda. e BB, pedindo:
«deve a presente ação ser julgada procedente por provada e por via dela, declarar-se:
I. A resolução do contrato de compra e venda, celebrado entre o Autor e os RR, condenando-se estes a
proceder à devolução àquele do preço pago, no montante de € 26.000,00;
II. Devem ainda os RR. ser condenados, a pagar ao A. o montante de € 1.008,40 a título de danos patrimoniais e de € 17.500,00 a título de danos não patrimoniais;
III. Bem como quaisquer outras verbas que, nos termos do disposto pelos art.ºs 564º e 569º do C.C., possam vir a apurar-se no decurso da presente ação, por dependerem as mesmas de acto a praticar pelos RR;
IV. Subsidiariamente, caso assim não se entenda, devem os RR. ser condenados a pagar ao AA. a título
indemnizatório decorrente de responsabilidade civil por facto ilícitos, nos termos do disposto pelos art.ºs 483º e segs do C.C., os danos patrimoniais por si sofridos, correspondente ao valor do veículo inutilizado e demais prejuízos sofridos, no valor de 27.008,40€, bem como os danos não patrimoniais no montante de 17.500,00€.».
Alegou, em síntese:
- comprou um automóvel usado à 1ª ré, da qual o 2º réu é sócio-gerente;
- recebeu o veículo em 22/04/2022 e circulou com este até 21/10/2022, data em que se incendiou quando o conduzia em autoestrada;
- a perda do veículo foi total;
- ainda hoje está afectado psicologicamente com o sucedido.
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Os réus contestaram conjuntamente, tendo invocado ilegitimidade do 2º réu e em sede de impugnação defenderam a absolvição do pedido por atribuírem a responsabilidade pelo incêndio a modificações que o autor introduziu na viatura designadamente substituição do escape, alterando-lhe o comportamento a nível de gases do escape.
*
No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade do 2º réu.
*
Realizada a audiência final, foi proferida sentença com este dispositivo:
«julga-se a ação parcialmente procedente e, em consequência:
a) Declara-se a resolução do contrato de compra e venda referente ao veículo automóvel marca BMW, modelo 420, matrícula AQ-..-DV celebrado entre o Autor AA
Antunes e a primeira Ré MFGCar, Lda.;
b) Condena-se a segunda Ré MFGCar, Lda. a pagar ao Autor AA €21.900,00 (vinte e um mil e novecentos euros) a título de restituição do montante pago pela viatura referida em a);
c) Determina-se a restituição à Ré MFGCar, Lda., decorrendo por sua conta as despesas da devolução da viatura referida em a);
d) Condena-se a Ré MFGCar, Lda. a pagar ao Autor AA €79,99 (setenta e nove euros e noventa e nove cêntimos) a título de danos patrimoniais e €1.500,00 (mil e quinhentos euros a título de danos não patrimoniais;
e) Absolve-se a Ré MFGCar, Lda. do demais peticionado;
f) Absolve-se o Réu BB dos pedidos.».
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Inconformada, apelou a ré MFGCar, Lda., terminando a alegação com estas conclusões:
«a) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-03-2022, Processo 1389/18.0T8TVD.L1-7: « IV - O conceito de consumidor exclui do seu âmbito as pessoas colectivas, mas mesmo que se admitisse a sua inclusão nesse manto protector, sempre teria de estar provado que ao bem adquirido em causa não era dado um uso profissional.».
b) O que nos autos ficou provado foi que «3) O Autor, pretendendo adquirir para uso pessoal um veículo marca BMW, modelo 420, contactou os Réus por intermédio de um conhecimento comum a fim saber se os mesmos, no exercício da sua atividade, dispunham para venda um veículo da referida marca e modelo,»,
c) Ou seja, o “uso pessoal” está, portanto, alegado na perspectiva da “intenção” de aquisição da viatura, desconhecendo-se (inexistindo factos provados que respaldem se) a utilização efectivamente dada à viatura era/foi, efectivamente, “pessoal” (mais: exclusivamente) ou profissional.
d) Tal facto, não é sequer susceptível de confissão, por não ser facto que a Ré conheça ou deva conhecer, mas sim facto pessoal relativo ao A., nada resultando da fundamentação da sentença recorrida no sentido de ter sido feita qualquer prova, seja por que meio for, do “uso pessoal” dado à viatura, porque, sobre tal questão, nenhuma prova foi produzida (seja do uso “pretendido” pelo A., seja daquele que efectivamente o A. deu à viatura).
e) Deve, pois, ser expurgado da matéria de facto a referência, efectuada no ponto «3) dos factos provados, “para uso pessoal”, sendo a matéria de facto assim fixada:«O Autor, pretendendo adquirir um veículo marca BMW, modelo 420, contactou os Réus por intermédio de um conhecimento comum a fim saber se os mesmos, no exercício da sua atividade, dispunham para venda um veículo da referida marca e modelo».
f) Ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-03-2022, Processo 1389/18.0T8TVD.L1-7: «III - A simples circunstância de estar provado no processo a existência de um incêndio num veículo, não autoriza a conclusão de que tal veículo não apresentava qualidades e desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor possa razoavelmente esperar: um incêndio é a consequência de um processo causal que o precede e não um “defeito”, uma “falta de qualidade” ou um “deficiente funcionamento” (até porque pode ocorrer sem estes). (…) V - A quem intenta a acção cabe o ónus de provar que o incêndio ocorrido estava relacionado e tinha tido origem num qualquer defeito do veículo em causa.».
g) E bem! Porque, se assim não fosse, criar-se-ia designadamente nas circunstâncias como as dos autos, uma presunção de afastamento impossível, porque impossível é à Ré provar que o incêndio de uma viatura,
que a consumiu totalmente, impedindo qualquer perícia conclusiva, deveu-se a defeito da viatura, até porque as viaturas automóveis de alta gama como um BMW 420D, não é comum arderem.
h) A sentença recorrida, faz pois uma errada e perigosa interpretação da lei, quer seja (porque não se percebe o que seja…) do art. 921º CC, quer seja do Decreto-Lei n.º 84/2021 de 18 de outubro, que regula os direitos do consumidor na compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais, transpondo as Diretivas (UE) 2019/771 e (UE) 2019/770, segundo a qual, tendo o veículo ardido, cabe à Ré demonstrar que tal ocorreu por outra causa que não a de um defeito na viatura.
i) Desde logo, a questão que se coloca é que dos factos provados não resulta a causa – o defeito – que deu origem ao evento lesivo, que foi o incêndio, porque devido ao incêndio, o veículo sofreu danos de tal forma extensos que foi impossível proceder à análise da “centralina” de modo a detectar a causa dele (incêndio) e o local onde o mesmo se originou, pois a partir daqui, fica escancarado um perigoso precedente que deixa o vendedor impedido de demonstrar que o incêndio não se deve a culpa sua; E não pode ser, porque é injusto e porque é iníquo, porque a rácio da lei é violada ao deixar o vendedor impedido de demonstrar que o incêndio não proveio de defeito, e consequentemente, de culpa sua.
j) Choca, além da questão abstrata, porque em concreto, a questão que esta Sentença coloca, é a de saber se o vendedor de uma viatura que sofreu alterações ao escape, profundas, implicando inclusive «uma bifurcação na linha principal em que foi feita uma saída de escape antes do silenciador sem passar pelo mesmo» (cfr. depoimento da testemunha CC, Inspector de Veículos Automóveis para a empresa Controlauto), sem que esteja demonstrado que tais alterações tenham sido efectuadas por pessoa habilitada/credenciada/conhecedora, sem que esteja provado que tais alterações respeitaram as instruções do fabricante, alterações com as quais a viatura jamais “passaria” na inspecção (declarado pela testemunha CC -Controlauto), deve ser responsabilizado por uma anomalia, não apurada, que os peritos, sem o poderem concluir de forma a excluir qualquer outra causa (desde um cigarro ter entrado para o sofre do motor…), sem que se saiba sequer quais foram (todas) as alterações “tuning” efectuadas na viatura, porque as faturas de tais modificações/transformações “tuning”, desapareceram sem deixar rasto…
k) A sentença recorrida dá, de forma írrita e iníqua, a “volta ao texto”, concluindo antes de uma premissa, ou seja, concluindo (página 25, in fine) que «Na verdade, pese embora se tenha apurado que: - antes da celebração do negócio a Ré tenha solicitado à oficina com trabalha habitualmente a verificação da viatura, não tendo sido detetada qualquer anomalia; - que o Autor circulou com a viatura desde a data da sua entrega até ao dia 21 de Outubro de 2022, percorrendo cerca de 9.745km e - que o Autor alterou o para-choques frontal e traseiro, bem como o sistema de escape da viatura, nenhuma prova se produziu no sentido de se poder concluir que as alterações efetuadas tenham sido a causa do incêndio.», e só depois expondo a premissa desse raciocínio, segundo a qual «quanto às alterações efetuadas pelo Autor na viatura, em sede de esclarecimentos prestados em audiência, o Perito subscritor do relatório pericial junto aos autos, quando confrontado com o suporte fotográfico de fls. 52, esclareceu tratar-se de uma alteração ao sistema de escape e não uma mera alteração estética de acrescento de uma ponteira. Mais referiu ser visível o acrescento de um tubo o que consubstancia uma alteração ao sistema de escape. Porém, igualmente referiu que tal alteração não agrava o risco de incêndio se for efetuada de acordo com a indicação do fabricante.». (página 26, in fine).
l) Sucede que, tal afirmação é uma conclusão sem premissas, porquanto não se provou que a alteração ao escape foi «efetuada de acordo com a indicação do fabricante», o que se não consta dos factos provados, também nem de qualquer excerto da análise crítica da prova produzida resulta – e convém deixar claro, foi sobre isso produzida qualquer prova – que a alteração ao escape efectuada, o tenha sido «de acordo com a indicação do fabricante».
m) Pior: Não pode ser simplesmente olvidado que, resulta do Relatório elaborado a pedido do A. e por ele apresentado como documento 18 da P.I., que reporta vários avisos de avarias, sendo o último “aviso” uma “avaria no motor devido a troca de fichas no sensor de pressão dos gazes de escape e da sonda da pressão diferencial”, sem que, nesse relatório a pedido do A., se tenha depois retirado qualquer ilação retirado da existência de fichas trocadas em órgãos sensíveis, inerentes ao sistema de escape, que o A., alterou na oficina por si escolhida, que nunca apresentou faturas dos trabalhos de “tuning” realizados.
n) E não está sequer provado que a testemunha DD, que efectuou essa alteração ao escape, tenha qualquer tipo de formação ou conhecimentos para o fazer, pelo que, aliás, a referência à testemunha DD como «empresário reparação automóvel», é simplesmente inadmissível, porque, na realidade, nem essa qualidade se demonstrou!
o) É que, se não estando provado que a alteração “tuning” ao sistema de escape, através de um acrescento de um tubo aumentar o ruído e obter mais potência, tenha sido efetuada de acordo com a indicação do fabricante, é objectivamente impossível daí concluir que «tal alteração não agrava o risco de incêndio»! Em falta de fundamentação; Em contradição insanável entre a (expressa) fundamentação e a decisão dela decorrente; Em insuficiência da matéria de facto para a decisão; E no fundo, de forma ilógica, precipitada, incoerente e inexperiente e desatenta.
p) Do relatório pericial constante de fls. 99 e ss., Ref.ª CITIUS 38903658 resulta que: «A alteração do sistema de escape original para um sistema "M 4" implica não só personalização estética e mudança de ruído do motor, mas também incremento de potência e otimização da eficiência do motor. Apesar de uma alteração correta e realizada por profissionais, como a do sistema de escape, não dever ocasionar incêndio, no estado atual do veículo, não é possível determinar com precisão a origem do incêndio devido à extensão dos danos provocados.(…)”; E (na mesma página 12 do relatório) «É crucial que qualquer alteração no sistema de escape seja realizada por profissionais para garantir a instalação correta e segura.»; À contrário: não sendo tais alterações efectuadas por pessoal especializado e de acordo com as instruções de acordo com as instruções da marca, podem causar um incêndio, o que é bastante para afastar a presunção de culpa da Ré.
q) Mais e pior (muito pior!): a sentença recorrida refere que «Para apuramento da factualidade vertida em 14), 15) e 16) atentou-se no depoimento da testemunha DD, empresário reparação automóvel, que referiu conhecer o Autor por ser seu amigo há cerca de 15 anos e o Réu em virtude de o ter visto uma vez na sua oficina. Referiu a testemunha de forma objetiva e que se afigurou sincera ter, a pedido do Autor, substituído o para-choques dianteiro e traseiro da viatura BMW em apreço nos autos, ter colocado duas ponteiras de escape, ter retirado as películas de proteção solar e ter feito uma puxada do tubo de escape.».
r) A acrescer a estas modificações “tuning”, desconhecem-se que outras o A. (nessa ou noutra qualquer oficina) possa ter feito, sendo certo que ninguém gasta milhares de euros para fazer o carro andar mais e fazer mais barulho, inibindo-se de fazer outras alterações, muito mais baratas e muito mais simples, como reprogramações de centralina ou eliminação de filtros de partículas, e quanto a isso, convém notar que as faturas referentes às alterações efectuadas à viatura, nunca o A. ou a testemunha DD as juntou: desapareceram, sem deixar rasto… Assim impedindo a Ré de demonstrar quais foram concretamente as alterações “tuning” que a viatura sofreu.
s) O aqui A., que falseou a verdade alegando que as alterações ao escape foram efectuadas antes da inspecção tipo B, ao sonegar ao Tribunal as faturas relativas às alterações que efectuou na viatura, e toda a documentação relativa a tais alterações, impediu objectivamente a Ré de demonstrar que foram feitas, além das alterações ao escape, para ganhar potência e produzir ruído, outras, que agravaram o risco de incêndio que uma alteração “tuning” ao escape efectuada por quem não está provado que tenha qualificações para o efeito, já por si causa!
t) Aliás, a prova constituída pelo Relatório apresentado pelo A. como documento 18 (página 16), ao afirmar a existência de vários erros (Desativação com altas temperaturas; Danos no compressor; regeneração do filtro de partículas diesel não possível; Avaria no motor devido à troca de fichas de pressão dos gazes de escape e da sonda de pressão diferencial), impõe que se dê como não provado o facto 21), prévios ao incêndio, a substituir por: «previamente à eclosão do incêndio, a viatura apresentou vários avisos de anomalia, que o A. desprezou», notando-se que os referidos avisos são, necessariamente, prévios ao incêndio, na medida em que o mesmo destruiu os elementos electrónicos capazes de registar tais anomalias.
u) De forma bizarra, a empresa responsável pela elaboração do relatório, tendo conhecimento de que existiam vários erros prévios à eclosão do incêndio, nada refere quanto à impossibilidade material de o A. não ter visualizado os avisos no painel de instrumentos, que negou ao Tribunal, apesar de atestados em documento que ele próprio junta; um desses erros, respeitante a troca de fichas “no sensor de pressão dos gazes de escape e da sonda da pressão diferencial”, ou seja, troca de fichas em órgãos relativos ao escape, que fora alterado por uma empresa não certificada, sem fazer referência à falta de qualificações /certificações profissionais de quem executou uma “puxada” para efectuar uma transformação “tuning” num
escape de um veículo para produzir mais rendimento e ruído.
v) Ainda de algum modo relevante: «Inquirida a testemunha CC, Inspector de Veículos Automóveis para a empresa Controlauto- Controlo Técnico Automóvel, Sa. (…) confirmou ter inspecionado a viatura em apreço nos autos em Março de 2022, tendo a mesma sido aprovada para atribuição de matrícula portuguesa” e que “quando fez a inspecção à viatura apenas verificou a alteração do para-choques, mais tendo referido, - quando confrontado com o suporte fotográfico de fls. 52 frente e verso referente às ponteiras e à alteração efetuada no escape da viatura, - que aquando da inspeção o escape da viatura era o original. Mais referiu que a fotografia de fls. 52 verso retrata uma alteração na linha de escape, sendo visível uma bifurcação na linha principal em que foi feita uma saída de escape antes do silenciador sem passar pelo mesmo. Mais referiu que se essa alteração existisse à data da inspeção, a viatura não teria sido aprovada.».
Sem conceder,
w) Consta da garantia, que a viatura tinha, quando o A. a adquiriu, 137.513 km, sendo sua condição de validade, a obrigação do A. de efectuar a revisão da viatura até ao limite dos 147.000.
x) E consta dos factos provados «19) O Autor circulou com a viatura desde a data da sua entrega até ao dia 21 de Outubro de 2022, percorrendo cerca de 9.745km.», o que significa que, no dia 21 de Outubro de 2022 quando a viatura se incendiou, tinha 147.258 km, o que significa que o A. nem respeitou a obrigação de efectuar a revisão até (ao limite de) 147.000km.
y) E a questão não é despicienda, já que a chamada “obrigação de sequela ou seguimento e vigilância activa e contínua” dos produtos no decurso da sua utilização que, no caso dos veículos automóveis, se concretiza, basicamente, nas revisões periódicas, só com a colaboração do A. poderia ter sido realizada, e não o foi.
z) Ficando em consequência disso – e tendo o incêndio ocorrido depois disso – a R. impedida de constatar qualquer desconformidade, designadamente, no “EGR” que, de acordo com o relatório pericial que não confirma o estranho relatório arranjado pelo A., seria a causa mais provável do incêndio, se descartadas pudessem ser outras como o “tuning” que a viatura sofreu (sem imaginar sequer o “tuning” que a viatura possa ter sofrido para além do que tem respaldo nos autos…).
Termos em que, com o sempre Douto suprimento de V. Exas. deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida que deverá ser substituída por outra que absolva a Ré do pedido,».
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Não há contra-alegação.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos apelantes, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são:
- se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto
- se o autor não pode ser considerado consumidor e por isso não é aplicável o DL 84/2021 de 18/10
- ónus da prova
- violação das condições da garantia
- e se a acção deve improceder
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III – Fundamentação
A) Na sentença recorrida vem dado como provado:
1) A Ré MFGCar, Lda. dedica-se, designadamente, à comercialização de veículos automóveis ligeiros.
2) O Réu BB é o seu sócio-gerente.
3) O Autor, pretendendo adquirir para uso pessoal um veículo marca BMW, modelo 420, contactou os Réus por intermédio de um conhecimento comum a fim de saber se os mesmos, no exercício da sua atividade, dispunham para venda um veículo da referida marca e modelo.
4) A 1ª Ré, na pessoa do seu sócio-gerente, não dispondo de veículo em parque, comprometeu-se a obtê-lo no mercado espanhol.
5) Tendo os Réus apurado a existência de veículo em stock em leilão em Espanha, foi o Autor interpelado para que pagasse o valor de 1.000 € para efeito de reserva.
6) Tal importância foi paga por meio de transferência bancária.
7) A 1ª Ré na pessoa do seu sócio-gerente, comunicou ao Autor em Março de 2022 que já tinha na sua posse a viatura, mas que não a podia entregar de imediato, dado que ainda não dispunha dos documentos que aguardava que chegassem.
8) Antes da celebração do negócio com o Autor, como a viatura era importada, a Ré solicitou à oficina com que trabalha habitualmente a verificação da viatura, tendo os Réus assegurado ao Autor que o veículo se encontrava em perfeitas condições de circulação e que havia sido verificado pela oficina com a qual a Ré trabalha habitualmente, passando a garantia com data aposta de 05.04.2022.
9) Autor e Ré, na pessoa do seu sócio-gerente, acordaram fazer o negócio pelo valor de 21.900 €, tendo o Autor entregue a sua viatura de marca Volkswagen, matrícula ..-FU-.., para retoma.
10) Ao veículo entregue para retoma foi atribuído o valor de 2.900 €, tendo ainda o Autor efetuado dois pagamentos, um por transferência bancária no valor de 15.000 € e 3.000 € em numerário.
11) Da declaração aduaneira de veículo datada de 05.04.2022 resulta como data da transmissão da mesma a favor da 1ª Ré o dia 16.02.2022, como data da entrada em território nacional o dia 02.03.2022, como valor de aquisição 17.641 €, como país de proveniência Espanha, como data da primeira matrícula 29.09.2014 e como número de matrícula definitiva …ZK.
12) No dia 17.03.2022 o Autor solicitou ao Réu que lhe entregasse a viatura no dia seguinte na oficina Exclusive Spot Santo António na Quinta … Palhais para que fossem feitas algumas alterações à viatura.
13) Os Réus procederam à entrega da viatura ao Autor em 19.03.2022.
14) Na oficina referida em 12), ainda com a matrícula espanhola, por solicitação do Autor, foi alterado o para-choques frontal e traseiro.
15) Na oficina referida em 12), em data não apurada, foi alterado o sistema de escape da viatura.
16) Em Portugal, a viatura foi inspecionada em 29.03.2022 com vista à atribuição de matrícula, tendo sido aprovada e após, atribuída a matrícula AQ-..-DV em 05.04.2022.
17) A viatura foi faturada pela 1ª Ré ao Autor com a fatura/recibo n.º 2022/31 datada de 22.04.2022, pelo valor de 21.900 €.
18) O veículo foi objeto dos registos de propriedade com a AP n.º …40 de 09/05/2022 a favor de MFGCar, Lda. e com a AP n.º …41 de 09/05/2022 a favor de AA.
19) O Autor circulou com a viatura desde a data da sua entrega até ao dia 21 de Outubro de 2022, percorrendo cerca de 9.745km.
20) No dia 21 de Outubro de 2022 o Autor circulava na A33, sentido Barreiro/Almada, na companhia da companheira e de um casal amigo, quando junto ao pórtico da saída de Vale Milhaços a viatura se incendiou.
21) Até então a viatura nunca tinha sinalizado ao Autor qualquer anomalia, nem
mesmo no momento prévio à eclosão do incêndio.
22) O Autor accionou de imediato a linha de emergência, mas à chegada da viatura dos bombeiros já pouco ou nada foi possível fazer, pois o fogo tinha já consumido grande parte da viatura.
23) Ao deparar-se com a progressão rápida do fogo, o Autor procurou retirar do
interior da viatura todas as pessoas que com ele circulavam.
24) Nada fazia prever a verificação da ocorrência.
25) Na sequência do incêndio, o amigo comum do Autor e do Réu que os havia
apresentado, informou o primeiro que o segundo lhe solicitava a entrega da viatura no stand AM, Lda, sito na Estrada Nacional 10 – Edifício …, Amora, representante da marca, para lhe prestar assistência.
26) O Autor sentiu pânico ao ver o veículo a arder e temeu pela sua vida, pela vida da sua companheira e dos seus amigos, os ocupantes que transportava.
27) Em consequência do incêndio o Autor sentiu-se nervoso, angustiado e dormia mal.
28) O Autor recorreu a apoio psicológico, tendo-lhe sido diagnosticado síndrome
depressivo reactivo a stress elevado.
29) Cada consulta de psicologia tem o custo de 60 €.
30) O Autor não logrou retirar de dentro da viatura incendiada um par de óculos marca jack gold, no valor de 155 € e um relógio de pulso marca watch fit, no valor de 79,99 € que lá se encontravam.
31) O relógio de pulso marca watch fit, no valor de 79,99 € havia sido adquirido pelo Autor.
32) Os estragos provocados pelo incêndio na viatura BMW do Autor tornam economicamente inviável a sua recuperação.
33) No início de Novembro de 2022, o Autor contratou os serviços da empresa SGS Portugal, S.A. com vista a apurar a causa do incêndio e do “relatório de peritagem técnica de avarias mecânicas” datado de 02.12.2022 constante de fls. 24 e seguintes cujo teor se dá por integralmente reproduzido, resulta designadamente o seguinte: «(….Descartadas as hipóteses atrás mencionadas, partimos para a análise do permutador e válvula do sistema de recirculação de gases de escape (EGR), que apresentava carga térmica com descoloração do material de base, e com sinais de resíduos carbonosos, sinais de queima do seu líquido de refrigeração, que apresenta na sua base constituinte, elementos inflamáveis que é o caso do glicol.
Por sermos conhecedores das acções de chamada/acção técnica por parte do fabricante em relação à deficiência já detetada neste órgão mecânico (EGR), indagamos ao proprietário se a mesma foi realizada, sendo que o mesmo nos informou que não recebeu mensagem para efetuar essa acção de chamada.
Esta viatura apresenta acção de chamada n.º …600 para a substituição do radiador de recirculação de gases de escape (EGR).
Da análise à leitura de chaves efetuada, verificamos que a viatura no seu historial apresenta 2 vezes anomalia no grupo propulsor aos 59528 km´s e aos 125144 km´s (…)»
34) O histórico registado pelas duas chaves do veículo é disforme porquanto a informação constante de uma delas, não coincide com a informação constante da outra.
35) O Autor recebeu uma carta da BMW Group Portugal datada de 05.02.2024 com vista ao agendamento da realização da acção técnica “substituir o radiador EGR”.
36) A substituição do radiador EGR da viatura nunca foi efetuada.
37) Do relatório pericial constante de fls. 99 e seguintes cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos, resultam as seguintes conclusões:
« (…)A viatura com a matricula AQ-..-DV, alvo desta Perícia, foi sujeita a uma inspeção periódica aos 15 de Outubro de 2022 como resultado dessa inspeção pode-se afirmar que o veículo se encontrava em condições de circulação.
O veículo possui registos de manutenção que comprovam terem sido realizadas numa oficina concessionada pela BMW espanhola, na AUTOGAL Orense, à exceção da última manutenção realizada em novembro de 2022.
O incêndio que se verificou no veículo causou temperaturas superiores ao ponto de fusão do alumínio, derretendo diversos componentes do motor, sendo o radiador de Recirculação de gases de escape (EGR - Exhaust Gas Recirculation) um dos mais afetados.
A válvula EGR desempenha um papel fundamental no sistema de escape e no motor, regulando o fluxo de gases de escape para o sistema de admissão do motor, resultando em maior eficiência, redução de consumo de combustível e emissão de poluentes. Quando a válvula EGR apresenta avarias, tende a produzir ruídos no motor e acionar a luz de verificação do motor do veículo.
O derretimento do material plástico do painel de instrumentos impossibilitou a verificação se, no momento do incidente, a viatura circulava com a luz do motor acesa.
Com base na documentação anexada, (Anexo I) a viatura possuía 147255 km em novembro de 2022, com uma ação técnica registada (Anexo II) para a substituição do refrigerador EGR em Agosto do mesmo ano.
Os danos provocados pelo incêndio no veículo são de tal natureza que tornam economicamente inviável a sua recuperação.
A alteração do sistema de escape original para um sistema "M 4" implica não só personalização estética e mudança de ruído do motor, mas também incremento de potência e otimização da eficiência do motor.
Apesar de uma alteração correta e realizada por profissionais, como a do sistema de escape, não dever ocasionar incêndio, no estado atual do veículo, não é possível determinar com precisão a origem do incêndio devido à extensão dos danos provocados.(…)”
38) Da resposta à reclamação constante de fls. 120 e seguintes cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos, resulta, designadamente o seguinte:
“(…) A inspeção obrigatória tem como objetivo garantir que os veículos em circulação atendam aos padrões mínimos de segurança e emissões estabelecidos pela legislação.
Os itens listados, como identificação do veículo, sistemas de iluminação, suspensão, travagem, alinhamento de direção, emissões de CO2 e estado geral do veículo, são essenciais para assegurar a segurança dos utilizadores.
O sistema de recirculação dos gases de escape, embora relevante para a redução de emissões poluentes, não está incluído nos parâmetros da inspeção obrigatória. (…)”
(…) A análise detalhada do histórico de quilometragem e manutenção da viatura, conforme apresentado no Relatório Pericial, demonstra uma correlação consistente entre a distância percorrida e as intervenções técnicas realizadas no período entre Março de 2015 e Abril de 2018.
Esta sequência cronológica de eventos sugere que as manutenções foram realizadas de acordo com a evolução da quilometragem, o que reforça a integridade dos dados de assistência.
Portanto, com base nas evidências disponíveis, parece improcedente a alegação de manipulação desses dados.
(...) As respostas aos Quesitos do Relatório Pericial sobre o sistema de escape afiguram-se desenquadradas pois pressupõem a substituição do sistema original para um sistema de escape 4 (M4).
“(…) Esclarece-se que a conclusão do relatório pericial, bem como as respostas fornecidas aos quesitos, foram baseadas na premissa de que houve a substituição do sistema de escape original por um sistema de rendimento do tipo M4.
Esta substituição é crucial para o contexto das considerações realizadas.
Caso tal substituição não tenha ocorrido, compreende-se que as observações relacionadas à alteração do sistema de escape possam parecer fora de contexto.
No entanto, salienta-se que, com exceção desta premissa específica, todas as outras conclusões do Relatório Pericial permanecem válidas e inalteradas.(…)»
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B) Vem dado como não provado, designadamente:
«e) O Autor substituiu o escape de origem para 4 (M4) e alterou as embaladeiras.»
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C) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Discorda a apelante do julgamento quanto aos pontos 3) e 21) da matéria de facto.
Quanto ao ponto 3) entende que deve ser julgado não provado o facto «para uso pessoal»
Quanto ao ponto 21 entende que deve ser julgado não provado o que nele consta e que deve ser julgado provado:
«Previamente à eclosão do incêndio, a viatura apresentou vários avisos de anomalia, que o A. desprezou»
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Relativamente ao ponto 3), alega que nenhuma prova foi produzida quanto ao uso que o apelado deu à viatura e que «(…) tal facto, não é facto que a Ré conheça ou deva conhecer, porquanto é facto pessoal relativo ao A., razão pela qual, não ter a Ré impugnado em sede de contestação é irrelevante»
Nos art. 46º e sgs da petição inicial é invocada a aplicação da legislação referente à defesa do consumidor e no art. 48º vem alegado:
«No caso concreto o autor adquiriu o veículo para um uso não profissional, pessoal portanto, a quem se dedica ao comércio de revenda de viaturas automóveis».
Na art. 2º e 11º da contestação lê-se:
«O alegado nos artigos 1º a 7º da p.i., tirando o exposto no artigo anterior corresponde à verdade, tudo o resto escamoteia a verdade dos factos»,
«Tudo o que aconteceu, posteriormente, tendo em conta que os RR não têm qualquer responsabilidade, impugna-se na sua totalidade.».
O art. 574º do CPC (Código de Processo Civil) estabelece:
«1 - Ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor.
2 - Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.
3 - Se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento e equivale a impugnação no caso contrário.
4 - Não é aplicável aos incapazes, ausentes e incertos, quando representados pelo Ministério Público ou por advogado oficioso, o ónus de impugnação, nem o preceituado no número anterior.».
No caso concreto, a contestação nada refere sobre a alegação do autor quanto à finalidade da aquisição do veículo e a verdade é que nem sequer se defende ser inaplicável a legislação sobre defesa do consumidor. Em suma, é evidente que não foi impugnado que o veículo foi adquirido para uso pessoal.
Improcede a impugnação quanto ao ponto 3).
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Relativamente à pretensão de que seja julgado provado que «Previamente à eclosão do incêndio, a viatura apresentou vários avisos de anomalia, que o A. desprezou», importa lembrar estas normas do CPC:
Art. 5º
«1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
(…)»
Art. 571º
«1 - Na contestação cabe tanto a defesa por impugnação como por exceção.
2 - O réu defende-se por impugnação quando contradiz os factos articulados na petição ou quando afirma que esses factos não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo autor; defende-se por exceção quando alega factos que obstam à apreciação do mérito da ação ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinam a improcedência total ou parcial do pedido.»
Art. 572º
«Na contestação deve o réu:
a) Individualizar a ação;
b) Expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor;
c) Expor os factos essenciais em que se baseiam as exceções deduzidas, especificando-as separadamente, sob pena de os respetivos factos não se considerarem admitidos por acordo por falta de impugnação; e
(…).»
Art. 573º
«1 - Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado.
2 - Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.»
Ora, na contestação nada vem alegado no sentido do que agora pretende a apelante seja julgado provado e nem tal matéria se enquadra nalguma das alíneas do nº 2 do art. 5º do CPC, pelo que improcede necessariamente a sua pretensão.
*
Relativamente à pretensão de seja julgado provado que «Previamente à eclosão do incêndio, a viatura apresentou vários avisos de anomalia, que o A. desprezou», invoca a apelante a página 16 do relatório/doc. 18 junto com a petição inicial, dizendo que nele se afirma «a existência de vários erros (Desativação com altas temperaturas; Danos no compressor; regeneração do filtro de partículas diesel não possível; Avaria no motor devido à troca de fichas de pressão dos gases de escape e da sonda de pressão diferencial)» e conclui: «(…) usando uma expressão da gíria mecânica, nos momentos prévios à eclosão do incêndio, o painel de instrumentos mostraria avisos como “uma árvores de natal”».
Nesse documento, mencionado no ponto 33 dos factos provados lê-se:
« »
Ora, como no documento intitulado «Garantia BMW 420D Matrícula AQ -- DV» consta que «A viatura à data de venda tem kilómetros 137.513», se a apelante entende que a informação fornecida pelas chaves é fidedigna deveria a apelante extrair a consequência de que o veículo já tinha apresentado anomalias no grupo propulsor por duas vezes antes de o vender ao apelado.
Mas, certo é que não impugna estes factos julgados provados pela 1ª instância:
«24) Nada fazia prever a verificação da ocorrência»
«34) O histórico registado pelas duas chaves de veículo é disforme porquanto a informação constante de uma delas não coincide com a informação constante da outra»
Portanto, a análise da prova não permite concluir que a 1ª instância errou ao julgar provado o que consta no ponto 21º.
Improcede a impugnação.
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C) Ao abrigo do disposto nos art. 663º nº 2 e 607º nº 4 adita-se os seguintes factos provados:
17 – a) A R. entregou ao A. a «Garantia BMW 420D Matrícula AQ .. DV» em que se lê, designadamente:
35 – a) Na carta referida em 35 lê-se:
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O Direito
1. Se o autor não pode ser considerado consumidor e por isso não é aplicável o DL 84/2021 de 18/10
Na sentença recorrida entendeu-se ser «aplicável a Lei de defesa do Consumidor em articulação com o regime do Decreto-Lei nº 84/2021, de 18 de Outubro» expondo-se, designadamente:
«No caso dos autos, apurou-se que o Autor, pessoa singular e bombeiro sapador de profissão, comprou à primeira Ré, sociedade comercial que se dedica, designadamente, à comercialização de veículos automóveis ligeiros, no exercício da respetiva atividade, um veículo automóvel em segunda mão.
Nada nos autos permite concluir que o Autor não tenha destinado o bem a outro fim que não o uso pessoal, fluindo antes do conjunto da prova produzida que o destinou a tal uso pessoal, tal como sucedia no momento da eclosão do incêndio, nele viajando a par do Autor, a sua companheira e dois amigos.
Assim, dúvidas não restam que o Autor celebrou o referido contrato de compra e venda na qualidade de consumidor e que a primeira Ré o celebrou na qualidade de profissional, no exercício da sua atividade de comercialização de veículos automóveis ligeiros, configurando-se pois uma relação de consumo.».
Discordando da aplicação desse regime jurídico, diz a apelante: «Desconhecendo-se (inexistindo factos provados que respaldem) se a utilização da viatura era, efectivamente, “pessoal” ou profissional».
O DL 84/2021 prevê:
Art. 2º:
«Definições
Para efeitos do presente decreto-lei, entende-se por:
(…)
g) «Consumidor», uma pessoa singular que, no que respeita aos contratos abrangidos pelo presente decreto-lei, atue com fins que não se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal, profissional;
(…)
o) «Profissional», uma pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que atue, inclusivamente através de qualquer outra pessoa em seu nome ou por sua conta, para fins relacionados com a sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional, no que respeita aos contratos abrangidos pelo presente decreto-lei;
(…)»
Art. 3º
«Âmbito de aplicação
1 – O presente decreto-lei é aplicável:
a) Aos contratos de compra e venda celebrados entre consumidores e profissionais, (…)
(…) »
Está provado:
«3) O Autor, pretendendo adquirir para uso pessoal um veículo marca BMW, modelo 420, contactou os Réus (…) a fim de saber se os mesmos, no exercício da sua atividade, dispunham para venda de um veículo da referida marca e modelo».
E na alegação de recurso, diz a apelante:
«11º
O A., bombeiro sapador instaurou esta acção (…)».
Sendo facto notório que o veículo em causa não é adequado ao exercício da profissão de bombeiro sapador, é manifesto que ao caso concreto é aplicável o disposto no DL 84/2021.
2. Do ónus da prova
O DL 84/2021 prevê:
Art. 5º
«O profissional deve entregar ao consumidor bens que cumpram os requisitos constantes dos artigos 6º a 9º, sem prejuízo do disposto no artigo 10º»
Art. 6º
«Requisitos subjetivos de conformidade
São conformes como contrato de compra e venda os bens que:
a) Correspondem à descrição, ao tipo, à quantidade e à qualidade e detém a funcionalidade, a compatibilidade, a interoperabilidade e as demais características previstas no contrato de compra e venda;
b) São adequados a qualquer finalidade específica a que o consumidor os destine, de acordo com o previamente acordado entre as partes;
(…)»
Art. 7º
«Requisitos objetivos de conformidade
1 – Para além dos requisitos previstos no artigo anterior os bens devem:
a) Ser adequados ao uso a que os bens da mesma natureza se destinam;
(…)
d) Corresponder à quantidade e possuir as qualidades e outras características, inclusive no que respeita à durabilidade, funcionalidade, compatibilidade e segurança, habituais e expectáveis nos bens do mesmo tipo, considerando, designadamente, a sua natureza (…)
(…)»
Art. 13º
«Ónus da prova
1 – A falta de conformidade que se manifeste num prazo de dois anos a contar da data de entrega do bem presume-se existente à data da entrega do bem, salvo quando tal for incompatível com a natureza dos bens ou com as características da falta de conformidade.
(…)
4 – Decorrido o prazo previsto no nº 1, cabe ao consumidor a prova de que a falta de conformidade existia à data da entrega do bem.».
Na sentença recorrida lê-se, além do mais:
«Concluindo, ao consumidor/comprador apenas cumprirá fazer a prova do defeito de funcionamento da coisa – da falta de conformidade/faco base da presunção -, sem que sobre si impendam os ónus de alegar e provar a causa concreta da origem do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega.
À primeira Ré vendedora, por seu turno, competia ilidir a presunção de não conformidade, mediante a demonstração de que a falta de conformidade resulta de facto imputável ao consumidor.
(...)
Assim, para que seja respeitada a ratio legis do regime jurídico de defesa do consumidor, ao autor-consumidor apenas cumpre provar a desconformidade enquanto incapacidade de utilização e não já a desconformidade enquanto defeito de funcionamento.
(…)
Aqui chegados, tendo-se apurado que a viatura se incendiou em movimento, dúvidas não restam que logrou provar, como lhe cabia por força da repartição do ónus da prova, que a mesma apresentava desconformidade, enquanto incapacidade de utilização para o fim a que se destinava (apto a circular sem se incendiar) e desvio nas qualidades e desempenho habitual de bens do mesmo tipo
E assim é ainda que se entenda que um incêndio por si só não possa ser considerado um defeito, uma vez que tal pressupõe necessariamente a sua existência».
Discorda a apelante, invocando em abono da sua tese, designadamente o acórdão desta Relação de 08/03/2022 (P. 1389/18.0T8TVD.L1-7, sustentando que impende sobre o apelado o ónus da prova de que o incêndio foi causado por um defeito do veículo, até porque devido ao estado em que ficou, é impossível à apelante fazer prova de que o vendeu sem qualquer defeito que pudesse causar esse evento.
Mas a impossibilidade de fazer a prova sobre a causa do incêndio devido ao grau de destruição do veículo existe para ambas as partes.
Tal como será o caso de deflagrar subitamente um incêndio numa máquina de lavar roupa danificando-a a ponto de impossibilitar apurar a causa desse evento. Será defensável que o consumidor tem o ónus de provar que a máquina de lavar tinha defeito que causou o incêndio?
Espera-se num veículo que circule sem que subitamente se incendeie, tal como se espera numa máquina de lavar roupa que seja utilizada sem que subitamente se incendeie. Ou seja, é expectável que esses bens possuam essa característica respeitante à segurança na sua utilização – trata-se de um requisito objectivo de conformidade nos termos do art. 7º nº 1 al. c) do DL 84/2021.
Portanto, se o bem não possui essa característica de segurança, há falta de conformidade.
No caso concreto, a falta de conformidade manifestou-se dentro do prazo previsto no art. 13º nº 1 do citado diploma legal, e por isso, presume-se existente à data da venda ao apelado, presunção essa que a apelante não ilidiu como lhe competia.
3. Da violação das condições da garantia
Só no recurso vem alegado que o apelado não respeitou a obrigação de efectuar a revisão até ao limite de 147.000 km e que por isso não pode ser imputada à apelante a responsabilidade de um incêndio que poderia ter sido evitado se a revisão tivesse sido efectuada em oficina por si determinada e detectada qualquer desconformidade.
Porém, trata-se de questão nova, não foi submetida à apreciação da 1ª instância e não é de conhecimento oficioso, pelo que está vedado o seu conhecimento em sede de recurso (neste sentido, cfr Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed, pág. 147).
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IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Lisboa, 09 de Outubro de 2025
Anabela Calafate
Eduardo Petersen Silva
Adeodato Brotas